Imagine alguĂŠm te olhando do escuro
JosĂŠ Augusto Sampaio
Imagine alguém te olhando do escuro
José Augusto Sampaio
Este livro impõe uma ordem: após seu uso, ou desuso, decreta-se como sua obrigação repassá-lo a quem tem interesse ou precisa dos textos contidos nele. Compartilhe o link! Ficha Técnica: Edição de texto de Isana Barbosa Capa e diagramação - Editora Publique Já! Distribuição Editora Publique Já! Todos os textos são de autoria e publicados por José Augusto Couto Sampaio Neto. É proibida a venda e veiculação deste conteúdo sem a autorização do autor José Augusto Couto Sampaio Neto.
©Imagine alguém te olhando do escuro - Lançado originalmente em outubro de 2010
©José Augusto Couto Sampaio Neto
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Ao Leitor: Noventa por cento deste livro foi escrito em Teresina, Piauí, cidade que me trouxe calor humano e o calor arrebatador de seus dias. Este livro tem a colaboração de Isana Barbosa, com suas críticas e observações. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Boa leitura.
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Índice: A miséria come a cabeça --Homem: do lixo ao lixo --O riso dos ratos --Temperado --E-mail --Benzinho --O herói do Brasil --O bem geral --O dedo médio --Calor humano --Bons vizinhos, bons amigos, bons vinhos O dono do inferno labuta por nós -A voz --Criador e criatura --Aos intelectuais de vitrine e de merda A crise mundial é dos homens -Minha parte feminina --Toque nervoso --Uma e outra história de amor -Mau humor --IML --A rotina --Mais vivo que um robô e menos certo que a máquina --Cadê essa tal liberdade --O Tarado --A preciosa dele --Amores e acasos --Elis ama --Rio Parnaíba --Caixão de luxo --Ciclo --O cheiro do mundo --05
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A miséria come a cabeça Chico ficava em casa, muito magro e de fala devagar, preferia revistas pornôs e quadrinhos rasgados. Pedro, mais forte, mais alto, mais inteligente, queixava-se sempre ao seu irmão: _Chico, todo dia é a mesma coisa. De madruga é essa frieira toda. O cigarro de palha acaba antes do vento parar. Tem uma hora da madrugada em que o vento para. Aí a gente dorme. Desperta com o galo Frei. Ainda está escuro e você, o protegido do papai, só porque ainda tem 11 anos, vai ver putaria e ler essas histórias babacas que não têm nem fim, a maioria tá rasgada. Disso, vou pra roça, labuto o dia todo. O pai me trata como um escravo. Às vezes, até me bate com pedaço de cipó. E ainda aquele filho da puta não deixa eu fumar meu cigarro de palha. Desgraçado. A mãe morreu e deixou a gente com essa alma penada. Isso só pode ser coisa do demônio, do cão. A miséria come a cabeça da gente, deixa todo mundo mais burro. _Pedro, o pai ama a gente. – Chico, calmo, diz ao seu irmão. Os dois dormem. A miséria come o quarto deles. Os pés de cada um foram limpos com água de sete dias, reaproveitada. Nessa seca, tem que comer até terra, se for preciso, para sobreviver. O pai de Chico e Pedro sempre repete isso. Na cozinha, sem geladeira, algumas batatas no chão (Machado está certo). Um forno à lenha, que em alguns lugares do mundo é chique, rústico, moderno. Na sala, dois pedaços de pau. Ferramentas para obrar na roça. Uma TV em preto e branco. Um jarro redondo com revistas e quadrinhos antigos. A porta dorme entreaberta, apesar do frio. O pai gosta de ouvir o vento. Dizia o Chico para o Pedro. Outro dia, à noite, o pai dos meninos vinha com um quilo de lagarto, carne bovina, o ouro do mês para eles. Chico saiu correndo de felicidade e abraçou o pai. Pedro esbravejou: lá vem ele com a corrupção. Pedro adora essa palavra, ouvia muito na TV, sua maior paixão. Antes que o pai entrasse em casa, ele tropeça, cai e bate a cabeça no vaso de revistas. _Chico, o que houve? – Pedro corre até a sala e vê seu pai no chão com a cabeça sangrando. Chico sai chorando, gritando 07
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socorro. Os vizinhos vieram acudir, trouxeram rezadeira, curandeiro, chegou até ambulância, mas só depois de quatro horas, e nada deu certo. O pai morreu. No outro dia, Chico acordou e pegou a carne que havia guardado no meio do sal. O Pedro viu e tomou a carne dele. _Chico, você quer comer a carne? Não podemos. É a herança que o papai deixou pra gente, uma herança e lembrança. Ele foi enterrado, mas essa carne ficará como legado do pai (outra palavra da TV e que ele sabe aplicar). Vamos fazer com ela o que vi outro dia na TV. Vamos pegar aquela garrafa, botar álcool dentro, e guardar a carne. Ela vai se conservar. Vi na TV. _Tou com fome, Pedro, minha barriga tá doendo. _Aguente a fome, vamos comer batatas. _O pai não fazia isso, Pedro. Eu tou com fome. – Chico diz, já chorando pela tristeza e de fome. _O pai era um filho da puta. Chico, revoltado, parte para cima do Pedro, como um leão muito magro e morto de fome. Pedro esmurra sua cara e, quando Chico cai ao chão, Pedro chuta-o na barriga. Da boca de Chico sai sangue. _A miséria tá comendo sua cabeça, Pedro. Seu desgraçado! Chico sai correndo e some. Na estrada, pediu esmola. Tentou não entrar, mas pela fome, chupou. Cedeu. Apanhou. Com 15 anos, já em São Paulo, começou a lavar louças e limpar banheiros. Com 17, voltou para as ruas, roubou, deu, chupou, pediu, chorou, implorou, desmaiou e, como um bom humano, também sorriu. Pensou em voltar para a sua terra, não foi. Mendigo, arranjou um emprego graças a uma ONG, que futuramente iria fechar por receber verba sem licitação do governo. Voltou a trabalhar limpando banheiros. Dessa vez, mais confiante, mais vivido, mais sábio, mais gordo, barbado e com vinte e um anos, decidiu voltar para buscar uma coisa que lembrava os seus bons tempos de infância, as revistas em quadrinhos sem os finais, pois estavam com as páginas rasgadas. Chico também queria ver seu irmão Pedro, contar a ele como a miséria dominou o mundo. Era de madrugada, aquele frio não era mais aquele frio. 08
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Estava um pouco mais quente. A roça que ele morou naquela época estava menor. Viu que seus vizinhos eram outros donos que compraram as terras dos seus vizinhos e compraram parte da roça. Chico queria fazer uma surpresa para o irmão. Entrou na casa, que dormia com a porta entreaberta, viu suas revistas no mesmo lugar. Com um sorriso no rosto, foi pegá-las. Depois de abaixar, um pedaço de pau foi batido contra sua cabeça, com a força com que abatem um gado. Era seu irmão Pedro, que assim dito, não reconheceu seu irmão Chico, diferente e calejado pelos últimos dez anos, pois sua memória foi comida pela miséria esfomeada.
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Homem: do lixo ao lixo Toda terça-feira é dia do carro de lixo passar para recolher os restos das casas. Dentro delas, das casas, é retirado da lixeira dos banheiros: papel higiênico sujo, escova antiga, tufo de cabelo do ralo do banheiro, insetos mortos, incluindo barata esmagada com algo verde estourado pelo pé e limpo com papel higiênico, etc. Do lixo do quarto: diversos papéis, absorventes usados, camisinha usada, bastonetes recheados de cera, pilhas antigas, bateria de celular, pacotes de doces abertos, algumas formigas, escarros cuspidos, etc. E enfim, no lixo da cozinha, na menor lixeira, de duas que há na cozinha: restos de comida que sobraram no prato alheio, restos de comida que foram à boca, mastigadas, trituradas e depois cuspidas ao lixo, outras baratas esmagadas, cuspe com catarro e sangue, pois não é bom cuspir na pia, ainda mais quando a saliva é acompanhada de sangue, para isso, o lixo do lado da pia facilitando. Restos de comida desperdiçada no preparo da comida, papel amassado, pedaços de vidro, uma lata de cerveja amassada, um saco de pipoca de micro-ondas, resto de pão com manteiga e queijo que antes foi derretido, e agora fede, etc. No outro lixo da cozinha, o grande, tem uma embalagem de pizza média (R$ 23,00) com restos das bordas desperdiçadas, um saco com o lixo de ontem da lixeira menor com outros diversos desperdícios e lixos da vida moderna, um saco plástico com arroz desperdiçado, arroz que ficou quinze dias na geladeira, Coca-cola pet de dois litros vazia, mais vidros de copo quebrado e outros. Isso tudo misturado aos outros sacos dos lixos, pois esta é a maior lixeira da casa: a grande lixeira da cozinha. A que serve de saco de presentes para o carro de lixo. Às oito da noite é posto o lixo na porta de casa. Toda madrugada de quarta-feira, antes do caminhão de lixo passar, um urubu, daqueles que a gente não vê (pois urubu de madrugada só assim, escrito), pousa na intenção do saco de lixo que foi posto na porta de casa. No muro, espia, tenta sentir o cheiro de carniça, mas dessa vez nada, nada de carne estragada. Desce perto do saco, com a pata, espia e sente. 10
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Nada de carniça. Antes que alguém o veja, levanta voo. Logo em seguida, nada besta, um gato sai da escuridão de uma telha vizinha, pula na rua, sem miar, silencioso. Começa a cheirar o lixo. De vez em quando, não sei se por carência ou por loucura, lambe o saco de lixo. Chegam mais dois gatos. Eles miam, parecem conversar, um deles caga na calçada da casa onde está o lixo. Eles sobem rapidamente no muro e somem na escuridão dum outro telhado. Logo em seguida vem o sapo. Ele pula, pula. Caminha de quatro com pernas de sapo. Nem liga para o lixo, joga-se no esgoto que flui banhando seu corpo, deliciosamente. E observa. No início da rua, três cachorros machos, vira-latas, vêm. Da esquina até a casa onde está o lixo, se ouvem os latidos dos outros cachorros que estão nas garagens e quintais dos seus donos. Os vira-latas nem latem, mexem com um a um dos lixos que estão na rua. Até chegaram ao lixo que foi posto na porta da casa. Ele cheira e nada. Um deles sorri. Sim, incrivelmente eles sorriem quando não têm a presença humana. Outro do grupo cheira o lixo com mais atenção e identifica bordas que não foram comidas de uma pizza, mas antes que ele chegue a latir avisando a descoberta aos companheiros, uma cadela passa na esquina. Os três sentem o cheiro de cio ao longe, espiam e de vez vão sorridentes. Dez minutos depois, um homem, que está com um saco já cheio de sobras e restos, mexe no lixo que está à frente da casa. Ele, sabiamente, em pouco tempo, acha as bordas desperdiçadas da pizza. Encontra também um short de marca, rasgado e com várias costuras antigas de outros rasgões. Ele, feliz com os achados, come duas bordas duma só vez. Antes que siga, vê o sapo na poça. Ele, com os olhos esbugalhados para o sapo, com perspicácia, o pega com as mãos. O homem, com força, com fome, sem pena, lixo, humano, aperta o sapo até a morte e segue, salivando a refeição.
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O riso dos ratos O gato trilhava pelo muro e ele espreitava com uma faca e a mangueira na mão. O gato avistou uma presa, ainda no muro. Com seus olhos noturnos, preparou o bote. Ele, com a mangueira, jogou água. O gato, distraído, caiu perto dele. A faca amolada só precisou de uma passada para cortar as costelas do gato. Os miados foram tão altos, que alguns vizinhos saíram de casa para ver o que era. Uma vizinha diz: _Mata logo o coitado. _Primeiro: ele saiu correndo feito gatinha coitada. Segundo: vai cicatrizar. Disso, terei outra chance de cortá-lo mais corretamente. – ele, risonho, mas calmo, afirma. A vizinha não teve nenhuma reação. Ele se gabava sempre: já cortei rabo de cachorro depois dele adulto. Arranquei olho de sapo. Fiz corte na pica de vira-lata pra ficar parecendo língua de cobra. Arranquei asa de passarinho. Afoguei alguns gatos que caíam na arapuca que aprontei aqui em casa. Eles caíam, eu os pegava e os afogava. Quando via que estava perto de matá-los, tirava da água, fazia um corte, sem precisão, em suas garras e os deixava ir, cambaleando. Já cortei rabo de rato, olhos de rato, pelo, couro também. Não acham que os ratos merecem? – perguntava sorrindo. _Uma vez, um cachorro que eu estava capando no momento em que ele cruzava com uma cadela, me mordeu. Arranquei duas patas e os dentes de baixo de sua boca. Com a cadela, que ficou com a pica do cachorro em seu cu, amarrei ela com uma força que a fez sangrar. A deixei sangrar até estar perto de morrer. Aí eu confesso, senti um pouco de pena, então comprei bombas de São João, aquelas de cem, muito fortes, e fiz a cadela explodir. Tenho certeza que ela me agradeceu por esse ato. Alguns vizinhos gostavam. Outros entendiam o seu prazer. Outros o odiavam. Outros o achavam louco. E mais outros e tantos outros achavam tudo isso normal e até poderiam fazer igual. 12
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Uma noite em que ele assistia à TV em sua sala, um gato, sem parte de seu pelo, adentra o local. Ele, de costas para a porta e de frente para a TV, não vê. Entram quatro sapos. Dois sem uma das patas. Outros dois com o corpo inchado, como se tivessem experimentado sal na pele. Entram mais gatos, cada um com uma parte do corpo arrancada: patas, olhos, dentes, pelo, pênis, orelha etc. Entram cachorros, todos mutilados e silenciosos. Um desses cachorros, com o ânus ainda sangrando muito, como se tivesse sido penetrado por um cabo de vassoura, parecia o líder. Alguns ratos, que já esperavam os outros animais embaixo do sofá, contentes com o momento, fizeram barulho, sons de riso. Apesar de estarem mutilados, eles ainda riam. Ele se levantou. _Esse som é de rato! Quando olhou para trás, viu uma “multidão” de animais em sua sala: gatos, cachorros, ratos, pássaros, tartarugas, lagartos, etc. Antes que tivesse tempo para falar ou fazer alguma coisa... A porta de sua casa foi fechada por duas tartarugas. Uma sem o casco, outra sem um pedaço do pescoço e menos uma pata. As janelas foram fechadas pelos pássaros. Muitos depenados e outros mutilados. E depois dessa noite, nunca mais se ouviu falar dele, nem de suas histórias. E os ratos riam.
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Temperado Desde criança ele era visto pelos outros com olhos diferentes. Quando jovem, descobriu sua aptidão para os serviços de casa. Assim, sempre ajudava sua tia. Ele morava com ela, a sua tia amada. Por causa da condição financeira deles, que era muito baixa, ele começou a trabalhar como profissional do lar na casa do vizinho. As pessoas comentavam: _Uma empregada homem!? Fazia parte da vida dele ser comentado por todos e por tudo. Uns achavam que era gay, talvez pelo seu cabelo comprido, outros achavam que era garoto de programa, ou otário, louco, travesti, amostrado, sapatão, “você não está vendo os músculos? Mas cadê os seios?”, outros achavam que era viado mesmo, e outros o viam como um ninguém. Enfim, ele começou a ganhar fama por causa do seu trabalho muito bem feito. Então, conseguiu mais alguns clientes. Depois de algum tempo, já ganhando razoavelmente bem, saiu da casa de sua tia e foi morar sozinho. Todo domingo ele ia visitá-la, pois tinha muito amor e gratidão por ela. Ele chegava a pegar duas casas por dia e trabalhava seis dias por semana. Sempre reservando o domingo para ir ver a sua amada e idolatrada tia. No bairro onde morava, todos o conheciam e, mesmo quem falava mal dele, queria seus serviços de 'empregada'. A procura era tanta que ele começou a agendar seus dias de serviço. Algumas casas ficavam esperando ansiosas durante dois meses pelo seu trabalho. Mas, mesmo com tanta fama e tanta dedicação com as casas dos outros, ele ainda era comentado. Era só dar as costas e ir caminhando como se estivesse indo para o céu, que as pessoas não perdoavam: _Nunca o vi com mulheres. _Também nunca o vi com homens. _Será que ele pega aquela velha da tia dele? Ele, depois de quase dois anos de muito trabalho para os outros, e sempre todos os domingos, na hora certa, indo ver sua tia, ele decidiu usar saia. 14
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_Vou usar saia porque é mais fresco. Lavar chão, fazer comida, lavar privada, recolher lixo e limpar todos os cantos sujos de poeira das casas alheias, num sol de 40 graus, não é fácil! Ou seja, quem quiser meus serviços vai ter que me ver de saia. Para ele, aumentou o trabalho e o alívio diante do calor. Para os outros, aumentou a espera pelo seu trabalho perfeito de casa e os comentários: _Ele é louco. _Bicha. _Pra mim, é um sádico. _Artista. _Uma verdadeira puta. _Ninguém. Qual é o segredo? Ele mostra: Todo dia chegar 10 minutos antes da hora marcada para começar o serviço. Esperar a hora certa para tocar a companhia, ou bater na porta. Lavar os pratos de ontem. Preparar os ovos mexidos do patrão, ou patroa. Discretamente, escarrar e cuspir nas gemas. Depois batê-las. Ouvir seu patrão ou patroa, ou os dois elogiarem: _Ficou ótimo! Você botou aquele tempero mágico de novo, não foi?! Às 9 horas da manhã, arrumar toda a sala. Pegar todos os cabelos espalhados no chão, das cabeças dos outros. Limpar todos os móveis, etc. Agora, são 11 da manhã, enquanto o patrão assiste ao treino livre da Fórmula I e a patroa está no salão, ele vai até o banheiro, levanta a saia até a cintura, e se masturba. Volta à cozinha e, com a mão suja, prepara a salada. Enxugando e escorrendo todo o suor do corpo em cima das panelas, coçando o cu de vez em quando, suando o nariz e dando mais escarros em cima do feijão, ele prepara o almoço. Todos dizem: _Muito bom! Ele pensa: então, esperem o momento do jantar, filhos da puta.
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E-mail Ele estava respondendo os seus e-mails quando, em uma de suas mensagens, tinha o título: Abra e se apaixone. Gabriel, sempre desconfiado, achou que era vírus, mas antes que ele apagasse a mensagem, seu celular tocou. Era um dos seus amigos dizendo que já estava na porta de sua casa, à sua espera. Gabriel desligou o computador, não apagou a mensagem e partiu para curtir a noite. De manhã, em seu trabalho, um dos seus colegas pergunta: _Que cara é essa? _Ressaca. _Curtiu ontem, então? _Antes fosse. Só enchi a cara e, como sempre, fui dormir só. _Desde que ela te largou você está só, não é? Gabriel não responde nada, faz uma cara de quem não está mais para papo. Mas realmente ele está só desde que Juliana o largou. Ela percebeu que merecia coisa melhor. Gabriel abre os seus e-mails e vê ainda lá a mensagem 'Abra e se apaixone', que ele tinha achado que era vírus. Mas, como estava no trabalho e infectar aquele computador não seria problema para ele, além da sua curiosidade ser grande, Gabriel abre o e-mail. Na mensagem tinha uma foto duma mulher linda, nua e toda aberta, inclusive os seus lábios vaginais, que eram abertos com a ajuda de sua mão. Alguém do trabalho passou rápido, ele baixou a página. Quando percebeu que estava só, levantou a janela do seu e-mail e começou a observar. Uma força incrível teve aquela foto sobre ele. De primeira, ele se alterou, mas depois seu coração começou a fraquejar e sua cabeça a imaginar essa pessoa em sua vida, no seu dia a dia. Gabriel passou o resto do dia lembrando-se daquela moça, e da imagem de sua vagina aberta e avermelhada. Na hora do almoço, não conseguiu comer nada. No primeiro momento, achou que era indisposição com o gosto da comida, mas depois percebeu que não conseguia se concentrar em seu prato, não tirava da cabeça aquela linda e arreganhada mulher. 16
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Durante a tarde, mesmo cheio de serviços para resolver, não teve momento em que não soltasse risos de canto de boca, lembrando de sua nova amada que, aliás, ele passou a chamar de Musa. Ainda durante a tarde, passou dois longos momentos no banheiro, sendo que uma das vezes perdeu uma ligação importante de cliente. Mas vamos perdoá-lo, o amor faz com que fiquemos abobados. “Minha Musa, onde será que te encontro?” Gabriel pensa em pé no ônibus apertado, voltando para casa. De repente, entra uma menina branca de cabelos lisos, negros e linda. Gabriel rapidamente começa a analisá-la e, pedindo licença e empurrando um pouco, vai à frente do ônibus ficar perto da menina. “Meus Deus, que sorte! É a minha Musa. Vou falar com ela, é a minha Musa!”. Mas não era a musa, ele viu que ela não tinha um detalhe da boca que viu na foto da Musa. Ela tinha um sinal perto dos seus lábios, o que a deixa ainda mais parecida com uma deusa, uma deusa, um caminho para o céu. Em casa, Gabriel passou a noite acordado, procurando outras fotos, ou qualquer notícia de sua Musa pela Internet. Mas nada de achar. Sentado em um canto de seu quarto e com o olhar fixo na imagem do computador, Gabriel solta lágrimas, baba, sorri, esperneia, sai do canto, anda de um lado a outro e lamenta o fato de não saber mais nada dela, lamenta o fato de sua paixão não ter nome. _Mas por que, meu Deus? Por que amar é tão difícil? - Atônito, ele sofre no inferno... De manhã, ele acorda no chão, nu e sujo. O cheiro do quarto é o mesmo que sai de suas entranhas. Ele percebe que está duas horas atrasado para o seu trabalho. Vai rápido tomar banho e sai. Quando chega ao trabalho, rapidamente resolve seus problemas no computador, sem tirar a Musa de sua cabeça. Já há quase 24 horas sem comer e com as olheiras profundas, um de seus colegas de trabalho pergunta: _E aí, cara, ressaca de novo? Ele não responde nada, só resmunga: Musa, Musa, Musa... Ele entra em seu e-mail para ir olhar a foto de sua Musa para 17
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ver se relaxa e consegue trabalhar. Ao abrir o e-mail tem outra mensagem: Abra e ame! Ele sorri alto em sua sala e diz: MINHA MUSA! Meu Deus, obrigado, eu mereço esse amor! _Tá doido, Gabriel? – pergunta o seu colega. Ele sorri e diz: Doido de amor. Ele abre a nova mensagem, nela tem outra foto de outra mulher linda. Dessa vez, de quatro olhando de lado e para trás, abrindo com as duas mãos a sua bunda e, consequentemente, a sua vagina. Os olhos de Gabriel enchem de lágrima, paralisado, olhando para o monitor. Gabriel sorri, chora e, sem fome, ama o que vê. Sem pensar nem dois segundos, ele deleta a antiga mensagem: Abra e se apaixone.
