Narrativas do horror cotidiano

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Narrativas do horror cotidiano

De JosĂŠ Augusto Sampaio


Narrativas do horror cotidiano

José Augusto Sampaio

Este livro impõe uma ordem: após seu uso, ou desuso, decreta-se como sua obrigação repassá-lo a quem tem interesse ou precisa dos textos contidos nele. Compartilhe o link! Ficha Técnica: Edição de texto de Isana Barbosa Capa de Cunha Junior, designer gráfico. Twitter: @cunhajr Distribuição Editora Publique Já Todos os textos são de autoria e publicados por José Augusto Couto Sampaio Neto. É proibida a venda e veiculação deste conteúdo sem a autorização do autor José Augusto Couto Sampaio Neto.

©Narrativas do horror cotidiano -Lançado originalmente em 22 de novembro de 2011

©José Augusto Couto Sampaio Neto

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Sobre as Narrativas do horror cotidiano O livro contém três histórias que imprimem uma narração crua sobre comportamentos doentios, que preferimos esconder, ou esconder-se. As narrações aderem ao realismo fantástico, sem esquecer-se de situações fidedignas da vida. São também uma homenagem direta aos espelhos que temos em nossas casas, em paredes, embutidos e suspensos, como bons exibidores da elegia geral. Vale lembrar que a vida é muito mais cruel do que a ficção. Se uma mãe, preocupada, perguntasse se esse livro poderia ser lido por seu filho menor de idade, diria, se minha consciência ética estivesse à tona, que não. Mas, como nenhuma mãe perguntou, ou perguntará, nem essa tal consciência faz-se presente neste momento, digo: boa leitura. José Augusto Sampaio

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Digo abertamente e, possivelmente, contra a apreciação do autor, que não procure incauto, mais um livro de histórias ornamentadas por ideais sociais, litúrgicos, humanos, romantizados, ou seja, lá pelo que a convenção popular de leitores de hoje padeça. As histórias de José Augusto Sampaio contêm todos os personagens de qualquer historíola, mas o lado mais denso e hediondo do humano está lá, o antônimo da beleza para uns muitos, um equívoco literário para a maior parte, mas, porém, histórias com escatologia, incesto, pachouchada, assassinato, sodomia e afins (que muitos estimarão compor a personalidade do escritor). Mas, também, histórias com surpresa, com virada, surrealismo, idolatria, surpreendentemente de finais bem-sucedidos, finais premiados, finais heróicos, mormente finais heróicos, e todo final heróico é um final feliz, acreditem.

Por Maykell Francis. Compositor, músico e escritor.

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ÍNDICE:

De onde nascem os demônios?

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A cama perfumada

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Beleza interior

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De onde

nascem os dem么nios? Ou Chorume. Homem. Langanho.



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Langanho Quanto maior e mais perfeito é Deus, Mínimo e mais podre é o Demônio. E, entre eles, você! Eu. Assumindo o papel de fio condutor. Pergunto-me: onde está Deus? Encontro em poucos corações Por completo, na natureza vegetal E nos animais irracionais. Novamente, onde está o Demônio? Em todos os corações E naqueles poucos corações que, por hábito, Habitados por Deus estão. José Couto

