O São Paulo - 3314

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4 | Ponto de Vista | 10 a 15 de setembro de 2020 |

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Editorial

O patriotismo cristão

N

o ensejo das comemorações da Independência de nossa Terra de Vera Cruz, convém relembrar o ensinamento da Igreja acerca do verdadeiro e sadio patriotismo. O Catecismo da Igreja Católica ensina, em primeiro lugar, que a unidade do gênero humano foi prejudicada pelo pecado, tendo Deus, então, agrupado os homens “segundo seus países, cada um segundo sua língua e segundo seus clãs” (cf. Gn 10,5). Esta “pluralidade de nações” foi ordenada para “limitar o orgulho de uma humanidade decaída”, sempre tentada a construir, numa nova Torre de Babel, um governo global divorciado do Criador. A organização em nações, no entanto, é transitória e não vigorará na eternidade – e, devido ao nosso pecado, cria o risco permanente de uma idolatria da pátria ou de um indevido relativismo religioso (cf. CIC, nos 56-57).

Para evitar tais perigos, a Igreja continua a ensinar mais detalhadamente os deveres que derivam do amor à pátria contidos no Quarto Mandamento (CIC, nos 2.238-2.240). Nós, cristãos, portanto, devemos ser cidadãos exemplares: respeitar e colaborar lealmente com a autoridade legitimamente constituída (cf. 1Pd 2,13.16); rezar pelos governantes (cf. 1Tm 2,2); estimar os concidadãos; contribuir com o pagamento de impostos, sempre que sejam justos e não abusivos; votar com consciência e responsabilidade, exercendo o direito ao voto; e defender o país, interessar-se e participar da vida pública, de modo a santificar a política. Se acaso, porém, a autoridade pública se desviar de sua finalidade, pretendendo emitir preceitos e leis contrários à moral, aos direitos fundamentais ou ao Evangelho, o cristão tem não apenas o direito, mas também o dever, de recusar obediência

por objeção de consciência (CIC, nº 2242). A qualquer lei, decreto ou ordem judicial que permita matar inocentes no ventre materno ou que restrinja os direitos divinos, por exemplo, o verdadeiro cristão responde, como São Pedro: “É preciso obedecer antes a Deus que aos homens” (At 5,29; cf. Mt 22,21). Quanto ao acolhimento de imigrantes, trata-se de manifestação da virtude bem cristã da hospitalidade. A imigração deve ser admitida “na medida do possível” e “em vista do bem comum”. Ao imigrante acolhido, por sua vez, cabe respeitar com gratidão o patrimônio material e espiritual do país que o acolhe, obedecer às suas leis e dar sua contribuição financeira” (CIC, nº 2.241). Enfim, ensina a Igreja que toda sociedade deve ser organizada conforme a visão de homem revelada por Deus, Criador e Redentor. E adverte que, historicamente falando, as socie-

dades que rejeitaram a Deus e buscaram seus referenciais em si mesmas ou em suas ideologias exerceram um poder totalitário e tirânico sobre o homem (CIC, nº 2.244). Poderíamos concretizar essas lições sobre patriotismo com a vida de São Tomás More (1478-1535), retratada em “O homem que não vendeu sua alma”, vencedor de seis Óscares. Advogado e célebre humanista, após grandes sucessos diplomáticos em nome da Coroa, ele foi alçado ao cargo de chanceler da Inglaterra. A certo momento, no entanto, o Rei ordena-lhe agir contra a lei de Deus, e diante da firme recusa, More, nosso exemplo de cidadão cristão, é condenado por lesa-pátria! Felizes de nós, no entanto, se pudermos morrer repetindo o que ele disse no cadafalso: “O Rei ordenou-me ser breve, e como sou o obediente servo do Rei, breve eu serei. Eu morro como bom servo de Sua Majestade – mas primeiro de Deus”.

Opinião

Imagem e realidade: os limites da Ciência contemporânea Arte: Sergio Ricciuto Conte

Dener Luiz da Silva Por que há variação na forma como o novo coronavírus acomete as pessoas? Por que tem sido considerada uma doença tão imprevisível, a ponto de colocar o mundo “em suspenso”? O estupor diante dessas perguntas pode ser explicado, em parte, na história da Ciência ocidental, por sua especialização exacerbada, sua visualização pela sociedade, as imagens que gera e um certo realismo ingênuo, característico da razão contemporânea. A Ciência, como manifestação da razão no Ocidente, possui uma longa história. Nascida no ambiente ao qual os historiadores, posteriormente, chamaram “época das luzes” (Iluminismo), buscava afastar a razão ideal da crença cega e da aceitação de verdades a partir, exclusivamente, da autoridade. Nesse sentido, em seu momento inicial, algumas vezes conflitava com práticas e vivências religiosas próprias do fim da Idade Média e, erroneamente, acabou sendo vista como contrária à fé. Com o Positivismo de Augusto Comte, chegou-se à proposição da razão submetida apenas às leis da aprovação factual positiva. Só é razoável aquilo que for passível de verificação. A racionalidade científica torna-se medida de todas as coisas. Esse conflito

foi, ao longo dos séculos, assumindo diferentes roupagens chegando, no século XXI, à explícita negação das dimensões religiosas ou a negações delimitadas e parciais. Além disso, da crescente especialização e divisão do saber decorre a criação de culturas e linguagens próprias. O “cientificês” obriga-nos a uma alfabetização científica para a leitura e consumo dos produtos da nova era. Especialistas são requeridos para manifestar-se sobre coisas que, antes, eram triviais ou faziam parte da experiência cotidiana. Tais

especialistas, em nome da Ciência, lançam mão de vocabulários específicos e levam ao limite extremo sua vocação universalista. Não existem mais os seres humanos, mas “o” ser humano descrito pelos sociólogos, psicólogos, neurocientistas ou médicos. Do mesmo modo, não há os organismos aos quais se denomina vírus, mas “o” coronavírus, tal qual descrito pela ciência epidemiológica. Sua imagem estampada nos jornais ganha status de entidade própria no imaginário popular. Ao se difundir a imagem, foto-

grafada ou imaginada, do vírus pelas várias mídias, construímos uma ideia dele que, em certo sentido, se aproxima da realidade – porque fundada em representações reais –, mas também a reduz, se não for compreendida como representação. O vírus, nesse sentido, terá uma característica geral, que aquelas representações alcançam, e isso já é um grande auxílio da Ciência. Ele possui, igualmente, porém, realidade única, singular, para cada indivíduo (ou organismo), que a representação não pode alcançar. A variação no efeito que o vírus produz em cada corpo humano é, por si, a integração entre, no mínimo, para sermos didáticos, dois indivíduos singulares (o primeiro, o humano; o segundo, o vírus). Assim como nós somos únicos, originais, também é de se esperar que cada partícula do vírus seja diversa, específica, acoplando-se e provocando reações típicas, mas igualmente singulares. Urge a necessidade de uma razão que se abra às possibilidades do real e não confunda a representação com aquilo que se busca representar (o realismo ingênuo), exigindo que a realidade se comporte segundo a expectativa. Uma razão livre é o de que mais precisamos. Dener Luiz da Silva é professor de Psicologia na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

As opiniões expressas na seção “Opinião” são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editorais do jornal O SÃO PAULO.


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