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Benzinho Ele mora só há cinco anos. De manhã, quando acorda, uma lembrança melódica fica em sua memória de forma distante, como um bom sonho. Um frio súbito o afaga, muitas vezes ele gosta, mas tem outras que não, seus pés esfriam feito gelo. Na hora do banho, masturba-se para acordar o anseio pelo dia. E, se arrumando, sempre acha que alguém o observa. Por esse pensamento, fica excitado novamente, mas só excitado. Penteia-se. Veste-se. Perfuma-se. Tranca a casa e vai ao trabalho. No meio do dia, a casa é silenciosa, o seu dono almoça fora. A não ser pelos gatos que andam pelo telhado da casa, espreitando com olhos saturnos as frestas das telhas, o vazio sombrio e de pequenos ruídos. Muitas vezes, alguns desses gatos pulam assustados do telhado para o muro, do muro para a casa vizinha e só voltam à noite, quando o dono chega. A chave adentra a fechadura, a casa parece renascer de outra forma. A casa revive. O que antes era solidão e quase silêncio torna-se um bem-vindo ao dono da casa. Ele tira toda a roupa que passou o dia. Bota um short que estava no cabide. Ele não percebe, mas o short foi remexido por alguém. Ele não é de gravar os detalhes. Afinal, mora só. Quem invadiria a sua casa? Ele se alimenta: uma manga, um leite achocolatado quente, um pedaço de queijo e água. Tudo saboreado de forma agradável e sonora. O seu som, Beethoven, nona sinfonia, está ligado. Ele sua, faz calor. Os gatos desconfiados aproximam-se e ganham pedaços de carne. Na cozinha, ele lava os pratos. Algumas vezes sente que tem alguém ali ofegando em seu ouvido, olha para trás e nada. Na varanda, ele liga a mangueira e molha suas plantas, molha-se também. Por vezes, passa sabão pelo corpo ali mesmo e vai para o quarto. Tranca-se. Antes disso, ele tranca a casa inteira. Mas parece que em seu quarto a proteção é maior, a TV fica ligada, a sua cama tem um aconchego incomparável junto a um frio único. Ele dorme e, perto de chegar ao sono profundo, sente cafunés. Ela já está na casa há mais de 90 anos. Ela não se lembra, mas a casa em que viveu era bem diferente dessa atual. Esse 19
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mesmo terreno já foi limpo por duas vezes e reconstruído. Há algum tempo, pensou em ir embora, mas não sabe para onde nem quando. Não entende o amor que sente pelo seu companheiro de casa. Ela não fala com ele, é ciente de que ele não a enxerga. Ela também não gosta de se enxergar. O seu reflexo, imutável, lhe traz lembranças confusas de uma violência que sofreu. Talvez seja pela sua pele mais branca que o normal, ou seus olhos mais roxos que o normal, ou seu pescoço marcado e machucado. Por isso, prefere olhar apenas para ele. A noite inteira ela o olha. Por vezes deita ao seu lado. Faz cafuné. Outras vezes faz carinho em seu pé. Outras vezes canta uma canção de ninar em seu ouvido. Outras horas, só observa. Ela não dorme, esqueceu qual é essa sensação. Quando o sol começa a entrar pelas frestas espalhadas pelo quarto, ela se deita e o abraça. Antes que ele abra os olhos, ela se levanta e faz carinho em seus pés. Ela tem paixão pelos seus pés. O seu coração, ou melhor, uma sensação forte faz sua pele fria tremular. Ele está no banheiro, ela o olha, admira seu sexo e sorri. Enquanto ele se arruma, ela observa e encosta nele. Encosta seu rosto entre as pernas dele. Ele se excita novamente, ela, agachada, beija e observa a sua paixão, nu e se penteando. O portão da frente de casa bate, o coração dela para. Uma dor sombria come a casa enquanto ela espera que o sol se vá e seu amor retorne do trabalho. Durante o dia, distrai-se assustando os gatos. Eles a veem. Algumas horas ela tenta fazer um zumbido, o mesmo zumbido que espantou as duas últimas namoradas que o seu amor levou para casa. Antes do sol nascer, pensa em se olhar no espelho, para lembrar do brilho de seus olhos, que mesmo depois de tanto tempo, ainda são vida, principalmente porque já está perto da hora dele chegar. Um dos shorts dele está estendido, ela o cheira. Ela cheira suas roupas sujas. Ela cheira os lençóis da cama. Chora um pouco. Parece que o tempo é uma eternidade quando a gente espera o amor. O sol vai embora, o som da chave avisa que ele, a alegria 20
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da casa solitária, chegou. Ela, calada, observa todos os seus passos. Adora a sua condolência com os gatos, os alimentado. Ele é um bom homem. Pensa. Adora quando ele se alimenta, sedento de fome de seu dia. Gosta quando ele se lambuza e suja seu peito cabeludo de suor. Observa tudo de longe e, quando chega perto, tenta tocá-lo. Ele não sente. Mas ela sempre o sente. Na hora de dormir, ela, em pé, o observa e o ama. Ele adormece, ela faz cafuné em sua cabeça, deita ao seu lado e canta: Dorme, dorme, dorme, meu benzinho, que a nossa hora de se encontrar vai chegar. Dorme, dorme, dorme, meu benzinho...
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O herói do Brasil Entrando no cinema para acompanhar a sessão de estreia do Filme “O amador que ama”, Filho Batista é cercado por jornalistas e admiradores. Depois de setenta anos de carreira como ator, ele ainda atrai atenção de todos por onde quer que vá. Algumas pessoas e críticos gostam de falar que ele está em decadência e que a educação e a simpatia que ele tem só acontecem na frente das câmeras. Antes de adentrar a sala 4 do cinema, um dos seus muitos fãs o aborda com um abraço caloroso. Filho Batista, como é de costume, corresponde ao abraço. Em seu ouvido, o fã fala algumas palavras, só para o grande artista ouvir: _Você é um verme morto-vivo vomitado andando torto, quase de quatro e em decadência. Quando você anda, vejo muito mais esterco de diarreia do que talento... Antes que seu fã, que o abraça com tanto carinho e afago, terminasse a frase, Filho Batista o ataca, segurando em seu pescoço com um grito que beira o ódio e com olhos inchados para fora. No meio de flashes, curiosos, outros fãs e colegas de trabalho, Filho Batista quase mata o Flores, o seu fã carinhoso. Depois de separada a confusão, Filho Batista, para se explicar, ainda exaltado, fala tudo o que Flores, seu carinhoso fã, falou em seu ouvido. Os críticos viam na situação um velho aloprado, ranzinza, em decadência e querendo ibope. Os fãs do Filho Batista não acreditaram em Flores até o momento. E Flores, com um rosto de vítima, dizia que ainda amava o seu grande ídolo, mesmo depois do ocorrido. _Mas, Flores, o Batista disse que você o xingou quando encostou em seu ouvido. O que você disse a ele? _Não. Não o xinguei de jeito nenhum. O Filho é meu grande ídolo, a grande inspiração que tive para poder ser alguém na vida. Desde criança que admiro o Filho. E eu dizia exatamente isso a ele, quando senti suas mãos em meu pescoço. Li uma vez que ele tem andado meio entediado com a vida e a velhice, mas eu não quis acreditar. Ele é meu grande herói! Mas eu sei, todos nós temos esse tipo de fraqueza humana. – ele diz, 22
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emocionado com o encontro com seu ídolo e o ocorrido entre eles, mostrando que sabe falar bonito, em pose para mais flashes e perguntas curiosas dos repórteres. Na mesma semana, Flores foi convidado para um programa que passa à tarde em uma das TVs nacionais. Entretenimento sobre a vida dos outros, era o que esse programa prometia. Nesse dia, ele deu opiniões criativas e populares, mostrou desenvoltura com o enquadramento e sorriu feito um Augusto romano, além de fazer tal programa crescer três pontos no ibope quando mencionou emocionado o seu amor por Filho Batista. Com isso, foi convidado a voltar nesse mesmo programa pelo menos uma vez por semana. Para isso, ganhava um bom cachê. Depois de algumas semanas, já tinha fãs de todas as classes, raças e crédulos, e ainda convites para posar nu. Ele tem um dote insuperável, prometia um colunista. Depois de um certo tempo de fama, Flores saiu do vermelho que o acompanhava há um tempo. Depois de um ano, já participando ativamente nesse programa, é convidado por outra emissora nacional para participar de um programa que ia ao ar em todas as manhãs, de segunda a sábado. Seu salário aumentou seis vezes, fora os “trocados” por fora. Formou-se em jornalismo. Fez curso de dicção. Curso livre de teatro. Aprendeu a falar inglês. Fez uma lipoaspiração. Retirou pésde-galinha. Na época, muitos repórteres o bajularam em suas revistas de fofoca e páginas da web. Uma revista famosa de entretenimento social o convidou para uma ilha onde lá estariam outras celebridades, astros, estrelas, famosos, chiques, estilistas, empresários, intelectuais, músicos, políticos, artistas, entre outras pessoas especiais da nossa sociedade. Na ilha, ele revelou que adorava salmão com arroz à grega todos os domingos, bebendo vinho do Porto. Revelou também que já tinha ficado com uma mulher que fazia a novela do horário nobre da emissora concorrente, mas que não podia revelar quem era, só dizer que essa pessoa adorava receber chocolate na boca. E ainda acrescentou que 23
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“nunca faria filme pornô, é degradante”. Nesse mesmo ano, no mês 11, começou a namorar a âncora do programa que trabalhava. O casamento deles foi vendido à imprensa por quatro milhões de dólares e quem comprou foi um canal concorrente da emissora atual de Flores. Isso fez com que ele e essa âncora fossem demitidos e disso migrassem para a outra emissora concorrente, que era maior, ou seja, uma oportunidade imperdível. O casamento de Flores e da âncora do antigo programa em que eles participavam foi assistido ao vivo por quase 70 milhões de pessoas no Brasil, sem contar o ibope de fora do país. E ainda foi transmitido pela internet e por outras TVs que compraram um pacote menor para transmissão. Esse assunto, o casamento deles, lotou as capas de revista de entretenimento e sites da internet por quase três meses, batendo um recorde de permanência na mídia efêmera atual. Flores, nessa nova emissora, já chegou com seu talento reconhecido de apresentador. Era bonito e ainda casado com a mais nova âncora de um programa que pegava três horas por tarde em todos os sábados. Muita cultura, entretenimento, culinária e música era o que o novo programa da esposa de Flores prometia. Enquanto isso, Flores fazia pequenas participações em programas de humor, telejornais e programas de entretenimento mais cultos da TV por assinatura. No seu terceiro ano de contrato, com o salário mais uma vez renovado, muitas vezes maior que seu primeiro cachê, foi convidado para participar de uma novela no horário nobre. Uma participação especial. Ele, com todo seu charme, conquistou os críticos com a sua atuação encenando um doido de hospício que costumava andar nu pela cidade. Disso, dois anos depois, Flores foi convidado para ser o galã de uma outra novela em horário nobre. Assim, ele seguiu sua carreira fantástica e meteórica. Certa época, Flores deu uma entrevista e afirmou: _Se não fosse meu grande ídolo, Filho Batista, nada disso teria acontecido. Depois de tanto tempo, uma afirmação como essa se tornou graça e humor negro entre os seus críticos e fãs, que antes já tinham sido fãs do Filho e agora evoluíram a fãs do 24
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Flores. Depois de 12 anos de casados, sua esposa teve uma parada cardíaca. Alguns críticos, mais maldosos, atribuíram a morte dela à decepção que teve com o seu marido, pois "ele era uma farsa", garantia a âncora em uma de suas entrevistas. Um desses repórteres críticos garante que conversou com a esposa de Flores dois dias antes da morte e ela não aparentava estar mal, e mais, “ela afirmou que Flores é uma mentira artística”. Todos juntos choraram no enterro da esposa de Flores. A comoção nacional apoia Flores, escreveu um colunista. Assim, lá e cá, entretenimento. Assim, lá e cá, ídolos e fãs, salvando-se da realidade, na qual caminham heróis, mas vivem mascarados.
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O bem geral Janislaudo Freitas Hugo Souza, amado pela esposa, odiado pelo doutor Álvaro, seu sogro. Jan, como ele é chamado por sua sogra e sua esposa, está passando com seu carro no sentido Centro, às 22:47h. O doutor Álvaro, que seguia no sentido contrário ao seu genro, fez o primeiro retorno e foi atrás do carro dele. O doutor Álvaro tenta disfarçar, mas nunca engoliu as conversas do genro, Jan. O doutor Álvaro também não aceita o fato de Jan não trabalhar, mas mesmo assim andar de carrão. Álvaro não aceita que a sua filha, a princesa, seja usada, abusada e sustente macaco velho com o dinheiro que ela ganha vendendo doces para festas infantis. Em uma das ruas estreitas do centro, Jan dobra na contramão. Com o sinalizador ligado, ele segue até voltar para a sua mão, em outra rua à direita. Esse tipo de atitude já mostra que tipo de homem é esse tal de Jan. Minha filha precisa saber disso. O doutor Álvaro pensa, tentando encontrar o carro do seu genro, já que deu uma volta no quarteirão, para não pegar a contra mão. Na Rua 87, que é conhecida por ser o 'corredor das putas', está o carro do seu genro estacionado. O doutor Álvaro segue com o seu carro, observando para ver se encontra o Jan. Na esquina, ele vê Jan trocando carícias com uma das prostitutas e cercado por outras. Filho da puta mentiroso. Fica dando uma de bonzão e está enganando minha filha. Pensa, indignado, o doutor Álvaro. Jan, que não tem nada a ver com isso, beija a puta, apertando sua bunda. Doutor Álvaro, encostado do outro lado da rua, a mais ou menos uns cem metros, assíduo em sua desconfiança, assiste a tudo a distância. Jan mostra intimidade com as meninas e meninos, pois no meio deles há também alguns travecos. Uma das prostitutas vem falar com o Jan. Em menos de trinta segundos, ela leva um tapa na cara. As outras putas que estavam reunidas ali não falam nada. Na verdade, calam-se e voltam aos seus postos, a não ser a que ele está abraçado. O doutor Álvaro aperta os punhos, chora em condolência pela filha. Dentro do carro, fica esperando que Jan dê algum vacilo, para ele poder 26
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sair sem ser percebido e ir avisar a sua linda filha. Uns dez minutos depois de beijos e abraços e uma certa putaria, o que o doutor Álvaro enxerga como atentado ao pudor, Jan caminha até seu carro e sai, dando tchau às prostitutas e sendo retribuído com fervor. O doutor Álvaro, querendo saber mais sobre seu obscuro genro Janislaudo, o segue a distância. Não muito longe, Jan para na frente de um boteco, ele desce do carro e é recebido com muita alegria pelos clientes do lugar. O doutor Álvaro para seu carro do outro lado da rua, nervoso, suando, e com o coração a mil, ele observa, sem ter medo de ser descoberto. Ele que venha. Eu o mato pela honra de minha filha! Pensa o doutor Álvaro. Mas Jan nem imagina que está sendo seguido, e, com os velhos e bons amigos, ele se senta e abaixa a cabeça sobre um prato estendido à mesa. O doutor Álvaro observa bem a cena e se toca: ele ainda é um viciado. Filho da puta mesmo esse cara, enganando minha filha e todos nós lá de casa. O doutor Álvaro ainda fica pelo menos 2 horas esperando o Jan sair do bar e vendo a sessão de cocaína e muita cerveja que eles (Jan e seus amigos) usam. Depois que Jan sai do Bar, o doutor resolve ir avisar a sua filha. Mas ele percebe que o seu genro pegou o caminho de casa, então desiste, para não criar um escândalo no bairro onde a sua filha mora, e ainda, para protegê-la de qualquer reação adversa dele, Janislaudo. Amanhã ligo para ela e, depois da conversa, combinamos uma forma para que ela saia de casa sem confusão. Pensa o doutor Álvaro. No outro dia, no jantar marcado pelo doutor Álvaro com sua filha, ele começa a dizer: _Filha, vou direto ao ponto. Eu te amo e estou do seu lado para tudo nessa vida. Você sabia que seu marido é viciado em cocaína? A filha do doutor Álvaro começa a chorar. _Não chore, minha princesa, nós vamos resolver isso. – ele segura a mão da filha e a consola. _ Agora, minha princesa, quero que você fique mais forte porque tem mais coisas que andei descobrindo sobre seu marido e você precisa saber. 27
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_Você andou vigiando ele, pai? _Não, minha filha, por acidente o vi passando em uma avenida, seguindo o mesmo rumo que eu. Quando percebi, o vi entrando na Rua 87. Então, por curiosidade, o segui. A filha muda de expressão e para de chorar. O doutor Álvaro continua: _Seja forte, minha filha. Olhe, eu o vi agarrado com uma prostitua e quase se comendo com ela na frente de todos, parecia que eles se conheciam há séculos. Eu sei que isso é pesado demais para você saber de tudo, mas vai ser melhor para você largar esse seu marido pilantra. A filha fica em silêncio, olhando para a cara do pai. O doutor Álvaro gosta da reação da filha, que não chora e está mais rígida com todas as revelações. _Pai? _Sim, minha filha, peça o que você quiser, estou aqui para te ajudar. _Como é que você acha que meu filho, seu neto, estuda na melhor escola da cidade, faz inglês, natação e ainda futebol na escolinha mais cara da cidade? Você acha que isso é pago com o dinheiro dos doces que faço? _Eu entendo, minha filha, ele não trabalha, fica os sete dias da semana vagabundeando... _Não, meu pai, você não entende. Ele não fica a semana vagabundeando. As prostitutas que você viu com ele na rua são empregadas dele. A que ele estava beijando deve ser a Cida, a preferida dele, não tenho nada contra elas. Afinal, até já fui comida por uma delas. E gosto disso. Meu Jan, pai, é o homem de minha vida e nós vivemos bem porque ele consegue esse dinheiro por mês. E você, como sempre, estragando tudo com seu emprego de merda, com a sua aceitação pela vida simples voltada só para Jesus e a igreja, com todas as suas regras que você sempre impôs para mim, me prendendo, cortando meus sonhos, me podando, e agora quer atrapalhar, melando o comércio do meu marido! Doutor Álvaro, calado, levanta-se. _Você está louca! Sua mãe saberá disso agora. 28
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_Sente-se. – diz a filha, e ele senta. Ela continua: sente-se aí bem quietinho, pois minha mãe ama o Jan, pois ele sempre dá bolsa nova pra ela. Leva ela nos melhores restaurantes da cidade. Pagou a viagem de vocês da segunda lua de mel pro Rio de Janeiro e que você quase não aceitou por ser cabeça dura e descrente em meu marido... _Não sabia de onde vinha o dinheiro! – afirmar doutor Álvaro. _Fique quieto! Minha mãe não vai saber disso. E sabe por quê? Porque ela ama o Jan. E você sabe do que Jan seria capaz se ela não o amasse mais? _Você está me ameaçando, minha filha? – doutor Álvaro pergunta já muito nervoso, apesar de comedido. _Não, pai. Mas entenda, se essa conversa sair daqui, você vai perder a sua esposa, sua filha, seu neto e só vai ficar com a pobreza de espírito e de vida que você escolheu. Os dois ficaram calados, se olhando por alguns minutos. _Você aceitou isso sempre? _Eu comecei minha vida sendo empregada dele, se você não sabe. É... já fui puta também e vocês nem percebiam. De manhã ia de saia para a igreja, de noite ia de saia trabalhar. Pensou que eu ia ficar aceitando essa vida de humildade e sermão do pastor? Hoje, só quero a vida boa que ele me dá. Trabalhei porque gostava do que fazia, agora gosto de ser a chefe delas e meu marido banca isso, sou dona de meu mundo. Um outro silêncio. _Por que chorou no início da conversa quando falei do pó? _Porque ele tinha me prometido que ia parar de cheirar. Mas no mais, meu pai, seu velho caquético, ou você fica na sua ou o Jan vai saber que você sabe e ele mesmo vai resolver. Entendeu, meu velho querido? Você prefere deixar seu neto sem avô, ou prefere que minha mãe saiba dessa história? “Morreu pelo bem geral, como um Cristo.” Dizia o pastor em suas sábias palavras. Cinco dias depois, no enterro do doutor Álvaro, onde todos estavam e rezavam para ele.
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O dedo médio Seis e dez da manhã, o despertador tocou. Eles acordam. Ele, com a bengala, vai ao banheiro. Ela, tão antiga quanto uma mobília que você não viu, vai à cozinha. Faz leite quente. Café quente. A sempre tradicional omelete. Agora, sem sal. Um pão de sal para cada. _Tenha um bom dia, Antonieta. _Até mais, Arnaldo. Mais tarde nos vemos na casa de Rosely. – filha mais velha do casal. Antonieta, manca e bem devagar, caminha pela rua cheia de pedregulho. A calçada é cheia de desigualdades de alturas por causa das garagens e calçadas diferentes. _Pela calçada, me canso mais. Aqui, na rua, dói o pé, mas não me canso. – comentava. Sob o sol de 40 graus, perto do asfalto quente e num ponto de ônibus que não tem sombra. Ela espera. E espera. ... Espera. E espera. Com uma paciência de quem já viveu anos, décadas. Milhões de segundos. Na ponta do mormaço, na esquina, dobra o ônibus. Ele para. Descem pessoas. Ela dá a mão, pedindo parada. O motorista abre. _Seu motorista, esse ônibus vai para a parte norte da cidade? _Para que parte do norte? _Como? _Que parte do norte? _O ônibus vai pro norte! Vai? _Não, minha senhora. O motorista fecha a porta. E a porta fecha vagarosamente. Dona Antonieta entende a pergunta do motorista, estica o braço para dentro do ônibus e fala: _Pro centro... Como a porta do ônibus já estava quase se fechando, o braço dela fica preso e o motorista distraído arranca. Depois de dez 30
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metros com a senhora gritando por que o seu braço estava preso, e parte dos passageiros estarrecidos e enfurecidos com o erro do motorista, enfim, ele percebeu e parou o coletivo. _Filho da puta. Desgraçado. Seu burro. Meu Deus, você é o cão! Nunca mais pego ônibus aqui! (ele quis dizer que nunca mais pegaria ônibus com essa mesma empresa)... – protestos vinham de todo lugar de dentro do ônibus. E, pelo zumbido geral, todos souberam do ocorrido. Até os do fundão, entupido de gente, começaram a criticar o motorista. _Só saio daqui depois que a polícia chegar. – Antonieta brada, com os braços abertos, grita na frente do ônibus. O motorista dá ré, tenta ir para o outro lado. Ela, esforçando-se e suando muito com o calor infernal, consegue acompanhar o movimento do ônibus, pois a rua é estreita e, assim, ela impede o ônibus de prosseguir. Em menos de três minutos, formou-se o engarrafamento. Buzinas. Pessoas paradas na praça ao lado. Um gari, que se esqueceu do lixo, compreendia: _Incluo a velha em meu entendimento. Se não for assim, à força, nada é. Um dos passageiros, defendendo o dele, comenta, à meia altura e irônico, no meio do ônibus. _Agora, ela ficou gagá. Quer ser atropelada, afundar o trânsito, foder o motorista e ainda atrasar a vida de todos nós. E mais, nesse calor desgraçado. – ele sorri. Rapidamente, algumas pessoas influenciadas pela demora, suadas, putas com o baixo salário e com as desgraças da vida, que são muitas, e com poucas felicidades, protestam: _Sai do meio, velha maluca. Não aconteceu nada com ela. Sai daí. Já não aguento mais essas buzinas. Algumas pessoas na praça sorriam com a situação. Nos carros, as buzinas aumentavam. Antonieta não desistia. O motorista já tinha parado. Até que, em clamor geral e generalizado, todos os passageiros do ônibus gritam: _Passa por cima. Passa por cima. Passa por cima. Passa por cima. Passa por cima. Passa por cima... E o coro continuou por pelo menos um minuto. Algumas pessoas dentro do ônibus já dançavam e se divertiam com o 31
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coro “Passar por cima”. Fora do ônibus, nesse momento, muitos com cara de pena. Motivado pelo coro, o motorista, engata a primeira e arranca de vez, fazendo todos os passageiros se debaterem no fundo. Mas a festa era tanta com o coro, que a freada em cima de Antonieta e esse encontrão entre eles serviu para melhorar os minutos antes da rotina empregatícia. E mais, o que fez com que todos caíssem em riso geral: _Olha a cara da VELHA! – alguma voz sai em grito de dentro do ônibus. Todos riam. Ela, branca, lágrimas nos olhos, sai da frente. O ônibus passa bem devagar por ela. Alguns passageiros vaiam, outros gritam. Ela, Antonieta, lembra o que seu bisnetinho de dois anos tem falado repetitivamente, sem motivo aparente: _Vá tomar na puta do cu. – grita, levantando o dedo médio.
