FASCÍCULOS DE JORNALISMO - COMPREENDER A PROFISSÃO
Singular e subjetiva
A crônica revela um olhar intimista do autor do texto. Sutil e poética, na sua versão contemporânea ela traz uma leitura do cenário social e eterniza os acontecimentos. É um gênero no qual jornalismo e literatura caminham de mãos dadas ENTREVISTA
José Ruy Gandra analisa: “A crônica é o que melhor expressa o mergulho emocional”
REPORTAGEM
Nelson Rodrigues escreveu com deboche, ironia e escracho tanto no teatro como no jornalismo
Apresentação | Caro leitor
Expediente
A vida como ela é...
O
fascículo Crônica apresenta aos estudantes de jornalismo um gênero opinativo que circula livremente entre a literatura e o factual. Sua abordagem é o cotidiano. Seu foco é a vida longe dos holofotes. É um texto com ares de “conversa fiada”. Pode passar despercebida do olhar de um leitor racional. Nosso intuito com este fascículo é localizar, estabelecer e reposicionar o lugar da crônica no panorama do jornalismo brasileiro contemporâneo. Queremos iluminar esse gênero textual e, para tanto, esmiuçarmos ao máximo o tema, de forma que o leitor, ao pecorrer nossas reportagens, possa encontrar um significado profundo, intenso e que possa gerar “n” outras definições sobre o que é a Crônica e sua presença na sociedade. Nossa finalidade é formar conceitos, explorar a imaginação e atingir o núcleo da estética deste texto. Para finalizar, uma frase de Voltaire que sintetiza em parte nossa concepção: “É difícil libertar os tolos das amarras que eles veneram”. Seja na Crônica ou em qualquer outro gênero, acreditamos na expansão de ideias e agregação de valores que elas nos trazem.
Seção | Conceito “Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue está começada a crônica.” Machado de Assis, Crônicas Escolhidas, pág. 22
Chanceler Alzira Altenfelder Silva Mesquita Reitor José Reinaldo Altenfelder Silva Mesquita Pró-reitor de Graduação Luis Antônio Baffile Leoni Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Alberto Mesquita Filho Pró-reitoria de Extensão Lílian Brando G. Mesquita Diretor da Faculdade de LACCE Rosário Antonio D’Agostino Coordenação do Curso de Jornalismo Anderson Fazoli
Dois Pontos é um projeto experimental dos alunos de jornalismo (3ACSNJO e 3MCSNJO), desenvolvido na disciplina Jornalismo Impresso, em 2013. Orientação e Coordenação editorial Profa. Jaqueline Lemos (MTB 657/GO) Revisão Profª. Maria Cristina Barbosa Diagramação Alexandre Ofélio (MTB 62748/SP)
“O cronista que sabe atuar como consciência poética da atualidade é aquele que mantém vivo o interesse do seu público e converte a crônica em algo desejado pelos leitores. Atua como mediador literário entre os fatos que estão acontecendo e a psicologia coletiva. É por isso que muitos cronistas buscam inspiração no próprio jornal. Realizam uma tradução livre da realidade principal, acrescentando ironia e humor à chatice do cotidiano, à dureza do dia-a-dia. Os que se afastam do presente e enveredam pelo saudosismo, pela rememoração dos tempos passados, arriscam perder o público ou o limitam aos seus companheiros de geração.”
Editor assistente Sasha Cruz (RA: 201100518)
José Marques de Melo, Jornalismo Opinativo – Gêneros Opinativos no Jornalismo Brasileiro, Editora Mantiqueira, pág. 156
Fernanda Nunes (RA: 201113021)
Redação
Repórteres Amanda Garcia (RA: 201107435)
Luana Escardovelli (RA: 201103517) “Perdem tempo os teóricos preocupados em discutir se a crônica é um gênero maior ou menor. A função da crônica não é saber se é grande, pequena ou média, a função da crônica é explodir, é não deixar a peteca cair, é acordar as pessoas que estão dormindo de olho aberto, e gritar.” Lourenço Diaféria, Por que me ufano da minha horrível e gloriosa esquina, Depoimento – Escritor Brasileiro 81. São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura
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Renata Otaviano (RA: 201103486) Renata Sales (RA: 201105362) Wesley Mesquita (RA: 201113774) Capa/Imagem Morguefile/Mconnrs
Pingue-Pongue | José Ruy Gandra
Onde a imaginação tem lugar
José Ruy Gandra, cronista e jornalista há mais de 25 anos, aborda o presente, passado e futuro da crônica. Ele afirma: “O estilo é algo situado no limite entre jornalismo e ficção”
Q Por Fernanda Nunes
ue tal escrever uma crônica? O gênero é um dos mais pessoais e pede muita criatividade. No Brasil, se tornou popular nas palavras de Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes e tantos outros escritores que reinventaram o jornalismo no País. Mas o que alguém precisa saber para se aventurar nesse estilo? Batemos um papo com José Ruy Gandra, jornalista e escritor com centenas de crônicas publicadas. Formou-se em Direito pela USP e em História pela PUC-SP. Ao longo de seus 25 anos de carreira, já trabalhou como repórter no jornal Folha de S.Paulo e editor nas revistas Exame, VIP e Playboy. Já foi diretor de redação das revistas Web!, Viagem e Turismo, National Geographic e revista do Fantástico. Para ele, o texto é coisa de super-herói: “crônica não é opção, é heroísmo!”. O fascículo Dois Pontos foi conversar com esse jornalista.
