josĂŠ augusto sampaio
afetos
abismos
&
engenharias contos de horror
afetos, abismos & engenharias
josĂŠ augusto sampaio
afetos, abismos & engenharias
josé augusto sampaio
Este e-book é uma miniatura do livro “afetos, abismos & engenharias”. A intenção desta apresentação é mostrar aos leitores os primeiros contos do livro “afetos, abismos & engenharias” que será lançado no mês 11/12 de 2013 (sem data definida). Se, por ventura, você ler todas as páginas conseguintes e se interessar em encomendar o livro completo com todas as histórias, para o dia do lançamento, saiba como fazer isso na página 61 (sessenta e um), ou escreva para guto.sampaio83@gmail.com; ou acesse o joseaugustosampaio.blogspot.com.br E para contribuir, não só com o escritor, mas também com a arte e a literatura brasileira, compartilhe este link! Edição de texto: Isana Barbosa Capa: Editora Publique Já! A venda e a veiculação deste livro são proibidas sem a autorização do autor José Augusto Couto Sampaio Neto e Editora Publique Já!. ©afetos, abismos & engenharias – e-book de apresentação, lançado originalmente em setembro de 2013. ©José Augusto Couto Sampaio Neto
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afetos, abismos & engenharias
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Ao leitor: Tenho que informar, antes que você prossiga: - Este livro é para maiores de
idade. Contém temas e descrições que podem incomodar ao extremo. Neste e-book reduzido e promocional, ofereço ao leitor cinco histórias, das dezesseis que o livro completo terá. Favor observar o “Índice”. Em meu terceiro livro de contos e quinto da carreira como escritor (já lancei outros dois de (neste, cinco) poemas), trago dezesseis histórias com temas diversos e que discutem diretamente as maledicências da alma e do comportamento humano pessoal e social. Mais uma vez, ofereço-lhes narrativas de gênero adulto, com um toque de realismo fantástico e horror nas imediatas páginas. O real interesse, quando me disponho a escrever, é trazer à tona minhas opiniões sobre a sociedade moderna em que vivemos. Isso e mais a liberação de meus demônios pessoais são os meus principais combustíveis para continuar a criar linhas para a literatura em geral. Boa leitura. José Augusto Couto Sampaio Neto.
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Índice:
afetos
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Vocação e entrega Com o afeto Martinha e Fidel Mariana já está sorrindo Uma catarse para começar bem o dia Calcinha
abismos O maior abismo da minha vida Amor próprio Hora da refeição Lobo Frank O derradeiro
A obra de arte O câncer e a carnificina O Nosso Herói De cores indefinidas
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Nas histórias, os finais não são fins. Se felizes ou tristes, são pontos de vista. Mas não são finais.
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afetos
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Vocação e entrega Na íris do pai, nos braços da mãe de alongado sorriso, Kátia nasceu em um sábado. Sua avó, Ofélia, levou o padre para batizá-la ainda recém-nascida. Sua mãe, que já tinha caído em todos os buracos da vida e recuperou-se quando encontrou Jesus, aprovou a ideia de sua sogra. O pai de Kátia não desagradava sua mãe, Ofélia. Então, em nome de Jesus, ainda no hospital, Kátia foi batizada no domingo. Aos sete anos, quando brincava com seus amiguinhos e amiguinhas na terra batida do colégio público que estudava, viu um homem do outro lado da grade chamando seu nome. Ele tinha uma voz suave como uma brisa que vem reconfortar o calor solar matutino. Ela atravessou o pátio do colégio, foi até a grade e sorriu para o homem. Ela deu a mão, cheia de confiança em seus olhos, através da grade, para o desconhecido. O homem de voz suave tocou a mão infantil e delicada de Kátia. Ela sentiu em seu peito, mesmo sem entender bem o que sentia, um palpitar vibrante e iluminador. Kátia, vem pra fila! A professora chamou a garota do outro lado do pátio. A recreação havia acabado. No resto daquele dia, Kátia ficaria cheirando o odor único e balsâmico que ficou em suas mãos, depois de tocá-la nas mãos do homem que foi visitá-la no colégio. Aos doze anos, quando já tinha menstruado, sempre sonhava com a cena de sua infância que ainda não esquecera. Kátia acordava suada e trêmula, e essas imagens repetidas na sua cabeça invadiam a sua realidade. Os seus sonhos traziam imagens decoradas e que permeavam os seus dias 11
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com frequência: a mão máscula e mais velha, tocando a sua mão. Um homem que vestia uma roupa branca, sem sujeiras e com cheiro agradável. Era uma camisa parecendo uma bata e uma calça visivelmente de algodão. Ele estava de pés descalços. Ele tinha uma boca tranquila, de onde saía, quase como música, o seu nome “Kátia”, como um chamado áureo e acolhedor. Quando Kátia já tinha 15, viu o homem novamente. E, assim, voltou à sua memória o dia em que, pela primeira vez, ele apareceu à sua frente. Era verdade. Aquele cheiro, aquela voz, a visão não era um sonho. Nesse dia, ela viu bem de perto seus olhos castanhos e sua pele branca, porém rosada nas bochechas magras. Uma boca nem muito grande, nem muito pequena. O peito cabeludo era bem visível. Suas mãos eram grandes e fortes. Másculas. Tinha pelo menos um metro e oitenta, ou mais. Diferente da barriga de seu pai, que se conformava e acolchoava-se no terno cinza do culto de domingo, o homem era visivelmente magro e até atlético, como se andasse muito por aí. Ela estava no parque com suas amigas esperando os colegas de colégio. Entre esses colegas, um seria seu primeiro namorado, se não fosse esse reencontro. O homem retornou aos olhos de Kátia e sua voz veio junto chamando-a. O tom da voz veio leve e suave percorrendo o que chamamos de vácuo, ou vazio, quase como uma borboleta, espalhando beleza e suavidade pelo ar: _Kátia... – ele chamou-a. Kátia novamente sentiu a sensação de quando era criancinha em seu colégio. Disse às amigas que iria procurar um banheiro, e quando Rosa ofereceu-se para ir junto, achando que as duas 12
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iriam futricar e paquerar pelo caminho, Kátia negou a companhia: _Rosinha, preciso ir sozinha. Meu pai, em seu último sermão, na igreja da comunidade, disse que temos que encontrar sozinhos as trilhas de nossa vida. _O que isso tem a ver? – perguntou Rosinha, sorrindo, com seu jeans esperto. _Se você lesse mais o Livro, entenderia – disse Kátia, com sua longa e bordada saia, apontando para uma frase que estava na grade metálica da roda-gigante: Leia a Bíblia que aprenderás a realmente ler! Kátia não foi ao banheiro, desviou no caminho e foi até o canto sombreado onde estava o homem que povoava seus sonhos com frequência. _Oi. Ele não diz nada. Sorri e pega no cabelo de Kátia, como se fosse fazer cafuné. Kátia ficou vermelha e deixou que o homem lhe fosse carinhoso. _É você mesmo? Eu te vi quando era bem pequenina. E sempre sonhei com você. Achei que era um sonho ou alguma visão minha... Antes que Kátia continuasse sua fala, ele encostou-se e cheirou seu pescoço, por baixo de sua orelha. Depois de um momento cheirando-a, olhou novamente para o rosto delicado e os olhos juvenis de Kátia, e sorriu como se estivesse aprovado o cheiro. E, a fim de saber qual era o sabor do sal no suor da pele virgem e delicada da menina, roçou seus lábios suavemente nos lábios de Kátia, indo seguidamente para o tórax dela, enlaçando-a pela cintura e encostando o corpo da menina no seu. Kátia não reagiu, confirmou que 13
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ele realmente tinha o cheiro agradável que ela sentia em seus sonhos e que se apresentava em suas lembranças olfativas. Ela colocou de lado sua cabeça, quase encostando sua orelha no ombro dele, e puxou seu cabelo, do outro lado do ombro, para cima, como se abrisse espaço para que ele a beijasse mais. Nesse momento, ele já não a beijava nem a cheirava, começou a proferir palavras divinas em seu ouvido. Kátia fechou seus olhos, ouviu com atenção. Mordendo os lábios. Depois da conversa e dos toques íntimos com o homem, ela voltou para o grupo de amigas e disse, com os lábios iluminados de felicidade, que tinha de ir para casa! Aquela noite, que seria a sua primeira noite com seu primeiro amor na roda-gigante que tinha a frase sobre a importância da Bíblia na vida das pessoas, não foi mais essa noite. O homem escolheu e mudou o destino de Kátia. Com 17 anos, Kátia estava tomando as aulas de iniciante do Convento das irmãs Virgens Marias e devotas do senhor Jesus. E esse caminho foi escolhido dois anos antes, numa noite em que ela chegou do parque e disse ao seu pai a decisão que tinha tomado para sua vida. Seu pai que era devoto de outra igreja, não gostou de início, mas, para não se contradizer em relação às suas falas sobre “caminhos e intenções”, apoiou a escolha santa de sua filha. _Eu te garanto, meu pai, que uma luz, acompanhado de uma voz suave, iluminou para mim esse caminho! – afirmava Kátia ao pai na época que tomou a decisão. Sua mãe e sua avó, Ofélia, não apoiaram, mas reduziram-se à ideia social de que quem manda e 14