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Calor humano André já estava há dois meses sussurrando, quase calado. Andava pela calçada na sombra, andava pela rua no sol. Andava. Não cumprimentava os vizinhos, não falava com ninguém. Sussurrava sozinho, mas nem ele mesmo ouvia seus sussurros. Em casa, à noite, ligava a luz da varanda. As outras continuavam apagadas. Eram tempos em que ele se sentia melhor na escuridão. Faltava ânimo, não era economia. Era uma sensação anônima. Sua mãe, preocupada, ligava toda noite para o filho: _Alô? _André, você não ouviu o telefone tocar? Já é a quinta vez que te ligo. _Não ouvi, mãe. _Sei. Mas ouviu agora e atendeu? _Atendi porque imaginei que era você. Sabe, telepatia. Olhe, ouça! Eu estou bem, viu? Avise ao papai também. Parem de me ligar. Só estou numa fase em que quero ficar sozinho. _Só estamos preocupados com você... _Tá bem, mãe. Essa semana irei visitá-los. _Promete? _Prometo. _Mas, meu filho, se você não tem nenhum problema, porque está se isolando? _Mãe, vou desligar. Depois te explico. _Filho... _Tchau, mãe. Vou dormir. Depois nos falamos. Há uns tempos atrás, André vivia em festas, noitadas, roda de amigos, etc. Mas agora ele está monossilábico. No trabalho, evita o máximo de conversas. Ouve as ordens. Cumpre seus deveres. Chega no horário. Sai quando possível. Não reclama. Um robô. Um exemplo de empregado. Um colega de trabalho o interpela: _O que houve com você? _Descobri que sou bípede. _E daí? _Estou fazendo alguma coisa errada? 33
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_Não, mas... _Então, livre-me dessa conversa. No carro, André andava com os vidros fechado, protegido do tédio exterior. Preocupava-se com o trânsito e os carros, apesar de dirigir no automático. Em casa, sua TV estava em desuso, o que é até bom para ele. Seus amigos já haviam desistido de lhe convidar para sair. Ele não aceitava mais. Sua namorada, que sempre ia vê-lo quatro vezes na semana, agora ia apenas duas e já não aguentava mais o estado de letargia do seu amado André. Você só tem respostas óbvias, parece que desaprendeu a dialogar. Ela reclamava de André, que se explicava: _Já não basta eu fazer amor com você? _Eu não quero só isso. Quero que fale comigo. Estou cansada de suas respostas prontas. Ela o amava, ainda continuava a lhe visitar. Tinha esperança e paciência para esperar uma reação na vida de André. Depois de muita insistência, André saiu com sua namorada e seus pais para um restaurante. No meio do caminho, no trânsito, André pede: _Pai, fecha os vidros, por favor. _Filho, está muito quente e é verão. Vamos sentir o calor do sol, mas com um ventinho no rosto que faz bem pra vida. Sua mãe olha para trás e balança a cabeça, com um sorriso carinhoso, aprovando o que o pai havia dito. No meio do caminho, em uma das ruas estreitas da cidade, o carro onde estão todos fica preso no trânsito por causa de um caminhão que está parado, esperando alguém. O pai, sempre bem humorado, aumenta um pouco o som do rádio. A mãe reclama, mas aceita. A namorada está feliz, porque André finalmente quis sair de casa no domingo. Havia seis domingos que ele não queria nem receber visitas. _Seria bom também se a gente descesse aqui nessa praça e curtisse o sol e os bares dela. É bem agradável. O que não falta por aqui é calor humano. – o pai diz, sugerindo. E o caminhão não sai do lugar. A fila de carros aumenta. Alguns buzinam. Na rua, nos bares, muita 'zoada': gritos, risos e carros abertos com sons ligados. O cheiro do calor estava no 34
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ar disputando com a felicidade das vozes. Escorria suor de André. _Você parece que tomou um banho, André. – sua namorada diz, um pouco incomodada com tanto suor. _Abra a porta do carro, preciso sair. – André diz nervoso. _Calma, filho, o caminhão já está saindo do lugar. _Abre, porra! – ele fala em um tom que desagrada seu pai. E ainda, André, nervoso, empurra o banco do carona para frente. Quero sair. Ele grita. _O que foi, meu filho, tá ficando doido? André abre a porta do carro. Sem responder, sai. Ele treme e sua muito. Ele grita. Pessoas ao redor, no primeiro momento, não percebem. Mas basta um louco botar o olhar para funcionar, que as pessoas primeiro fingem, fecham-se com medo. E depois, se o doido insistir, as pessoas ignoram ou, as que se acham mais espertas, correm. No meio da rua, duas reações: uns riem, outros se assustam. Rapidamente, André está no meio de uma roda como atração de circo. Ele sua. Ele grita. Baba. Começa a chorar. Ele se coça. Seus pais tentam se aproximar, André se afasta e assim a roda movimenta-se. Ninguém quer encostar naquilo. Isso é um drogado. Alguém grita. Interna essa filho da puta, outro grita. Que nada, vou voltar pra minha mesa e tomar minha cerveja. Esse sussurra e prefere seu deleite. E seus pais e sua namorada, quando novamente tentam aproximar-se, André deixa que cheguem bem perto. Mas antes do primeiro toque das mãos de sua mãe, André estoura. Explode. Como uma bomba. Como fogos de artifício. André estoura e vira pequenos pontos, pós, polens coloridos, herméticos, fosforescentes, reluzentes, dissonantes e sobe. Subindo. Emergindo. Continuando. Ao céu...
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Bons vizinhos, bons amigos, bons vinhos O vizinho do maior extremo. Tome esse extremo como distância. Imagino que tenha entendido assim. Afinal, você também deve ser um dos meus vizinhos. Esse vizinho, o mais distante, é o que mais me respeita. Educado, ele sempre cumprimenta: _Boa noite. _Para você também. Um belo dia, quando eu vinha chegando do trabalho, ele convida: _Vinho? Como recusar? Amo vinho. Foram nove dias bebendo, três por conta da casa, seis por conta da visita. A mulher dele é apetitosa, vale a bebida. E mais, ele passou esses nove dias falando mal de todos os cidadãos que ele conhece. Da mulher dele, dos filhos e até dele mesmo. Mas eu, para ele, sou um marajá. Uma pessoa abençoada. Mereço a vida que tenho. Como se diz aqui no Brasil: sou homem trabalhador. Dizendo ele. Um outro vizinho, um mais antigo, cabeludo, barbudo, hippie, gosta de dar carona, olha com gosto para minha mulher, conveniente, come a mulher dele, quer outra, outra que acredite nesse ideal falido de hippie. Ele mesmo não acredita. A mulher dele finge que acredita. Não sei qual é a dela, se gosta de gozar na caceta dele ou espera que este hippie assuma a herança da família um dia. A família dele tem herança? Esse vizinho adora ir a minha casa. Me mostra suas esculturas, suas marcas, feitos, sonhos, glamour. Ele dança alternativamente bem. A coroa agora está na cabeça dele e seu trono é meu sofá. Ele fuma um cigarro em meu sofá, olha entre as pernas de minha mulher e me pede vinho. Bom filho da puta. Bons vizinhos, bons amigos, bons vinhos. Mas aqui em casa o vinho é barato! Afirmo. Ele sorri e, como um hippie, aceita de bom grado. Cuidado pra não manchar meu sofá. Penso. Todo bom esse moço. Diz minha mulher à mulher dele. Como ele engana bem. Penso eu. Mas quem engana a si próprio é o maior 36
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enganador. Outro vizinho, o mais insuportável, é daqueles que levanta o ouvido esperando um elogio. E afina o queixo se você o critica. Quando você o critica a sós, ele sorri placidamente, quando falo a verdade com uma crítica: “uma merda essa letra”, na frente dos outros, ele reage como um intelectual, culto. Mas para mim parece mais um cu soltando gazes. Esse vizinho toca violão. Faz esculturas, tem um carro, come outras vizinhas, na minha frente, elogia-me e quer ser elogiado, por trás, fala mal e não quer ver-me pintado. Mas infelizmente moramos na mesma rua e, por obra do destino, nos vemos sempre. Vizinhos valem à pena, mas não quando dividimos o muro. Quando não são vizinhos. Mas, quando são desses tipos “amigos vizinhos”, são câncer. Acham-se donos de sua casa. Donos de seu sofá. Donos de sua esposa e querem dar conta de tudo que faça mal a ela. Os vizinhos amigos são os mais perigosos. Intimidade demais acaba com qualquer relação. Uma vizinha bate à minha porta. Quer um conselho. Bom, eu dou, ela não me dá. Não serve. Outro vizinho quer montar um grande negócio, não sai da poesia. Mas vale, sou poeta quando há cachaça. Mais vizinhos: o Truta me desconhece, mas me olha toda vez que passo. Não sei se é tesão ou inveja. A M... fala, fala, fala, fala, fala, e eu deixo falar, ela tem um coração bom e belas coxas. O D...desperta-me amor e ódio. Mas, para ele, tanto faz. N'outro dia, a rua acorda de manhã e todos cantam juntos: “Bom dia, meus queridos, amigos e bons vizinhos. Domingo a gente marca um churrasquinho. De tarde nossos filhos vão ao parquinho Enquanto nós dividimos este ar azul e amarelo e vinho Com a amizade e a felicidade em nossos lares Fraternos.” Já eu, um escroto disfarçado de inocente, ovelha amiga, encosto de vizinho filho da puta, saio na rua de madrugada, 37
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mijo no meio da rua. E, por três vezes, em lugares estratégicos, mijo na porta de casa de alguns dos vizinhos. No outro dia, ninguém diz nada, nem ao menos sente. Durante uma semana, reúno mijo em baldes e garrafas pets, minha esposa espantase e pergunta para o que é. Ela não gosta da resposta, brigamos feio. Na madrugada, hora dos segredos, jogo os litros de mijos acumulados durante a semana nas janelas, portões e portas alheias: “me esforcei para beber muita água”. No outro dia, deu até polícia. Mas quem seriam esses adolescentes marginais? Depois de um ano, esperando a madrugada certa, juntando merda no quarto dos fundos em frízeres que comprei, saio pela rua espalhando merda pela portas, portões e janelas alheias. E, antes de entrar em casa, cago no meio da rua, cago com gosto, pois havia passado dois dias sem cagar. Minha esposa, nessa parte da história, preferiu o sociável ao amável. Ninguém vive de amor. Agora ela é Ex. Bons vizinhos, bons amigos, bons vinhos. Quem será que anda fodendo a nossa casa de merda e mijo? Perguntamse. Três anos depois, estava eu com pacotes de merdas e garrafas pets de mijo em frente a uma das casas de um vizinho novo na vizinhança, desses que, quando me via, me amava. Jogo o primeiro balde de merda. Fez até um desenho bem artístico na parede em questão. Queria estar com a máquina fotográfica para publicar essa foto em meu blog. Chego perto da casa desse novo vizinho para jogar por cima do muro o balde de mijo em seu jardim, quando ouço um barulho e sinto uma dor em meu peito. Fui baleado. Estou frio... No outro dia, todos se surpreenderam. Mas eu estou cagando e andando para vocês. No velório, alguém faz discurso “...era um homem que sabia compartilhar...”, outro clama em voz amiga e saudosa “...vamos musicar todos os seus poemas...”. E, no velório, todos foram, e fizeram até uma vaquinha para arcar com as despesas. Afinal, eram todos bons vizinhos, bons amigos, bons vinhos. 38
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O dono do inferno labuta por nós Na quarta-feira, Adelson ganhou o título de Ministro Missionário da Fé em Deus. Ou seja, um dos maiores representantes aqui na terra do Senhor Deus. Adelson fez por merecer. Ele sabe muito bem como agradar ao Senhor e acabar com as pretensões do diabo, do demônio, do dono do inferno. Como ele gosta de gritar no culto: “Vamos acabar com o dono do inferno e transformar aquele vale de asnos pecadores em jardim do Senhor, para que Jesus possa proliferar os seus milagres”. E, nesse dia, ele comentou: hoje, Deus vai mostrar para todos vocês a solução que Ele me mostrou, iluminando minha cabeça. Uma solução que vai fazer você libertar-se das dívidas geradas por esse sistema corrupto e feito de pecadores. Sim, o Senhor dá a chave, mas você que deve abrir a porta. Com uma mudança de tom e com um cartão de crédito na mão, ele continua o discurso: Conheçam o Cartão do Senhor. Isso, o nosso templo está investindo neste cartão em conjunto com o Banco da Cidade. Mas, para não gerar dúvidas, Adelson explica: este é um cartão diferente, primeiro, a gente escolheu o Banco da Cidade. Vocês sabiam que os donos desse Banco também são desta igreja? Pois é, eu jantei na casa deles, vi a família, os filhos, todos estão no caminho do Senhor e obedecendo às ordens do nosso Poderoso Pai. E você também pode seguir esse caminho, pois, depois da invenção deste cartão, o seu lugar perto de Deus está garantido. Por isso que este cartão, o Cartão do Senhor, é a melhor forma de você contribuir ainda mais com o futuro jardim que construiremos lá embaixo, onde o enxofre é o cheiro principal e o pecado é a ordem do dia. Inferno aqui, não! Aqui, onde todos estamos presentes, no nosso Templo, a ordem do dia é amar a Deus sobre todas as coisas, e Deus quer isso, que você se inscreva e adquira este cartão. E é muito simples fazer isso! Você vai ali com o Pastor Elias, faz seu cadastro, não precisa nem comprovar renda, adquire o seu Cartão do Senhor, e pronto: você está livre da labuta do dono do inferno, assim, fazendo parte do sagrado coração bondoso de Jesus. O Cartão do Senhor funciona assim (ele aponta para um 39
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telão ao lado do púlpito e fala): você vai ao supermercado e paga suas compras, que são, por exemplo, R$ 200,00. Desse dinheiro, 4% vem para o banco, ou seja, R$ 8,00, e, desses oito reais, R$ 3,00 vem para o Templo do Senhor, ou seja, uma quantia mínima, né? Ajudar a Deus está mais fácil do que você pensa e, dessa forma, nós derrotaremos o dono do inferno para que Jesus prolifere o amor do Pai e seus milagres na vida de todos nós. E, assim, Adelson, o Ministro Missionário da Fé em Deus, termina mais uma sessão, aplaudido com fervor. Com essa grande ideia, Adelson fez gerar mais um caminhão de milagres para o Templo. Agora o Cartão serve também para a compra de outros produtos vendidos por ele e seus companheiros de fé: potinho com água do Rio Jordão para lavar as mãos em dias especiais do ano, areia da terra santa por onde Jesus caminhou, pedaço do Pano Vermelho das 300 Verdades de Deus, nosso Senhor, Bíblia com comentários e interpretações do Missionário Adelson, A Cruz Azul da Vitória para pôr na entrada de casa e proteger de pessoas que lidam com outras religiões e cultos, como os macumbeiros do Candomblé e os pedófilos da Igreja Católica. E mais, saia abaixo do joelho que teve a Oração de Proteção do Ministro Missionário Adelson, entre outros diversos produtos divinos e aconselhados pelo Missionário Adelson. Adelson sabe que o cargo de Presidente Soberano Divino da Fé do Senhor, aqui no Brasil, está bem perto. Mas, hoje de manhã, depois que acordou e tomou seu café com seus três filhos e sua linda e jovem esposa, Adelson percebeu uma falha no seu caminho para ficar mais perto de Deus. E se as pessoas começarem a gastar demais, se endividando com esse cartão, comprando os produtos oferecidos pelo nosso maravilhoso Templo e não conseguirem pagar mais devidamente as suas compras básicas do mês, o que faço? Ele se pergunta. E, depois de uns três minutos raciocinando de olhos fechados, ele conclui, falando sozinho em seu quarto, de frente ao espelho: _Deus os ajudará, como me ajudou.