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Depois de ler o pequeno poema, assinado por um poeta que ele nunca ouvira falar, dado cortesmente por um estranho que parecia um mendigo, na rua em que atravessava, chegou à frente ao estacionamento onde estava o seu carro. A rua, engarrafada, era uma sinfonia de buzinas apressadas, mal educadas, gargalhadas nocivas. Este horário não é o de pico para ter tanto carro parado. Ele pensa. Mas, bem na esquina, duas pessoas haviam sido atropeladas. Ou jogaram-se na frente do carro. Hoje em dia é difícil saber quem não prefira a morte. Um monte de gente estava ao redor. Uma ambulância fechava a rua quase por completo. Nos carros, os donos buzinavam sem paciência com os mortos (suicidas?). E os curiosos (mortos?), como urubus, cercavam o lugar. Comiam a carnificina com os olhos. Existia uma fome geral, agora saciada, nos olhos observadores. Pelos arredores, também pairavam sombras, que se esticavam e espremiam-se entre a multidão. Parte delas era imperceptível aos nossos olhos. Mas elas se tivessem olhos como os nossos, poderiam ser descritos desta forma: “tais sombras vagavam com seus olhos esbugalhados”, algumas, quando de relance, “brilhavam o branco de seus dentes afiados”. Porém, entre tantos, eram apenas sombras. Um guarda de trânsito fez bem o seu trabalho e liberou a rua para pequenos carros passarem pelo lado estreito e esquerdo da esquina. Pelo bem geral, liberou das multas os donos dos carros que eram maiores e tinham que passar por cima da calçada. Os pedestres que não paravam ali se benziam ao passar pelo local. A cena dos mortos era chocante. Um dos corpos não tinha mais os dedos da mão esquerda e suas tripas, carcomidas e espalhadas pelo chão, pareciam mastigadas pelo pneu do “carro assassino”. Aos poucos, fluía o trânsito. E ele, que passou caminhando pela cena horripilante, antes que fosse embora para casa, deu-se conta, de forma positiva, que um caminhão de lixo passava ao seu lado, no engarrafamento. Não se sabe se por coincidência, por obra divina ou macabra, o fato é que aquele caminhão de 12


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lixo estava ali. Como um raio quando atinge o seu certeiro destino. Enquanto todos tampavam os seus narizes, ele sentiu entrar em seus pulmões um dos melhores aromas já percebidos pela sua pequena vida de trinta anos. Muitos poderiam dizer que isso foi uma dádiva de Satã, mas para ele foi uma imposição de Deus, e com certeza o levaria ao seu ápice de felicidade. Ele era um homem que tinha posses e conhecimento nos melhores gostos em diversos setores da vida, pelo mundo. Os melhores restaurantes. As melhores amizades. As melhores mulheres. As melhores cédulas. Os melhores carros. Os melhores das melhores, para os melhores. Mas o cheiro que ele sentiu no momento em que passava o caminhão de lixo não tinha comparação com nada que ele conhecesse nesse mundo exclusivo em que vivia. Era um manjar perto desse estilo vip, produtos privilegiados e as marcas que os determinam melhores que os outros. Na volta para casa, os esgotos e vielas abertas de parte da cidade fizeram-lhe fluir acima do que podemos entender, ou chamar, de prazer. Talvez esse fato, o cheiro revelador, tenha sido realmente um presente de Deus, um céu em plena vida racional, lógica. A sensação que pulsava em seu peito não o levava a outra explicação: “Estou no paraíso...”, falava sozinho pela rua. Antes de chegar à sua casa, passando pela rua onde morava, quase vomitou por causa do cheiro das flores holandesas de três dos seus vizinhos, e dos outros jardins nacionais, dos outros vizinhos. Ele controlou-se. Quando chegou à sua casa, sentiu impregnado pelo seu corpo, roupa, cabelo e pele “o cheiro podre daquelas flores”, disse sozinho. Sentiu também cheiro de sangue, o que não o incomodava, mas deixou passar esse fato. Até porque o enjoo já estava muito maior do que anteriormente. _Malditas flores! Ele não teve dúvidas quando viu a merda acumulada, por falta de limpeza, dos seus cães pastores, que estavam presos no fundo da casa. Saiu correndo pelo quintal, tirando o paletó 13