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toma as decisões finais na casa é o marido. Ofélia, que ainda tentava, por dentro das paredes da casa daquela família, conseguir moldar seu filho e sua neta, faleceu dormindo. Com isso, a mãe de Kátia não teve forças e realmente se conformou com a realidade. Entregou a filha para o senhor Jesus. _Querida, ela começará nesse caminho, mas vai terminar fazendo sermões ao meu lado. Os caminhos são tortos, mas o senhor Jesus e Deus fazem o fim ser justo – dizia o pai, acalmando a mãe. Com 18 anos, com méritos, Kátia formou-se em seu curso e tornou-se mais uma freira. Mas, antes do título de sua vida ser exposto em formato de véu, participou, na igreja Nossa Senhora Aparecida, do seu matrimônio obrigatório com Jesus. Ela e mais nove virgens consagraram-se e casaram-se com ele. A cerimônia, à base de muita oração, santos cânticos e nenhum luxo, durou uma hora. Logo após, Kátia sorria com lágrimas nos olhos e felicidade no coração, despedindo-se de seu pai e sua mãe. A partir de hoje, ela ficará confinada no convento por 10 anos, até terminar sua vigília inicial pelo corpo, sangue e sacrifício de seu marido, digo, de Jesus Cristo. Na primeira noite no convento, rezou mais de três horas com suas irmãs pelos melindrados da terra. Orou sozinha por mais uma hora pelo seu pai e sua mãe. Pediu que eles fossem fortes e felizes, pois ela estava onde queria. Pediu, como uma esposa recém-casada pede ao marido, que seus pais fossem resguardados na eterna misericórdia de Deus. Jantou uma sopa morna e que estava muito 15
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boa. Alimentou-se uma vez apenas, dois pratos é sinal de gula. Às 21 horas, foi para seu dormitório. A madre irmã Lucinda a levou. _Aqui será onde você vai passar maior parte do tempo. Esta é a primeira e última vez que trago você para o quarto. As portas se fecham às 21 e 15 e se abrem às 8 da manhã, em ponto. Durante esse período, tente dormir no máximo seis horas e, no restante do tempo, estude a Bíblia e reze pelos condenados da terra. _Tudo bem – disse Kátia, contente com o início de sua jornada. Antes que irmã Lucinda saísse, Kátia lhe fez uma pergunta: _Irmã Lucinda, por que esta é a última vez que me traz ao meu quarto? Não compreendi. O que quis dizer com isso? _Somos proibidas de entrar no quarto das outras. Agora somos todas casadas com o senhor Jesus e vivemos para rezar para as pessoas que não nasceram abastardas nessa vida e estão esquecidas pelo mundo. _Não entendi ainda... _Não tem o que entender. Está na hora de fechar o seu quarto. Dedique-se à sua fé. Você não precisa de nenhuma de nós em seu quarto durante a noite, nem durante o dia. Este é seu espaço pessoal. Aqui nos falaremos apenas nas refeições e no ensaio do coral da igreja. No resto do seu tempo, dedique-se às suas orações e ao senhor Jesus. Lembre-se: não existe espessura de portas e paredes para o nosso senhor Jesus! Ele e seu pai, Deus, estão em todos os cantos, onipresentes. Kátia, em sua inocência, ainda não 16
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compreendera por que tais restrições, mas preferiu não aporrinhar ainda mais a sua madre superior. E, além do mais, adorou o tempo que teria à sós com ele. Quando Kátia estava trancada em seu quarto e deitada à sua cama, ele reapareceu. O homem que desde os seus sete anos aparecia de tempos em tempos em sua vida. Kátia, dessa vez, observou-o com olhos de mulher, apesar da pureza ainda estar inquebrável entre suas pernas. Em um quarto sem janelas, a voz dele produziu aquela brisa suave que desde a sua infância a persegue: _Hoje, Kátia, sacramentaremos o nosso casamento. _Estou pronta para você, meu Senhor, desde que me entendo por gente. Estou pronta hoje, amanhã e sempre. _Eu sei. Até que a morte nos separe – ele diz, sorrindo delicadamente. – Não tire sua roupa. Abaixe apenas a sua parte de baixo da roupa e deite-se de costas. Kátia obedeceu e, feliz, deitou-se de costas. _Levante a sua saia até a cintura e abra um pouco as pernas. Kátia obedeceu com vontade suprema. Ele continuou sua fala:_Lindo. Belo. Exuberante. Cabeludo como eu amo, Kátia! Entre a dor e o amor, existe a paixão, por isso você está aqui. Hoje é apenas a primeira vez da sua peregrinação de fé e do nosso matrimônio. Fico feliz por nós, Kátia. Vamos movimentar a vida, como uma verdadeira forma de milagre e entrega – ele diz, cheio de sabedoria, nu e ereto, indo na direção da mais nova e mais feliz freira do convento. 17
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Calcinha Para não acordar seu marido do sono profundo bem definido e inspirado, ela veste-se sem fazer barulho, ruído, e com a janela entreaberta. Pouca luz solar e habilidade no vestir já são o suficiente. Primeiro, como num ritual providenciado por inimagináveis forças superiores da beleza, ela veste sua calcinha. Uma calcinha fio dental e de algodão, mas bem confortável. Cor laranja. Transparente na frente. Depois, ela veste o resto da roupa, que não é importante nesta história. Indo para o trabalho, com transpirações nas intenções, em suas suaves virilhas muito bem depiladas e sem nenhuma mancha. Em um carro com ar condicionado, mas que ela prefere ir com a máquina que moderniza o frio amenizando o calor desligada. Sentindo o calor matinal. Ela segue pelas ruas asfaltadas e com as janelas abertas. Pelando no amarelado sol. Ela transpira, aspirando o dia, debaixo do astro caramelado no engarrafamento do centro da cidade. Transpira, respira, inspira, ela está viva, quer vida. Vida! Mexendo seus ombros para lá e para cá ao ritmo da felicidade e com Bob Marley soltando a voz dos autofalantes de seu carro de dois anos e que ainda tem algumas parcelas a pagar. Ela dança. Ela quer suar. Ela quer ser feliz e sua felicidade está nas gotículas liberadas pelas glândulas sudoríparas de seu maior órgão. E, se essas gotículas saírem mais precisamente em suas virilhas, seu querer será ato consumado. A intenção é exalar entre suas pernas sabores olfativos ultrassecretos. Ultrapoéticos. 18
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Do estacionamento da empresa em que ela trabalha, passando com ênfase pela escada do prédio até a sua sala, ela faz questão de ir caminhando. Dá bom dia a todos. E todos, como é de praxe, respondem. É obrigado ser educado e bendito nos dias atuais e nos dias dantes. Esse comportamento é uma maldição do mundo? Ou uma forma natural de ser agradável? Dependendo do ambiente, ela diria a este questionamento. Com o sorriso angelical, dona, musa, equilibrista, chefa, orvalho, estrela, cadente, Ela, todos os cheiros e amores, recebe evidentemente de volta todos os seus cumprimentos. E entre suas pernas vai consigo o motivo de sua real felicidade e harmonia. Em uma manhã normal, ela mal se levantaria de sua cadeira, pois tem muitas obrigações e relatórios para finalizar. Mas hoje veio de cima a ordem para que os arquivos mortos que ainda estavam armazenados nos armários da sala de Arquivo Morto da empresa fossem reorganizados e digitalizados. Com um sorriso que vale por mais de três risos entusiasmados, ela pediu que sua secretária ficasse na sala aguardando-a, pois ela mesma iria até lá embaixo, no térreo, fazer o esforço físico e chato de procurar os arquivos que tinham que ser digitalizados. Tinha dias em que ela estava de tão bom humor que a sua secretária ficava grata por essas atitudes altruístas e afetuosas. E ir até o Arquivo Morto da empresa, procurar todos os papéis empoeirados e velhos que tinham que ser digitalizados, e trazer de volta para a sala, era uma tarefa cansativa e fisicamente engenhosa. A manhã dela, dando essa folga à sua secretária, foi ainda mais 19