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A voz Salmos 29:4 - A voz do SENHOR é poderosa; a voz do SENHOR é cheia de majestade. Apocalipse 14:2 - E ouvi uma voz do céu, como a voz de muitas águas, e como a voz de um grande trovão; e ouvi uma voz de harpistas, que tocavam com as suas harpas. Apocalipse 19:6 - E ouvi como que a voz de uma grande multidão, e como que a voz de muitas águas, e como que a voz de grandes trovões, que dizia: Aleluia! Pois já o Senhor Deus Todo-Poderoso reina. ... Acorde! Está na hora de acordar. Acorde! Gelson abre os olhos e esquece a ordem como quem se esqueceu de um sonho. No banheiro, ainda sonolento, antes que ligue o chuveiro, ele ouve: Acordou? Agora entra no banho e vai à luz, porque a iluminação te espera. No primeiro momento, foi um susto. Mas por dentro ele sente uma sensação de poder, tranquilizando seu corpo com o cunho gutural e imponente do som da voz. Quem é? Gelson pergunta, mesmo se sentindo muito bem. O que não vemos, mesmo quando o sentimento é bom, muitas vezes é desconfortável. Eu sou a luz, as trevas, o estreito e o espaçoso. Sou quem te guiará para fora e sempre adiante, abrindo todos os espaços. Vamos. Faça a barba. Tome um banho. Vista seu melhor terno. Diz a voz. Deus? – questiona Gelson. Somos todos deuses. Parte dele. Inclusive eu. E você é minha parte física – a voz o esclarece. Outras vozes, mais inconscientes, suplicavam para que ele não obedecesse ao chamado. Outra parte, porém, que comanda a ânsia e o desejo, fez-lhe seguir a voz ilustre. Na rua, 41
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a voz continua: Hoje você não vai ao trabalho. O seu trabalho maior é com a humanidade. Olhe as pessoas nas ruas. Todas com caras sérias e sem alegria, sem sentido para ter cara. Você precisa mostrarlhes o caminho. Que caminho? O caminho que mudará o mundo, o caminho que foi escrito desde o início dos tempos e que, por outro, já foi desistido de levá-los. Que outro? Outro. O outro criado por vocês homens. E que, de tanto pronunciado, hoje se diz construtor do universo e minha imagem e semelhança. Ou sua imagem e semelhança. Outro que se diz pai dos homens, mas o purga da liberdade. Veja: os miseráveis implorando por uma miséria menos dolorosa. Os ricos sozinhos escondendo-se para comer da maçã que Eva sagrou. Hoje, os homens, minha paixão, os homens construtores dos melhores desejos e obras, os homens donos da vontade de dominar o mundo, vão em pleno vapor para a autodestruição. E você, Gelson, você é quem mudará essa realidade. Trazendo de volta a liberdade, o amor, a verdadeira fé e a verdadeira sociedade. Destruindo e reconstruindo. Mesmo que sem você. Gelson caminha debaixo do sol. De terno e calado. Ouvindo a voz gritar dentro de si. Você é o demônio. Afirma Gelson. Não. Não existe Deus nem demônios. Existem deuses e demônios. Existe vida. Depois dela, não há nada, senão solidão e arrependimentos. É em vida que se tem que construir o vale onde bestas, anjos, ateus, todos seguem uma só fé. A fé da igualdade. E em vida isso acontecerá, só os escolhidos, e que têm fé, continuaram. Mesmo que sem você. Por que sem eu? Porque, Gelson, a fé é para os fortes, mesmo que pareçam fracos. E você é forte, mas por dentro é fraco. Você não tinha fé, mas, ouvindo a minha voz, terá. E agora, com a minha voz e o dom de mudar isso: Vá! Reconstrua. – ordena a voz para Gelson. Quando ele está passando em frente a uma igreja, a voz ordena: entre! 42
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O pastor grita: Deus está de olho em todos os pecadores, e quem prefere o caminho espaçoso e fácil, irá parar no inferno. Ele não sabe de nada. Afirma a voz, que ordena: repita-me. Gelson, ainda calado, levanta-se. Vamos, grite, dê um grito e chame a atenção para você, depois me repita. Com a voz em tom de desespero, Gelson grita. Todos param e o olham. O pastor diz: é Deus se manifestando nele. Gelson ouve a voz e retruca o pastor. NÃO! Foi o demônio que vi se manifestando em ti. Ele aponta para o pastor. Todos presentes entram em colapso. Gelson continua: sim, o demônio sai de sua boca em forma de palavras. Hoje, quando acordei de manhã a voz do bom Deus veio a mim e me disse: “Vai, meu filho, chegou a sua hora de coletar o seu rebanho”. Até este momento, alguns dos presentes o olhavam com cara de repulsa, mas ele continua: Sim, vocês duvidam? Vocês têm coragem de duvidar da voz de Deus? Esta igreja está corrompida, este pastor vos fala mentiras a fim do dízimo. Este pastor é um grande depravado. A voz me diz agora do seu desejo por meninas que ainda nem sabem o que é beijo. O pastor, nesse momento, tenta retrucá-lo, mas ele não deixa. Gelson impõe sua voz e continua: Deus fala em meu ouvido. Fala de um paraíso que tenho que construir na terra. Deus diz que está chegando a hora, e que em breve alguém apertará o botão do novo início. Eu sou quem escolherá para uma sociedade mais livre, com mais amor e que siga o desejo do coração de todos. Eu sou o novo messias. E o bom inquilino de meu rebanho me conhecerá agora me olhando, olhando diretamente em meus olhos. Ele sobe em cima de uma das mesas presentes no local e encara a todos. Um silêncio geral come a sala. Agora, Gelson, saia da igreja, quem merece sobreviver virá, e, quem não vier, você perdoará, mas antes diga: amanhã, no terreno que está baldio, a três quarteirões daqui, construirei a nossa igreja. A igreja que a voz de Deus me ordenou. Venderei minha casa e tudo que tenho. Então, com minhas mãos e pouco saber, construirei o templo. A voz e ele dizem, quase que simultaneamente. 43
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Gelson desce da mesa e sai. As pessoas ficam paralisadas. Mas um senhor de 65 anos levanta-se e sai, vai atrás dele. Seguidamente, outras sete pessoas o seguem. E assim seguem o dia, invadindo igrejas e templos, profanando seus líderes e buscando novas ovelhas para a nova igreja, dita pela voz a Gelson. No outro dia, no horário marcado, Gelson, que não dormiu porque a voz o atormentou a noite toda, falando desse novo futuro, estava com todos os equipamentos e material no terreno que ele havia prometido e, sozinho, começou a preparar o cimento. As pessoas foram chegando aos poucos e o ajudando. Em alguns momentos, ele subia em cima de um monte de areia e proclamava juras e profecias ditas pela voz. Hoje já botei minha casa à venda, amanhã serei recompensando com o nosso templo maior reconstruído, dizme assim a voz de Deus. E cada vez mais pessoas chegavam. No primeiro dia, o muro redondo foi erguido, no segundo dia, já haviam sido doadas cadeiras para que as pessoas sentassem e, ao fim do dia, ouvissem Gelson falando os seus sermões. No terceiro dia, o teto estava feito. E um terreno, antes vazio, agora tinha a primeira sede da Nova Igreja Para o Novo Mundo de Deus. No quarto dia, já haviam duplicado o número de fiéis. No quinto dia, Gelson conseguiu vender sua casa e doou o dinheiro para os miseráveis da rua. Vá, deem a eles. A nossa Igreja se erguerá sem esse dinheiro, é o que me diz a voz. As pessoas precisam sentir o nosso amor fraterno e igual. Deus ama a todos da mesma forma. Vão! Deem seus pertences, a hora está chegando e só ficará quem confiar na voz. E assim foi feito, todo o dinheiro da casa de Gelson foi doado aos miseráveis da rua e alguns de seus seguidores o seguiram e também doaram tudo. Para se dedicarem a todo vapor à construção dessa nova fase do mundo. No sexto dia, apareceram televisões para entrevistá-lo. Uma de suas seguidoras ficou cega sem explicação. E Gelson, na frente das câmeras, grita: a voz disse que a cegou, a mão de Deus a cegou, pois ontem ela duvidou de minha benevolência e da voz eterna em meus ouvidos. Mas irei perdoá-la. Que volte a enxergar. Por um ato de mágica, ela volta a ver as cores da vida. 44
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Gelson sobe em cima de um dos carros que ali estão por perto. É com todo entusiasmo e gratidão que aceito esse carma de ouvir a sua voz, meu bom Deus! E você! Ele fala apontando o dedo para a sua seguidora que ficou cega e voltou a enxergar por causa dele. Você verá agora como as cores da vida são o que há de mais precioso. Se quer essas cores em sua vida, eternamente, não duvides da voz de Deus. Da próxima vez, farei cair uma de suas mãos. Diz a voz. E Gelson repete. Todos se assustam. Mas ele completa: é isso. Deus não perdoa quem duvida dele. Estamos no momento crucial, em poucos dias tudo mudará, e quem me seguir conhecerá as cores do novo mundo prometido pela voz em meus ouvidos. No sétimo dia, aqueles outros que não o seguiram no momento em que ele esteve na igreja começaram a comparecer em seus sermões. Cada um que chegava, Gelson proclamava: duvidaste da voz de Deus, mas como me foi dito, devo perdoá-lo. Entre e se sente. Há muito que fazer por aqui. No oitavo dia, aparecem fiscais da prefeitura e alguns policiais com ordem para que aquelas pessoas que estavam no terreno saíssem, pois o terreno pertencia à prefeitura e aquilo era invasão. Os seguidores de Gelson ficaram revoltados e a confusão estava para acontecer, quando Gelson, que já estava há nove dias sem dormir, ouve da voz: mande todos ficarem quietos e vá lá fora, direi a você o que falará para cada um dos que tentarem lhe prender e, no fim, você irá deixar-se levar. Saiam todos. Fiquem quietos. Temos que respeitar a lei. E, assim como eu digo a vocês o que têm que fazer em suas vidas, eles também me ouvirão. A voz me disse e eu a seguirei. Gelson vai para fora dos muros redondos da igreja. O primeiro policial que declara ordem de prisão ouve: Felipe. Felipe é seu nome. Sei antes de ver a sua identificação. Sei também que sua esposa está precisando de mais atenção e seu filho está com medo de seu sogro, que o assedia sexualmente. Você e sua mulher sabem disso, mas não fazem nada porque precisam do dinheiro que ele os oferece. Não temas irmão, Deus irá puni-lo em vida, mesmo assim você sobreviverá ao fim, que está próximo, mas Deus punirá o seu sogro. O inferno o espera. 45
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O policial chora e se nega a prendê-lo. O outro policial que vai para levá-lo também ouve outras verdades, dessa vez em seu pé de ouvido. Este cai de joelhos chorando. E assim segue. Dos oito policiais que foram com os fiscais, nenhum conseguiu cumprir as ordens. A voz ordena que Gelson suba em cima do carro da polícia e faça mais um sermão antes que ele siga preso. Meu rebanho, ouça o que eu ordeno, e que a voz me fala: construam uma entrada subterrânea abaixo da igreja com dormitórios e espaço para rezar, e me esperem. Vocês têm 22 dias. Eu retornarei antes disso e ajudarei a terminar essa obra. Lembrem-se: a voz de Deus fala em meus ouvidos, mas os olhos de Deus estão em todos os lugares. Gelson entrega-se a polícia. Noutro dia, vídeos com o ocorrido tomam conta da internet, e o vídeo no qual ele fez a menina cega voltar a enxergar também vira mania na internet, pessoas no mundo todo veem os policiais desistindo da prisão de Gelson e o milagre que ele operou. As pessoas veem os policiais chorando e pedindo perdão. Nesse momento, o prefeito, depois de uma longa conversa a sós com Gelson, vai até a sua sala e liga para o governador, o convencendo a vir conhecer o tal profeta. E diz exatamente o que Gelson o ordenou a falar: a Nova Igreja está para ser erguida e, em poucos dias, o novo mundo, o mundo que libertará o homem, chegará. Com um aperto inexplicável no coração, o governador vem até a cidade para conhecer o tal profeta. O governador também conversa a sós com Gelson e sai comovido da sala, com os olhos cheios de lágrimas, querendo ordenar que o liberem, mas, a pedido do próprio Gelson, o deixa preso. O presidente, que estava fora do país, mas já sabendo do que estava havendo naquela cidade, volta a fim de conhecer esse tal profeta, que em alguns lugares do mundo estava sendo chamado de 'charlatão' e em outros de 'o novo Cristo'. Senhor presidente, a voz de Deus disse-me que você viria hoje. Exatamente há dez dias do juízo final. O presidente sorri. A voz diz em seu ouvido: Gelson, fale dos seus segredos. Ele não 46
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cederá. Afinal, ele é o presidente. Depois fale de seus piores segredos, então assim ele cederá. E assim Gelson o fez. O presidente, descrente daquele que poderia ser um charlatão, ouviu-lhe como manda a obrigação do seu cargo, mas cedeu depois de ver seu próprio espelho dito pela boca de outro. Gelson termina e diz: A voz do SENHOR é poderosa; a voz do SENHOR é cheia de majestade. O presidente arrepiou-se e Gelson completou: infelizmente o senhor não será salvo, mas poderá salvar a todos com um ato. Está preparado para isso? No mesmo dia, um pronunciamento é feito, Gelson foi solto e voltou para a sua Igreja. O presidente ordenou que todos construíssem abrigos subterrâneos ou procurassem algum, e mandou mensagens para as nações que eram unidas a nossa. E disse assim, como Gelson determinou: o mundo novo está por vir, da terra nasceremos novamente, façam o que a voz diz. Na Igreja, Gelson ficou orgulhoso de seus seguidores, tudo organizado e do jeito que ele disse. Agora era só esperar. A voz não parava de falar e Gelson não conseguia dormir. Mas estava feliz com o que foi feito. No trigésimo primeiro dia, uma bomba explode em um país do oriente. Algumas horas depois, outra bomba explode em um país perto do nosso. E assim, seguidamente, bombas explodem o mundo como a voz e como Gelson previu. Não se sabe se a primeira bomba saiu de nosso país, mas se sabe que a primeira bomba desencadeou uma explosão em massa de bombas atômicas. De 6 bilhões de pessoas, sobraram menos de 100 milhões espalhadas em todo mundo. Na cidade e no país de Gelson, quem o seguiu sobreviveu, e quem fez o que o presidente ordenou sobreviveu, apesar do presidente ter morrido. O seu avião caiu quando seguia para o seu refúgio. No dia seguinte, quando ainda uma névoa de poeira circulava pelos campos destruídos e radioativos, Gelson trancou-se no quarto e dormiu. Ninguém de seus discípulos bateu à porta. Ninguém também sabia o que ele estava fazendo ali. Talvez rezasse, talvez conversasse com a voz. Comentavam. Mas Gelson, cansado, dormiu. Setenta e duas horas depois, ele acorda e não reconhece o quarto em que está. Acha o cheiro horrível e se 47
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lembra de tudo que ocorreu. A voz sumiu? Pergunta-se. A voz sumiu? Meu Deus, a voz sumiu. Gelson chora. Ele vai até o banheiro, pega a sua gilete de barbear e corta os pulsos, sem manifestar dor, para que ninguém o ouça e descubra que ele está em dúvida se tudo não passou de uma grande breve alucinação ou se foi um dom concebido por uma voz sem identificação.
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Criador e criatura Depois de degustar o almoço preparado por ele, levou o prato, os talheres e o copo para a pia. Depois lavo isso. Pensou. E foi direto para o quarto tirar aquele bom cochilo da tarde. À noite, voltou até a cozinha para lavar a louça. Ao terminar, lembrou da panela em que foi feita a comida. Ele a olha: depois a lavo – pensa, voltando para a sala, pra assistir à TV. No outro dia, foi trabalhar bem cedo, almoçou na rua e quando chegou em casa à noite, já era tarde demais. Não se lembrou da panela que havia ficado suja. E, no outro dia, do mesmo jeito, saiu cedo demais, almoçou na rua, à noite, chegou tarde e a panela novamente foi esquecida em cima do fogão. E, em mais outro dia, acordou cedo, foi beber água. No relance de seu olhar, viu a panela. “Esqueci-me da panela. Hoje à noite a lavo”. E, depois de um dia movimentado, chegou em casa cansado e afim de dormir. Tomou banho, deitou-se. Sentiu sede, foi até a cozinha e se lembrou da panela. Tenho que, pelo menos, jogar fora o resto de comida dentro dela, e amanhã a lavarei. Pensando assim, foi até a panela e a abriu. Um fungo formava-se. Algodão! Pensa, espantado, olhando para o fungo. Se bem que, olhando bem, parece mesmo um algodão e, com esses pontos verdes espalhados, está até uma imagem bonita, artística. Fechou a panela e, pela sua mania de cultuar a arte, deixou como estava. Voltou para o quarto satisfeito e foi dormir. Depois de três semanas alimentando a sua arte, jogando restos de comida, cinzeiros cheios, cuspes matinais e outros detritos, e ainda cultuando a arte que o fungo formava, cada vez maior e tomando conta da panela e do fogão com as partes do algodão. Chamou amigos para ver. _Você é louco, não está sentindo o cheiro? É podre isso aqui. E seu fogão, vai ter que comprar outro! _Está lindo, já tirou foto e registrou filmando? Vamos botar na internet para que mais pessoas no mundo vejam essa preciosidade da arte contemporânea. _Foi exatamente o que fiz ontem. Filmei, fotografei e botei na internet. E, quanto ao cheiro, só te digo uma coisa: é tão lindo que o cheiro fica bom. Na verdade, até me acostumei. E o fogão é 49
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pedaço da minha arte, também. O fogão nunca se perderá, pois ficará na eternidade da história. Uma bela noite, ele chega em casa. Como sempre, cansado, mas feliz e orgulhoso com a escultura de arte contemporânea, totalmente original. Ele tomou banhou e foi até a cozinha. _Cadê a panela? Sabia que um dia iriam roubar minha arte. Bando de invejosos! – ele começa a se indignar. Volta até o quarto para pegar algum dinheiro, a chave do carro e para ir até a polícia prestar queixa. Mas, antes que saísse de casa, ouve um som na sua cozinha. Vai correndo até lá, achando que pegaria o ladrão. Não há nada na cozinha, a não ser o fogão podre de sujo e pedaços do algodão-fungo pelo chão. _Filhos da puta! Ainda deixaram rastros. Por trás dele, com o dobro de sua altura, está um algodão esverdeado com a boca cheia de pedaços pontiagudos e verdes. Ele, acostumado com o cheiro de seu dia a dia na cozinha, não percebe a criatura. Antes que fosse reconhecido por qualquer órgão mundial pela sua arte conceitual e contemporânea, ele sumiu sem deixar rastros. Ficaram alguns algodões fedorentos e que ninguém se importou.
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Aos intelectuais de vitrine e de merda Durante a noite, ele respondeu a tudo como se fosse genial. Sabe falar da Rússia antiga, da China moderna, de Bukowski e Machado, de Bach. Ele entende também de arte circense, arte moderna, conceitual, dadaísta, poética, surrealista, política, ritmos, cores, formas e é ateu. Ele diz que não tem rótulos para ele mesmo. Diz, achando, não sabendo, que é original. E toda vez que fala, fala altivo, deixando menor o outro. Ele, enciclopédia, tem resposta pra tudo. Parece um robozinho. Ele é artista. Escreve alguns poemas, conversa sobre revoluções, músico, uma vez e outra, mago e mágico, atleta, de esquerda, culto, com frases prontas, e fingindo ser a favor da carapuça, dá opiniões fortes: _Eles são ignorantes. Não conseguem fazer um projeto que beneficie e ajude a todos. Ele bronca no discurso e fura na ação. Não ajuda ninguém. Se um dia você precisar de uma carona, porque perdeu o braço em um acidente de carro, ele não dará. Porque se um dia você precisar de uma carona dele, será porque você perdeu o braço. Com ele é assim, drástico. Horas faz-se de céu. Outrora de Lúcifer, anjo torto. Mal ele sabe que é clichê ser torto. “Não posso melar o carro de minha mãe”. Desculpa-se por não dar a carona. Ele bebe, fuma, mostra-se inteligente para todas as mulheres, para os homens, mostra-se melhor, ele come, bebe mais, fuma dos outros, bebe dos outros, ele passa a noite falando tudo em frases de efeito e com humor negro. Fuma maconha, bebe vinho, ele pensa cult, apesar de não gostar dessa palavra. Também é viciado, para mim. Nem um, nem outro, pra ele. Ele não se ilude: na perfeição não existe defeito. Por isso, nada que seja sim para você é sim para ele, o intelectual, factual, homem, ele, ela. Ele sabe falar sobre tudo, fala baixinho, comedido. É humilde. Sim, humilde. Mas só pra ele mesmo. Ele diz, ou melhor, ele finge: _Eu não sou bom em nada. Diz assim, com um olhar de quem te xinga de merda, de nada. Ele é o tipo de intelectual que se diz poeta-artista-escritormúsico-pensador-filósofo-equilibrado-diferente-original51
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antônimo-intrínseco-mais rápido que uma bala-mais forte que o dinheiro-perfeito, que ele também abomina. Em casa, quando ele chega, é interpelado: _Filho, você botou a gasolina que pedi, ou usou o dinheiro para outro benefício? Ele não a responde. _Você já tem barba na cara, menino, vamos crescer. Ele sorri. Quem o interpelou não vê. Ele bate a porta e vai cristalizar-se na prima eternidade do seu quarto. Segunda-feira, 11 da manhã, ele acorda. Assiste à TV na sala, almoça meio-dia e, com o livro de Rimbaud, volta ao quarto a decorar versos olhando-se no espelho.
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A crise mundial é dos homens O pneu do carro, sujo de barro, para. A rua está um terror com a ventania e a chuvarada interminável nesses tempos. Maurício aciona a sua garagem eletrônica. Como boa parte de sua família, chega aos 35 anos sem ninguém para lembrar. Talvez nem ele mesmo lembre. Dentro da garagem, depois de aberto o portão, ele vê uma cadeira no meio do caminho. Quem botou essa cadeira aí? Ele se pergunta, saindo do carro, indo tirar a cadeira do meio da garagem e a botando em seu jardim. Dentro de casa, tudo igual? Essa é uma dúvida em sua cabeça. Enfim, paz. Ele pensa. Depois de comer, lavar os pratos, deixar as roupas no sofá de seu escritório para serem passadas, assistir à TV, inteirar-se com as notícias e tomar um bom banho, ele pensa em se deitar. Mas, antes de deitar, cadê o pijama? Maurício não lembra onde estava o seu pijama. Moro sozinho mesmo, vou dormir nu. Ele pensa. Na manhã seguinte, depois de tomar um café preto e forte, vê um monte de roupas espalhadas pelo sofá do escritório. Quem entrou aqui? Ele, assustado, não lembra quem botou aquelas roupas ali. Maurício olha pela casa inteira, ninguém por dentro. No quintal e jardim, ninguém também. Nem sinal de arrombamento. Maurício procura a chave do seu carro. Cadê? Ele também não lembra onde foi parar. Um desespero começa a martelar sua cabeça. Ele mexe pelas gavetas, procura por debaixo da cama, nos armários. Dentro das cômodas. Pelo quintal. Abre até a geladeira e nada. Meu Deus?! Quem está fazendo isso comigo? Grita sozinho em casa. Ele vai até o carro e vê a porta aberta, a chave está na ignição. Será que tinha um ladrão aqui? Ele se pergunta. Depois de fechar a casa, procura o controle do portão eletrônico e não acha. Dessa vez ele tem certeza que alguém invadiu sua casa. Desconfiado dos vizinhos, sai pela porta da frente e começa a espreitar a rua. Ninguém aparece. Bando de covarde. Ele esbraveja. Ele entra no carro, antes de dar ignição para sair novamente, percebe que se esqueceu de abrir o portão. Mas cadê esse controle? Ele 53
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pensa, caminhando em direção à porta de entrada da casa. Está trancada? Ele se assusta. Quem trancou essa porta? Grita sozinho. Ele volta para o carro e vê a sua chave na ignição. Achei! Festeja ter achado a chave do carro e desiste de procurar a chave de casa. Liga o carro e procura o controle. Não acha. Vê uma chave de fenda no canto da garagem, ele a pega e desativa o modo eletrônico do seu portão. Antes de trancar o portão, bota a cadeira, que estava no meio do jardim, no meio de sua garagem, onde tem cobertura, para protegê-la de uma possível chuva. Ele também não lembra por que a cadeira estava ali, no meio do jardim. O carro sai. Choveu muito ontem. A rua está molhada e barrenta. Ele constata. Volta para o carro pela porta menor da frente de casa. A sua chave está na fechadura. Ele a coloca no bolso. E segue pela rua. Entra à primeira esquerda. No primeiro cruzamento, faz o retorno. Volta direto pela avenida que havia vindo. Em uma rua familiar, entra para a direita. Agora, está na rua de sua casa. Ele sorri e segue em frente, sai por outra avenida. No primeiro sinal, vira à direita e segue. Mais à frente, percebe que já está quase na beira do rio. Vê que aquele bairro não tem nada a ver com o local do seu trabalho. Dá meia-volta. Depois de mais alguns giros, percebe-se no centro da cidade. Meu Deus, onde fica o meu trabalho? Maurício começa a perceber que não consegue localizar-se. Ele estaciona. Tenta abrir os vidros. O carro é muito moderno. Com isso, esquece o procedimento de abrir os vidros. Roda a chave e liga o ar. Depois de cinco minutos, já esquecido da obrigação de ir ao trabalho e pensando amenidades sobre as meninas que passam na rua olhando para dentro do seu lindo carro, lembra como abrir os vidros. Ele abre o porta-luvas e encontra um cartão escrito: se precisar de ajuda, ligue 62210907. Dra. Maia. Depois de ter ligado, ter pegado uma carona com a doutora, Maurício acorda e se pergunta: que escritório é esse? E quem é você? _Maurício, meu nome é Maia, sou sua médica. Ontem você 54
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sofreu um acidente. Uma moto lhe atropelou. Você caiu e bateu a sua cabeça muito forte. A gente chegou aqui há umas três horas. Eu lhe dei um sedativo e você adormeceu. _Não te conheço, nunca te vi. Quero ir embora para casa! _Você lembra onde é sua casa? Um silêncio paira na sala. _Você não vai lembrar – completa a doutora – porque você está com amnésia recente. Uma perda de memória recente e muito grave. _Como assim? _Assim: se eu fizer qualquer movimento brusco ou ação rápida que o leve para outra linha de raciocínio, você esquece o que estávamos conversando agora. Maurício não aceita a realidade e começa a esbravejar, pedindo um advogado, fazendo um escândalo: “eu posso comprar seu consultório”, ele grita. A doutora vai até a porta e a fecha com força. Maurício para de fazer escândalo, sorri para a doutora e fala: _Qual o seu nome? Depois de alguns minutos de conversa, também amenas, o telefone do consultório toca. _Alô? _Doutora Maia, os parentes do seu paciente chegaram. Ela pede para Maurício aguardar e sai da sala. _Bom dia. Vocês são os parentes de Maurício? _Sim – um dos homens responde, o outro fica calado. Um deles é o tio, irmão de seu pai, o outro é o seu irmão mais novo. _Bom, como já expliquei, ele está com um problema que a solução é só uma. Pagar o tratamento com este remédio – a doutora fala, mostrando o remédio para eles. _Mas, doutora, não existe mesmo outra solução que caiba melhor em nosso bolso? Até porque será impossível para ele trabalhar e pagar, por causa desse problema. E eu não tenho como pagar – o outro parente confirma com o olhar. _Bom, vocês têm outra opção mais barata. Podem interná-lo. _Mas o custo não será maior? _Não. Vocês podem interná-lo em um hospital de tratamento público, tudo será custeado pelo Estado – a doutora, 55
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preocupada com o tempo que esse paciente estava demandando dos outros pacientes, dá essa outra solução mais genérica. _E ele não vai nem lembrar que a gente o internou lá? _Exatamente. Em dois dias ele se sentirá mais um paciente sem parente. E digo isso porque sei que a crise financeira mundial é grande pra todo mundo. _Ele não vai lembrar nem do nome – o parente calado se manifesta. Os três cruzam olhares em concordância. Depois de dez minutos, a ambulância chega ao consultório da doutora Maia leva Maurício. A roda da ambulância, suja de barro da chuva que não para, segue encaminhando ao tratamento o homem que em breve ficará sem nome.
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Minha parte feminina Só Eva e seu sexto sentido aguçado tiveram a coragem de ir contra a caretice de Deus. Por causa dela, a procriação, a vida e a arte de criar existem. Pois Eva, no seu ato de desacato apurado contra o seu Pai CARETA, único procriador masculino individual (?) da história, fez o homem abraçar o poder de vida que é a mulher. Quando o homem não abraça esse poder de vida, a mulher, ele é apenas sêmen. Pensem bem: o que não é feminina na hora da criação? A poesia é feminina, o poema (apesar do artigo) é feminina. A poesia e o poema uniram-se e fizeram a poemia, que é feminina. A arte é feminina, a natureza é feminina, o sorriso é feminina, o sexo é feminina, o olhar é feminina, o amor é feminina; Deus, que há milhões de anos atrás era careta e não permitia a Eva conhecer o bom da vida, entrou na moda e se diz feminina. Então Deus é feminina? Ou melhor, Deus é Deusa, uma bela menina, e criou a criação, outra moça intrigante. É pena que essa informação valiosa foi escondida durante esses tantos anos de machismo e ignorância. É bom saber o valor, o poder, e a vida que é e está na mulher, na Deusa! No entanto, termino e digo: eu sou feminina. Vamos, camaradas, assumir a parte feminina da nossa alma e vida.