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com urgência, e “jogou-se de peito” sobre o monte de merdas dos cães. Ele fez isso com um riso juvenil, como se estivesse pulando de felicidade por estar tomando banho de chuva em pleno sertão desértico nordestino. De uma forma ou de outra, ele levantou muito mais aliviado com o cheiro que estava ao seu redor. Agora ele poderia entrar em casa em paz. Até porque, depois de feito o ato, pedaços de merda espatifaram-se com seu peso e distribuíram-se quase como um quadro de arte contemporânea pelo seu corpo. Os outros pedaços, que se perderiam se alguém pisasse com raiva e espalhasse a merda pelo jardim, ele não deixou para trás. Um por um, catou-os e passou por partes de sua camisa e calça italiana. Depois de rodar a maçaneta que abria a porta da sala de sua casa, ele sentiu, nas paredes e nos panos limpos que cobriam parte da mobilha, o cheiro do incenso preferido de sua mulher: pétalas de rosa. O cheiro era podre, garantia o seu nariz. Ele enjoou a tal ponto que voltou para o jardim e vomitou na grama. Não teve como evitar. Merda seca de cachorro, junto à merda fresca, não tirou o enjoo que o incenso de rosas de sua mulher provocou-lhe. Um cheiro fatidicamente podre para ele. De joelhos, saiu por completo o almoço de mais cedo: pedaços de feijão e gorduras antes suculentas quando no bife, e o lanche que tinha comido às quinze horas, pedaços de alface, presunto, queijo cheddar, pão, banhados de ketchup, mostarda e sulco gástrico. No meio do vômito, que era uma poça, tinham outras coisas que ele preferiu não identificar, pois ainda estava meio zonzo por causa da violência que ocorreu no tal ato. Quem mastiga rápido não tritura os alimentos por completo. Ele pensou, sorrindo de canto de boca, ajoelhado com as mãos no chão, quase de cara com a sua náusea, e exuberando-se com aquele aroma do vômito, agradabilíssimo. Se ele não tivesse descoberto só agora a iguaria que são esses cheiros, indignamente chamados de podres ou dignamente chamados assim, em nosso dia a dia, talvez comesse o vômito ali mesmo. Mas o seu bom senso não lhe permitiu, mesmo com todo o 14


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prazer aromático que se instalou em seu nariz. A noite estava apenas começando. Ele sabia que ia ter que entrar na casa de qualquer jeito, mas como? O cheiro daquele incenso fazia-lhe vomitar e ter calafrios. Depois de alguns minutos rodando pelo seu jardim, sem sair de perto do vômito e da merda de seus cachorros, para não correr o risco de vomitar novamente, ele raciocinou: _Isso. Vomitar! – disse para si em voz alta. Ainda em seu jardim, enfiou o dedo na goela e forçou o vômito. Dessa vez não saiu muita coisa. Ele raciocinou melhor e repetiu o ato bem perto da porta da entrada de sua casa. Fez por duas vezes. Na primeira, saiu pouco sulco gástrico. Na segunda tentativa, enfiou não só o dedo, mas os dedos até parte da palma de sua mão. Dessa vez, saíram pedaços identificáveis de dentro dele. Depois de se recuperar do choque, com as suas próprias mãos, jogou o conteúdo dos vômitos para dentro de casa, a fim de tirar aquele cheiro podre de incenso. Pronto. Agora vou entrar. Pensou. Mas o cheiro do incenso ainda pairava no ar, mesmo que pouco. Ele teve outra ideia: ficou durante trinta minutos do lado de fora, andando de um lado para o outro, por vezes dando pequenos piques de corrida, a fim de suar muito. Quando enfim conseguiu o que queria, passou o dedo em todas as suas dobras e partes íntimas: cu, virilhas, sovaco, ovos, pica, etc. Quando o cheiro condensavase, ele variava: tirava seus sapatos e passava os dedos entre os dedos dos pés, acumulando odores em sua mão. Enfiava, em busca de cera, o dedo em sua orelha, tentava lamber o seu próprio sovaco, a fim de ter mais aromas que ele cheirasse, aumentando sua coragem para entrar em casa. Assim ele conseguiu ficar no jardim, sentindo o cheiro nojento das flores e das pessoas que passavam perfumadas pela rua. E, quando ele percebeu que o cheiro de dentro de sua casa já tinha ficado mais agradável, “regurgitante”, adentrou em seu recinto cheirando as mãos e com um sorriso ativo ainda maior na feição. Finalmente dentro de casa, ele pergunta-se: 15