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feliz e transpirante. Fazer sua virilha suar era sua lei. Era sua regra. Era seu riso. Era seu dever. Era sua época. Era sua era. Era seu bálsamo. Era sua obra... No horário do almoço, ela comeu no refeitório da empresa com os colegas de trabalho. E esse dia tudo estava ao seu alcance como providência divina. Como um estouro de cores angelicais. O ar condicionado do refeitório estava quebrado. As máquinas podem estar ao nosso lado? Com isso, os funcionários abriram as janelas para melhorar o calor do local. Mas ela fez questão de sentar o mais longe possível das janelas. E de falar bastante enquanto comia. Ela falava e mexia os braços de forma compulsiva. Seus funcionários prestavam atenção. Manda quem pode... A intenção realmente é suar o máximo possível. Antes de retornar para o turno da tarde, onde encontraria o ar condicionado central, e isso a atrapalharia em seus planos, pois era certeza de ficar presa em sua sala a tarde toda, ela foi ao banheiro. E, trancada em uma cabine, despiu-se quase toda, pois sua calcinha ficou abaixada até a altura dos seus joelhos. E, numa posição em que não molhasse tanto a sua calcinha laranja de algodão, mas que também não deixasse de respingar sobre ela e sua perna a própria urina, com prazer, ela mijou. E desceu tudo que tinha direito. Era o líquido que tinha segurado durante toda a manhã. E esse ato ela fez de pernas esticadas e corpo dobrado, sob o vazo. Depois da tarde de trabalho esforçando-se em pequenas atitudes e meandros para contrapor a lânguida frieza e a fina secura que o ar 20
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condicionado de sua sala oferecia contra o calor que queria sentir entre suas pernas, às dezoito horas em ponto, ela sai pela porta de sua sala. Novamente pelas escadas, vai até seu carro. No seu carro, com o ar desligado, dirige-se para a academia. Na academia, troca de roupa, mas não toma banho e nem troca a calcinha. Malha por uma hora e meia. Seu dia já está acabando. Ela pega todas as suas coisas e sai da academia indo em direção ao carro. Anda apressada como se ainda estivesse na esteira, malhando. Breve ela chegará em casa para mais uma noite de amor com seu marido. Ela é recém casada e sabe como agradar o seu amor. E, dentro do seu carro, muito suada, lembra-se da cereja do bolo. Abre a sua bolsa e pega um cordão de bolinhas “masturbatórias”. Com cuidado e zelo, ela abaixa sua calça legging, põe de lado sua calcinha alaranjada. Introduz uma, duas, três, quatro bolinhas. As bolinhas são vermelhas e caberiam facilmente em uma caixa de fósforos. Ela deixa três bolinhas de fora. As bolinhas não ficam nem felizes nem tristes com essa exclusão. E, assim, ela veste-se e liga o carro para ir comprar o pão. Para, em seguida, ir para casa. Quando ela chega em casa, constata que seu amor ainda não tinha chegado. Ela entra com o carro. Depois de fechar o portão, entra em casa e acende todas as luzes. Vai até a cozinha e procura algumas velas. Pega uma comida congelada no freezer e coloca no forno. Depois disso, despese, tira as suas bolinhas do prazer e joga sua roupa no cesto de roupa suja. Com a sua calcinha em mãos, ela vai até o seu quarto, onde dorme com o seu amor. Ela abre o zíper da almofada do seu 21
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marido e coloca a calcinha dentro dela, onde tinham outras calcinhas. Ela fecha o zíper da almofada e a coloca onde ela estava. Ela procura um papel e uma caneta. Não demora muito, ela os acha e escreve um recado para seu marido: Com afeto, meu suor, meu odor, meu gozo, meu cheiro. Como você sempre me pede, hoje eu coloquei mais uma calcinha dentro de sua almofada, que é pra você sonhar comigo... Te amo! Sua 'cheiro'... Depois de deixar o recado em cima da almofada de seu marido, ela segue, flutua, pluma, liberta, sobrevoa à toa para o banheiro, como as pessoas que estão amando fazem.
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Lobo Era uma vez, em uma rua onde as casas eram mais vistosas, frondosas e com muros pintados coloridos e muito bem projetados, protegidos por sensores eletrônicos, luzes iônicas e, algumas das casas, até guarita, todas belas vistas... Henrique caminhava em marcha lenta. Sem sacrifício e pensativo, ao ponto que este narrador não saberia descrever seus pensamentos. As luzes amareladas e brilhantes dos postes, todas funcionando, tilintavam um início de madrugada tranquilo. O asfalto liso e imposto sob a ordem e progresso, todo sinalizado, sinalizava que o poder público ali abençoava e era uma mãe e pai. Na rua, pouco mais de três casas adiante, depois da primeira do quarteirão, um cachorro raivoso e de guarda vem correndo pelo quintal de sua “residência” e joga-se no portão, com latidos ameaçadores. Henrique assustou-se, mas, menos de três segundos depois, sorriu e continuou sua caminhada para casa. O cachorro continuou latindo e rosnando, acompanhado de todos os outros cães que ouviram o latido nervoso do primeiro latidor. Henrique sentia muito sono, seu dia tinha sido pesado demais para se importar com a neurose de donos refletidos em cães. Antes de terminar o quarteirão, com os ouvidos ainda sob a sinfonia de latidos e com sua mente em prantos de cansaço, desejando desesperadamente a sua cama, Henrique ouviu um cão que não latia por trás de um dos pomposos muros da rua, com certos quatro metros de altura e alaranjado, com cercas elétricas e com uma luz que reluzia de dentro para fora, sumindo ao 25
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tapete solar da madrugada. Ele ouviu um cão que chorava de dor, miava de medo, e parecia correr desesperado pelo pátio da casa de muro alaranjado que estava. O cão corria, rasgava as unhas e gemia, chorava de dor. Henrique, curioso, com seu coração penoso, encostou sua orelha sobre os portões pretos, antes não descritos, quando dito sobre a casa neste conto fatídico. Henrique, estando agora a vinte centímetros da casa, põe seus ouvidos a trabalhar. Uma respiração ofegante acompanhada de um gemer rangente e uma regência de dentes inquietantes ele ouvia. Inicialmente Henrique pensou ser outro cão que estava atacando o cão-vítima, machucando-o e açoitando o pobre que expelia grunhidos de dor. A sinfonia dos cães na rua, cuidadosos com as casas de seus donos e entes queridos, não permitiu esse desmembramento de sua dúvida. Mas, curioso como um homem comum, Henrique encostou ainda mais seu ouvido no portão. Dessa vez, sentiu na pele sensível de sua orelha o frio gélido da madrugada encruado no ferro do portão. Depois de alguns segundos concentrando-se no que ouvia: só o cachorro chorava e corria pelo espaço onde estava. Pela forma que corre e chora, sente muito medo. Ele interpretou. É impossível imaginar o quanto o coração do cão acelerava. Mais alguns segundos ouvindo colado com seu ouvido no portão alheio, e nada de entender o porquê do sofrimento do cão. E nada de entender o que era aquele gemer e ranger de dentes que lembrava outro cão, assassino e sádico atrás virilmente da vítima. _Seu cachorro desgraçado! 26
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Henrique ouviu uma voz proferindo a frase de forma varonil e, inquietamente, afastou-se do portão e seguiu seu caminho. Pensou sobre o fato até chegar à sua casa. Depois tomando banho e depois na cama, como aquela voz saiu cheia de raiva da boca de seja lá quem fosse que machucava o cão daquele jeito. A voz saiu entre os dentes, cheia de ódio. A voz saiu cheia de prazer orquestrada pela língua. A voz saiu na mistura do ranger e respiração ofegante como um grito mudo da garganta. Mas que se fez ouvir. A voz queria machucar aquele pobre cãozinho. A voz. Tanto vazia. Henrique dormia. Mas, ainda assim, ele sonhou com a voz e sua vontade, nada maleável, de só proferir maldade. No outro dia, às oito da manhã, seu despertador toca. Era a hora de cuidar de sua casa. Henrique morava sozinho e já tinha 44 anos. Uma vez ficou noivo, mas foi trocado dois dias antes de seu casamento pelo vizinho de sua noiva. Um homem quatro anos mais novo que ele. Esse fato já tinha vinte anos. Depois desse acontecimento e da morte de seus pais, Henrique, que já era filho único, ficou sozinho no mundo. Pela manhã era a casa que lhe interessava. Às onze, depois de lavar o banheiro de seu quarto e lavar a sua sala, que há tempos não recebia visitas, a não ser de cobradores que o visitavam ou vendedores de consórcio funerário, ele começava a preparar seu almoço e sua quentinha para o trabalho. No qual só entraria às quatro da tarde. Depois de uma da tarde, quando já tinha almoçado e descansado como todo bom trabalhador merece, assistia ao Jornal na TV e entrava na internet. Conversava com alguns amigos e amigas 27