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Toque nervoso Já muito enfurecido, estressado, ele liga pra empresa onde Suzana trabalhava para fazer reclamações. Todos na empresa tinham pena de Suzana. Menina de bom currículo, experiente, sempre bem vestida, um pouco calada e ainda jovem. O telefone tocava, ela atendia. O identificador de chamadas revelava: era ele. Alguns colegas iam até a sala de Suzana para tentar consolá-la. Com olhares de pena, motivação e apoio. Como ele era o maior cliente da empresa, a chefia não se importava como a funcionária era tratada. Ela que arranjasse um jeito de lidar com isso. Se ela sair, tem outras. Assim era tratado o assunto. Dois colegas de trabalho, que a observavam, comentam. _E por que ela não sai? _É porque Suzana precisa do emprego. _Pois é, minha amiga, ela é uma guerreira. Aturar esse pedaço de ignorância tratá-la dessa forma... Eu mandaria ele pro inferno! A colega sentia pena. O colega, paixão e admiração. Ambos analisavam a forma que Suzana reagia ao telefone: apertava o seu punho com força, segurando o telefone. Algumas vezes cruzava as pernas e ficava com um “tique nervoso” roçando suas coxas. Talvez isso excitasse o colega dela, por isso tanta paixão. Outras vezes, Suzana mordia os lábios, parecendo que estava com vontade de arrancar a cabeça dona da voz do outro lado da linha. Outras horas, fechava os olhos como se pensasse em outro assunto, e em outros momentos sorria, parecendo que se drogava de uma alegria inventada, para esquecer a realidade. Certo dia, depois de mais uma das conversas entre eles, Suzana desligou o telefone e foi direto para o banheiro. O seu colega tentou consolá-la, a colega tentou entrar no banheiro com ela, oferecendo apoio moral. Suzana, sem falar nada, entra no banheiro e tranca a porta. Sete minutos depois sai, com o rosto molhado e os olhos cansados. 58
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Suzana passou o resto do dia calada. Quando deu o seu horário, saiu e foi para um ponto de ônibus diferente do habitual. Desceu na zona leste da cidade, em frente à empresa do dono da voz que tanto a maltratava. Suzana sabia que ele sempre era o último a sair. Quando o portão abriu, Suzana o viu. Com crachá identificador do seu trabalho, ela entrou de vez na garagem. Ele levou um susto. _Calma. Sou eu. Suzana. Ele, já menos assustado, diz: _Suzana?Suzana? – vendo o crachá dela, lembrou: –Sei! Suzana, da empresa que só tem incompetente. Você é a mulher que me atende, né? Só podia ser loira, e aposto que você só trabalha lá porque é gostosa. Mas pra mim isso não muda nada e só confirma o que eu digo: você é burra, incapaz. Como é que você aparece aqui sem marcar hora, me dá um susto e ainda fica fazendo essa cara de... _DIZ! – Suzana grita. _Diz o que, doida? _Me chama do que você ia chamar. _De quê? Vagabunda? Rapariga? Ou do que te chamei hoje no telefone: sinhá puta, idiota? _Repete, vai... Suzana pede para ele repetir mais vezes e vai encostando, levantando a saia até aparecer sua calcinha. Ela chega perto olhando, com olhar de paixão, para os olhos dele.
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Uma e outra história de amor Hoje de manhã ela estava com a farda nova de sua escola. E Cosme com os olhos bem abertos, da porta de sua casa, espiava Cidinha, mas disfarçando, por causa dos olhos dos outros. Cida, menina amada por toda sua família, adorada pelos seus vizinhos, amigos do colégio, etc., sempre tinha comentários a seu favor “Ela é tão educada. Ela é tão simpática. Parece uma princesa”. Ela, de saia no meio das coxas finas e roliças, brancas, feliz da vida com sua nova farda. Com camisa azul que decota seu corpo infantil e mostra seus pequenos seios, ia para o colégio. E Cosme, observador, apaixonado, pensava também, a seu modo, comentários a favor de Cida: “peitos de neve, bicos de uma luxúria e desejo, pontas de jambo. Cabem igualmente em minha boca”. Antes de Cida entrar no carro, seus olhos fitam os olhos de Cosme, mas rapidamente ela desvia o olhar, encantando, com jeito angelical, outra vista. Cida Firmina Barboza tem 13 anos. Cidinha, como sua família e vizinhos a chamam. Princesa, como Cosme a chama, há dois anos apaixonado por ela. À noite, Cosme fica no terraço de sua casa, onde dá para ver certinho o quarto de sua princesa. De vez em quando, ela deixa a janela aberta. Nessa noite ela deixou. Já são dois anos de olhos em suas pernas infantis, em sua boca (boca que é uma flor ainda criando suas pétalas), dois anos que ele pensa em todas as formas de possuí-la, dois anos de desejo pelos seus pés de princesa. Cosme comprou até quatro sapatilhas para um dia encaixá-las nos pés de Cida, como no conto de fadas. Comprou também pequenas coroas, uma delas tem até uma jóia cara para ela usar no casamento deles. Hoje ele já a viu passando duas vezes pelo meio do quarto com seu pijama de flores e ursos. Cosme já segura em sua rola, aperta, esperando o momento certo de matar o seu desejo diário, mesmo que por uma única noite de sono, mesmo que cheio de um romântico tesão. E, enfim, Cidinha passa com suas costas nuas pelo meio do quarto e volta até a janela, segurando seus seios, para 60
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cobri-los de um possível voyeur noturno, e as fecha. Cosme não perde tempo e, olhando para a noite, que está estrelada e escura, goza seu amor platônico. Na manhã seguinte, Cosme acordou atrasado. Quando saiu de casa, Cida já tinha ido à aula. Ele volta para dentro de casa e aproveita para recolher suas roupas no varal. “Puta que pariu, já é a terceira cueca que roubam aqui do varal, sem contar os outros dois shorts que também sumiram”. Cosme fala sozinho, suspeitando que o vizinho estava roubando suas roupas. Quando ele já estava todo arrumado: paletó, carro do ano com ar condicionado saindo pela garagem, ele percebe que os pais de Cida e a empregada da casa estavam saindo. Uma ideia doida ocorre em sua cabeça. “Vou para a outra rua com o carro. Pulo o muro e entro no quarto dela pela janela”. Como ele não tem horário para chegar ao trabalho, foi como um louco apaixonado botar seus planos em ação. Dentro do quarto, Cosme abre uma gaveta, procura uma foto, uma calcinha, quando ouve a porta da sala sendo aberta. _Meus Deus, alguém chegou – ele resmunga e entra dentro de uma das portas do armário. A porta do quarto abre-se. Alguém entra. “É ela!” – Cosme pensa, pasmo. Depois de alguns minutos de silêncio dentro do armário, só imaginando o que Cidinha fazia ali, ele ouve o som da janela sendo fechada. Então, ele abre uma fresta do armário e a vê de sutiã e calcinha. Ela se olha no espelho. Começa a dançar sozinha e cantarola uma música. Ela rebola na frente do espelho, ele se excita. Ela vai até a sua cama e debaixo dela puxa uma caixa bem grande. Dentro da caixa, ela tira uma sandália. “Tinha uma igual a essa” – Cosme pensa. Ela veste a sandália e se olha no espelho. Sorri como uma verdadeira Vênus do mundo moderno. Ela pula, parece uma criança feliz da vida com as sandálias nos pés. Cosme continua excitado e aperta com a mão a rola. Cidinha volta até a caixa, puxa um short de dormir masculino. “Esse pijama era meu” – pensa, um pouco assustado. “Não pode ser. Não pode ser. Quem roubou 61
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essa porra do pijama lá em casa foi o vizinho. Será que ele deu pra ela, porque será? Será que ele percebeu que fico olhando para ela?” – enquanto Cosme pensava sobre isso, ela vestia o pijama e ficava olhando-se no espelho. Ela sorria e rebolava até o chão. Cantarolava: “quando eu tinha vinte um anos, eu aprendi a sorrir pra você não se esquecer de mim”, sorria e repetia a frase com a voz fina de criança. Ele, sem acreditar no que estava vendo, já se esquecia da excitação, mas continuava duvidando da sua amada, uma genuína angélica. Ela volta à caixa e puxa uma chave de fenda, bem grande, e a segura com as duas mãos, como se fosse um troféu, sendo olhado face a face. “Puta que pariu, essa chave de fenda era minha, que sumiu no ano passado. Achei que tinha esquecido na casa de praia do Arnaldo”. Cosme não acredita e procura entender ou achar alguma explicação para a situação em que sua amada mostrava-se, dessa vez de janela fechada. Cidinha, por sua vez, derruba no chão toda a caixa. E de tantos objetos que se espalharam, os que ficaram à vista do Cosme, ele reconheceu: “Meu Deus! Minhas cuecas, minha chave reserva do carro que tinha sumido, minha camisa que joguei no lixo porque não consegui tirar a mancha, uma fita do Senhor do Bonfim que sumiu do carro... essa menina é louca!” – ele constata toda a situação e esquece a parte sexual pela sua paixão platônica. Ela some por alguns segundos da vista de Cosme. “Ela foi embora. Vou aproveitar pra sair”. Ele pensa e vai saindo do armário. Ela volta rapidamente para o quarto. Ele fica estático dentro do armário. Ela pega a cueca de Cosme, que havia sumido nessa manhã, cheira e se senta no chão de pernas abertas para o armário em que ele está. Cheirando a cueca, já sem o pijama dele que ela havia vestido, pega em seus seios e alisa a sua virilha. Ele, de frente a essa vista, desvia seu olhar. _Cida! – alguém grita a menina. Cosme aproveita, abre a janela, se joga no quintal e, como um raio, pula o muro. Entra no carro. Chora desesperado por duas vezes no caminho do trabalho. Mas, no fim do dia, decide-se. Dois meses depois, Cosme já não acordava tão cedo para ver a Cidinha saindo para a escola. Nesses dois meses, Cosme voltou para o terraço de sua casa, por três vezes. Todas 62
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as vezes, com a Norma, uma amiga que está virando uma nova grande paixão. Cidinha, no colégio, já estava há quatro semanas com problemas de relacionamento e isolamento. Mas, hoje, com a esperteza que Deus a deu, percebeu que o seu príncipe admirador já não queria mais olhá-la. Então desistiu de procurar razão. E, de relance, viu nos olhos direcionados para o meio de suas pernas vestidas com a saia do colégio, o motivo para se esquecer desses tempos de desilusão: o diretor Assis. Que, por sua vez, percebeu que Cida Barboza, como ele a chamava, tinha visto seus olhos de ganso em suas pernas de anjo. Disso, Assis saiu pelo corredor da escola e nem notou que sua caneta pessoal, presente de sua esposa, tinha caído ao chão. Cida, sorridente e cantarolando “quando eu tinha vinte um anos...”, pega a caneta e caminha, batendo duas asinhas, doida pela sua paixão, meu caro leitor.
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Mau humor Entro no ônibus e, do lado esquerdo, onde é sombra, tem apenas uma cadeira vaga. Vou até ela, equilibrando-me, e sento. Alguns minutos depois, a mulher que está ao meu lado, toda de branco, como uma enfermeira, levanta-se. Eu levanto também e a deixo sair do canto. Depois que sento, a vejo ir até o cobrador. Ela parece estar pedindo com sinais alguma informação. Por que não pediu para mim? Ela sorri. Belo sorriso. E, duas cadeiras antes do cobrador, senta. Passam dois pontos, ela não desce do ônibus. Por que saiu de perto de mim? Passam mais quatro pontos e ela não desceu ainda. O que há comigo que a fez sair daqui? Está quase perto de meu ponto e ainda não desceu. Nem olha pra trás, parece que está envergonhada pelo fato de ter levantado do meu lado sem ter motivo. O meu ponto está passando, mas não vou descer. Vou esperar que ela desça e a olhar na cara, pra saber por que saiu do meu lado. Alguns minutos depois, a 'enfermeira' levanta e passa por mim sem coragem de me olhar nos olhos. Vou descer aqui também e descobrir qual o problema dela comigo. _Motorista! Espera que vou descer aqui também! O motorista breca. Ela, do lado de fora, me olha, enfim. Tive que chamar atenção, pra ela lembrar que eu sou aquele que ela rejeitou a companhia dentro do ônibus. Mesmo que fosse uma companhia silenciada. E ela fez isso por um motivo, que, até então, vejo como pífio e esdrúxulo: aposto que fez isso porque tem preconceito contra homens que têm a fisionomia como a minha. Ela começa a acelerar seus passos, eu também acelero os meus. Pelo jeito, ela não quer conversar de forma nenhuma. Eu, agora, também não quero. Ela percebe que estou atrás dela e anda mais rápido. A “enfermeira de araque” começa a suar, eu também. Não aguento esse sol de 45 graus das 13:40h de minha cidade. Na praça vazia e sem sombra, ela olha disfarçadamente para trás. “Ele está na cola!” – ela pensa. 64
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Percebo que a assusto. Ela aumenta os passos, eu corro e encosto. Ela percebe que eu corri, tenta correr. Eu, sempre mais esperto, dou uma rasteira. Ela cai e bate a cabeça no banco, sangra, suja sua roupa na areia, fica meio zonza. _Não entendi por que você não gritou antes, se sabia que estava atrás de você. Aposto que é dama demais pra gritar por aí e pra sentar ao meu lado também. A moça estava com a testa aberta e com o sangue escorrendo, chorando muito. Ele olha ao redor e vê que ninguém a viu caindo ali, naquele canto. Ele a puxa pelo cabelo para atrás do banco. _Vem cá, sua putinha. O chão deve está pelando. Hein, putinha? - O chão está pelando. Ela chora. Ele chuta duas vezes a sua barriga. _Cala a boca! Você acha que chorar ajuda alguma coisa?A partir de hoje você não sai mais do lado de ninguém. Ele pisa em seu pescoço. Pisa de novo com força e, dessa vez, segura seu pé com seu peso, com mais força, em cima do seu pescoço, apertando-o. _Poderia sorrir agora pra você, mas agora, debaixo desse sol, eu perco meu humor. Ela, muda de nascença, morta. Ele volta para o ponto, para não se atrasar no trabalho.
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IML Antônio afirma a sua história: o cheiro de carniça pode aparecer quando você está sozinho, ou rodeado de uma multidão, você pode senti-lo deitado na cama, batendo papo em lugares privados e públicos, em qualquer lugar o cheiro de carniça pode grudar em seus orifícios nasais e povoar a parte capilar do mesmo. Sim, o cheiro de carniça, do Demônio, aparece em qualquer lugar, basta ele estar te mirando, te olhando nos olhos. O Demônio, quando está do seu lado, ele fede e te fita nos olhos. _Em qualquer lugar? - perguntou Amanda, uma amiga que ouvia a história. _Sim. Quando o Demônio está envolto por você, ou a você, depende de como se interpreta, ele se mostra por graça própria. Ele sabe que rir faz bem pra vida, por isso se diverte com a gente, exalando seu cheiro de carniça forte. E é melhor você sentir esse cheiro com gente ao redor, porque, se ninguém o sentir, você já saberá que é ele. À espreita. Júlio ouve o que Antônio afirma e se lembra do cheiro de carniça que sentiu pela manhã, na sala da sua casa, quando estava só e fechando a casa para ir ao trabalho. Júlio sorri, Antônio continua: Você ri, né? Se um dia você sentir esse cheiro, como eu senti, quero ver o que você fará. Todo mundo um dia vai sentir a carniça que batiza o seu destino próximo. E, pior, depois que você sentir o cheiro de carniça do Demônio, reze para que o cheiro não fique impregnado na ponta de seus dedos. Porque esse é o sinal de que ele não veio para apenas rir de sua cara. _Quem te disse essas coisas, seu maluco? Amanda pergunta, sorrindo e dando tapas no peito de Antônio. Um dia eu estava no banheiro de casa e senti o cheiro, muito forte. Fiquei quase o dia inteiro com aquele cheiro de carniça podre pela casa. Ninguém sentia. Entrei na internet e li sobre isso, esse cheiro de carniça. _Você leu na internet? Que nada, Deus é o reflexo do Demônio – Júlio pergunta e afirma, caindo em gargalhadas. 66
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À noite, quando chega em casa, Júlio ainda sente o cheiro de carniça em sua sala, o cheiro espalhou-se pelo quarto onde dorme, pelo banheiro, cozinha. Ele sai pelo quintal e não acha nenhum bicho morto. Acende um incenso, novamente na sala. O cheiro melhora. Descrente de Deus ou Demônio, pensa: amanhã eu chamo o dedetizador. Por um vício que tem desde criança, de cheirar suas mãos, Júlio cheira a ponta de seus dedos. Carniça pura! Ele pensa. Em seu ouvido, uma voz concisa, séria, diz: _Você já sabe por que estou aqui. Três dias depois, um amigo do trabalho veio à casa de Júlio. Depois de abrir a porta com a ajuda de um chaveiro, constatou o cheiro de carniça que habitava em seu jardim. No jardim, o seu amigo de trabalho ficou espreitando. Dentro da sala, o chaveiro, que entrou só na casa, vê Júlio com os pulsos cortados, branco, deitado e encolhido, como se estivesse com o frio. “Com frio por cima duma poça de sangue” o chaveiro pensa em um bom título para mais um post em seu blog. O chaveiro tira o seu celular do bolso e faz uma foto de Júlio. Fora de casa, o chaveiro comenta com o amigo de Júlio: cara, eu vou a uma lan house conferir meus e-mails. E você? Vai chamar o IML?
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A rotina De manhã, ele boceja e se espreguiça duas vezes. Primeiro, a perna esquerda é esticada, depois, o braço direito. Por fim, o corpo todo. E, novamente, a perna esquerda, o braço direito e o corpo todo. Com o pé direito, pisa no chão, com o esquerdo, pisa na sandália. Com o mesmo pé esquerdo, puxa a sandália para perto dos seus pés. Ele veste as suas sandálias, as duas de vez. Não é nenhuma tradição ou superstição, é apenas força do hábito. Em cinco passos, chega ao banheiro. Com a mão esquerda, liga a luz, pois está clareando. Ao olhar-se no espelho, sorri. Contente, sabe que faz parte dele, como ser humano, as repetências dos atos nos trâmites diários. Escova os dentes em três minutos, toma banho em nove minutos. Para não se perder no tempo, tem um relógio de pulso que toca de acordo com seus costumes. Veste primeiro a meia, depois a cueca. Penteia o cabelo de lado, como sua mãe sempre penteava quando era criança. A calça, sempre bem passada, é vestida em pé e no centro do espelho, que dá para ver seu corpo por inteiro. Abre seu armário, escolhe a camisa do dia da semana e, para não haver problemas, tem coleções de três camisas iguais, caso alguma das outras não tenha chegado da lavanderia. Ele é precavido, sabe como seguir sem problemas e também não fugir deles: basta seguir em linha reta. Por fim, começa a vestir a camisa abotoando desde o botão de cima. No caminho para o ponto de ônibus, ele anda pela mesma calçada de todos os dias e, lógico, pela mesma trilha. Já no ponto, ele espera o ônibus sempre em pé e no mesmo lugar. Como ele sabe que é o mesmo lugar? As marcas dos seus pés já estão no chão. Ele trabalha como atendente de telemarketing de uma empresa que vende sabão. Em sua sala particular, pois a empresa é pequena e ele é o único no setor de atendimento ao consumidor. Puxa sua cadeira companheira de cinco anos com as duas mãos. Senta-se olhando diretamente para o computador. Com a mão direita, liga seu PC, com a mão esquerda, puxa a gaveta do teclado. O telefone toca. Ele atende com a mão esquerda, digita com a mão direita, e sorri, muito 68
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contente, repetindo as mensagens designadas pelo regulamento burocrático de atendimento ao consumidor. Às seis da tarde, em ponto, ele sai do trabalho seguindo as mesmas trilhas, pelas mesmas calçadas. Em casa, com a mão direita, ele pega a chave e abre a porta. Com o pé esquerdo, entra, com a mão esquerda, acende a luz. Com os passos, iguais de ontem e anteontem e antes de anteontem, segue até a cozinha. Faz um leite com chocolate em quatro minutos. Frita ovos em sete minutos, corta os pães e bota manteiga em cinco minutos. Come tudo em oito minutos. Assiste à TV. Os mesmos programas dos outros dias. Afinal, qual companheiro nosso é mais repetitivo do que a TV? Não gosta do canal 5, pois eles sempre mudam a programação sem avisar ao telespectador. Se faltar luz, ele fica imóvel até que a luz volte. Caso demore muito, ele faz outra cerimônia, que fica para outra história. Sorri contente e desliga a TV às 22:30h em ponto. Todos os dias. Todos os três relógios de sua casa, inclusive o do seu pulso, estão com os mesmos minutos e os mesmos segundos. Ele fecha os olhos. Primeiro fica de barriga para cima, depois fica de lado e, enfim, feliz, sorri contente, sabendo que faz parte dele ser humano. Ele dorme, e depois de sete horas e meia, ele acorda. De manhã, ele boceja e se espreguiça duas vezes. Primeiro, a perna esquerda é esticada, depois o braço direito. Por fim, o corpo todo. E, novamente, a perna esquerda, o braço direito e o corpo todo. Com o pé direito, pisa no chão. Com o esquerdo, pisa na sandália. A sandália não estava no lugar! Seu coração dispara. Ele olha para o chão, não vê a sandália. Abaixa-se e olha debaixo da cama, lá está a sandália. Mas, como? Se eu soubesse a resposta ou se ele também soubesse, nem perguntaríamos. Com a mão esquerda, puxa a sandália que está debaixo da cama para perto dos seus pés. Ele veste as suas sandálias, as duas de vez. Para ele, a força do hábito, quando mudada, faz os batimentos cardíacos mudarem também. Em cinco passos, chega ao banheiro. Com a mão esquerda, liga a luz, pois ainda vai clarear, mas a luz não funciona. Segunda tentativa: tic, tic, tic, tic. Na quinta tentativa, a luz pisca, como nas outras tentativas 69
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anteriores, mas dessa vez acende. Ao se olhar no espelho, sente-se desolado e sorri, pensando na ironia da vida. Nada contente, ele sabe que faz parte dele, como ser humano, as repetências dos atos nos trâmites diários. Mas, se isso começa a mudar, dói até o fundo do peito. Dói até onde a imaginação de ninguém consegue chegar. Ele começa a escovar seus dentes, e em três minutos termina. Toma banho em onze minutos. Para não se perder no tempo, tem um relógio de pulso que toca de acordo com seus costumes. De repente, ele sai do banheiro e se enxuga assustado. Percebe que passou do tempo. Está perdido no tempo paralelo e diário. Ele olha para o pulso. O seu relógio está parado. Deve ser a bateria, pois isso não faz parte do seu dia a dia. Ele segura as lágrimas e vai vestir-se. Veste primeiro a meia, depois a cueca, penteia o cabelo de lado, como sua mãe sempre penteava quando era criança. Nesse momento, aparece um pensamento em sua cabeça, um pensamento que o contraria ainda mais e o faz soltar lágrimas: odiava quando ela mudava meu penteado. Pensa. Veste a calça bem passada, como sempre, em pé. No centro do espelho, olha-se, de corpo inteiro. Abre seu armário, escolhe a camisa do dia da semana e, para não haver problemas, tem três camisas iguais, caso alguma das outras não tenha chegado da lavanderia. Nesse dia, tem apenas uma, ou seja, é bom ligar para a lavanderia. Ele é precavido. Vai até a sala, pega o telefone com a mão direita, disca com a mão esquerda. “Esse número não existe mais”. Desliga o telefone enfurecido. Um suor escorre em sua testa. Respira fundo, acalma-se. Vou até o mercado e compro cinco iguais a essa. Ele pensa nisso como solução e filosofa “para seguir sem problemas e também não fugir deles, basta seguir em linha reta: o branco no branco e o preto no preto”. Por fim, volta para o quarto e começa a vestir a camisa abotoando do botão de cima. No caminho para o ponto de ônibus, ele anda pela mesma calçada de todos os dias e, lógico, pela mesma trilha. Dessa vez, ele foi com gosto, pisando forte para marcar ainda mais o mesmo caminho. Chegando ao ponto, ele pensa sobre o início de sua manhã e vê uma linda mulher, mas nem presta atenção 70
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em todos os nuances da bela. Ela está com o seu pé direito em cima de uma das marcas do pé dele. Ele esperava o ônibus sempre em pé e no mesmo lugar. Hoje, não será mais. Suando novamente pelos poros da testa, não presta atenção no belo pé da bela, nem nas belas coxas da bela, nem no belo rosto da bela, muito menos na bela boca da bela. Ele, suado, puto da vida, com o coração acelerado, com uma frustração doente no fundo do peito, onde a imaginação de ninguém consegue chegar, olha para a bela com cara de fome, de ódio, de inveja. Ela o olha com medo, com nojo, e percebe o seu ódio, mas não a sua inveja. Já na empresa, suado e cansado, mas firme para continuar seu dia. Afinal, é preciso repetir os dias e nunca desistir. Inicia os seus trabalhos diários como atendente de telemarketing, respondendo aos questionamentos e anotando as reclamações dos clientes que usam o sabão da empresa. Em sua sala particular, pequena como a empresa, recebe um telefonema de um ramal interno. Não de nenhum cliente, e sim de alguém da própria empresa. _Você já está sabendo que, a partir de amanhã, você vai ter companhia em sua sala? _Não tem espaço aqui. _A gente arruma. Você sabe que a empresa está crescendo e tendo mais clientes. É preciso melhorar o nosso SAC! _Por que não fui avisado com antecedência? _Desde segunda-feira que tem um ofício em sua mesa falando sobre essa mudança. _Não tenho o hábito de ler os ofícios na segunda, nem na terça, nem na quarta. _Pois procure mudar os seus hábitos. Mude, porque vai ser muito bom para o seu crescimento interno na empresa. _É que nunca abri um ofício que tivesse como assunto o meu setor. _Mas, como eu disse e repito, as coisas mudam. Mude também. Mudar é igual a “radum” ao contrário, e isso não significa nada para mim. Ele filosofa sozinho. Às seis da tarde, em ponto, sai do trabalho seguindo as mesmas trilhas, pelas mesmas calçadas, mais aliviado, pois, fora as mudanças de mais cedo e a péssima notícia no início do dia no 71
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seu trabalho, ele já pensava no dia seguinte, como “a volta válida e pertinente de seu sorriso”. Já em casa, com a mão direita, pega a chave e abre a porta. Com o pé esquerdo, entra, com a mão esquerda, acende a luz. Com os passos, iguais aos de ontem e anteontem e antes de anteontem, segue até a cozinha. Faz um leite com chocolate em quatro minutos. Frita ovos em sete minutos. Corta os pães e bota manteiga em cinco minutos. Come tudo em oito minutos. E sempre no tempo certo, pois ele consertou o relógio de pulso. Assiste à TV. Os mesmos programas dos outros dias. Afinal, qual companheiro nosso é mais repetitivo do que a TV? Nem a rotina é. Ele continua sem gostar do canal 5, pois mudaram a programação de novo, e novamente sem avisar ao telespectador. Talvez seja hábito deles. Se faltar luz, ele fica imóvel até que a luz volte. Nessa noite, não faltou luz. Ele sorri e, contente, vai até a cozinha beber água. No relógio da cozinha são 10:17h da noite. Ele tem mania de ver os horários. Já tentou não olhar para os relógios, não para mudar de hábito, mas por achar que é coisa de louco não conseguir ficar sem olhar para os relógios. Não conseguiu. Aceitou a loucura, ele sabe que todos nós somos. Na sala, o relógio marca 10:15h. Assustado, volta à cozinha, o relógio marca 10:18h. MEU DEUS! MEUS DEUS! Grita duas vezes. Vai até o quarto e olha o relógio. Está no mesmo horário do relógio da cozinha. Volta até a sala: 10:15h. Toda a sua depressão interna e dores inimagináveis retornam, a respiração fica ofegante, o seu coração dispara, ânsia de vômito, ódio e mais ódio, frustração, inveja de quem não conhece a rotina, vontade de explodir. Ele tem uma ideia, vai até a dispensa, pega uma faca. Volta à sala, olha para o relógio, olha para os seus pulsos, tira o relógio do pulso, joga-o no sofá, enfim, consegue não olhar as horas. Chora, grita: MEU DEUS! Chora, baba, chora, resmunga, caminha de um lado para o outro. Segura firme o cabo da faca em posição vertical em relação ao seu braço esquerdo... Bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip… ele larga a faca, vai até o sofá, olha para o seu relógio de pulso, são 10:30h, em ponto: hora de dormir. Não olha para o relógio da sala,
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mas o pega e o quebra. Sem se preocupar com a sujeira, vai para a cama e fecha os olhos. Primeiro fica de barriga para cima, depois fica de lado e, enfim, sorri aliviado, sabendo que faz parte dele ser humano e sentir sono. Ele dorme, e depois de sete horas e meia, ele acorda...