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Por que será que Mary ainda não chegou? Queria mostrar a ela como é bom essa sensação, como faz bem aos pulmões. Nunca me senti tão vivo. Ávido. Ele estava de frente ao espelho grande que tinha em uma das paredes de sua sala. Os seus olhos pareciam fogo, sua pele pulsava, não ao olho nu do reflexo, mas ele sentia-se por dentro pulsando, como o tic tac acelerado do relógio do coelho que guiava Alice nas Maravilhas. Era um tipo de vida nova dentro dele. Um renascimento concedido de forma divina e milagrosa. Inesperado. Um renascimento mais completo. Mais real. Nesse momento, ele já suava o suficiente para liberar um cheiro agradável ao seu olfato. O cheiro do vômito pela casa, da merda seca pelo corpo, dos viços genitais nas mãos, tudo lhe era propício para ter felicidade e plenitude. Uma ardência estava aflorando dentro daquele homem. Eram as chamas do paraíso. As chamas do inferno? Ele não se importava com a resposta exata da pergunta. Sorrisos explodiam e eclodiam em seus lábios como uma verdadeira chuva de estrelas cadentes em céu virgem, sem as luzes artificiais. E ele sorria de forma contaminada, inflando o peito como um poeta que vende livros, como um deus condecorado por Deus. E, extasiado de felicidade bem no centro de sua sala, comemorava: _Deus! Meu Deus! Que sensação é essa? – perguntava-se, choroso. Total. Sôfrego de que o momento permaneça. Outra concepção iluminava sua vida. O que para muitos poderia ser uma desgraça, para ele, foi saída da Idade das Trevas. _Hoje, pela manhã, um caminhão de lixo passou por aquela rua, naquele horário, em minha frente, por n motivos. O destino me agraciou. Hoje, pela manhã, um caminhão de lixo passou por aquela rua, naquele horário, em minha frente, por n motivos. O destino me agraciou. Hoje, pela manhã, um caminhão de lixo passou por aquela rua, naquele horário, em minha frente, por n motivos. O destino me agraciou – repetia a frase, como se estivesse em êxtase, remexendo o corpo, assinalando com as mãos para o olho que tudo vê e exalando felicidade por todo o 16


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corpo. Esse era o fato. Para ele, tudo mudou. Não importava mais se aquilo era loucura. _Loucura é não sentir o que estou sentindo agora! – Ele replicava, gritando alto e só, dentro de casa. Gritou mais vezes, com um misto de choro emotivo e de liberdade em sua voz, como se estivesse assumindo o seu lugar perto de outros deuses. Quando caiu em si, olhou-se novamente no espelho e não reconheceu o próprio riso exemplar e sublime. Um Smile online perderia feio para o riso nos seus lábios. Sem se importar, mas muito orgulhoso do que se passava, tomou a sua primeira providência: foi até os banheiros de sua casa e abriu todos os ralos. _A faxina ainda não foi feita nesta semana. Graças a Deus! – Ele agradece, benzendo-se e comemorando o fato dos ralos estarem cheios de porcarias: cabelos, catarros, pedaços de merda, pequenas quantias de sangue, entre outros dejetos que, tudo misturado, formam uma visão de pequenos pedaços podres escurecidos e úmidos, parecendo uma bola de cabelo e nojeiras, uma visão asquerosa, ou melhor, bela, para ele. Antes de continuar seu oportuno caminho, ficou agachado em cada ralo, cheirando e admirando de mais perto possível os mesmos. Parece um cu que nunca foi raspado, com as devidas proporções. Pensou sobre os ralos. Já satisfeito, defecou três vezes, duas vezes forçosamente, nos três dos quatro vasos sanitários de sua casa, não deu descarga e não se limpou. Derrubou todos os lixos pela sala, nos quartos e no quarto do bebê, que estava em reforma. Era o quarto do seu aguardado filho. Derrubou inclusive os lixos que já estavam empacotados para serem levados pelo caminhão de lixo que passaria mais tarde. Ele foi até o seu jardim, cheirando copiosamente a sua podre mão, pegou os pacotes que estavam num canto prontos para serem postos à rua e retornou para dentro de casa. Mas, antes, escolheu a dedo um desses pacotes de lixo. Exatamente o que continha restos de comida e aquele líquido nojento do lixo: chorume. Ele abriu esse pacote e distribuiu o lixo pelo seu 17