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virtuais. Participava de ações online que faziam a diferença para todos e para o mundo. Como por exemplo: entrar em site que reúne assinaturas virtuais para a preservação da Amazônia. A cada assinatura digital, você colabora com o instituto Viva Natureza e ainda é o responsável pelo plantio de uma muda nos locais de desmatamento. Henrique entrava também em outros sites que o levavam a ter orgulho de si mesmo. Entre os sites, um era sobre a proteção dos animais. Nesse dia, nesse site, ele viu um vídeo de um dono que machucava seu cão com esporas de cavalo e cintos. Já eram pelo menos três horas da tarde. Era a hora de fazer seu lanche e ir para o trabalho. Mas o vídeo fez com que Henrique, que não tinha pensado ainda sobre o acontecido de ontem, lembrasse fielmente todos os gemidos e pensamentos insanos sobre como aquele cachorro estava apanhando e por que apanhava daquele jeito da “voz”. O vídeo, que ele há pouco tinha visto na internet, fixou em sua mente como se tivesse sido gravado naquele momento em que estava com sua orelha grudada no portão da casa onde o cachorro era massacrado. Os gemidos e as corridas apavoradas pareciam ser muito iguais. Pensou, enquanto preparava seu lanche que comeria e o que levaria para o trabalho. No banheiro, Henrique também não parou de pensar no massacre que presenciou, mesmo que só ouvindo de xereta por “trás da porta”. _Esse vídeo me fez ficar impressionado. Merda! – Disse a si, em voz baixa. No banheiro, não conseguiu concentrar-se em sua higiene diária. A qual ele mergulhava 28
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profundamente para ficar asseado na intenção da secretária de seu chefe. Ela e ele nunca haviam conversado, mas Henrique voava em sua imaginação com o tom da voz da secretária falando para ele: Boa tarde. Todos os dias ela cumprimentava-o quando ele chegava à empresa. A portaria era ao lado do escritório do chefe, era lá que ela o cumprimentava. Depois do banho, enquanto comia seu lanche, sentiu náuseas imaginando o massacre que aquele pobre cão foi submetido na noite anterior. Durante o caminho ao trabalho, também não parou de pensar no cachorro: qual seu nome? Por que o dono foi tão violento? Como ele realmente apanhou? Etc. Bem perto do trabalho, avistou a rua que “presenciou” o episódio que não saía de sua cabeça. Mesmo contrariando parte da vontade de seu corpo, conseguiu seguir outro caminho até chegar ao quarteirão onde ficava o seu trabalho. Henrique preferiu não ver a casa de dia e seguiu outro caminho. Ele não queria mais problemas. No trabalho, depois do belo “Boa tarde” de Evanir, a secretária de seu patrão, chegou ao setor onde obrava. Pegou sua farda, que ficava num armário com seu nome e sobrenome, foi ao banheiro, vestiu a farda e foi à labuta. Henrique não conseguiu crescer na vida como seus pais haviam sonhado. Talvez Deus tenha traçado esse destino para mim. Conformava-se, raciocinando, enquanto fazia seu trabalho na empresa. Ele pegava das 16 horas à zero hora. Comia duas vezes: uma quentinha que preparou no almoço e um lanche que preparou à tarde. Não trocava muitas palavras com ninguém. Nesse dia, 29
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em especial, não trocou palavras nem com seu amigo Júlio. Ambos com nomes de reis e imperadores. Henrique fez seu trabalho nesse dia como um robô: suas mãos e seu corpo guiavam-no nesse fazer costumeiro, mas sua cabeça não esquecia o “que poderia ter acontecido com o cachorro”. No fim desse dia, de madrugada, Henrique seguiu seu caminho. E, como na tarde, evitou passar pela rua onde estava a casa onde ouviu o massacre. Mas, no meio do caminho, mais perto de sua casa do que da casa que seu pensamento não largava, não resistiu a todos os desejos e vozes que imploravam para voltar à rua e ouvir o que estava acontecendo realmente com o cachorro vítima da voz. Ele voltou. Na rua, muitos cachorros latiam para ele. E, de frente à casa, orelha no ferro do portão, ferro do portão na orelha, ele ouviu os mesmos barulhos de ranger de dentes e gemer com ódio e da pobre vítima, o cão sofredor, correndo de seu agressor. Tentou olhar pelas frestas do portão, mas nada dava para ver. Dentro daquela casa, existia outro tipo de escuridão. Henrique sentiu uma dor no peito incalculável e chorou. Chorou de forma muda e não teve coragem para intervir, batendo na casa daquele cidadão. Quem é o cão que faria isso com um cachorro? Homens são cães, cachorros são humanos? – perguntava-se em pensamentos. No peito de Henrique, um buraco negro de pena, e, em sua mente, muitos pensamentos de como é que aquilo acontecia e ninguém fazia nada. Nenhum vizinho tomava providência. 30
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_É. Nenhum vizinho faz nada – disse a si, com a voz baixa e cabisbaixo, já distante cinco metros do portão e usando de sua força interior para ir contra sua provável coragem que poderia interferir naquilo. Mas, se nenhum vizinho intervém, por que Henrique seria o homem para intervir? Nome de rei, atitude de homem? Henrique passou o outro dia raciocinando e pensando sobre o que ele poderia fazer para ajudar o cão-vítima da situação. Primeiro pensou em fazer uma denúncia à sociedade protetora dos animais. E fez. Mas, duas outras noites, ele passou pela rua e o show de horror continuava. Quem tem dinheiro pode mais? Pensava. Depois, tentou conversar com seu amigo Júlio, mas dele ouviu que “meu coração agora só tem uma causa que se chama Vanda”. Pensou em esquecer, mudar de caminho e fazer o certo para não ficar no incerto. Ele não podia ter mais problemas nessa vida. E, duas semanas mais tarde, insistentemente ainda procurando solução para o pobre cão, sem conseguir desviar o caminho de sua ida para casa e sem conseguir desviar seus pensamentos, que o faziam sofrer e o fizeram parar de comer e começar a dar bobeira no trabalho, Henrique teve a coragem e bateu na casa do vizinho que tinha a menor casa da rua. _Talvez este seja mais humilde e não tenha dinheiro como sentido para tudo – falava sozinho, enquanto tocava a companhia às três da tarde. Um senhor, já de idade, veio atender. _Sim, amigo, não quero enciclopédias. _Não vendo enciclopédias. Acho que ninguém mais vende enciclopédias. _O que você quer, então? 31
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_Gostaria de falar de um assunto que é de seu interesse e das pessoas de bem. _Fale mais alto e pra fora. Parece uma mulher recolhida quando fala. _Desculpe, senhor. Henrique afastou-se do portão e saiu caminhando. O senhor fez cara de quem não entendeu nada, falou algum palavrão e entrou para dentro da casa. Henrique já seguia de cabeça baixa, como uma sina, para seu trabalho, quando outro vizinho o chamou. _Ei, amigo, camarada! _Comigo? _Sim. Venha cá. _Diga – disse Henrique, parado em frente à casa do homem que havia chamado por ele. _O que você queria com aquele homem? _Estava tentando procurar alguém que me ajudasse a combater um mal que tem nessa rua e me aflige todos os dias, desde a primeira vez que ouvi. _Mal? Como assim? _Um dos seus vizinhos... – antes que Henrique terminasse a fala, foi interrompido. _Camarada, aqui ninguém se mete na vida de ninguém. Para isso que servem os muros. Boa tarde – disse, grosseiramente, batendo a porta. E, em mais uns dias, Henrique penou com a sua imaginação e todas as noites ouvindo o massacre do cachorro pelo portão da casa. Ele esforçava-se para não passar pela rua do cachorro torturado. Mas toda noite passava e ouvia. Henrique não sabia o que fazer. Praticamente não comia. Esqueceu o prazer do “Boa tarde” de sua amada platônica do trabalho. Pensava em 32