Dois Pontos: Por que a crônica é tão importante para o jornalismo? José Ruy Gandra: Uma das marcas da crônica é ser muito autoral. O escritor é muito importante para o texto, porque ele tende a refletir sobre sua experiência, seja por coisas prosaicas como passarinhos no quintal do vizinho; seja o casamento que está acabando. É um jeito de contar estórias de uma forma intimista, sob o olhar do jornalista. A crônica é o que melhor expressa o mergulho emocional. Afinal, às vezes ser cronista não é opção, é heroísmo. É algo situado no limite entre jornalismo e ficção. Dois Pontos: Qualquer pessoa de qualquer idade pode ser cronista? José Ruy Gandra: Sim, claro! Podemos ser bons cronistas a qualquer tempo. O que muda são o caráter e a qualidade delas. No Brasil, porém, a crônica adquiriu um conceito de que é necessário ter uma grande vivência para escrevê-la. Discordo. Grandes escritores do Brasil escreveram suas melhores crônicas na relativa juventude, com 25, 30 anos, como Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Dos Pontos: Qual crônica de sua autoria que mais te marcou? José Ruy Gandra: Nos bons tempos da revista VIP, fizemos um especial sobre as sete mudanças capitais na vida de um homem. Tínhamos o primeiro carro, a primeira transa... E o primeiro filho, que eu escrevi. Foi uma das melhores, modéstia à parte. Fez muito sucesso, as pessoas comentaram bastante. Paternidade é uma maneira legal de tocar as pessoas, é um assunto muito importante. Fiquei com uma coluna na revista sobre o tema, que durou três anos. Dois Pontos: Há espaço para a crônica no mundo atual? José Ruy Gandra: O mundo atual é apressado e não contribui para o universo da crôni-
ca. Afinal, ela é um devaneio, e o autor precisa parar e pensar sobre o assunto. Mas o gênero se adapta com as novas mídias, como os blogs, nos quais a opinião do autor está presente. A partir disso, temos as crônicas dos jornais, que está perdendo terreno; das revistas, que estão se reinventando; e muitas se mantendo pelo ambiente digital.
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O mundo atual é apressado e não contribui para o universo da crônica
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Arquivo pessoal
José Ruy Gandra (no centro) é jornalista. Publicou, em 2011, Coração do Pai, pela Da Boa Prosa, que reúne crônicas sobre a relação entre pai e filho. Na foto estão Pedro (à esq.) e Paullo (à dir.), seus filhos
Dois Pontos: O que você recomendaria para uma pessoa que deseja ser cronista, mas não sabe por onde começar a escrever bons textos? José Ruy Gandra: Ela precisa ler crônica! Vale a leitura de grandes escritores como Fernando Sabino. Se for para indicar o melhor, eu prefiro o Rubem Braga. Agora, quando o assunto é a crônica mais bonita, fico com Quando o Amor Acaba, de Paulo Mendes Campos. Da nova geração, indico Antonio Prata. DOIS PONTOS | 3
Reportagem | Nelson Rodrigues
Reportagem | Inspiração
A vida carioca na sua plenitude
Leia muito, muito, muito...