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jardim, por cima das lindas flores que eram cultivadas também pelo antigo morador daquela casa. _Um alívio – ele comemora sozinho. De volta para dentro de casa, como um louco, ligou todas as caixas de som de sua casa no volume máximo e ficou nu dançando, suando, babando, gorjeando, gritando de vez em quando, liberto, artístico, criatura e criador, supremo, arte, cheio de fiúza, dono da liberdade e bem aventurado. E quando tudo parecia perfeito, um marasmo invadiu o seu momento. Mas, não demorou muito, ele teve duas grandes ideias. A primeira levou-lhe até um dos seus banheiros. Ele ficou durante vinte segundos em pé no meio do cômodo, olhando a privada. Sem precisar de muita coragem, arrisco a dizer que convicto, ele foi em direção à privada. Com a mão, pegou a sua merda e passou pelo corpo. Pelas pernas, pés, tornozelos. Pelas partes. Pelo cu. Que ironia cagar e depois passar a sua própria merda pelo cu, por puro prazer e deleite. E ele fez o ato sentindo o mesmo sabor que os políticos sentem em seus lábios quando comem bifes que derretem em suas línguas parlamentares. Pela barriga, pelos ombros, tórax. Pelo rosto e cabeça. Por pouco não comeu. Ainda não estava na hora de ter tal coragem. Aquilo com certeza lhe mataria. Apesar da vontade que dava. Se o cheiro era maravilhoso, por que não o sabor? Na hora de comer algo, darei um jeito. Pensou. Depois foi aos outros dois banheiros e repetiu o ato. Espalhou a merda pela barriga, pela rola, pela bunda, entre as bandas. _Um cu que come merda – ele fala rindo sozinho, piadista com ele mesmo. Num dos momentos em que se “pintava” de excremento, excitou-se. Sentiu que a merda deslizava pelas suas mãos, que seguravam seu pênis ereto, como um verdadeiro lubrificante. Mary também estava com ele, nua, melada de merda, ou melhor, deitada sobre o vômito, passando o líquido nauseante pelo corpo, talvez de quatro, e, ao mesmo tempo em que ele comesse “aquela boceta deliciosa”, ela 18


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estaria cagando. Isso tudo refletido em seus olhos. E pronto: ele gozou com a ajuda do seu lubrificante novo e sua mordaz imaginação. Enfim, depois de passar pelos três banheiros que tinha usado mais cedo, faltava só uma atitude para finalizar a sua primeira ideia com chave de ouro. Ele saiu esfregando-se em todos os cômodos da casa, inclusive pelo quarto do seu bebê. Todas as paredes ficaram sujas de merda. As paredes de sua casa eram brancas e algumas amarelas claras. Parece que o senso comum havia sumido de vez de sua cabeça. Todos poderiam chamá-lo de louco, mas ele intitulava-se “felizardo”. Ele tinha certeza que quando Mary viesse para casa, ela entenderia e compartilharia dessa excitação, agora, se Deus quiser, rotineira. Essa esfregação garantiu que a casa ficasse com o cheiro que ele tanto almejava: aromaticamente maravilhosa. Depois de alguns minutos, criou coragem para executar a sua segunda ideia. Antes de tentar, foi até a geladeira para ver se talvez não precisasse fazer o que tinha que fazer. A geladeira exalava um dos piores fedores que sentiu na vida. _Abri as portas do inferno, com certeza – Falou, fechando-a com rapidez. Mas ele tinha que comer algo, o entusiasmo daquela noite deixou-lhe morto de fome. Mais uma vez tentou abrir a geladeira e, dessa vez, com perspicácia, conseguiu pegar uma maçã, a qual foi jogada no chão rapidamente. O cheiro dela era forte demais e enjoava-lhe. Nem se ele fosse Eva, emancipada pelo Satanás, conseguiria comer a fruta naquele momento. Eu tenho que comer. Ele firmou em seu pensamento. Com coragem, foi até a maçã, com uma das mãos tampou o nariz, com a outra, pegou-a. E, sem meias palavras, mordeu a bendita. _MALDITA! Ele grita, jogando a maçã para o lado. E em seguida vomita mais uma vez. Dessa vez, a violência do vômito foi exagerada. Não tinha o que sair. Por pouco não morre com falta de ar. A 19