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demitir-se e mudar de cidade. Quem sabe, de país. A dor da falta de coragem é maior que a dor da coragem. E disso, nele criou-se a coragem. Naquela madrugada, ele ouviu desesperado todo o sofrimento do cachorro. Mas, perto das quatro da manhã, parou. Era o momento que ele teria para poder fazer alguma coisa pelo seu “amigo” sofrido. Enquanto a casa já estava há pelo menos 30 minutos sem os “gritos” de dor do cachorro, Henrique preparou-se com uma corda que havia comprado na própria loja em que trabalhava. Em uma dessas sessões de terror que Henrique “presenciou”, ele percebeu que as cercas elétricas daquela casa não eram ligadas, só serviam para intimidar possíveis invasores e ladrões. Então ele jogou a sua corda. Depois de laçada e segura, escalou o muro como se executasse um milagre divino. Cheio de orgulho de si e mais homem do que nunca, viu seu companheiro todo ferido, lambendo suas feridas no canto mais claro da casa. O cachorro apenas olhou para o invasor da casa. Henrique não perdeu tempo e desceu pelo muro com a corda para dentro da casa. O cachorro, mesmo depois de apanhar tanto, era fiel ao seu lar e ameaçou o invasor, mas Henrique, perspicaz, levou para seu amigo um pedaço de carne e logo o conquistou. _Hoje, te livrarei de seu sofrimento, amigo – em pé, de frente ao cão esfomeado, dilacerando a carne, e todo machucado, ele disse, com as suas duas mãos sobre sua cintura. A primeira providência do herói do canino foi cuidar das feridas do cachorro. E, com calma, fazer alguns carinhos no bicho, fazendo-o dormir. Alguns minutos cochilando o sono dos 33
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justos, o cachorro foi acordado por Henrique. _Nego, agora é a hora de eu te livrar disso tudo – Henrique falou, cheio de orgulho em seus olhos e mostrando um tom nobre em sua atitude. De sua mochila, Henrique pegou outra carne para o dog. Que, por sinal, pulou de alegria quase falando prosaicamente “obrigado, amigo”. Henrique viu nos olhos do animal o que ele dizia. E, orgulhoso, seguiu seu plano até o fim. Ela puxou de sua bolsa uma seringa cheia, com um líquido branco, que era veneno para rato. Ele aplicou a seringa na carne antes de dar a mesma ao animal. E, ainda antes, deu beijos e afagos no bicho, dizendo ao seu ouvido: desculpa, amigo. Não tenho coragem de fazer isso contra seu dono, mas ainda nos veremos e você vai latir de agradecimentos para mim – disse, largando o cachorro, cheio de lágrimas em seus olhos, deixando o cão ir até onde estava a carne. Depois de feito o ato de salvação, Henrique pegou a coleira do amigo como lembrança e subiu pela corda. Pela rua, quase amanhecendo, Henrique seguiu brioso de si, sabendo que fez a coisa certa e libertou o cachorro do que chamamos de vida e que para ele era lástima, expiação. Para mim, isso é uma prisão. Nos céus receberei em troca o que fiz por aqui. Dê a outra face à mão que te agride. Agora que está desencarnado, e evoluído, deve estar se perguntando por que não te levei pela corda para a minha casa. Amigo, você comigo só me traria mais desgraças e problemas com meus vizinhos. Moro numa casa pequena e mal ganho para me alimentar. Sei que fiz a coisa certa e peço ao senhor Jesus 34
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Cristo que te receba bem. Jesus é caridoso com todos os animais e todos os homens. Eu sou sua ovelha... Henrique seguia para casa, pensando, orando. À noite, nesse mesmo dia, depois de sair do trabalho, vinha livre de remorso, feliz com sua missão cumprida, pela rua onde ouvia todas as noites o sofrimento de seu companheiro já falecido. Enquanto todos os cachorros latiam por causa da presença de seus passos cambaleantes, saltitantes, na rua, ele não ouvia mais nada de dor, nem de pavor saindo pelos muros da casa de muros alaranjados. Seu riso refez-se em uma alegoria carnavalesca e foi fluindo amor para sua casa, mesmo com medo de ser descoberto. _Eu não serei descoberto – falou para si, quase dobrando o quarteirão, quando ouviu um grito estridente e cheio de dor: _LOBO!LOOOOOOBOOOOOO! Henrique preferiu seguir, mas o grito ia tão forte e tão certeiro em sua direção, como uma vítima cretina que lhe oferece culpa e nada mais, que não passou despercebido. A voz tinha uma dor descomunal. Tinha desespero e, quanto mais o som da voz chegava perto dele, por dentro surgia uma vontade de voltar e ver de onde vinha aquele gritante clamor cheio de medo, pavor e gritos desesperados por Lobo. Era na casa em que ele tinha livrado o cachorro das dores diárias. Era talvez o dono da voz que gemia de raiva, prazer e sadismo enquanto machucava seu próprio cachorro, o Lobo. Você deveria ter pensado duas vezes antes de machucar seu cão daquela forma. Pensou Henrique, encostado 35
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no portão da casa. Ele ficou ouvindo o antigo dono gritar Lobo por pelo menos duas horas. Henrique queria sair dali, queria sorrir da dor do dono malfeitor, mas uma força maior segurou-o. As dores do homem e seu arrependimento? O que fazia aquele homem gritar comovia-o profundamente. Afinal, ele o machucava, mas o amava? Pensava Henrique. Apesar do sentimento de vitória que carregava em seu coração sobre a situação, ele ali ficou, até que os gritos cessaram. Henrique, enfim, conseguiu ir para casa descansar. Os dias seguintes foram ainda piores do que os dias em que sofreu com as dores noturnas do seu amigo cachorro. Henrique parou de vez de comer e parou de ir ao trabalho. Trancava-se em casa, mas não adiantava. Ou ele abria a sua porta e seguia para frente da casa onde o homem gritava toda madrugada pelo seu cachorro Lobo, ou, se intencionalmente tivesse jogado fora a chave da porta de sua casa, como fez uma vez, arrombava a mesma para ir até a rua ouvir o homem gritar de dor e de saudade pelo seu cão assassinado por Henrique. Assassinado? Não. Brigavam as vozes de seus pensamentos. O que fazer? Como sair dessa situação? Em suas orações, Jesus não trazia as respostas. Em seu coração, o medo e o desespero comandavam cegando-o para as respostas. Henrique precisava de uma saída para esquecer essa nova fixação em sua vida. Ela viria? Mas quando? Já após quatro meses de sofrimento e lástima, de culpa, ouvindo todas as madrugadas o dono do cão gritar de saudade pela sua antiga cria, Henrique entrou em desespero e começou a 36
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quebrar os móveis de sua casa. A esmurrar as paredes. A arranhar com a unha o chão, a quebrar os quadros que eram de seus pais. Ele quebrou com as mãos os copos de vidro de sua casa. Também gritava insanamente querendo esquecer o porquê de tanta culpa e tanta fixação pelo grito do homem malfeitor do cão. De seu pensamento, não saía a vontade e a obrigação, sim, obrigação, de ir até a casa daquele cidadão resolver a situação da falta que ele sentia do seu Lobo. E, em uma dessas raivas que o acometiam durante as suas tardes de desempregado, pois de madrugada ele ia ouvir os gritos de saudade do dono do cão, Henrique levantou o colchão de sua cama, a fim de jogá-lo pela janela do quarto, e viu esquecida no chão a coleira de seu amigo cão, o Lobo, tanto gritado por seu saudoso-algoz dono. Depois de vinte minutos olhando para aquela coleira, andando de um lado para o outro em seu quarto, ele concluiu. De madrugada, Henrique foi caminhando até a casa onde aconteceram os fatos desta história. Henrique, de frente à mesma, tocou a companhia da casa. O homem que gritava parou repentinamente. Depois de alguns minutos, com tudo em silêncio, Henrique tocou a campainha de novo, desta vez com mais ênfase, como se a coragem estivesse na ponta de seus dedos. Ele ouviu passos. O dono do cachorro falecido e da casa abriu a porta. Ele estava com o rosto vermelho de tanto chorar. _Boa noite. Está muito tarde. Mas, me diga, em que posso ajudá-lo? Henrique nada disse, mostrou a coleira do Lobo para seu dono e começou a chorar. O homem, dono da casa, convidou-o para entrar. 37
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_Desculpe, amigo. Não aguento mais sentir a sua dor – já dentro da casa, disse Henrique, colocando a coleira do Lobo em seu pescoço, abaixando-se, completando seu coração de coragem e ficando de quatro como um cão humanizado. Sem mais palavras, Henrique foi engatinhando para o local onde tinha visto o cachorro quando desceu escalando o muro. O dono do Lobo olhou calado a situação. Depois foi em passos curtos e trancou a porta de casa, dando duas voltas na chave. Sorriu como se agradecesse a Deus pelo presente e, como antes fazia, começou a gemer, rangendo os dentes de raiva. Ele tirou seu cinto de couro e, em seguida, enrolou-o em seu punho esquerdo, o mesmo lado que fica seu coração, cheio de saudade do seu amado Lobo.