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Mais vivo que um robô e menos certo que a máquina. O homem descobriu o fogo, e disso deixou a vida bem mais clara. Já naquela época era preciso um qualquer acompanhante para aliviar o medo da solidão. O homem talvez conversasse com árvores, com os múltiplos deuses, com o osso que ele tinha como prêmio de alguma caçada bem sucedida. Mas, mesmo assim, era preciso algo que preenchesse o que ele ainda não sabia definir, porém sentia arduamente: a solidão. Uma outra forma de mudar o estado eterno solitário do homem foi a droga. Desde que a gente se entende por gente, usam-se drogas para se aliviar. Sim, aliviar. Seja a alma, seja a vida. A ideia é ficar aliviado, talvez livre. O ideal da liberdade também é fresta para sair da solidão. Os livros, geralmente escritos por solitários, também são um bom consolo para as nossas horas “vagas” de solidão. Assim, com aspas. Não porque a solidão não seja vaga, mas sim porque as horas, em sua maior parte, são solidão. O emprego, o dinheiro, a compra, a viagem, a arte, a rotina, a fila, o banco, a sala (se bem que, hoje, sala também é lugar de solidão), o celular, o computador, a TV, o vizinho, etc. Tudo inventado como uma forma de ocupação da vaga hora solitária. E isso é bom! Que bom mesmo que temos a capacidade de inventar na hora de disfarçar. O rádio, além de ser um comunicador, também foi inventado para substituir nossas horas solitárias por horas acompanhadas. Não sei qual era a sensação de ouvir rádio há 70 anos, mas sei que unia todos numa corrente contra a solidão mundial. Talvez, naquela época, as pessoas fizessem mais amor. Ou não. Talvez seja muito romântico de minha parte pensar assim. Certo, só uma coisa: estou totalmente ambíguo. É sinal de solidão. A TV é o ápice do século XX. O homem, ou melhor, o visionário que a inventou, revolucionou o estado humano de ser. Amo a minha TV! E você, ama a sua? Melhor, amo o que passa em minha TV. Sem ela, fico agoniado. E você, ama o 74
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conteúdo da sua TV, apesar de passar as mesmas coisas? Ou não. O olhar de quem vê sempre é diferente. Que máquina usa você para subtrair sua solidão por um sorriso e disfarçar toda vaga que nunca será preenchida? Até arrisco dizer que a TV ajuda muito na maior batalha da vida: compreender e abstrair o vazio que somos. O amor, talvez, ele tenha sido inventado, mas é a única coisa que sinto e que realmente preenche vaga em mim. Eu clamo: SALVE-ME, AMOR! Ligue no meu celular ao luar. A minha geração tem um preenchedor de vagas e vazios essencialmente benéfico (?): a internet. Esta, sim, é uma invenção que chegou quase na perfeição do que é ter alguém ao seu lado pra disfarçar a solidão de ambos. Todos os dias eu toco no computador e rezo pra que ele não trave, ou quebre. Irônico, mas necessário. Desço do ônibus. Brevemente, caminho pela avenida. Entro na rua onde moro. Está escuro. Os postes estão sem luzes. Vejo que alguém saiu do terreno baldio e vem em minha direção. Pode ser alguém com fome, ou qualquer filho da puta ladrão. Pode ser alguém afim de ouvir duas palavras... Ele me ataca. _Você tá louco? Solte a porra do meu cabelo! Ele não diz nada, me joga no chão com uma força estupenda. Arrasto-me e me melo no esgoto. Ele pisa em cima de minha perna. Não sei se estou louco, mas ele brilha. Estou preso e não consigo levantar-me. _Qual foi, maluco, você quer dinheiro? Ele sorri, abaixa-se e pega uma pedra enorme. Contorço-me de medo e sinto em minha mão, no esgoto, uma lâmina cortante. Enfio-a de vez em sua perna. Ele não mostra dor, mas larga a pedra e se afasta um pouco. Eu me levanto, enfio a faca em sua barriga, ele cai. Não vejo sangue. Ele sorri. Com a pedra enorme nas minhas duas mãos, digo :_Quero ver você sorrir agora – jogo a pedra em sua cabeça. E fiz sem pena. Como diz na lei: defesa pessoal. Continuo não vendo sangue. Chego mais perto e percebo. _MEUS DEUS, É UM ROBÔ! O que mais inventaremos para disfarçar a tão sagrada companheira e vital solidão?! 75
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Cadê essa tal liberdade O sol todos os dias flameja, fica claro, ofuscante, esquenta a cabeça e derrete o juízo. O sol, com a média de 40°, não é fácil pra ninguém. Por mais que você esteja acostumado, não adianta, o sol vai comer o seu senso. Na minha cidade, alguns ônibus são feitos com as janelas fechadas. Isso, as janelas de baixo, onde os passageiros receberiam o vento, são tampadas, são vidros. Ou melhor, as janelas são tampadas como os inventores desse tipo de ônibus. Ou, melhor ainda, são tampadas como os empresários que trazem esses tipos de ônibus para a cidade. Como entra o ar? Pelas janelas de cima. Agora, imagine que isso acontece na cidade cuja média da temperatura é de 40°. Hoje estou em um ônibus como esses. As pessoas têm caras retas e formas convencionais. Ninguém tão diferente quanto as personagens da TV. O que me reconforta um pouco em relação a minha vida, pois é bom beber realidade, mesmo que seja assim, cinza. O motorista, como sempre, anda bem devagar, ele quer cumprir seu horário, pra não ter que fazer voltas a mais no seu percurso. O cobrador joga palavras cruzadas. O vento não é vento, é vapor e, mesmo assim, vem da parte de cima, onde tem a janela. Eu estou suado, parecendo que irei cair na guilhotina. Minha roupa está molhada de suor, minha cabeça dói. Paz: nunca mais senti. Enfim, estou vivendo em uma tarde como todas as outras. Um dos passageiros desce, ele estava na cadeira mais alta, onde dá pra sentir algum tipo de vento, vapor. Saio de minha cadeira. Aposso-me da cadeira alta, do antigo passageiro, na qual entra um pouco de vapor. Sinto vento. Que bom! Uma brisa, uma simples brisa. No horizonte, nuvens. Na minha cara, reta como a dos outros, vento. Na minha boca, sorriso. Nos meus olhos, esperança: É... vem chuva... – resmungo só. Um pingo entra pela janela. Outro pingo entra, desta vez, pinga na minha pele. Outro pingo. Mais outro e outro e... 76
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A mulher, que estava sentada na cadeira abaixo da minha, levanta-se e fecha a janela. Eu a abro, ela muda de lugar. Os outros passageiros fecham as suas janelas altas. Eu, sinceramente, não entendo. Levanto e abro duas janelas em lugares onde não têm ninguém. Um passageiro, com cara de valente, vai até as janelas e as fecha. _Por que que você fechou? _Não quero me molhar. _Mas você não estava sentado aqui, nessas cadeiras. _Não importa. Quando cair a chuva, não quero me molhar. Deixei que o poder do sol entrasse de vez em meu juízo. _Que porra nenhuma, eu quero me molhar! Vocês estão loucos? Um calor desgraçado e vocês fecham as janelas? As pessoas riem. E o cobrador brada: _Quer se molhar? Desça do ônibus. Faminto pela chuva, grito dentro do ônibus: _Vocês são malucos! Abre aí essa porra pra eu sair. Preciso de liberdade, de água, preciso respirar, preciso que minha pele sinta uma vez na vida a liberdade... –todos continuam a rir. O Motorista breca de vez e diz: _Pois desse aí, seu louco, que não tou afim de estresse hoje. Vou até a porta pra descer, a chuva ainda não tinha caído, mas os ventos e o clima nublado fazem meu coração bater mais tranquilo e aliviado. A porta abre. Quando boto o primeiro pé pra descer, o motorista arranca de vez, me desequilibro e caio de corpo inteiro na lama. Todos do ônibus riem. Eu, todo sujo, levanto-me e sinto os pingos multiplicarem-se e tomarem de vez o meu corpo. Sinto, enfim, uma sensação instantânea de liberdade.
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O Tarado É manhã e cedo. Ele desperta e está alterado como sempre. Não como a maioria dos homens que acordam com vontade de fazer xixi. Está excitado. Toda noite tem algum sonho erótico. Às vezes até com homens, travestis, animais, alimentos, etc. Tudo o excita. Como mora só, na cama mesmo se masturba e bota o leite pra fora. Levanta-se cinco e cinquenta da manhã, e uma das primeiras coisas que faz é ir até a janela espiar a vizinha tomar banho. De vez em quando ela se masturba, a diferença é que usa o chuveirinho. Ele, espiando, suando e forçando seu braço esquerdo na intenção da vizinha que está no banho, geme e bota o leite de novo para fora. Goza com gosto! Desta vez porque é um verdadeiro big brother, e big brother serve para gozar. Às vezes, a vizinha percebe que ele está olhando. Ela, nem aí, abre o chuveirinho... Já indo pegar o ônibus, ele sempre sai de casa seis e quarenta para seguir a vizinha. Não troca nenhuma palavra com ela, muito menos chega perto, mas seus olhos a seguem e a boca baba. Ele a ama desesperadamente e secretamente. Todas as manhãs a segue. Em alguns dias, em que ela se atrasa, ele a espera na esquina para lhe seguir e pensa: “Lá vai ela, rebolando como sempre, deixando meu corpo afetado e meu coração desejoso”. Ela percebe todos os movimentos dele e rebola... Ele uma vez conseguiu entrar na casa dela. Saiu da janela no primeiro andar de sua casa, desceu pelo muro que separa ambas as casas, chegou ao quintal e viu no varal uma calcinha. Já de pau duro com a visão da lingerie, pegou a veste de seda e, rapidamente, voltou pelo mesmo caminho. Cheirou tanto aquela calcinha suja que fez até um poema para a sua vizinha: “Haicai erótico Tu és linda Linda és tu Queria saber a cor do seu cu.” 78
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O poder que a vizinha tinha acabava exatamente na hora em que ele entrava no ônibus. “Meu deus! Quanta gostosa reunida em um coletivo!”: comemora. Ele tinha condições de comprar um carro, afinal, morava só e não tinha nada com o que gastar além das coisas básicas para se viver: sua internet e algumas revistas de pornografia. Em outro tempo, teve até uma gatinha de raça em casa, mas sua mania de enfiar o dedo no cu da gata a fez fugir. No ônibus, já cheio de pessoas, ele, de pau duro e sem cueca, faz questão de passar esfregando-se nas meninas, sentindo o cheiro de cada uma. Em alguns homens também. Sobretudo naqueles mais viris. De óculos escuro, não dispensa observar um decote. Nem velha ele libera. Nelas, roça com gosto. Algumas até gostam. E, alterado, aproveita para encostar seu pau no braço das meninas que sentam na cadeira do corredor. Aliás, não apenas roça, como encosta e, às vezes, tenta puxar assunto. Certa vez, deixou cair no chão um pedaço de papel com o poema que fez para a vizinha. Uma senhora pegou o pedaço de papel e leu. Olhou para ele e sorriu. Ele desceu do ônibus no ponto dela e, em plena sete e meia da manhã, num terreno baldio do centro da cidade, levantou a saia da senhora, beijou sua boca e meteu a mão, a boca, os sentidos, a libido, enterrou nos orifícios. No trabalho, ele é um dos primeiros a chegar. A secretária o odeia. _Bom dia, senhor Alfonso! – diz a secretária para ele. _Bom dia, beleza de minha manhã! – ele responde, tocando com a mão suja de pica o braço dela e arrastando a mão até sua nuca. Ela pensa: “Odeio esse tarado com cheiro de sebo na mão. Ainda vou mandar ele meter essa mão...” Ele trabalha em uma sala, sozinho. Durante o seu dia, não tem muito o que fazer, a não ser coisas rotineiras. _O senhor tem que terminar os relatórios até cinco da tarde, senhor Alfonso! – diz a sua bela secretária. _Não quer me ajudar, linda? _Não, senhor. Ainda tenho dois patrões para atender aqui, além do senhor. 79
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Ela pensa: “Tarado brocha!” Ele passa o dia entre sites de putaria e relatórios. Seis da tarde, Alfonso sai do trabalho com um sorriso do tamanho de sua sede por sexo. Vai pegar um dos motivos que o deixa feliz em sua rotina: o ônibus. Na entrada já fica ouriçado. São as pernas das estudantes de sétima série voltando da aula de educação física. Mas, cansado, ele se senta, sem tirar o olho maníaco daquelas pernas. Ele percebe que todas usam calcinhas curtinhas e enfiadas. Apertando a mão entre as próprias pernas, pensa: “Em casa vou gozar gostoso por todas”. Na frente dele, senta um velho. Tem uma ferida horrível no redemoinho central da cabeça. Ele sente nojo, e uma falta de tesão tremenda o ataca. Ele tenta se concentrar de novo nas meninas, mas não consegue, pois está enjoado com a imagem da ferida. De repente, começa a olhar a ferida e não consegue mais parar. Sente uma ânsia de vômito. O ônibus está cheio e um calor desgraçado aflige todos dentro do coletivo. Engarrafamento, cheiros estranhos, calor, muito barulho, a ferida podre na cabeça do velho, a ânsia no estômago e BUM! QUASE vomita! Ele segura a ânsia e observa a ferida do velho: vê que a pele avermelhada e machucada ao redor tinha um aspecto nojento, mas era pele. Os cabelos brancos ao redor até que não eram tão feios: esses cabelos, se fossem em outro lugar, ficariam lindos. De repente eu pegue uma coroa com mais 70 – ele filosofa. Alfonso, observando melhor ainda, já sem a ânsia de vômito, vê um cascão mais avermelhado e no centro da ferida. Ele pensa: até que, olhando direito, essa feridinha, com esse olhinho vermelhinho no meio, está parecendo uma bucetinha. E pronto! Ele cai de língua na cabeça do velho.
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A preciosa dele Depois de andar muitos dias seguidos, léguas no sol escaldante e alucinógeno de minha cidade, descobri com um colega de trabalho que tem um ponto de ônibus a vinte metros de minha casa, e que passa o ônibus que me leva ao trabalho. “Graças! Cansei dessa merda de sol”, comemorei. Mas esse novo ônibus que eu pegava, e me deixava mais perto do meu trabalho, sempre estava cheio. Do momento em que entrava, até o momento em que eu descia. Pergunto-me: aonde vão essas pessoas, e de onde vinham? Algumas delas, que eu via no ônibus, já faziam parte de meu ciclo de amigos. Mesmo que calados e olhares, todos, de alguma forma, melhoravam ou pioravam o meu dia. Ou seja, sentimentos assim sempre vêm de pessoas que se julgam meus amigos. O que mais me intrigava era uma passageira, que sempre entrava no determinado lugar. Um lugar que não tinha nenhum ponto de ônibus. Ela descia sempre no mesmo lugar, outro que também não tinha e não era ponto de ônibus. O motorista para. Algumas pessoas nem percebem, estão envolvidas demais no calor, outras pessoas, como eu, incomodam-se com esse ato do motorista, outros não ligam. Há quem goste, e há também quem nunca passou por isso. Enfim, o motorista parava, ela, a passageira privilegiada, ficava parada em frente à porta por alguns segundos e entrava. A dona, que aparentava ter uns 40 anos, pagava a passagem, arranjava um lugar pra se equilibrar em pé, de vez em quando sorria sozinha. Um certo tempo depois, tempo bastante para eu a esquecer e perder meu tempo com outros pensamentos, ela puxava a cordinha e, como de imediato, o motorista parava. É aquela história, parava em um lugar que não era ponto de ônibus. Certo dia, fiquei ao lado do cobrador, espremido entre um homem que fedia e uma menina bonita e casada. Fiquei esperando o motorista parar e a mulher entrar, e entender melhor essa relação entre eles. Quando, de repente... O motorista para. Eu observo. Ela aparece na porta, 81
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levanta sua perna esquerda, apoiando-a na escadinha de entrada do ônibus. Ela sorri de leve, muito de leve, para o motorista e entra. Não percebi o porquê de tanta cortesia dele com ela. Depois de algumas tentativas, sempre espremido pelos tipos estranhos ou apaixonantes do ônibus, percebi que só entenderia aquela amizade entre os dois observando mais de perto. Exatamente às 13:20h, estava eu no ponto, esperando o ônibus. E lá ele vem no horizonte, cruzando a praça na lateral, entre as casas e vapores do asfalto. Como sempre lotado. Entro e não passo a roleta, que é na frente do ônibus, nem pago minha passagem, fico parado, aceitando o congestionamento de pessoas. O motorista para, a porta abre-se. Ela está parada, olha pra ele, levanta sua perna, eu vejo! Em poucos segundos, eu vi! E é linda. “Que buceta linda” – penso. Ela, a passageira, mostra a preciosa para o motorista sempre parar no lugar que ela o espera e no lugar que ela quer descer. Incrível! Será que eles têm alguma relação fora daqui. Se tiver, também não me interessa, quero é ver essa cena de novo. No outro dia, já mais encostado atrás da cadeira do motorista, olho e me altero. Perfeito! Hoje ela veio raspada, sem nada. Ontem, ela tinha um bigode. E isso se repetiu por algumas semanas. Eu sempre ali na frente, nem sempre no mesmo lugar, mas sempre observando bem o que era a “salva” do dia. O que amenizava o sol. O que mais me impressionava era a criatividade dela. Algumas vezes a preciosa estava com alguma coisa penetrada. Uma vez, vi com um vibrador, outra vez, vi com bolinhas que pareciam um terço, fiquei alterado imaginando onde estava a cruz. Mas a vez que não esqueço foi quando ela estava com uma calcinha que na frente tinha um tipo de fio dental, e os lábios, aqueles lindos lábios, comiam a calcinha. Isso mesmo, comiam com carinho, pompa e paixão. Mas, no dia em que ela repetiu esse “enfeite” da calcinha fio dental, eu percebi que ela também olhou pra mim. O motorista para. Ela eleva as pernas, olha pra ele e se apoia, como se estivesse em nuvens: anja. E quando 82
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meus olhos sorriam vendo a calcinha comida pela gulosa, ela olhou para mim. Fiquei um pouco envergonhado, mas gostei de olhar em seus olhos. E assim, por algumas semanas, tornou a se repetir esse acontecimento. O motorista para. Ela olha e se mostra para ele. Eu me acabo, eu quero. E, no fim, ela olha para mim, mostrando que também estava mostrando para mim. Eu, já sem vergonha nenhuma, descarado no prazer alheio, fiquei perguntando-me se o motorista já não percebeu essa situação. Se eu estivesse no lugar dele, me incomodaria. Ela mostrava sempre para ele, só para ele. De repente, aparece um filho da puta, como eu, de olho gordo e de pau duro pra cima da preciosa dele. Eu ficaria puto. Não sei por que ele ainda não fez nada. Fico imaginando também como ela acorda de manhã, qual o cheiro que fica na preciosa, assim bem cedinho. Que calcinha ela veste pra ir trabalhar no turno da manhã. Por que nunca peguei um ônibus pela manhã no mesmo horário dela? Será que ela não trabalha pela manhã? Vou chegar um dia atrasado no trabalho para ver se a vejo. Aliás, não. Já tenho minha parcela à tarde, para que querer mais! Será que ela troca de calcinha para ir trabalhar, à tarde? Será que na bolsa dela tem outra calcinha? Ou será que trabalha sem calcinha? Quem será essa mulher? O motorista para. Ela, deusa, exibe com todo carinho do mundo para nós dois, eu sinto isso. Alguns segundos depois, ela olha diretamente para mim. Ela passa do meu lado, seu cheiro é divino. E some no meio da multidão do ônibus. Pela primeira vez ela olhou apenas para mim. No ponto, em que sempre ela puxava a cordinha, ele, o motorista, não para. Dou-me conta que ele realmente percebeu e se enfezou. Alguns metros depois, corretamente onde é o ponto, ele para. Eu me assusto: “ele percebeu!”- reflito e continuo: “Tinha que ser na cara para ele perceber”. No outro dia, saí de casa e fui em direção ao ponto, parei debaixo do sol. Hoje, ele não está me derretendo como em outros dias. É um bom sinal pra eu desistir dessa alegria que caiu do céu. Vou sentir falta. Mas, enfim, amar é bom quando não prejudica ninguém. Voltei a caminhar léguas até o antigo ponto de ônibus. 83
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Amores e Acasos Amizade Bruno foi recebido pelo amigo de infância no aeroporto. Passaram a tarde lembrando-se dos velhos tempos. É uma casa grande, porém com dois quartos apenas. Ana está chegando do trabalho daqui a pouco, vamos preparar um café para recebê-la. Disse o amigo de Bruno, que está ansioso pra conhecer a mulher muito bem falada e que casou com seu amigo. Ela chega, uma morena alta, olhos castanhos, de vestido com um leve decote, tem uma voz firme e suave, uma mulher mulher. Além de ter um belo par de coxas, o que Bruno viu depois que Ana botou uma roupa para ficar mais à vontade em casa. A noite foi muito tranquila, falaram mais um pouco do passado, mas dessa vez Bruno demonstrou muito interesse no trabalho da Ana. Ela era inteligente. Tinha um olhar meigo, invasor, e um cheiro que, mesmo a distância, chegava ao olfato de Bruno. Já mais tarde da noite, Bruno fechou-se no quarto de hóspedes, que tinha a parede colada com o quarto do seu amigo de infância e de Ana. Durante a noite, não conseguiu dormir. Pensou em Ana na maior parte do tempo. Tocou-se duas vezes, uma pensando em Ana, a outra para sentir sono. Ficou mais agitado. Seria muito bom dormir agora, amanhã tenho que viajar cedo. Ele pensa. Bruno começa a ouvir um barulho no quarto do casal de amigos, ao lado. Um som de tapa. Um outro som, era a voz de Ana chamando o seu amigo pelo nome. Um chamado inflamado, choroso, pedinte. Ana, uma mulher amada, faz outros ruídos. Bruno, atento, imaginativo, passa a noite em claro e só consegue dormir quando já está para amanhecer. De lá, Bruno saiu com o peito apertado de desejo por Ana, a mulher de seu amigo de infância, e com uma doce lembrança de uma infância que não volta mais, mas que renasce quando a paixão bate à porta.