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felicidade, talvez milagre, só Deus sabe, tenha salvado o homem de morrer de forma trágica e tão cruel: sem ar. Ele ficou pelo menos um minuto sem respirar e vomitando um líquido mínimo, que o fez engasgar. Depois desse momento, dentro dele só tinha fome. Sua fome comia seu estômago. E começava a comer o seu juízo. O sabor da maçã era tão podre para aquele predestinado que era inconcebível não ter vomitado. Depois de se recuperar, foi até a maçã novamente e, com ela em mãos, saiu correndo para fora de casa. No jardim, jogou a maçã por cima de restos dos seus vômitos. Com as suas mãos ainda meladas de merda, e a maçã por cima do vômito, não tinha jeito. _Mas se o cheiro é tão bom, por que não o sabor? - ele perguntava-se, levantando a ideia e repensando aquela loucura. Ele foi até a entrada de sua sala, observou bem os outros vômitos. O que era esverdeado e com pequenos pedaços de comida foi o que mais lhe agradou. Não deu outra: ele, morto de fome, pegou novamente a fruta de Eva, melou-a nesse outro vômito e mastigou-a. No início, parecia muito bom, mas depois ficou horrível. “Sim!”. Ele percebeu que a cobertura do vômito com um pouquinho da merda, que antes estava em sua mão e em suas unhas, foi o “detalhe saboroso”, e que o conteúdo da maçã foi o podre da mordida que deu na fruta. Era o que faltava. Caiu de dentes e língua em cima do vômito. Como se fosse uma sopa derrubada no chão, comeu os restos do vômito. Ele, dessa vez sem pensar duas vezes, devorou seu prato apetitoso. Comeu-o como se fosse um presente inesperado e que muda a vida do presenteado. Comeu-o parecendo um rato esfomeado, que espalha a comida por todo canto, por estar tão agoniado para se alimentar. Alguns dizem que a fome faz o melhor sabor na comida. Nesse caso não era só isso. É impossível negar que no primeiro momento dessa experiência degustativa ele não tenha sentindo nojo, por causa dos seus velhos costumes e hábitos. Mas o cheiro era tão 20


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bom que o nojo tornou-se prazer em re-comer aquele prato mastigado rápido e já vomitado. Só que a comida não caiu bem em seu estômago. Logo após de comer tudo, ele re-re-vomitou. Dessa vez, o vômito saiu de uma forma mais arisca. O seu corpo estremeceu e doeu muito, por completo. Seu rosto ficou vermelho esverdeado. Seus olhos quase pularam fora. Sua garganta arranhou, mais que arranhou, como uma faca de serra, o vômito passou por ela e rasgou-a. Entupiu-a. Por algum momento, novamente achou que morreria com falta de ar, mas o que aconteceu foi um vômito ainda maior e muito mais cheiroso. Uma suculência. Depois de cinco minutos, recuperando-se e sentindo o cheiro delicioso do novo vômito, do qual ele estava deitado ao lado, não teve escolha, estava com muita fome. Ele re-comeu o que já havia re-vomitado. Dessa vez, comeu sem problemas. Com as suas mãos, ele pegava o líquido gosmento. Antes de terminar, lambeu o chão para não deixar sobrar nada, como se quisesse provar para Deus que não desperdiçava comida. E lambeu a ponta dos dedos também. Quanto mais o cheiro era podre e insuportável a qualquer ser humano, melhor ficava a suculência. Só que aquele vômito não satisfez o seu apetite. Nu, ainda melado de merda, muito suado e sujo de vômito nas mãos, nos lábios, face e na língua, foi em direção aos restos dos outros dois vômitos. Depois de comer os dois, já se sentia com menos fome. Mas faltava alguma coisa. Ele sempre teve o costume de comer com grandes pessoas, grandes banquetes com grandes sobremesas, sempre atrás de sua melhor satisfação. Era um homem abastardo. Então, novamente enfiou o dedo na goela e re-re-re-vomitou, parecendo um animal gemendo de dor ao ser estripado. Ele, que se contorcia de agonia, também tinha prazer por aquele cheiro e sabor estar passando pelas suas ventas e garganta. Ao fim, sem meias palavras e com dentes sorridentes, comeu. “Enfim, me sinto alimentado” Ele falou para si próprio, deitado no sofá, relendo o poema que havia ganhado na rua. 21