Por Sasha Cruz
Por Wesley Mesquita
Tanto na crônica como no teatro, dramaturgo tem obra que aborda a sociedade, a família, o sexo... Sempre com muita ironia e escracho
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filósofo Jean Paul Sartre disse no livro “Em Defesa dos Intelectuais” (na página 59) referindo-se ao jornalista noticioso: “escrevente se serve da linguagem para transmitir informação”, e faz um parâmetro com o escritor literário, dizendo que “é um artesão que produz um certo objeto verbal através de um trabalho sobre a materialidade das palavras, tomando como meio as significações e como fim o não-significante”. O mundo do jornalismo é bem mais amplo do que reportar a notícia com o fato em si. A arte jornalística transcende esses limites e vai ao encontro, muito confortavelmente, da literatura, na qual encontrará uma fonte inesgotável de ideias e reflexões. Sendo tão mais profunda a sua função social, alguns jornalistas criam o dom de transformar qualquer fato cotidiano simples numa imersão a um mundo de sentidos e vontades, tal como Nelson Rodrigues. O jornalista nasceu em Recife no ano de 1912 e mudou-se para o Rio de Janeiro, Sasha Cruz
A obra de Nelson Rodrigues nas livrarias do Brasil 4 | DOIS PONTOS
então capital federal, com 7 anos de idade. Nelson Falcão Rodrigues teve contato com o jornalismo desde menino, profissão que seu pai exercia, e decidiu seguir seus passos. Conheceu o sucesso com suas peças de teatro. Vestido de Noiva, de 1943, é considerada marco zero do modernismo teatral brasileiro – e teve uma promissora carreira jornalística, atuando como cronista e comentarista. Fazendo um quadro um tanto quanto farsesco da sociedade brasileira da época, o dramaturgo retratou a burguesia carioca como nenhum outro o fez. Eternizadas no livro “A Vida Como Ela É...”, as crônicas que o amante do Rio de Janeiro escreveu satirizavam a vida carioca ao mesmo tempo em que chocavam com a sociedade. Como o brasileiro tem o costume de se autodefinir vira-lata, de nunca se valorizar, o dramaturgo tocava em assuntos como traição, deboche, ironia e escracho – tão puramente nacionais –, pois ele acreditava que dessa maneira suas palavras ficariam presas na mente das pessoas. Uma das coisas sobre a qual ele mais escreveu apaixonadamente foi sobre futebol e as seleções que jogaram as copas do mundo. Ele os apoiava, demonstrava sua paixão como ninguém através de crônicas que ficaram famosas no jornal Última Hora. Nelson imprimia em seus personagens características puramente nacionais, que eram um espelho da condição das pessoas que estavam ao seu redor. “O dramaturgo refletiu o que viveu. Saiu de Recife e foi para o subúrbio carioca muito jovem. Muitas das suas características não se revelam apenas através do sexo e da traição, a morte também está muito envolvida em todos os seus trabalhos, inclusive no teatro”, afirma Raquel Brandão Inácio, repórter da revista Caras e formada em jornalismo pela Universidade São Judas. Ela fez uma pesquisa de Iniciação Científica da Universidade abordando a obra do dramaturgo e do cronista. O título da pesquisa feita é A influência da dramaturgia nas crônicas de Nelson Rodrigues. “Acho que a sociedade de antes se chocava muito, ainda mais quando o tema era a sexualidade, porém hoje, apesar de mexer com as pessoas, acredito que elas têm uma dimensão diferente do que o autor retratava. Embora escondamos algumas verdades, elas ainda existem e o mérito de Nelson, talvez, foi o de escrever sobre essas verdades e expô-las em sua obra”, esclarece Raquel.
O mais importante para produzir um texto de qualidade são as referências
O
primeiro e principal passo para escrever uma boa crônica é o habito da leitura. Ler crônica, para quem deseja escrever um bom texto, deveria ser tão essencial quanto os dois litros de água mínimos que o ser humano precisa beber diariamente. Esse gênero, que é a mistura de jornalismo e literatura, exige muito de cada escritor. Como as características atuais desse gênero estão ligadas normalmente às transformações sociais e à valorização da história – quer dizer, os movimentos de todas as classes e não só o de grandes figuras, o cronista brasileiro, normalmente, relata sempre o cotidiano, o fato corriqueiro e, para que isso seja possível, é preciso conhecer e entender sobre diversos assuntos e questões. “A ironia é uma arma estética e estilística do cronista. Ela veio à tona fundamentalmente durante o Iluminismo, sobretudo na França e na Inglaterra”, conta o professor Augusto Cesar Vassilopoulos Natal, conhecido como Guto, bacharel em Letras em 2001 pela Universidade São Judas Tadeu, e doutorando em Letras (Linguística e Literatura) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. O professor Guto defende que a ironia é importante para produzir uma boa crônica. Ele diz também que antes de tudo é preciso ter referências de grandes mestres da literatura mundial, e que esses autores possam sempre inspirar os novos escritores e leitores em seus trabalhos. “Até hoje somos todos herdeiros intelectuais de Machado de Assis, por ordem cronológica”, conclui o professor Guto, destacando que Machado é, sem sombra de dúvidas, um dos cronistas mais importantes da nossa história, e que um passo importante para a produção de uma crônica é conhecer, reconhecer e entender quais são as suas influências e as referências de autores que existem por aí. O professor ainda indica um livro da escritora Clarice Lispector: A descoberta do mundo, que é uma seleção de crônicas publicadas na coluna semanal que Clarice escrevia aos sábados, no Caderno B, do Jornal do Brasil. Para criar uma crônica divertida, e que chame a atenção do leitor, é preciso colocar no texto trechos de diálogos – isso sempre funciona muito bem! – e com expressões do cotidiano. Essa é uma característica da escritora Fernanda Young, que escreveu dezenas de crônicas para o público feminino durante anos na revista Claudia, da editora Abril.
Fernanda Young normalmente escreve a crônica no formato de uma carta. Um dos textos mais famosos é o “Para o Pequeno Príncipe”, escrito em 2008, em que ela escreve uma carta alertando o menino sobre o perigo da raposa. “Ela joga na cara tudo o que faz em nome do outro. Ela deseja afeto, mas o quer como uma responsabilidade de mão única (...)”, diz em um trecho. E a dica final é: Essa conversa com seu leitor funciona! É como se estivessem próximos. Outra dica importante sobre as crônicas contemporâneas é escrever e lê-las em voz alta – o texto falado é muito diferente do texto escrito, e uma crônica mais solta pede esse diálogo. Mas é claro, que sempre há uma exceção a toda regra.