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A nuca No ônibus, a luz do entardecer ameniza o dia péssimo no trabalho. As caras e bocas daqui são como matizes que compõem o ambiente solitário e rotineiro. Todos os dias a mesma coisa. O ônibus atrasa 15 minutos, ou eu que atraso e perco o horário? Pois bem, quando a condução popular chega, já está cheio de cheiros e apertos. Paro no meio do corredor, entre uma senhora cheia de sacolas (ninguém tem coragem de ajudá-la) e um homem, alto, tão alto quanto uma girafa, e suado, ele fede. Toda vez que fico ao lado de pessoas que fedem, tento pensar em outras coisas bobas para esquecer o cheiro. Mas dessa vez não dá, o cheiro é de merda mesmo, não sei como ele se aguenta dentro desse corpo que parece um vaso sanitário. O ônibus para, o gigante desce, pessoas amontoadas por trás de mim tomam o lugar do homem que estava ao meu lado. O cheiro continua. Eu percebo que posso ajudar a velha, não estou carregando nada, mas estou segurando-me, e segurando meu mau humor. Deixo para que apareça um cristão que a ajude. Não estou com paciência. E dentro do ônibus sigo nesse empurra-empurra e poucas falas, poucos olhares nos olhos, pouca interação, mesmo colados feitos carniça no ralo de pias de frigoríficos, não nos falamos e não temos interesse em falar. Eu não tenho interesse em falar com nenhum daqui. O ônibus para novamente, o adolescente que está sentado em minha frente levanta-se, deve ir descer na próxima parada, eu me sento. A velha olha-me com uma cara de chateação. A senhora quer sentar? Eu lhe pergunto. Ela não diz nada. Sinto-me ofendido. É nisso que dá, antes sentia pena da senhora, agora quero que a velha se lasque, quem mandou ser mal educada. À minha frente, uma menina. Daqui, não sinto seu cheiro, mas pela maciez da pele e pela forma que seus cabelos caem sobre sua nuca, deslizando-se, parece ser uma menina cheirosa. Ela olha de lado a paisagem no trânsito engarrafado e medonho. Sua boca é uma lástima favorável à situação desfavorável, se é que você entende. Pego um papel e uma caneta, esse pescoço inspirou-me para escrever um 85
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poema: “se entre o nada, minha boca e sua nuca não existisse a norma culta, eu te faria minha fartura”: escrevo com muitos borrões. Depois de alguns minutos sonhando com a dona daquele pescoço, de todas as formas e atos, também sonhando com os olhos, o verdadeiro cheiro, o tom de voz, o nome da dona da nuca, etc. Ela se levanta e, sem olhar para trás, puxa a cordinha do ônibus. Já com o ônibus mais vazio, sai pelo corredor e desce no ponto. Não vi seu rosto, mas nunca esquecerei seu pescoço. Já mais feliz, com o detalhe que suavizou a minha rotina em meu pensamento, lá fui caminhando, lá fui delirando minhas paixões diárias. Nesse momento, o ônibus tornava-se um passado em amnésia. O casal _Alô? Já era a quinta vez que Lurdes ligava para a Secretaria de Planejamento de sua cidade. O secretário que atendia “tem uma voz que me faz estremecer”, ela dizia. A paixão começou quando ela estava fazendo um trabalho para a faculdade e teve que ligar para lá por querer informações. Ele mesmo, a voz, atendeu Lurdes. Ela tentou anotar tudo, mas, no meio do caminho, não tinha mais cabeça, a voz entrava pelos seus tímpanos como uma esperança de que o amor dito nas novelas existia. Ele tem uma voz de príncipe. Às vezes, o seu alô parece que vem de um Deus. Ela falava a suas amigas sobre a voz. _Por que você não fala que quer conhecê-lo? _Ele não vai gostar de mim. Eu ainda consigo me contentar com os meus telefonemas em que fico muda, só ouvindo o seu “alô”. Lurdes é uma menina muito apaixonada pelas novelas e casos de amor do cinema. Tem certeza que ainda existem príncipes e que o seu está guardado a sua espera. E, dessa vez, a voz a pegou de vez. Quando aquela voz entrava, através da linha telefônica, nela, Lurdes perdia o controle sobre as batidas de seu coração e suspirava, imaginava, sonhava com 86
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o casamento que sempre sonhou, na igreja onde seus pais haviam casado. No casamento tem que ter rosas, um bufê sortido, convidados especiais, incluindo todos os meus amigos da época do colégio, tem que ter tapete vermelho, alguém tocando no piano quando a noiva entrar e ainda crianças carregando a calda do meu lindo e único vestido de noiva. Vou mandar fazer. Ela afirmava às amigas, já pensando no momento de criar coragem e falar finalmente com a voz. Depois de mais um dia de ligações, à noite, Lurdes é convidada para ir jantar na casa de uma amiga, era o noivado dela. Ela se arrumou toda e saiu de casa orgulhosa, com a certeza de que tinha achado o seu amor, e feliz pela amiga. A noite foi agradável e, antes do fim da festa, a amiga de Lurdes a chamou e disse: _Lurdes, esse é meu primo Antônio. Os dois se conheceram. Lurdes ficou muito tímida, e Antônio gostou do jeito meigo e tímido dela. Ele pergunta à Lurdes por que ela agiu daquela forma, ficando vermelha e saindo de fininho. Lurdes ficava rindo, sem conseguir falar. Antônio diz que Lurdes é linda e que gostaria de conhecê-la melhor. Lurdes aceita o convite e lhe pergunta: _Onde você trabalha? _Numa empresa de materiais esportivos. _Tem certeza que não é numa secretaria da prefeitura? Ele diz que não. Lurdes não se importa. Achou outra voz igual a que se apaixonou e imaginou. Depois de algum tempo, Lurdes, já com olhos brilhando e apaixonada, diz a Antônio: _Você é do jeito que imaginei. Ele sorri e a beija mais uma vez. Nostalgia Eles cresceram juntos na mesma vila. Quando eram pequenos, quase não se viam. Na adolescência, se amaram. Primeiro amor de ambos. Naquela época, ela escolheu ir para a capital,
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ele decidiu ajudar o pai na roça. Ela se fez profissionalmente e amou muitos. No entanto, estava perto dos 40 e não tinha filhos. Ele casou aos 22, porque engravidou a filha do vizinho da roça onde morava. Teve seis filhos. Aos quarenta, amava a família e fazia questão de não sair das terras herdadas do seu pai. Ela, para variar e aliviar as ideias, ia para a Europa quando era inverno por aqui. Não há nada melhor para a alma que o verão de Paris e as ruas de Mônaco. Ela afirmava às amigas de sua terra natal, que sempre reencontrava quando ia visitar sua família. Ele soube que ela andava pela cidade, mas nunca quis procurá-la. Ela anda de marca, carro importado, parece uma atriz da TV, eu estou careca e gordo, cheio de filhos para cuidar. Não quero problema para minha família e para minha cabeça. Ele afirmava aos amigos. Um dos seus amigos lhe disse: ela continua linda! Ele balançou a cabeça positivamente e disse: disso eu tenho certeza. Beleza como aquela nunca se acaba. Até porque os olhos nunca mudam e a beleza está na alma. Apesar de morar na roça, sempre gostou de ler, era culto. Ela, já mais fashion, adora festivais de cinema internacionais, visita feiras de literatura pelo Brasil e mundo, e sempre volta desses lugares com pacotes de compras. Adora os corredores de vitrines da última moda mundial em Nova York, Sidney, Londres, Dubai, etc. Com 87 anos, ele já não tinha mais a roça. Seus filhos e netos internaram-lhe em uma casa de velhos. Era assim que ele chamava aquele lugar. Ela, depois de dois casamentos frustrados e ainda sem filhos, voltou para a sua terra natal e se internou nesse abrigo para idosos. Lá, pelo menos vou ter companhia. Ela diz, pensando em sair da solidão que é a vida perto dos 90 anos. Na primeira semana, eles se viram, mas não se falaram. Na segunda semana, com atitude dele, pois os olhos dela ainda eram os mesmos, sentou-se ao seu lado no almoço em grupo. _Eu lembro-me de ti. Ela sorriu e não negou também lembrar-se dele. Depois desse dia, tornaram-se companheiros inseparáveis. A melhor hora do dia era quando passeavam pelo jardim de mãos dadas sob as luzes do sol que passavam 88
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pelas brechas das plantas das árvores. Todas as manhãs, ele fazia o café dela. Durante a noite, quando tinham que se separar, falavam de como era bom aquele passado. Um dia, ela descobriu que podia pagar uma quantia a mais para poder dormir com ele. Ele, à antiga, pagou para que isso acontecesse. Agora, todas as noites eles dormem juntos e se deliciam nos cheiros e toques trocados. O amor acontecia ali, enquanto a vida pulsava naquele eterno momento. Depois de alguns meses de reencontro, ele faleceu. Ela, no jardim do abrigo, depois de dois dias, sorria sozinha com o suéter do seu amado, sentindo o cheiro doce na peça de roupa e a nostalgia que batia em seu coração. Apaixonada novamente pela vida, pensava qual seria o próximo destino na Europa. Sonhos enlatados Quando já eram nove horas, a plateia ainda era vaga e desanimada com as atrações da noite dos shows beneficentes. Chico, cantor e compositor independente, ainda iria tocar. Ao lado de sua esposa grávida, sua sogra e sua mãe, ele esperava sentado à mesa do bar. Para ele, oportunidades assim de mostrar suas composições e arte eram quase inexistentes. Nesse momento da noite, com seu violão dentro da velha capa de couro que ele conservava desde adolescência, sapato bico fino, calça jeans dobrada na ponta e camisa quadriculada de botões, como os meninos cult usam hoje em dia, e ainda com gel em seu cabelo e uma vastidão de sonhos conservados como uma sardinha conserva-se enlatada, Chico é chamado pelo apresentador. Calorosas palmas são ouvidas no salão quase que vazio e assobios e gritos de emoção “vai, Chico, cantar pra mim”, era a sua esposa em coro com a sua mãe. A sua sogra mostrava emoção também, mas mais pelo amor à filha. Luzes ambientadas, som, apesar de alguns ruídos, palco livre, microfone sem microfonia, no peito aquele velho e bom bater adiantado e pesado do coração, e, na platéia, as três, sua esposa, mãe e sogra, juntas à sua espera. Tudo pronto, e Chico embala o verso: quando o amor bateu em minha janela, eu criei asas e voei, te transformei em minha borboleta, eu te amei... 89
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As pessoas não prestavam tanta atenção, uns falavam de futebol, outros usavam loló no canto do salão, outros falam no seu I-phone com alguém do outro lado da cidade através de uma tela (modernidade), já outros não perceberam que havia alguém cantando ali em cima. Mas Chico, composto de felicidade, cantava para sua esposa, sua mãe e sua sogra, que vibravam e dançavam sem precisar de nenhum aval para trocarem afetos, paixões, admirações e amor, naquele momento mágico.
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Elis ama Elis desligou a luz e abriu a gaveta do armário da cozinha. Segurou o martelo de chumbo, que amassa a carne para ser assada, e suspirou durante cinco segundos, até largálo. Depois puxou de vez a faca nova de cortar carne, que ela havia comprado na semana passada, pois a antiga ela jogou fora. No quarto, rapidamente, botou a faca debaixo da cama e se deitou, esperando seu marido Mário, que estava terminando o banho. _Você vai dormir nu? – pergunta Elis. _Sim, meu amor. _É, meu bem, é bom mesmo, está muito quente. Mário deita-se na cama, faz alguns carinhos em sua esposa e se vira para dormir. Rapidamente ele vai dormir, como sempre. Pensa Elis, aguardando ansiosa que Mário durma. Depois de trinta minutos Mário começa a dar sinais de sono quase profundo. Elis, com o olhar estático, respira fundo. Devagar, pega a faca escondida debaixo da cama, bem devagar, levanta a faca e, já com os punhos fechados com força no cabo da faca, ela... Mário levanta-se de vez e vai ao banheiro - assustando Elis, que volta a se deitar e esconder a faca rapidamente. _O que houve, amor? _Vou mijar – Mário, sonolento, responde. Na volta do banheiro, no quarto, Mário abre a gaveta do armário, veste um pijama bem antigo e que Elis adora, ele volta pra cama, deita-se e rapidamente dorme. Ele sabe que eu adoro esse pijama, nele fica lindo. Ela pensa, e começa a olhar o seu marido. Pela sexta vez desiste de matá-lo. Ela esconde novamente a faca debaixo da cama, encosta um pouco em Mário e dorme. Três horas depois, Mário levanta-se, vai ao banheiro e volta com a antiga faca de cortar carnes, que ele falou para Elis jogar fora e comprar uma nova. Mário deita-se bem devagar ao lado de Elis, com a intenção de não acordar a esposa, e, com os 91
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os punhos bem apertados, segurando no cabo da faca, enfia com força e sem pudor nas costas de Elis a ponta enferrujada da faca antiga.
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Rio Parnaíba O rio Parnaíba segue. A corrente de água vai rápida. A poluição da cidade se faz sentida em plásticos. Mulheres levam e lavam roupas, meninos nus e meninas peladas correm pela beira do rio, eles riem. Adolescentes tecem olhares para adolescentes. Na ponta da beira do rio, surge dona Rita. Dona Rita tem 29 anos e mora na beira do rio Parnaíba. Ela tem cabelos lisos negros, olhos grandes arredondados, pernas grossas, canelas finas e raspadas, coxas douradas, rosto de inocência. Usa sandália de couro e tem cintura fina esculpida. Ela mora com o marido e dois filhos e é bem cuidadosa com a beleza. De noite os vizinhos se chocam com o amor que vem do seu quarto. Por esse motivo, ela lava a roupa afastada das outras mulheres. E pelo fato de atrair todos os olhares de admiração e desejo, ela atrai inveja. Pro bem ou pro mal, prefere ficar distante das outras lavadeiras. Já insistiu em estar junto, mas elas a ignoram e a olham com desprezo. Com um pouco de fome, vai Rita trabalhando como dona de casa, fazendo comida (quando tem), cuidando dos filhos, da limpeza da casa, ajudando o marido a catar lixo na rua, ajudando o marido a aguentar a realidade fadada da vida, contanto historinhas de fadas e duendes de outro mundo para os seus filhos, com o peso do olho dos outros nas costas, com o peso do olho dos outros na bunda, nas coxas, vai Rita com o peso das roupas na cabeça, com calos na mão, com a boca carnuda, com a vida torta como a sua assinatura. Lá vai lavar as roupas na beira do rio, mulher de fibra, mãe assídua, com jornada tripla. Multiplicada a outros fatores e motores presentes nela. Além de viver abaixo da linha da pobreza, Rita, com a saia acima do joelho, até o meio de suas coxas, agacha-se e esfrega uma roupa noutra. “Lavar, lavar, lavar, pra cuidar da casa, da família...” – cantam as outras lavadeiras, longe de Rita. O sol brilha, uma brisa assovia a música. Hoje é quarta-feira. Hoje é dia de Rita. O rio segue e segue belo. Muito mato ao redor e, ao longe, o som das outras lavadeiras cantando. Um 93
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som estranho no meio do rio. “Oxe, diacho, o que foi isso?”. Rita pensa, espreita e volta ao seu ofício. As lavadeiras cantam, lavam. A brisa canta, uma sensação de paz domina o lugar, um passarinho passa voando, parecia fugir, mas voava lindamente. Uma flor desabrocha, bem ao lado de Rita, ela não percebe esse fato. Está distraída, concentrada, pensativa (pensando em coisas que eu nunca saberei), linda, com fome, cansada, preocupada com os filhos e com as criancinhas, que viu ontem na TV, morrendo de fome em algum país africano. Coxas douradas molhadas com a água do rio, muito sabão de coco, muita vontade de cortar o cabelo, vontade de estudar, vontade de viver. É Rita levando, lavando, sendo lavada... Em frente à Rita, uma sombra se forma debaixo d'água. Quando ela percebe, e vai de olho na sombra, um homem branco e nu sai do rio com os braços abertos. Rita, assustada, tenta virar-se e correr, mas ele está perto demais e a puxa pelos pés. Ela cai e bate a cabeça no chão. Debatendo-se, gritando, tenta levantar-se. O agressor, todo molhado, babando e com olhos vermelhos, agarra os cabelos e bate duas vezes o rosto dela no chão. Ela sangra e grita. O homem nu bate pela terceira vez a sua cabeça. Ela já não grita mais, chora. Ele a puxa pelo cabelo da nuca, puxa a vítima para dentro d'água. Antes de desaparecerem no rio, ela grita novamente, uma das lavadeiras ouve seus gritos e entoa o canto das outras lavadeiras para que o som fique mais alto. Rita afunda na água e desaparece. No rio Parnaíba, bolas de respiração flutuam e somem. Rita segue, o rio segue, a vida segue, e é levada, lavada, esquecida.
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Caixão de luxo João, conhecido como “Boca”. João, conhecido como “Toquinho”. João, conhecido como “Maneco”. João, conhecido como “Negão”. João, conhecido como “Pepe”. João, conhecido como “Popó”. João, conhecido como “Cinquenta e um”. João, conhecido como “Jonny da Pedinha”. João, conhecido como homem trabalhador. João, conhecido como morta-fome. João, conhecido como pai de família desempregado e fodido. João, conhecido como mendigo. João, conhecido como “Doutor João Astrobaldo Alfonso Nogueira Vieira de Sá Júnior”, deputado federal e juiz de uma comarca de Teresina. Bom, esse último “João” será noticiado no jornal como morto. Sim, algum dia. Provavelmente na parte de celebridades que deixam saudade para o POVO. Esse João, o político e homem da lei, tem carro importado e não anda pelos confins da estação velha de Teresina. Aquela perto do Cabral, na Avenida Miguel Rosa. O campo dessa estação é um reduto de fumadores de crack, ou era, até o exército tomar conta daquela área. Mas será que acabou? O exército não está livre de ter fumadores de crack. Passei por essa estação outro dia, por fora. Nesse dia, um cara colocou a faca no pescoço da minha esposa. Não aconteceu nada, felizmente. Mas para o João “Boca” aconteceu, e na estação velha. Ele morreu. Ele estava naqueles dias: magro, cheio de feridas pelo corpo, fumando crack para perder a fome e pensando em sua mãe. O João, conhecido como “Boca”, foi-se além. O mataram! E ninguém sabe por que fizeram isso e nem querem saber. Já o João Astrobaldo, o João importante da história, neste momento, enquanto a morte não chega, está em seu lindo escritório, com um banheiro limpo e com restos de comida no prato, desperdiçado do almoço: um pedaço de frango mordido, mais de uma colher de arroz, bife acebolado mordido ao meio, pedaços de alcaparra e alface, e uma colher de feijão. _Aline, mande pedir um McDonald's para mim. – pede o João Astrobaldo pela secretária eletrônica para a sua secretária. Provavelmente essa comida vai parar em algum lixo da 95
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cidade e será catada por algum outro João, o morta-fome. O João, o “Boca”, está dentro de um caixão de madeira de quinta categoria, com seis furos no corpo, preparando a sua pele para os vermes. Este morreu de graça. Graças a Deus, acabou seu sofrimento. Vá em paz, João. A partir de hoje, você não vai mais precisar passar fome nem chorar a melancolia da vida desgraçada que é oferecida a você por João Astrobaldo e seus comparsas brasileiros. Enquanto isso, João Astrobaldo vai ao banheiro do seu gabinete e bota tudo pra fora, com gosto e sem dor na consciência. Tranquilo, ele se limpa com o papel higiênico de sabor morango e textura delicada, que é para preservar o seu cu bem nascido. Por um breve momento, João Astrobaldo, em seu trono, sorri. E pensa: “se eu não botar no cu deles, eles botam no meu. Por isso, roubo mesmo!”. Ele sorri copiosamente. Ele lembra que, aqui no Brasil, os políticos e juízes corruptos não têm o mesmo fim que outro João, o “João chinês”. Muito pelo contrário, o “João do voto” daqui do Brasil tem sempre um final feliz e eterno, como nos contos de fada. Já o João, o “Boca”, em seu caixão de madeira pago com mais um empréstimo do banco, longe de todo barulho do mundo, reflete: “sou a favor de que corruptos levem tiros na cabeça, de escopeta. Um na cabeça e outro na cara. Para se certificar de que ele está morto e será passado”. Pena o Brasil não ser como a China. Lá, quando o João chinês rouba de dentro de seu gabinete e é pego, esse João ladrão corrupto da China, e também filho da puta como o João Astrobaldo, paga a bala do único furo que vai levar para o seu caixão de luxo. Se um dia o Brasil adotar isso, sou a favor do tiro ser na cara. E que sejam dois.