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_Quem será esse poeta? – pergunta-se. Dim... dom... Alguém toca a campainha. Era nove da noite. Se não é a Mary, quem pode ser? – ele pergunta-se. Sem pestanejar, atendeu nu e daquele jeito. Uma merda humana satisfeita e iluminada. Eram quatro lixeiros e o mesmo caminhão de lixo que tinha visto no fim da tarde. _É a sua vez de entrar no caminhão. Você merece – disse um dos lixeiros, o mais gordo, parecia o motorista, olhando firme em seus olhos. Ele nada diz, apenas sorri como um urubu deslumbrado em frente a uma carniça fresca. Nu, ele vai pela rua até o caminhão. Alguns vizinhos estavam na porta de casa e olhavam com olhares de reprovação. Ao passar pela casa do vizinho mais hipócrita e filho da puta da rua, segundo ele, parou e forçou mais uma cagada. Ele fez a cena gritando o nome do filho da puta: _Paulo Emílio! Paulo Emílio! Venha ver o meu cu cagador. Depois do ato, saiu desfilando como se estivesse chegando às portas do paraíso ao lado de Gisele. O gordo foi para a cabine. Os outros três passaram correndo pela rua e catando os lixos mais chiques da cidade. Não precisou de que ninguém lhe ajudasse, jogou-se na boleia onde o lixo era processado. Era realmente o homem mais feliz do mundo. Que sensação é essa em meu coração? Perguntou-se em pensamento, com uma emoção nada discreta e espetacular nas batidas do seu coração. O caminhão deu a partida e os lixeiros vieram correndo atrás, jogando as sacas de lixo em cima dele. Ele abria os sacos e deliciava-se. Dessa vez, não teve pudor algum, comeu tudo que via pela frente. Era muito saboroso. Ele lambia-se e tinha gana nos olhos. Sorria tão feliz que faria o palhaço mais triste do mundo sorrir. Chorava de tanta felicidade. Qualquer pessoa que o visse naquele estado pularia para a boleia, para curtir essa “fortuna esplendorosa” e de grande extravagância. Os seus vizinhos, pessoas de suma importância para o mundo, balançavam a cabeça negativamente como bons cidadãos. Mas os lixeiros pularam 22


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em cima do caminhão e equilibraram-se. Ali ficaram fitando-o sem reprovar a atitude daquele cidadão contemplado. _A gente poderia dizer que você é um marginal, escroto. Mas a gente entende bem de lixo e porcaria – disse um dos lixeiros para o felizardo. _Cara, não me entenda mal. Mas você é um cara bem apessoado. Bonito. Por que é lixeiro? – com um sorriso avassalador, com muitos fiapos de lixo e restos entre seus dentes, ele pergunta. _Você ainda não compreendeu que as pessoas bonitas são as que mais produzem lixo... – respondeu, afirmando com olhos de catador. Os outros dois lixeiros observavam calados. Enquanto ele, numa aspiração, estava deitado sobre o lixo, quase mergulhado, como se estivesse em um lago transparente de água doce. Comia alguns dos restos podres das comidas que ali estavam, não só as comidas, mas pedaços de plásticos temperados com odores inimagináveis, papéis higiênicos que já serviram aos cus mais secretos e bem nascidos, guardanapos que já limparam as bocas mais ricas, belas, importantes e corruptas desse mundo. Restos de esmaltes. Óleo velho. Comidas estragadas. Comidas esquecidas e estragadas. Roupas rasgadas e sujas. Camisinhas usadas. Pedaços de papéis com as mais escrotas confissões. Dois dedos, um feminino e um masculino. Pedaços de papel queimado, que antes já tiveram grandes composições. Pedaços de papel com catarro embrulhado. Cinzas. Merdas de cachorro. Merdas de gato. Merda de gente. Vômitos alcoólicos. Vômitos cancerígenos. Vômitos bulímicos. Chorume. Chorume. Chorume. Não faltava o líquido do lixo. Etc. O caminhão começou a processar o lixo, ele não se tocou e continuou a sua pujança sobre o quitute divino. Os lixeiros olhavam a cena e sorriam de canto de boca, eles olhavam como se ele estivesse em seu caixão, sendo velado. Mas ele não estava nem aí. Sorria olhando de volta para os lixeiros, sorria com tanto prazer que sua boca alongava-se parecendo um desenho de charge. E ele chamava-lhes: 23