Wesley Mesquita
Muita leitura e referências são fundamentais para quem deseja se aventurar no mundo da crônica DOIS PONTOS | 5
Reportagem | Capa
Sob os meus olhos
Pioneiros no Brasil
Considerada como gênero menos relevante para uns e inspiração para outros, a visão do cronista pode marcar uma sociedade
A
Por Renata Otaviano
Registro de nascimento Pero Vaz de Caminha é o autor da primeira narrativa escrita sobre o Brasil, uma crônica
Caminha registra a chegada da frota portuguesa, narra o contato com índios e também a celebração da primeira missa. Vejam um breve trecho: “Quarta-feira, 22 de abril: Neste dia, a horas de vésperas, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele: e de terra chá, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome: O Monte Pascoal e à terra: a Terra da Vera Cruz. Quinta-feira, 23 de abril: Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças: e, ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças - ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, quatorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos. Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes; e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, onde falaram entre si. E o capitão-mor mandou em terra no batei a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batei à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o bater; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.” 6 | DOIS PONTOS
crônica, desde seu surgimento, construiu um caminho muito singular para manter-se viva até os dias de hoje. Seus recortes mais antigos dão-se no antigo Egito, quando Faraós pediam aos seus escribas que relatassem ações políticas, econômicas e bélicas – o que hoje se assemelha ao papel de um repórter. Atualmente, longe do foco unicamente noticiarista, a crônica está para a literatura, assim como seus assuntos estão para a subjetividade autoral. Palavra extraída do latim “chronica”, a crônica no início da era cristã era o relato temporal dos fatos. Junto com o surgimento da imprensa, o conceito do gênero ganha caráter opinativo e passa a ser publicado em jornais, os conhecidos folhetins – a ela se deve a ascensão dos veículos impressos. Situados na Europa, no século XIX, a crônica não tem traços literários e sim históricos, pois pontuavam o factual e sua importância estava em informar o leitor. Já no Brasil, nesse mesmo século, os textos começam a se distanciar do formato europeu e a ganhar características locais singulares. No Brasil, a partir do século XIX, a crônica deu as mãos à literatura e firmou-se como gênero literário. Para Priscila Ferreira Rodrigues, formada em letras/editoração, longe do lirismo incompreensível de muitos poemas, escrever ganha função social. “A crônica torna-se importante para a literatura brasileira do século XIX, pois aproxima os leitores da realidade brasileira. Embora escrever a realidade brasileira seja característica clara do período Pré-Modernismo e Modernismo, durante o Romantismo já se seguiu essa tendência, principalmente na fase nacionalista, quando se queria tanto falar sobre a nação recém-independente”, afirma. Embora uma parcela muito grande do país no século XIX fosse analfabeta, a literatura que chegava até as mãos da população leitora era ficção, romances idealizados, epopeia de grandes heróis gregos e portugueses como os casos da Ilíada e de Os Lusíadas, distantes da realidade. “A crônica diminuiu a distância entre literatura e realidade e, por serem textos mais curtos que as obras clássicas, facilitou a leitura e despertou o interesse do leitor brasileiro por seu país. Além de ser um laboratório experimental para muitos de nossos grandes escritores”, conclui Priscila. Certa vez, Carlos Drummond de Andrade, ao falar sobre a importância do gênero literário em questão dentro do cenário so-
cial, disse que, ainda que os acontecimentos percam a atualidade, a crônica não perde, pois ela traduz uma visão tão sutil, tão maliciosa, tão viva da realidade, que o acontecimento fica valendo pela interpretação que lhe é dada. Logo, podemos empreender que a visão subjetiva e particular eterniza o acontecimento. “Nossa crônica atual é um recorte do cotidiano, uma fotografia do dia a dia. Seus personagens são os anônimos, os que não têm visibilidade, mas que formam o povo. A crítica subestima a crônica como gênero menor. Menores são apenas os cronistas que escrevem mal, não têm o dom. Nossa crônica é um documento lírico, terno, trágico, melodramático e cômico”, diz Ignácio de Loyola Brandão, 77 anos, cronista, contista e jornalista brasileiro. Mensurar a importância da crônica dentro de um cenário literário ou jornalístico é falar da própria história de poetas e jornalistas, uma vez que os dois mostram subjetivamente suas visões sobre o mundo em suas crônicas. Luci Afonso, cronista brasiliense de 53 anos, integrante do Núcleo de Literatura do Espaço Cultural da Câmara, estabelece uma linha tênue que separa literatura e jornalismo. “Crônica é tudo que for manchete na alma do cronista. Logo, busco escrever sobre aquilo que me interessa, que me emociona, que me diverte, que me revolta. Crônica é tudo que me comove”, conclui a escritora.