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Ciclo Evaristo, dentro do carro, passa pela rua. Ele usa terno, gravata, colarinho, típico em alguns centros, em outros, mais pobres, não. Sob forte calor, o carro de Evaristo é estacionado. Imediatamente o motorista sai do carro e abre a porta de trás. Evaristo sai. Antes de entrar no prédio em que trabalha, com ar condicionado central, um mendigo o aborda: _Me dá um trocado, doutor? Evaristo olha, estranhando. Sente nojo. O cheiro dele é horrível. Ele pensa. _Tenho não, meu amigo. Estou indo trabalhar. Por que você não vai atrás de emprego também? Talvez ele tenha tido um dia ruim com a mulher em casa. Pensa o mendigo, perdoando Evaristo. À noite, o mesmo mendigo que passou o dia implorando ajuda, cheira cola em uma das esquinas escuras do centro. Quanto tem, fuma crack na lata. _Fumo na cara de quem passa. Quando os barãozinho aparecem por aqui, ou os drogados, qualquer um desses viciados em pó, perguntando pra mim onde tem, faço o avião e cheiro também. Maconha me faz dormir. O bom mesmo é a cola – diz sorridente a um amigo que compartilha o saco de cola. Andando na rua, três putas: um traveco, uma gorda e uma outra. Puta. _Suas putas de merda! – grita o mendigo, com nojo das três que vendem o corpo. _Vai tomar no cu. Seus viados. Quem comanda esta rua somos nós. Cuidado, seus drogados de merda! – elas os ameaçam em coro. Elas seguiram à frente, o mendigo já mudava de assunto: _A cola tá acabando, mas ainda tem pinga. _Porra! A mais gostosa era o traveco – constata seu companheiro de noite, sombra e calçada. Duas horas mais tarde, restavam: a gorda, que já havia feito dois programas, chupando. Ou seja, ainda precisava de mais; e o traveco, que já tinha saído com um cliente antigo, queria mais, para ter o dinheiro certo da confecção de sua 97
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fantasia da escola de samba para o carnaval. _Porra, bicha! Os serviços tão fraco hoje. _Ainda são três, Gorda. Temos até umas cinco e meia aqui na esquina. E relaxa, que fiz um trabalho e botei na encruzilhada de lá de onde moro pra conseguir o dinheiro pra minha fantasia. Ou seja, fica aqui putando comigo que aparece. Cinco minutos depois, um carro vem devagar pela rua. Uma Land Rover. _Quanto é a noite com as duas? _Depende do que você quer. _Quero tudo das duas. _R$ 200 você tem nós duas inteiras. No motel, como é de praxe, a gorda fechou os olhos e deixou o cliente dá-lhe com força. Gemeu um pouco, fingindo, um pouco se machucando. Na vez do traveco, o cliente quem ficou de quatro. A gorda, de longe, olhando, ficou com nojo. Do cliente e da situação. Ele pedia para o traveco apertar seus ovos como se fosse arrancá-los. A gorda sentiu pena do cliente, com a dor que ele demonstrava, mesmo que para o cliente a dor fosse prazer. A gorda achava graça quando o traveco metia com força por trás do cliente, olhava para o olho do traveco e soltava aquele sorriso de canto. Depois de alguns minutos, o cliente saiu do banheiro e disse: _Dou mais cem para vocês se comerem aí agora. _Porra é essa... _Quero ver. Mais R$ 150. Topa? A gorda e o traveco se comeram. A gorda com nojo, o traveco com nojo. Mas, com estímulos e como boas trabalhadoras, comeram-se. No outro dia, o cliente acordou e sua esposa já havia saído da cama, como era costume dela acordar cedo todo domingo. Dessa vez, ele sabia que isso aconteceu por causa da briga entre eles no dia anterior. Ela deve estar com nojo de mim. O cliente pensou sobre sua mulher. O cliente, agora no papel de marido, vai ao banheiro. Fica 30 minutos na privada. Lê jornais e revistas. É um homem inteirado do mundo. Fuma uns cigarros em seu banheiro. 98
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Outro hábito que sua esposa já não aguenta mais. Toma um ótimo café da manhã. Vê a sua linda filha arrumada para ir à faculdade. _Filha, eu te levo hoje. Eles vão juntos no carro. Pai orgulhoso, filha feliz. Principalmente com seu namorado. _Pai, eu não disse pra você que o Arnaldinho seria um ótimo estagiário de gabinete. _É filha. Verdade – ele a responde com um sorriso amarelo, a fim de não desagradar a filha. Mais tarde, no trabalho, o cliente, agora chefe, despacha minutas, atas, assina projetos, atende telefones e convive com o seu genro. Um bom filho da puta nojento. O cliente pensa sobre seu genro. _À noite, Fani vai estar lá, não é, doutor? _Vai sim – sempre mantendo uma imagem, o cliente chefe responde ao genro. À noite, na festa, o cliente, agora anfitrião, observa seu genro e ouve os comentários sobre ele, feito por sua mulher a uma amiga. _Meu genro é lindo. Inteligente. Sensível com as mulheres. Gosta de trabalhar. E já está perto de se formar. Vai ser contratado pelo meu marido. Ela solta um sorriso e continua – e o melhor de tudo, Arnaldinho faz a Fani feliz. A minha princesa. Ele é um bom filho da puta, que come minha filha e ainda fica com olhares sinuosos nas curvas e entradas do vestido de minha mulher. Tenho nojo desse moleque filho da puta – pensa o cliente. Às três da manhã, depois da festa na casa de seus sogros, Arnaldinho chega em casa. Seu pai o pergunta: _Filho, tava onde até esse horário? _Você já tá bebendo de novo, pai? _Isso não interessa. O que interessa aqui é você que saiu sem me avisar. _Isso interessa, sim. Porque eu te avisei aonde ia e você já bebeu tanto que nem lembra mais. _Como é que é?! Você faz o que quer de sua vida, eu não falo 99
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nada, mas eu bebo dois goles e você fica me tratando dessa forma, cheio de razão? _Você realmente não faz nada desde que minha mãe morreu. Já eu, trabalho. Aliás, você só bebe feito um condenado, fuma e dá essas aulas de violão pra esses playboys. _Meu amigo, a música é tudo em certas vidas. Na minha, pelo menos, é... _Que nada! Você deveria arranjar um emprego de verdade pra ajudar mais na renda da casa, pai. _Olhe, seu filho da puta... – o pai de Arnaldinho, gritando, é interrompido por ele. _Filho da puta, não. Puta aqui é você. Um viciado que não consegue ver que seu filho já é um homem, sustenta a porra dessa casa. Arnaldinho dá as costas e vai para o quarto. _Filho, não me dê as costas. Volte aqui pra nós conversarmos. Arnaldinho para, olha para trás e fala: _É como minha mãe falava: se arte, violão, música e falar alto te ajudasse em alguma coisa, você não seria mais esse 'você'. E, quer saber, eu sinto pena e nojo de você. Arnaldinho entra para o quarto. No outro dia, o pai de Arnaldinho está dando aula para um filho de um colarinho branco. Um dos 'fodão' da cidade. _Porra, cara. Tou com nojo desses capitalistas, porcos consumidores. _Nem me fale, Leozim. Meu filho está se tornando um desses. Está trabalhando com um pica grossa aí da câmera e namorando a filha dele. Se achando. Todo dia enche meu saco. É pior que a mãe dele. _Meu pai é assim também. Um juiz. Que quer me forçar a ser igual a ele. Tou cansado dessa porra também. Me enojando de tudo. Tou com nojo das pessoas, das ruas, das TVs, dos professores da faculdade, das patricinhas... quer dizer, quando elas querem me dar, eu as amo. O pai de Arnaldinho e Leozim riem juntos. Ao fim da aula: _Porra! Hoje a aula foi maneira, hein, cara? _Pois é, Leozim, quando é que você me paga? Eu cobro uma 100
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mixaria e você ainda fica nessa, atrasando! _Meu pai ainda não me deu a mesada da semana. _Hoje já é quarta, cara, e nada de mesada. E esse carro aí fora com o tanque cheio... Eu tou ligado que o tanque tá cheio, Leozim. E tou ligado que você tá me enrolando. _Relaxe, professor. Quem enche esse tanque é minha mãe, e são só três aulas de atraso. Próxima aula, te trago um conhaque e sua grana, ok? _Aí você falou minha linguagem. Leozim entra em seu carro e sai. Vai, viado playboy. Sinto nojo desse guri drogado – pensa o pai de Arnaldinho sobre seu aluno, mas a aula para ele é uma das que dão mais renda para o pai de Arnaldinho. Já pelo centro, Leozim procura um mendigo que sempre consegue as drogas. Quando ele vê o mendigo, pede pó. _Aqui tem não, brother. Mas posso fazer um “corre” atrás. Fica parado aí, ou melhor, se quiser, pode dar uns tapinhas aqui na pedra com meu comparsa. Mas aí você dá uns dez reais e fuma com ele. Tá afim? _E a polícia, porra? _Que nada! Tá tudo dominado, amigo. Os homi aqui do centro gosta é dos real. Relaxe. Leozim desce do carro e dá uns tragos na latinha de cerveja, preparada para o consumo de crack. _Tem cola também? Tome mais dez, quero cola – o amigo do mendigo ri e libera o saco com o ouro dos sapateiros. Vinte minutos depois, o mendigo volta com as três petecas. Eles ainda fumam mais uma pedra e Leozim ganha, como cortesia da casa, mais um pouco do prazer de cheirar o ouro em cola. Às 7 da noite, Leozim entra em casa. Seu pai está na sala. _Leonardo Travanos Silvo, onde você estava? Passei o dia te ligando e você não me atendeu, tava preocupado. _Evaristo... _Que Evaristo, meu filho. Me chame de pai. Deixe de informalidade, meu filho. _Você é muito irônico. Não teve nenhum problema hoje pra descontar em mim, não? 101
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Evaristo dá uma boa risada e vai abraçar seu filho. Leonardo Travanos Silvo afasta-se, não confia nessas boas ações do pai. _Que cheiro é esse? _Meu cheiro – responde Leonardo. _É o mesmo cheiro de um mendigo que me pede dinheiro todos os dias quando vou entrar no fórum. Eu não dou só por um motivo: ele é nojento. Fede. Tenho nojo dele. Talvez se eu sentisse pelo menos ódio por ele, eu daria dinheiro por respeito. Mas ele não representa nada para mim. É um nada. Ou seja, ele é um nada e ainda fede. Tenho nojo de pessoas assim. E, hoje, você está assim, fedorento e um nada, e ainda passou o dia sumido. Olhe, não me dê as costas, meu filho... – o pai clama pela atenção do filho. E seu filho, Leozim, sobe as escadas e pensa: nojo, eu sinto de você.
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O cheiro do mundo O meu carro deu um problema que não entendo bem. Deixei mais cedo no mecânico. Agora, no ônibus, sinto-me incomodado com a quantidade de gente ao meu redor. E ainda tem um cidadão do meu lado que fede. Como a pessoa consegue acordar e já começar a feder dessa forma? Será se ele não tomou banho? Ele está arrumado e com gel no cabelo, uma farda do trabalho. Ele fede mesmo! Chego ao trabalho. Estou com o cheiro do cara fedorento do ônibus. Em mim ficou o cheiro o dia inteiro. No fim do expediente, paguei um táxi até a oficina. Estava fechada. À noite, tomo três banhos e o cheiro do filho da puta não sai de mim. Tomo um remédio e durmo. De manhã, acordo atrasado. Não ouvi o despertador. Acordo suado, minha cama está toda molhada de suor. É o calor. Como estou atrasado, é melhor eu pegar o carro só mais tarde. Estou no ponto. O cara fedorento também. Afasto-me dele. Perco o ônibus, mas ele entra. Atrasome mais 15 minutos, mas não sinto novamente aquele cheiro. Quando passa outro ônibus, entro. Como sempre, cheio, e cheiros horríveis. Hoje sinto mais quatro pessoas, todas ao meu redor, fedorentas. Pessoas são cheiros, orifícios e desejos. Por isso tanto fedor, afinal, liberamos variados odores. Podres odores. Percebo isso agora. Cheiro minhas mãos, está com o cheiro do ferro que seguro para me equilibrar, minha mão cheira a suor de outras mãos. Talvez cheiros de até outras coisas. Tento me equilibrar sem segurar nos ferros do ônibus, não consigo. Equilibro-me nas costas de uma das pessoas podres. Equilibro-me numa mulher. Ela se incomoda. Talvez não goste do meu cheiro. Eu tiro minha mão de seu ombro. O motorista breca de vez. Eu caio empurrando as pessoas. Levanto-me pegando no ferro. Largo de vez, ele fede. Desequilibro-me e encosto meu rosto no cabelo de um cara que estava em minha frente. Foi castigo. Cheirava podre também. Aceito e vou segurando as barras de ferro. Uma pessoa levanta, vou sentar. Na cadeira tem umas manchas verdes bem fraquinhas. Não deve ser nada, sento-me. Olho minhas mãos, círculos amarelados mexem-se. Que porra é 103
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essa? Só posso estar doidão? Que remédio foi que tomei ontem? Esfrego uma mão na outra, as cores amareladas espalham-se. Esfrego minhas mãos na calça, olhando para o chão do ônibus, cheiro-as. As minhas mãos lembram cheiro de carniça, cheiro de gente morta. Você já sentiu esse cheiro? Olho o chão do ônibus, tem manchas verdes movendo-se e indo para o acento. Levanto-me de vez, as pessoas olham-me, a cadeira está cheia de bolas verdes. O cheiro delas é de esgoto enlodado. Minhas mãos estão podres. As pessoas fedem a lodo de suor. Meu ponto! Empurro algumas pessoas e desço. Ainda estou sujo na calça com as bolas verdes, e nas mãos com as bolas amarelas. A rua fede à merda e vômito. Fede a rato morto. Fede à cachaça. A rua fede. Não aguento. Entro no trabalho, o porteiro tinha cheiro de cu. No elevador, graças a Deus, só! Uma sombra negra aparece ao meu lado, não sei como, ela sorri pra mim. É um humano disfarçado de sombra. Só pode. É um homem, um porco homem, ou o cheiro do filho da puta do cara do ônibus que começou a feder em mim e não saiu mais? É, sim, por causa desse filho da puta que está acontecendo isso. Volto a mim. Meu colega de trabalho está do meu lado. _José? _Opa! Bom dia! – ele fede. _Choveu, foi? Você está todo molhado. _Deve ser o fedor que me contamina. Me deixando de mau humor. Me fazendo suar feito porco! _Como? Ele ouviu, mas tem medo de mim, é um bom demagogo. O meu andar. Saio do elevador. Ele não fala comigo. O andar fede a papel, dinheiro, cocaína, bunda amassada, pica, absorvente, sangue, cuspe, KY e cola. Fico tonto. Entro nas escadas e desço. As paredes estão cheias de cheiros, cheiros de sangue, sangue humano, e suor. Será que estou ficando louco? Pego um táxi. O taxista veio conversando comigo. Veio falando sozinho. Falava demais. Geralmente quem fala demais fala só. Ele fedia. O cheiro dele não era muito diferente do ônibus. 104
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Parecia também o cheiro de muitas pessoas reunidas, só que com lavanda. Aquela lavanda de banheiro público. Talvez nem isso, não tem definição. O cheiro de quem fica perto demais das pessoas é o mais insuportável. O cheiro de todos é o pior. O táxi dele é insuportável! Não vou tampar meu nariz, ele estranharia. Não quero que ele chegue perto de mim. Desço na porta de minha casa. Pego no dinheiro, fede a todos, ao pior cheiro. Entrego minha carteira por inteiro e entro correndo em casa. Tranco-me. Aqui dentro está tudo normal, a não ser pelo cheiro de minha roupa. Em casa fico nu. Deito-me na cama. A cama cheira bem, cheiro de amaciante. Acordo. Estou todo suado, inclusive minha cama. Levanto de vez. A cama fede a minha pele. Minha pele fede. Entro no banho. Ensaboo-me durante 40 minutos. Passo o sabão e tiro. Cheiro-me. Passo e tiro. Cheiro-me. Tiro o sabão e passo. Passo a mão pelo escroto e pelas bandas, cheiro. Tiro e passo o sabão. Degusto-me. Enfim, fico bem. Cheiro de sabão pela pele. Alívio. Jogo a toalha no lixo. Passo a mão em meu cabelo e cheiro, minha mão fica com alguns cabelos, poucos. E fede, como sempre, fede. Totalmente fedida. Parece pentelho suado. Vou até o quarto onde guardo quinquilharias. Encontro uma antiga máquina de cortar cabelos. Raspo todos os cabelos do corpo, inclusive os do cu e as sobrancelhas. Entro na internet e procuro sites que vendam madeiras e aço. Compro barras de aço e pedaços grandes de madeira, parecidos com porta, pago tudo no cartão. No outro dia, elas chegam, eles deixam em minha garagem. Paguei um adicional para chegar em até 24 horas. Isolo um quarto com o aço. “Foi complicado, e suei muito, mas tomava banho a cada cinco minutos”. Jogo tudo que não presta daqui de casa dentro do quarto. Lençóis podres com meu cheiro. TV cheia de marcas de mãos que não saem nem com pano molhado. O computador cheio de marcas de mão e espermas grudentos, esse não jogo. Fogão, sim, geladeira, não, preciso de água gelada. Jogo a cama e também o colchão, vou 105
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limpar o chão e dormir nele. Jogo celular cheio de minha saliva impregnado do uso. Todas as minhas roupas. Percebo que aqui dentro não preciso delas. Micro-ondas vai junto... Tudo inútil e com cheiro de casa. Pronto, toquei fogo, agora estou só. Eu e as paredes e mais nenhuma mentira perto de mim, nenhuma mentira com cheiro de utilidade. Nenhum bafo, nenhum som de voz. Isso fede também, o som de voz. Deito no canto da sala e durmo. Quando acordo, as paredes estão todas amareladas, parecem velhas. Sinto um leve cheiro de vômito, sinto uma fome tremenda. Vou até a geladeira, pego uma maçã. Ela cheira bem. Não como. Fico cheirando-a. Vou até o computador, ele fede, mas daqui posso conseguir muitas coisas, inclusive comida. Entro no site onde vende aço e madeira. Vejo um link: 'Caixões de aço cristalizado. Impenetráveis. Perfeito para descansar em paz'. Acesso. São caixões feitos sob medida. Depois de fechado, não abre mais, só se for aberto por dentro. Mas, para testar, você pode se fechar por dentro e ver que realmente tem espaço para o futuro dono morto e seus pertences. Comprei no cartão. Chegou depois de dois dias. Dois dias loucos de cheiro de esgoto aqui em casa. Esgoto, cu, lodo, merda, vômito, pele, pentelho, olho, mão, suor, saliva, voz, bafo, perna, vizinhos, sons, paredes, ralo, órgãos, risos, lembranças, responsabilidades, vagina, esperma, sangue, medo, ou seja, dois dias enlouquecedores. Por duas vezes pensei em me matar. Chegou o caixão, na garagem. Fui até lá. Muito pesado. Vai ser aqui mesmo que entrarei. Fui até a cozinha, peguei a maçã. Talvez tenha sido o cheiro dela, conservado pela geladeira, que me salvou, pra pelo menos eu adormecer sem sentir cheiros. Entrei. Depois que eu adormecer, não acordarei mais. Penso. Não tenho coragem de comer a maçã, ela cheira muito bem. Vou morrer de fome e de sede, mas não como a maçã. E também não beberei água. Ela tem cheiro de verme e fezes. Aqui dentro, não preciso de nada. Só quero fechar os olhos e, cheirando a minha maçã, esperar. O homem é uma merda para o mundo. Por isso o mau cheiro. Essa ideia formula-se como uma resposta. 106
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Depois de alguns minutos dentro do caixão, não sei quantos, se poucos ou se muitos, sinto o cheiro de morte, cheiro podre, decomposto, putrefato, corrupto. De liberdade. Tem uma entrada para o ar. Mas deixo fechado. Vou dormir. A escuridão é uma mãe nesses tempos de falsas realidades. Aqui dentro é tudo mais real. É tudo mais ... vida. Apesar do cheiro já me incomodar. Estou quase dormindo, meus olhos estão cochilando. O que me deixa feliz é saber que não vou sentir o cheiro de meu corpo apodrecendo. Alguém sentirá meu cheiro apodrecendo e entenderá porque apodrecer é ter cheiro de vitória, para o próximo. Um som bem longe. TCHIBUMMMMM! Parece que algo caiu na água. Um clarão... Acordo. Estou deitado. Alguma coisa derrubou meu caixão. Estou com fome. Muita fome. Preciso comer. Não consigo sair do caixão. Desisto, durmo. Acordo! Não sei quanto tempo depois, abro por reflexo a entrada de ar, não vejo minha casa. Vejo um clarão insuportável. Não sinto cheiro de nada. Agora, sinto cheiro de fumaça. Abro a porta do caixão. Nele, fico em pé. Tudo está destruído. Não vejo casas, árvores. Tudo, tudo destruído. Olho para o chão, dentro do caixão, uma maçã. Pego e a cheiro. Como-a. O cheiro podre acabou. Saio caminhando, acho mais algumas frutas debaixo dos destroços. Como-as. Feliz, sinto que não tem mais o cheiro. Estou completo. Enfim, vivo! Depois de caminhar algumas horas, vejo um caixão de aço cristalizado. Será que é o meu? Não é. Esse está fechado. Ele se abre. Dele, sai uma mulher. Ela me vê e sorri.
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Para Isana e Tony.
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Sobre o autor José Augusto Couto Sampaio Neto nasceu em 28 de outubro de 1983, na cidade de Alagoinhas, recôncavo da Bahia, onde viveu até os sete anos. Mudou-se com a família para Juazeiro da Bahia, divisa com o Estado de Pernambuco, ao lado da cidade de Petrolina. Ambas cidades banhadas pelo Rio São Francisco. Aos 18 anos, mudou-se para Salvador, capital baiana, junto à família novamente, onde cursou Publicidade e Propaganda na Universidade Católica de Salvador, localizada acima da Estação da Lapa. Centro da cidade. Casou-se aos 24 anos com Isana Barbosa e mudou-se para Teresina, Piauí, onde reside e trabalha como publicitário, produtor e escritor. Imagine alguém te olhando do escuro é o primeiro livro de contos do autor. O escritor publicou, em outubro de 2010, O outro lado do olho, livro de poemas. Narrativas do horror cotidiano, livro de contos, foi publicado em novembro de 2011. Em junho de 2012, publicou Desigual, mais um livro de poemas. Para saber mais informações, acesse: joseaugustosampaio.blogspot.com Segundo o escritor, “A literatura é a minha salvação pessoal e liberação dos meus demônios”. Contato: guto.sampaio83@gmail.com Facebook: José Augusto Sampaio
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