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O derradeiro No canto mais escuro, no local mais vazio do bar, com copos de cerveja pela metade e brigando contra a quentura para não esquentarem, existiam Franco e Luís. Franco pedia a confiança do amigo mais uma vez: _Você só tem que grudar o recado em mim. Faz o serviço completo. Os equipamentos necessários e as fitas estarão na bolsa. No final, você leva a bolsa. Deixei uma boa quantia na sua conta. Isso sem falar na nossa amizade. Posso confiar? Visivelmente, um breve silêncio ecoa. Luís conjectura. Franco espera. Os dois olham-se nos olhos. _Você sabe que pode confiar em mim. Onde está o recado? – indagou Luís. Franco procurou no bolso da camisa de botão. Nada. Levantou-se, procurou nos bolsos da calça, e nada. Agoniado e suando, lembrou que tinha enrolado e guardado na carteira o bendito recado. Abriu a carteira com um riso no rosto e deu para o amigo um pedaço de papel com linhas escritas à mão. _É um poema? – perguntou, retoricamente, Luís. _O derradeiro – assegurou Franco. Ele estava sentado com um riso celestial encravado ao rosto, como regra, e erguia o copo de cerveja com sua mão direta, como se fosse convidar o amigo para um brinde. No outro dia, à tarde, Franco colocou em uma bolsa: uma pá, uma enxada, copos descartáveis, uma garrafa de água mineral, uma fita adesiva e um 39
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frasco de plástico. Trancou sua casa. Janelas, cadeados e portas. Antes de sair pela porta da frente, não sentiu saudade do que deixava. Pela rua, andarilho, caminhou para o local que escolheu há cinco meses. O local era um matagal na beira do rio. Franco olhou para o rio. Tinha certeza que o rio refletiria pela última vez seu olhar. Nele, ele banhou e brincou quando criança e jovem. Quando adulto, muito da vida acinzentou. Ficaram sem graça as águas vivas e doces, sobrou a nostalgia em sua memória. Franco, certeiro, onde tinha planejado, começou a cavar. Quando atingiu a profundidade de três palmos, parou. Deixou a pá e a enxada dentro da bolsa. Pegou um dos copos descartáveis de plástico e a garrafa de água. Pegou o frasco plástico. Encheu o copo d'água e abriu o frasco. Dentro tinham pílulas de diversas cores. Com satisfação e calma, bebeu um copo d'água com as pílulas coloridas, como o arco-íris, em sua língua. Engoliu sem muito esforço. Caminhou até o buraco e deitou-se na terra fria e marrom. Ficou observando os raios amarelados do sol. Observou o céu. Ouviu com mais atenção alguns pássaros cantarem. Ainda é possível ouvir pássaros cantarem nestes tempos. Radiante, pensou. Ainda consciente, cantarolou algumas palavras: Eu vou indo, meu bem. Enquanto o sol não nascer, não voltarei, meu bem. O sol não vai nascer... ; durante esse momento seus lábios escarneciam. No horário combinado, Luís chegou ao local. Viu o amigo deitado. Sua pele já não tinha mais vida. Seus lábios gracejavam. Luís, sem perder tempo, foi até a bolsa, 40
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procurou e achou a fita adesiva. Desceu até o buraco e colou na camisa do falecido amigo o recado que recebeu um dia antes no bar. Luís saiu do buraco e, com pressa, começou a enterrar o amigo. Enquanto a terra era jogada por Luís sobre a cova rasa, no corpo frio e suicida de Franco, no recado, o poema derradeiro e suas palavras escritas a punho flutuavam. Na alma residem afetos, abismos & engenharias. Porém, descobri que não é a vida que rege a alma A alma, como um motor, rege a vida. A culpa pertence a quem espera pela morte.
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A cama
engenharias perfumada Ou Rosinha, eu te amo.
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De cores indefinidas Com as mãos em ação, enluvadas, com nojo aparente em sua expressão bucal e com seu nariz gritando silenciosamente por socorro, ele limpava, pela primeira vez, em sua casa, a latrina onde as visitas urinavam e defecavam. Algumas vezes, o vazo já fora também vomitado. Tanto por visitas, quanto por ele, em excessos alcoólicos das festas que ele promovia, uma vez ou outra, banhadas a uísque, cerveja e quitutes. Um bicho acinzentado, com 27 patas, não muito maior que a parte branca de sua unha, veio correndo pela lateral da usada latrina, ferozmente, de surpresa, entrou pelos cantos de sua luva e picou sua mão esquerda. Picou como se picar fosse seu ócio. Mas não era isso que o faria parar com sua urgente limpeza. A empregada não pôde ir nesse dia. Estava doente e na fila do SUS. Mais uma pessoa, nessa fila, sem importância alguma. A cozinheira até lavaria o banheiro, onde estava a tal latrina, mas ele achou melhor a sua cozinheira concentrarse numa boa comida caseira para servir à visita. Fique na cozinha, que ganho mais. Ele disse à sua cozinheira. Sua esposa negou-se a fazer o serviço. Já seria demais o sacrifício. Apesar de muito rico e a sua esposa ser um produto que ele escolheu a dedo e comprou, ela negou-se a fazer o serviço. Para ser uma boa esposa, isso não faz parte do ofício. Ela dizia, servindo-se uma dose de Martine. Ele não tinha mais paciência para discutir com sua esposa e não teve tempo de chamar uma diarista porque a reunião com seu caro visitante tinha sido marcada 45
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de última hora. Só restavam trinta minutos para sua visita chegar. Era seu chefe. Por mais dono e poderoso que você seja, sempre há um chefe à espreita. E, em visita de colegas e amigos, parentes, sogros e inimigos, a sua casa tem que estar maquiada e maquinada. Mas, quando é seu chefe que vai te visitar, a máscara, a fantasia que a casa vai trajar merecem a nota 10 no carnaval carioca. Então, como um bom funcionário, ele limpou o banheiro de visitas: os ralos, o chão, a privada marcada de merda alheia, a pia com marcas pretas das babas bem-vindas das visitas, etc. Quando terminou, sua mão estava um pouco inchada da picada do bicho desconhecido que invadiu antes sua casa, depois sua privada, e agora sua luva. Ele olhou bem a sua mão inchada e viu que não era nada para se preocupar. Ele também organizou o seu jardim de orquídeas imperais na parte central de sua casa. E, enquanto cheirava uma de suas belas flores, apareceu uma minúscula borboleta, de cor neon, poderia ser o bicho da beleza, mas tinha até dentes, não era nem borboleta, nem beleza (nem apenas uma rima). Era um diminuto bicho com asas agudas e astutas, nem menor, nem maior que um cisco. Era apenas um bicho, que sobrevoou, distanciando-se do nariz aspirador dele, e nos lábios pousou, mordendo-o como um incorreto, torto, inseto. Como se fosse uma surpresa desagradável, ele deu um grito de dor e pulou para trás. Mas isso não o fez parar para pensar sobre as dores e os segredos que estão como presentes todo o tempo e seguiu sua vida ignorando tal rara monstruosidade. Ele tomou um banho rápido e ensaiou um 46
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discurso de agradecimento por receber essa visita tão expressiva e importante. Enquanto falava olhando-se, narciso, no espelho, de seu reflexo, outro bicho surge assíduo. Com uma textura de gota d'água e com braços que pareciam dedos, tudo miúdo. Pelo olho nu, era pequeno, um quase nada, a não ser um mínimo vulto transparente, parecendo água. A coisa aguada pulou em seus olhos e, aliviado, mijou, como se tivesse liberando um veneno, ou uma bênção. Logo após, morreu como fazem as abelhas quando nos ferroam. Ele sentiu esse ardor, que poderia ser uma dor mais vermelha, com mais horror, se não tivesse com tanta adrenalina em seu peito, com ansiedade de menino, esperando seu único e mais importante chefe. Depois do ardor já ultrapassado, saiu do banheiro de toalha e, no quarto, não teve problemas para se vestir. Já tinha planejado a roupa que usaria quando soube da visita tão inesperada e surpresa que receberia. Poderia ser picado por uma aranha, ou fazer correr mil baratas, ou um vampiro, sugador de finanças, poderia mordê-lo. Nada mudaria sua empolgação com a breve chegada de seu patrão. De lá, saiu direto para o bar de sua casa, onde escondeu todas as bebidas de sua esposa. E quando, no sótão, guardava os uísques, surge ele, debaixo da garrafa, cor de ouro, mas tão mínimo e menor, que era invisível, ainda mais no escuro, pois ele tinha cor de ouro, mas não brilhava aos olhos vivos. Sem patas, sem braços, sem bicos, outras mordidas. Dessa vez, em sua mão direita. Não inchou, ficou roxa. Mas não doeu muito. Ele não se incomodava com tais mudanças e pequenas 47