Os autores e os jornais que marcaram os primórdios da crônica nacional
Da redação O Jornal do Comércio e a Gazeta de Notícias, ambos publicados no Rio de Janeiro no Século XIX são os jornais que registram a aparição de algumas das primeiras crônicas brasileiras. De acordo com estudiosos do tema, como o pesquisador Afrânio Coutinho, os folhetins são os textos do período inicial da imprensa brasileira que mais se aproximavam do que é a crônica hoje. Um nome é importante para esse momento: Francisco Otaviano, que passou a publicar em 1852 uma seção chamada “Folhetim Semanal” no Jornal do Commercio. Outro momento importante desse período inicial do jornalismo brasileiro é a presença de Machado de Assis, especialmente na Gazeta de Notícias, jornal do qual foi colaborador regular durante muitos anos, desde 1881, com a publicação de dezenas de crônicas.
Para ler online Por Renata Sales Escrever muitas vezes é apenas um hobbie para algumas pessoas, e às vezes, essas pessoas resolvem se juntar com outras e reunir seus rabiscos em um site na internet. Por isso é possível encontrar diversas páginas com crônicas. Um desses sites é o www.cronistas.com.br que foi idealizado em 2002 por cinco cronistas em busca por entreter os leitores das mais variadas faixas etárias, difundindo esse gênero literário. Outro site que também é muito conhecido é o www.cronistasreunidos.com.br que foi criado por nove homens universitários com a ideia de levar um pouco de bom humor ao dia a dia das pessoas. O sucesso do segundo site foi tão grande que em 2008 esses amigos escritores lançaram juntos um livro de crônicas intitulado Almanaque do Macho Moderno.
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Reportagem | Chuteiras
Reportagem | Mulheres
Metáforas e paixão nas páginas dos jornais
Vozes femininas na imprensa
O futebol, esporte nacional predileto da grande maioria dos brasileiros, é também assunto recorrente nas crônicas
Por Amanda Garcia
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o início do século XX, a crônica buscava espaço entre os meios de comunicação e o futebol começava a se desenvolver como esporte popular. História de ídolos, resultados positivos e negativos de jogos estão presentes na narrativa jornalística. Mario Filho, importante jornalista e escritor brasileiro, teria sido a primeira referência no surgimento da crônica esportiva. Com uma forma de escrita diferenciada, trouxe um estilo mais simples, criando uma nova distância entre o público e o jornalista. O leitor se aproximou do fato e o futebol conquistou espaço nas primeiras páginas dos jornais. A poesia, a subjetividade e a provocação de sentimentos eram elementos dominantes
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Quando vemos antologias de crônicas brasileiras, frequentemente os nomes de autoras são raros, ou muitas vezes são esquecidos. Mas o País tem um time de primeira nesse gênero!
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Por Renata Sales nos textos de Armando Nogueira. Ele redefiniu a escrita sobre futebol, conduzindo para o lado poético e fazendo uso de uma linguagem metafórica. Essa mudança contribuiu para a especificação da crônica esportiva como subgênero. Sua narrativa enfatizava as análises táticas e técnicas do esporte. As décadas de 1920, 1930 e 1940 foram responsáveis pela massificação e transformação do futebol, que deixou de ser apenas um esporte nacional para virar uma paixão nacional, mobilizando milhares de pessoas em todos os domingos de jogo. João do Rio, Rubem Braga, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues estão entre os nomes de outros grandes cronistas responsáveis pela aceitação da crônica, principalmente da esportiva, no Brasil. Para estes autores, o futebol era motivo de poesia. Luiz Ademar Júnior, jornalista, acredita que todas as pessoas que falam e comentam sobre futebol são cronistas esportivos. Luiz é formado pela FIAM/FAAM, comentarista no canal SporTV e presidente da Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo – Aceesp. “Narrar um jogo é contar uma história, ou seja, fazer uma crônica”, afirma. O comentarista, porém, concorda que a crônica perdeu o romantismo. “Antigamente os jornalistas tinham contato direto com os jogadores, os textos eram mais elaborados, era uma época romântica. Depois da invenção da internet, o imediatismo se tornou prioridade e impediu a possibilidade de trabalhar o texto com inteligência, acabando com o encanto das escritas antigas”, conta Luiz. Bruno Vicari, jornalista formado pela Universidade Mackenzie, é comentarista de esportes dos jornais do SBT e da rádio Jovem Pan e discorda de Luiz Ademar. Em sua opinião, todo jornalista esportivo não é também um cronista. “Hoje em dia a prioridade é dar a notícia antes de todo mundo e isso está ficando cada vez mais difícil”, conta Bruno. Para ele, ser cronista é saber escrever um bom texto, ter uma opinião bem formada e argumentada e ser alguém que possa se destacar em qualquer meio de comunicação elementos que não estão presentes em todos os comentaristas. Atualmente o único esporte abordado pelo gênero é o futebol. Segundo Bruno Vicari e Luiz Ademar, para que a crônica se desenvolva a partir de outras modalidades, a mídia deve dar mais espaço e a população brasileira precisa aprender a gostar e se habituar aos outros esportes.