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dores e surpresas diárias. Organizou melhor os sofás e poltronas da sala, tirou as folhas velhas e insetos que boiavam em sua piscina olímpica, admirou o sol em raios amarelados, transcendentes e alaranjados que invadiam o jardim de sua casa, no sábado à tarde. O chefe só visita quem ele vai oferecer uma promoção. Pensou com um sorriso satisfeito. O celular tocou, era a secretária de seu chefe cancelando a visita. E remarcando para o outro dia pela manhã, na empresa, às oito e meia. Ele aliviou-se um pouco, sua casa poderia estar melhor para receber tão nobre visita. Depois da nossa conversa, ele virá mais vezes e a casa com certeza estará melhor. Pensou. Às oito e meia da manhã, ele estava no quadragésimo sétimo andar, na sala da secretária de seu chefe. A sala dela era do tamanho da sala de estar da sua casa. E ele tinha uma casa grande para os padrões brasileiros. Em sua boca, seus lábios eram quase vivos e falavam sozinhos sobre sua felicidade com a tal promoção. E é certo. A promoção vai vir! Afirmou na noite anterior à sua esposa. A secretária olhava apenas para o computador e, às vezes, para um vazio, como se sonhasse também. Mas sonhos eram proibidos por ali, se a empresa não tivesse participação. Belas pernas. Belos lábios. Sua voz agrada a minha imaginação. Mas ela é só uma secretária. Ele pensou, concluindo sobre a beleza da mulher que estava por trás do título de secretária. Ele desviou um pouco o foco e começou a prestar atenção nas fotografias que estavam na sala. Eram todas de seu chefe. Algumas em preto e branco, umas com aspectos antigos e outras mais atuais. 48
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As fotos seguiam claramente uma ordem cronológica. Quanto mais as fotos são atuais, mais o chefe está gordo. Quanto mais rico ficou, maior ficou o tamanho de sua bunda. Pensou sozinho e sorriu educadamente. Se estivesse sozinho no local, teria soltado uma gargalhada. Parou com esse pensamento observando a secretária olhando para o vazio e sonhando. Ela se deixou levar por algum desses sonhos e abriu levemente suas pernas. Ele observou e viu que sua meia calça ia até a sua calcinha e suas coxas estavam descoloridas. Mas não viu muito mais, desviou o olhar quando o telefone tocou. _Entre – disse a bela secretária, dessa vez com um leve sorriso. E, da meia calça da secretária, saiu outro bicho. Ele era todo branco, como um urso polar, mas sem garras e microscópico. Veio rugindo, voando, em direção a ele, que se ia fugindo, na ótica do bicho. Antes que ele entrasse na sala do chefe, sentiu uma mordida em sua nuca. Recolheu os ombros como se estivesse com dor, mas disfarçou sorrindo para seu futuro-garantido e atual chefe. Dentro da sala, que era duplamente maior que a da secretária, com todas as janelas de vidro e uma visão panorâmica da cidade, ele caminha até o centro, onde estava uma cadeira. Com o olhar, seu chefe ordena-o a sentar. Ele senta. _Bom dia – ele disse ao chefe. _Bom dia. Sente-se. Me desculpe por ontem. Fui à sua casa, mas no caminho percebi que esqueci na minha casa o principal motivo para que eu te visitasse. Então retornei e, quando cheguei em casa, perdi um pouco o tesão da visita, compreende? 49
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Ele responde que sim e surpreende-se com o linguajar de seu patrão. _Ali! – o chefe diz, mandando-o ir para onde estava uma maleta que ele apontava, no canto da sala. _O quê? – ele pergunta o que exatamente seu chefe quer. _Aquela maleta me fez voltar ontem. Júlio, meu chofer, ou melhor, ex-chofer, o demiti. Ele esqueceu a maleta em minha casa. _O senhor quer que eu pegue a maleta? _Perguntas idiotas, respostas ignorantes. É assim que as pessoas são demitidas nesta empresa – disse o chefe. _Ok – ele foi em direção à maleta. Deu trinta e sete passos até ela, tão grande era a sala do chefe. Pegou na alça, mas a mala estava muito pesada. Com seus dois braços, conseguiu trazê-la para uma mesa central da sala. _Abra ela. Eu ainda não incluí o código. Pode abrir e, antes de fechar, inclua seu código. O que tem nela é seu – disse o chefe, um pouco distante do seu funcionário. Antes que ele abrisse, seu chefe o interrompeu dizendo: _Espera. Por que suas mãos estão inchadas e roxas? Uma está inchada, e outra roxa. Por quê? Ele tentou disfarçar, mas disse timidamente: _Insetos. Uns bichos que me picaram. Não sei bem. _Insetos? Tudo bem. Os piores bichos vêm dos locais mais inusitados, podres e esquecidos. Sempre é assim – seu chefe terminou a fala sorrindo, um sorriso expansivo e dono. 50
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Ele sorriu junto. Mas, antes de terminar o riso do chefe, ele já estava sentado na mesa central e abrindo a mala. Era uma quantidade exorbitante de dinheiro. Seus olhos brilharam. _Tem aí uma quantia de dez anos do seu salário. Tudo em notas de cem e alguns títulos que concedo para investimento, que valem mais do que o próprio dinheiro. _O senhor está me demitindo? – ele perguntou, assustado. _Não. É a sua promoção. _Como assim? Primeiro, o chefe gargalhou com vontade e excitação, depois disse sério: _Você já tem uma bela casa, que eu sei. Tem uma linda esposa. Ganha muito bem aqui. No mercado, em sua área, é uma das pessoas que melhor recebe e é das mais respeitadas. Agora, essa maleta tem, exatamente, em valores reais, dez anos de seu salário. E você tem duas opções: _Quais? – ele perguntou ao chefe, ansioso. _Ou você deixa de ser meu capacho e investe esse dinheiro em sua vida e cria sua própria empresa, ou me devolve o dinheiro da maleta, volta para a sua função e, daqui a dez anos, eu te darei três vezes mais que esse valor que oferto agora. _Como assim? _Você é burro ou o quê? _Desculpe – ele disse, sem retirar os olhos do dinheiro. _É burro mesmo. Olhe, é o seguinte. Ou você continua trabalhando para mim fazendo a mesma função e recebendo o mesmo salário por mais dez anos, ou você pega esse dinheiro. A gente encerra 51
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nosso contrato. E você toca sua vida sozinho sendo seu próprio chefe – o patrão diz, asperamente. _Todo mundo tem um chefe. Você não tem? _Tenho. Ele me fez essa proposta e ainda estou aqui, fazendo a minha parte. E você, o que quer? _Por que está me oferecendo isso? – ele perguntou, desconfiando da boa ação de seu amado patrão. O chefe sorriu e exigiu: _Vá pensar. Aposto que já está quase perto de sua decisão – ele sorri novamente. – Mas pense bem antes de confirmá-la pra mim. Ou melhor, confirmar a você mesmo. Ele saiu da sala de seu patrão com a maleta em mãos e disse que iria para casa conversar com sua mulher. O seu chefe zombou de sua cara falando ...já sabia que você faria isso: perguntar à mulher. É o que todos os covardes e perdedores fazem. Enquanto o ele dizia isso, sorria o riso meigo dos chefes matreiros. No meio do caminho, ele estava preso em um engarrafamento em seu carro importado, blindado e com vidros fumês. Já sabendo qual era a decisão que tomaria sobre seu futuro, ele abriu a maleta com seus olhos e suas mãos e começou a olhar o montante do dinheiro. Babou como se estivesse de fronte a um manjar dado especialmente por Deus e sua caridade eterna. Emocionou-se como se tivesse marcado um gol em final de copa do mundo. Mas, no antro de suas emoções, um bicho, que estava escondido embaixo das notas azuladasesverdeadas e títulos, com 87 patas, quatro bocas e 98 dentes, sem falar de seus 113 olhos, pulou em 52
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sua mão. Era tão pequeno que ele não o percebeu. O bicho, esperto, pulou em seu pescoço e o mordeu. Cravou seus dentes na jugular e chupou um pouco do seu sangue. E chupou mais. E mais. MAIS! Até mudar de cor, deixando de ser marrom, tornando-se vermelho-roxo. O bicho trocou fluído e saliva com sua vítima, que não percebeu a mordida que aconteceu sem dor. Depois do ato, o bicho saiu voando até perder suas asas. E caiu no tapete do carro onde nunca mais seria visto, e ficaria esperando a morte com um riso débil e lisérgico de felicidade. Ele, já mais que decidido, chegou em casa. Ainda assim, perguntou a opinião da esposa. Para ela, de onde viesse mais dinheiro era melhor. Para ele também. Ele, ofendido por causa do seu chefe que o chamou de burro e antes lhe deu um cano, pensou: Foda-se. Como se fosse dá tudo certo, ele seguiria sua trilha: primeiro foi demitido, depois vai tirar umas férias e, logo depois, ser chefe de si mesmo. Intenções são instigadas por engenharias transcendentais. De primeira, o efeito da mordida do bicho do dinheiro fez surgir em seu rosto pequenos fiapos de barba, os pentelhos da cara. O dia estava começando. Ele e sua esposa já estavam com felizes sorrisos explanados, comemorando a vida. Uísque. Petiscos. Champanhe. Sexo na sala e com direito à gozada de ambos. Era certo que, com o investimento inicial e o crédito que ele tinha na praça, seria o dono, o líder de mercado da sua área de atuação. Era certo que seus delírios megalomaníacos eram o efeito do veneno do bicho 53