achel de Queiroz, Elsie Lessa, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles, Ana Miranda, Martha Medeiros, Elisa Lucinda, Tati Bernardi, Fernanda Young ... Certamente você já ouviu falar desses nomes, ou pelo menos da maior parte deles. Mesmo assim, as mulheres cronistas brasileiras são pouco lembradas por nós. Por exemplo, na obra As cem melhores crônicas brasileiras (Editora Objetiva, 2007), organizada por Joaquim Ferreira dos Santos, dos 62 autores selecionados, apenas seis são mulheres. Em outra obra de referência sobre o tema, A Crônica, de Jorge de Sá (Editora Ática, 2008), o autor nos leva a conhecer o estilo de oito escritores-cronistas, mas nenhum deles é mulher. São exemplos desse “esquecimento”. Mas nossa tarefa aqui é justamente destacar o trabalho delas, a presença delas no mundo da crônica no Brasil. Sem dúvida, se pensarmos em nomes de destaque, as figuras mais conhecidas são Raquel de Queiroz, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. Elas se destacaram na arte de elaborar crônicas. Escreveram obras primas da literatura e do jornalismo brasileiro. Clarice Lispector é uma das mais famosas e respeitadas cronistas do Brasil - ela nasceu na Ucrânia e foi naturalizada brasileira. Com mais de 20 obras publicadas, ela se dedicou não apenas às crônicas, mas também à literatura infantil e ao jornalismo. Infelizmente, Lispector teve seu trabalho interrompido aos 56 anos quando faleceu devido um câncer inoperável no ovário, pouco tempo após a publicação de seu livro “A Hora da Estrela”. “Sinceramente não vejo um motivo para ligar crônicas a nomes masculinos, não acho que exista um ‘preconceito’ com textos escritos por mulheres, pelo menos nunca notei nenhum tipo de tratamento especial para homens”, diz Camila Marinho Fremder, colunista da revista Glamour Brasil, formada em Propaganda e Marketing pela Unip. Camila é um exemplo da presença da mulher no mundo das crônicas. “Nunca fui uma boa aluna, costumava dar muito trabalho na escola e acho engraçado e um pouco irônico ter virado escritora. Peguei gosto pela escrita mandando e-mails para o meu analista, eu costumava pedir para contar minhas dúvidas e indagações por e-mail porque achava ser mais fácil de me expressar”, explica ela sobre como começou a se interessar pela escrita. “Foi meu analista quem mais me encorajou a fazer um blog em 2007. Em pouco tempo
comecei a escrever para revistas e lancei um livro de crônicas em 2011”. Além de ser um exemplo de escritora, Camila também é grande admiradora de outras mulheres cronistas. “Tati Bernardi e Martha Medeiros sempre me inspiraram durante minha carreira, ambas são cronistas incríveis. Cada uma tem a sua própria marca textual e trazem questionamentos muito humanos”, afirma a colunista. Tati Bernardi é uma das mais importantes cronistas brasileiras da atualidade. A escritora é formada em Propaganda e Marketing, tem quatro livros publicados e ganhou grande destaque na mídia após muitas de suas frases começarem a ser divulgadas em redes sociais e compartilhadas por milhares de internautas. Já Martha Medeiros também trabalhou com publicidade, mas se encontrou profissionalmente quando resolveu partir para a carreira na literatura. Ela tem mais de 20 livros publicados sobre os mais variados assuntos, sendo muitos desses de crônicas, que até ganharam adaptações para o teatro. Martha escreve regularmente na imprensa brasileira, em especial para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e O Globo,, do Rio de Janeiro.
Sugestões de leituras Obras de mulheres cronistas para você ter na sua cabeceira e degustar todos os dias!
Feliz por nada, de Martha Medeiros (L&PM, 2011) Passaporte para a China – crônicas de viagem, de Lygia Fagundes Telles (Companhia das Letras, 2011) Parem de falar mal da rotina, de Elisa Lucinda (Leya, 2010) A descoberta do mundo, de Clarice Lispector (Rocco, 2008)
Reprodução
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Resenha | Destaque
Reportagem | Mundo
Narradores de todas as nacionalidades Dos registros oficiais, passando pelas aventuras dos navegadores, até chegar aos relatos prosaicos do cotidiano, a crônica percorreu diversos caminhos
Por Wesley Mesquita (texto e fotos)
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e acordo com o pesquisador Wellington Pereira, autor do livro Crônica: a arte do útil e do fútil, durante séculos o termo crônica era usado para designar relatos (registros) cronológicos. No período renascentista ela se aproxima do ensaio, mas é somente no Século XIX que “o conceito de crônica se amplia. [...] O cronista desse século procura absorver os ideais do mundo moderno”, conforme escreve Pereira. Outros autores comentam que, na história mundial, pode-se dizer também que os cronistas surgiram no Egito e na Suméria: eram escribas, quem dominavam o dom da escrita, que armazenavam em papiros (o precursor do papel) e em paredes o que podemos chamar de início da organização textual a respeito da existência dessas sociedades.
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seja, seria um tipo de texto mais próximo da reportagem interpretativa no Brasil. Mesmo que o conceito de crônica possa ser diversificado, muitos autores mundo afora se consagraram com textos que são peças de arte da história cotidiana. Em todos os continentes nomes relevantes saltam nas páginas da imprensa. Cronistas latino-americanos, por exemplo, merecem destaque como: o poeta e diplomata chileno Pablo Neruda (1904 — 1973), premiado com o Nobel de Literatura em 1971, e também o escritor e jornalista peruano Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura de 2010, e o escritor colombiano Gabriel García Márquez, considerado um dos autores mais importantes do século XX, Nobel de Literatura de 1982. Entre os cronistas ainda ativos pelo mundo, há um merecido destaque a Bill Bryson, escritor e jornalista norte-americano que escreve sobre sobre viagens, os costumes, mas Referências mundiais também histórias em geral – algo como Mark Não existe uma definição única e precisa Twain (1835 — 1910) fazia. Uma das obras do que é a crônica no campo do jornalismo. de Bryson é Crônicas de um país bem grande, O pesquisador José Marques de Melo escla- publicado pela Companhia das Letras. rece, na obra Jornalismo Opinativo (Editora Mantiqueira, 2003), que na França, Itália, Prata da casa Espanha, Inglaterra, Alemanha ou Portugal No Brasil, Pero Vaz de Caminha (1450 — podemos verificar que o texto classificado 1500) é considerado como o nosso primeiro como “crônica” no jornalismo é vasto e di- cronista, apesar de ser português, foi dele o ferenciado. primeiro relato sobre o nosso país, seguido Segundo escreve Marques de Melo, “no de Hans Staden (1525 — 1579), José de Anjornalismo espanhol, usa-se o termo crôni- chieta (1534 — 1597), Gregório de Matos ca para designar a produção jornalística que (1636 – 1695), entre outros. relata fatos, mas que também os analisa”. Ou A crônica brasileira é um gênero especial, cultivado com charme e graça por autores de destaque como João Ubaldo Ribeiro, Luis Fernando Veríssimo, Humberto Werneck entre outros. No passado tivemos Fernando Sabino, Rubem Braga (1913 — 1990), Paulo Mendes Campos (1922 — 1991), João do Rio (1881 — 1921), Machado de Assis (1839 — 1908) e Olavo Bilac (1865 — 1918). “Gosto de ler ficção e livros que narram fatos históricos. Leio e escrevo crônicas. Para ser sincera, é um dos textos que mais gosto”, conta Eliane Natividade, escritora e jornalista, formada pela Universidade São Judas. Ela destaca que o gênero é um texto necessário em todo o mundo, mas que tem um apego especial pela crônica brasileira. “Acho que a crônica tem muita importância, e principalmente a do nosso país! Porque é um tipo de texto crítico, de registro breve de um fato, que pode usar a ironia, o humor, a metáfora, e atinge com muita facilidade as pessoas. Principalmente por causa do humor e da ironia”, analisa a jornalista.
Nos meandros do jornalismo e da literatura
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Por Amanda Garcia
ara quem deseja se aprofundar no assunto e saber um pouco mais sobre a crônica e sua atuação no jornalismo, o livro Crônica: a arte do útil e do fútil é indispensável. Escrito por Wellington Pereira, jornalista e doutor em Sociologia pela Université Paris V-Sorbone, a obra corresponde ao seu trabalho de mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal da Paraíba. Pereira traz um resumo da história do gênero literário, desde sua origem à ascensão no jornalismo, e faz uma pertinente reflexão sobre um texto muito singular na imprensa. Logo na abertura do livro o autor destaca que a crônica é um gênero característico do Brasil. No primeiro capítulo, Pereira explora o significado da palavra e o seu desenvolvimento conceitual, que em um primeiro momento priorizava a organização cronológica dos fatos sociais. Não havia uma interpretação da narração, e sim apenas uma apresentação. Ao longo do século XII, a crônica assume características diferenciadas, aparecendo tanto como narrativa histórica quanto ficção literária. Já a partir do século XIX, o gênero
adquire maior liberdade estética e passa a ter uma personalidade literária com características próprias. Quanto à crônica jornalística, segundo Pereira, ela se limita não a informar e opinar, mas a construir novos significados, combinando com as variadas linguagens que o cronista usa para representar o mundo ao seu redor aos leitores. Com o passar do tempo, os jornais assumem o formato de empresa e a imprensa se torna meio política, meio literária. O autor analisa a construção do jornalismo no século XIX. Até 1898, não havia uma técnica de apresentações nos jornais e não era utilizadas manchetes nas primeiras páginas, predominavam os gêneros opinativos, literários e fatos políticos. As mudanças ocorrem quando começam a ser publicadas diariamente as crônicas de Machado de Assis na Gazeta de Notícias. Pereira analisa o jornalismo do século XX, que perde seu caráter literário. O autor ainda cita o trabalho jornalístico de Carlos Drummond de Andrade, que criou novos parâmetros para a linguagem jornalística, narrando um mundo pós-moderno com maior domínio de enunciados.