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do dinheiro em seu sangue. Vou fazer um conglomerado de empresas que atuem em todas as áreas que tenham a ver com a bolsa de valores. Quem sabe não faça uma bolsa com meu nome... Com meu talento e esse investimento inicial, eu posso tudo. E, entre os sorrisos e brindes, ele teve outra ideia megalomaníaca. Dessa vez, a ideia veio com um cunho de certeza em seu peito. Essa nova ideia dará certo! Afirmava. Mas, antes que ele contasse para sua mulher a tal ideia, ela sentiu nele um cheiro insuportável. Ele não percebeu, mas ela inventou que estava com dores no corpo, com dor de cabeça. E saiu para a massagem, e depois para salão e, no fim do dia, para relaxar, meditação ao ar livre. Ela só voltaria no horário da novela das nove, à qual não deixa de assistir. Ele estava tão extasiado que não se importou. E, sozinho, vislumbrou o sonho de seu pai, que era pastor na igrejinha do interior onde ele passou a sua infância. Até ter o pai assassinado por um fanático religioso. Seu pai foi morto em sua frente. E, assim, ele foi até seu quarto e pegou a antiga gravata que seu pai usava em seus cultos. De fronte ao espelho, com a gravata no pescoço, ele sonhou que em vez de montar o tal conglomerado de empresas no seu setor, poderia abrir uma nova igreja: José de Deus, a igreja da sua salvação. Em homenagem ao seu pai José. Ele sempre foi bom de lábia e sabia falar bem de Deus. Ou seja, já tinha meio caminho andado. E sem falar que Deus sempre o ajudou nos piores momentos de sua vida. Ele era um filho merecedor. E, assim, eu abrirei uma igreja. Concluiu em pensamentos. 54
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Mas, antes que tomasse a primeira atitude ligando para um dos seus irmãos, que era pastor em outra igreja evangélica, para convidá-lo a essa missão divina e de fé, viu seu reflexo no espelho e achou-se mais baixo e curvado. Pegando em suas costas, sentiu sua coluna mais curvada. Olhou novamente seu reflexo e viu que realmente ele estava curvado. Mais redondo. Como se fosse um “C” com duas pernas e dois braços. Seu rosto estava mais cabeludo. Preciso fazer a barba. Pensou. E foi ao banheiro das visitas, que outro dia ele tinha lavado para seu chefe poder usar. Mas seu chefe não foi. Deu bolo. Com certeza abrirei meu negócio. Serei o dono de tudo que está ao meu redor e meu próprio chefe. Chefe de minha alma. Ainda vou catequizar meu ex-chefe e todos meus colegas de trabalho na minha fé. Vou multiplicar em vinte esse dinheiro. Vou enquadrar fortunas. Com a força do Senhor! Aumentar tudo em cem vezes... Enquanto ele sonhava no banheiro de visitas e começava a fazer sua barba, ocorreu-lhe outra ideia de como poder ter ainda mais dinheiro sem que o fisco comesse uma parte do bolo. Como é que meu chefe ainda não pensou nisso? Depois eu que sou o burro. Concluiu. E, antes que terminasse sua barba, viu-se político. Senador. Em breve, com tudo que ele realizasse, um dia ele seria presidente. Até porque, quanto mais obras, mais votos. Quanto mais votos, mais dinheiro lavado e mais dinheiro no bolso. Isso era certeza!Eu posso, pois sei onde se encontra o poder de poder. Ele filosofava sozinho, até que percebeu que não estava surtindo efeito o feitio de sua barba. Tirou o creme de barbear e tentou raspar 55
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com a lâmina de forma grosseira. Em menos de trinta segundos, todos os cabelos cresciam em seu rosto. Ficou um pouco desesperado e foi até a sala, onde olhou o dinheiro e tranqüilizou-se. Pagarei o melhor médico para resolver esse problema. Pensou nessa solução. Mas, antes de se aliviar de vez e ter mais uma de suas grandes ideias, percebeu em sua barriga um vão. Um vazio. Um vácuo. Passou a mão e sentiu no lugar do umbigo um buraco. Tirou a camisa e olhou. Sim, tinha um buraco no lugar do umbigo. Foi direto para o banheiro, onde vomitou assustado. Esse ato o deixou ainda mais assustado, pois o vômito saiu todo pelo buraco que estava no meio de sua barriga. O vômito tinha um cheiro de podridão e era de cor amarronzada. Ele ficou muito nervoso e começou a chorar. Ele olhou-se no espelho e viuse, mais fielmente, no formato de um “C”, ou era um “U”. Não conseguiu identificar bem no que estava se transformando. Sua barriga começou a doer e, com uma vontade enorme de cagar, sentouse na privada. Precisou forçar, pois não saía nada. Forçou mais um pouco e, pelo buraco de sua barriga, saiu a merda. O que melou todo o chão do banheiro. Entrou debaixo do chuveiro e voltou para a sala sem se importar com a sujeira que tinha produzido. Na sala, em cima do dinheiro, estava uma concentração de insetos. Seus olhos não conseguiam ver direito o que eram os insetos, mas eles eram do grupo dos bichos de onde saiu o bicho do dinheiro que o mordeu no carro. Todos estavam juntos, planando e voando ao redor do dinheiro como moscas. Quando os bichos o avistaram, pararam no ar como borboletas e Dadá Maravilha, e 56
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migraram grunhindo em direção ao buraco que tinha se formado na sua barriga. Ele percebeu que alguma coisa de errado tinha com aquele dinheiro todo. Vestiu-se, fechou a maleta de dinheiro e, ainda umas 17:30h, saiu de sua casa com os insetos voando ao seu redor. Quando ele chegou à empresa, subiu o elevador com todos ao redor de narizes fechados e olhando-o, como se ele fosse uma fossa humana. Seu fedor já era perceptível e insuportável até para ele. Mas não tinha o que fazer, a não ser conseguir falar com seu chefe. Ainda mais “C”, com cabelos pelo rosto, pelos braços, e que não paravam de crescer, com o buraco em sua barriga aumentando cada vez mais, invadiu a sala onde estava a secretária e, sem pedir autorização, invadiu a sala do seu chefe. A secretária entrou perguntando se o patrão queria que chamasse a segurança do prédio. _Não precisa, querida, eu conversarei com ele tranquilamente. A secretária obedeceu. Saiu da sala tampando o nariz, fazendo cara de nojo e olhando para ele. _O que tem nesse dinheiro que você me deu? – ele perguntou alterado. _Você é um porco mesmo. Está precisando de um banho – disse seu chefe, tampando o nariz. _Não enrola, porra. O que tem nessa desgraça de dinheiro?! _Adalberto, meu querido – disse o chefe carinhosamente. – Você era meu melhor funcionário. Mas você fez sua escolha... _Que escolha? – perguntou Adalberto. _Você escolheu se demitir, não foi? Com 57
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alguns ex-funcionários a escolha demora uma semana, com outros, poucas horas. E esse foi seu caso, não foi? Para você não tem mais jeito. Antes que Adalberto falasse algo, seu corpo curvou-se mais, e seu rosto, suas pernas, braços, dentes, tudo que não fosse enrugado, enrugou-se como se sua pele envelhecesse cinquenta anos. Sua face. Seus olhos. Seu riso. Tudo virou pele enrugada. Ele tornou-se um oval, um círculo oval enrugado. Quase um vegetal, se não fosse ainda sua consciência ativa, percebendo tudo que acontecia no momento. O buraco em seu umbigo parou de crescer, mas ganhou uma consistência e fechou-se um pouco mais. Adalberto perdeu tamanho. Ele ficou pequenino, cabendo numa palma de mão. Não tinha mais pernas, nem braços. Agora ele estava com uma cor indefinida. O chefe levantou-se de sua cadeira já abrindo o zíper de sua calça de linho, número 67. Baixou as calças e a samba-canção. Pegou o que era Adalberto com certa dificuldade, quando se agachou. Analisou em sua palma da mão o que Adalberto é agora: um círculo enrugado, oval, com um buraco no meio, cabeludo ao redor e de cores indefinidas: às vezes roxo, às vezes avermelhado e até, às vezes, rosa. _Como tem que ser, ele fede. É certo – o chefe fala sozinho, satisfeito. Com um sortido sorriso, acompanhado pelas suas estrias, não menos sorridentes, o chefe colocou Adalberto entre as bandas de sua bunda. E Adalberto, o mais novo cu do patrão, seguiu seu caminho, depois da fadada escolha, rapidamente adaptando-se a dança do quadril-senhoril que se mexia, alongando-se um pouco mais, como se 58
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estivesse harmonizando o espaço para o mais novo agregado. E a bunda do chefe, branca, cheia de mimos, contaminada com banhas de primeira estirpe e uma elegante felicidade, sorria.
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Sobre o autor José Augusto Couto Sampaio Neto; nasceu em 28 de outubro de 1983, na cidade de Alagoinhas, recôncavo da Bahia, onde viveu até os sete anos. Mudou-se com a família para Juazeiro da Bahia, divisa com o Estado de Pernambuco, ao lado da cidade de Petrolina. Ambas cidades banhadas pelo Rio São Francisco. Aos 18 anos, mudou-se para Salvador, capital baiana, junto à família novamente, onde cursou Publicidade e Propaganda na Universidade Católica de Salvador, localizada acima da Estação da Lapa, centro da cidade. Casou-se aos 24 anos com Isana Barbosa e mudou-se para Teresina, Piauí, onde reside e trabalha como publicitário, produtor e escritor. afetos, abismos & engenharias é o seu terceiro livro de contos e seu quinto na carreira como escritor. O escritor publicou, em outubro de 2010, dois livros: O outro lado do olho, livro de poemas, e Imagine alguém te olhando do escuro, livro de contos. Em novembro de 2011, publicou Narrativas do horror cotidiano, livro com dois contos e uma novela. Em junho de 2012, publicou Desigual, mais um livro de poemas. Segundo o escritor, “A literatura é a minha salvação pessoal e liberação dos meus demônios”. Para saber mais informações, acesse: joseaugustosampaio.blogspot.com.br Contato: guto.sampaio83@gmail.com Perfil no Facebook: José Augusto Sampaio 63
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