Estante fundamental
Serviço Crônica: A Arte do Útil e do Fútil, de Welington Pereira (2004) (Calandra)
Pena de Aluguel, de Cristiane Costa (Companhia das Letras)
Melhores Crônicas, de Moacyr Scliar (Global)
“O livro ampliou minha visão sobre a interface entre o jornalismo e a literatura e me convenceu de que ambos podem ser úteis um ao outro. Penso que a literatura sensibiliza o jornalista para a realidade, ao forçá-lo a enxergar sob novas perspectivas.”
“O cronista é um artesão do cotidiano. Vê o que os outros veem, mas enxerga por um ângulo jamais pensado. Moacyr Scliar foi um dos maiores cronistas contemporâneos. Lê-lo? Como não?”
Camila Maurer, jornalista e trabalha na RBS TV.
Luiz Baronto é mestre em Educação e professor na Universidade São Judas
A Crônica, de Jorge de Sá (Atica) “Jorge de Sá mostra que, apesar de fazer parte da rotina diária de um jornal, a crônica pode ser a poesia do cotidiano, a mágica de transformar o dia a dia comum num relato capacitado para superar a igualdade de todos os outros dias de nossas vidas.” Daniele Tavares, estudante de jornalismo na Universidade Metodista de São Paulo e estagiária do Diário do Grande ABC.
O Prazer do Texto, de Roland Barthes (Edições 70) “Barthes recorre à sua peculiar maneira de escrever apaixonadamente, sem perder as consistências teóricas e analíticas, notadas pelo domínio de repertório a que pretende reportar-se. Ele enfatiza o prazer de ler como sendo o prazer de descobrir.”
Augusto Cesar Vassilopolus, doutorando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e professor na Universidade São Judas. DOIS PONTOS | 11
Crônica | Relato poético
A última entrevista de emprego Por Luana Escardovelli
A
cabo de sair de mais uma entrevista de emprego, estou no trânsito caótico e em transe voltando para casa. Desta vez estava concorrendo a uma vaga no jornal da cidade para preencher um espaço entre o noticiário e as colunas. Ontem estava em uma revista e, como sempre foi igual, perguntaram das minhas experiências, da minha vida pessoal e me pediram para aguardar o (não) retorno. Hoje eu já esperava o mesmo. Cheguei trinta minutos mais cedo, dei o nome na recepção e aguardei em uma sala até que a tal moça do RH me chamou. Entrei em um lugar grande
“
Muitas vezes escrevo sobre acontecimentos banais, sem aparente significado
”
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e vazio, com apenas algumas cadeiras e com uma temperatura equivalente a um inverno russo. As paredes ameaçavam, eram de vidro e eu me sentia em uma vitrine. O local ficava bem em frente à redação, onde o silêncio era impraticável e o barulho saia de todos os lugares: teclados, telefonemas, das páginas folheadas, de impressoras. Enquanto observava as atitudes dos meus, talvez, futuros colegas de trabalho, a entrevistadora soltou uma per-
gunta – “Quem é você?”. No momento achei que ela tivesse tido uma perda de memória, mas percebi que estava falando sério. Com tom de dúvida e desconfiada sobre o que iria responder estava certo, eu disse o meu nome. Ela soltou um “não” junto com uma risada e em seguida emendou – “Se descreva! Imagine que você é sua amiga, mãe ou alguém muito próximo e me fale o que eles diriam de você”. No primeiro momento, lembrei-me da minha mãe reclamando sobre como eu falo demais e costumo ser muito crítica com tudo. Recordei da Edi, minha melhor amiga, dizendo que eu tenho mania de não tomar partido de nada e nem de ninguém, que sou concisa e despojada de toda arrogância. Pensei também no meu namorado, sempre deixando claro sua irritação pelas minhas ironias. Contudo, abandonei esses pontos para lá e comecei a dizer à moça o quão sou versátil. “Consigo escrever de qualquer assunto que ocorra no cotidiano”, disse com segurança. O que é verdade. Adoro chegar em casa e narrar aquilo que vi. Descrevo aos meus familiares o meu dia e faço milhares de comentários. Muitas vezes escrevo sobre acontecimentos banais, sem aparente significado, e faço todos refletirem sobre. Além disso, sou uma pessoa que consegue falar de modo claro e inteligível. Gosto que todos fiquem atentos e entendam aquilo que falo. Depois de alguns instantes falando, percebi que minha imaginação, como de costume, estava começando a intensificar. O diálogo que estava tendo com a garota se transformou em um monólogo, no qual, às vezes, eu falava em primeira pessoa e em outros momentos eu falava em terceira. Decidi então parar por ali. E por ali ficamos. A entrevista foi só isso. Ela apenas disse obrigada e até amanhã. Agora estou no carro, desacreditando que finalmente poderei fazer o que gosto: escrever sobre o cotidiano de uma maneira poética e subjetiva. Afinal, eu sou uma crônica.