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_Venham! Tem espaço. Vamos comer do bom e do melhor. Sei que vocês entendem bem o que estou sentindo. Os lixeiros caíram na gargalhada. Existia uma satisfação entre eles: ele, por estar envolto de um néctar mágico, e os lixeiros, por aguardarem com ansiedade que o caminhão processasse todo aquele lixo. Contudo, ele sentiu em seu pé um aperto. Era o processador puxando-o para o fim, como se fosse uma boca de algum carnívoro e de mesmo gosto que o dele. O aperto aumentou e puxou a sua canela. Nesse momento, o seu pé estava estraçalhado. Ele flutuava entre dor, pânico e prazer. O processador puxou suas pernas por inteiro. Depois seu tronco. Com seus braços, ele ainda puxava seu manjar para a boca, pulverizando-os. No momento em que ele estava quase todo triturado, processado e completamente entregue ao prazer pela chuva do líquido que se fazia no processamento dos lixos e que derramava em sua cara (o chorume), um efeito vibrante de amor puro, exclusivo, celebre e divino explodia em seu cérebro. Os lixeiros, que não paravam de olhá-lo, sorriam de forma histérica com a cena, como se ele fosse comediante de Stand Up fazendo graça na boleia. Quando ele acordou no sofá, estava sentindo uma dor de barriga. Depois de vinte minutos, caminhando pela casa e lembrando-se do sonho, a dor em sua barriga intensificou. A dor era fome? Era enjoo? Não era possível identificar. Ele não era médico, era empresário do ramo, mas não era médico. Antes de raciocinar qualquer coisa sobre a dor, preferiu ficar com a opção da fome e começou a pensar o que comeria. Racionalizou e decidiu comer o que tivesse o melhor cheiro. _É simples. O melhor cheiro. O melhor gosto. Ele disse sozinho, enquanto andava pela casa atrás de comida para matar a sua fome. Rastejou em alguns pontos: nos cômodos, no quintal e nos banheiros. Nos banheiros, descobriu um cheiro que valia a pena a degustação. Voltou rapidamente até a cozinha e pegou duas colheres, uma grande e outra média. De volta ao banheiro 24


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do quarto de hóspedes, que estava há quase duas semanas sem faxina e tinha sido usado há pouco tempo, foi para dentro do boxe, abaixou-se e, sem zelo, tirou a tampa do ralo. Usou a colher maior para tirar parte da sujeira (comida) do mesmo. Não adiantou, usou a colher menor. Dessa vez, serviu. Na boca, parecia um monte de terra, cabelo e outras coisas não identificadas pelo seu paladar. Mas a sensação de orgulho e gozo que ele sentia mexia com o paladar de sua alma. Não vomitou, e preferiu não vomitar. Vou aguardar Mary chegar para comermos juntos o vômito dessa comida. Ele pensou, olhando em seu relógio. Já era mais de onze da noite e sua esposa ainda não tinha chegado. Estava preocupado. Preocupado, e ainda com fome. _Pelo menos matarei a fome – ele diz, seguindo para os outros banheiros da casa. Os outros ralos tinham “comida” suficiente para alimentá-lo. Ele ficou ocupado, por quase quarenta minutos, alimentando-se. Entre enjoos e mastigadas sedentas, comeu tudo. Mas sua preocupação não passou. Já é quase meia noite e meia, e nada de Mary. O trabalho dela não ia ter “serão” hoje, ela não me ligou para dizer nada. Ele indagava-se. Procurou pela casa se Mary havia deixado algum recado falando sobre se atrasar naquele dia. E nada. Foi quando sentiu novamente outra dor de barriga. Dessa vez, veio com maior ênfase. E tornou a vomitar, mesmo sem querer. Ele queria esperar Mary para degustar com seu amor. E novamente o vômito veio violento. Parecia que o mundo queria sair de dentro dele. Parecia que existia outro dele que queria sair de dentro do seu corpo, através de sua boca. Mas não era. O vômito ficou em sua garganta. Ele sufocou-se. Sua barriga estava aos prantos, chorava, definitivamente, de tanta dor. E seu ar já tinha ido, quando enfiou o dedo na goela e assim conseguiu vomitar. Demorou pelo menos cinco minutos vomitando e desmaiou. Numa manhã, ele acordou. E nada de Mary. “Onde está Mary?”. Ele perguntava-se em voz alta na sala. Nessa manhã, tudo havia 25


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mudado. O cheiro de podre tomava conta do mundo. Valia à pena ficar ali parado e observando as luzes do sol invadindo as frestas e os espaços. Não se ouvia nada além de seus muros. Os vizinhos perfumados e donos das unhas mais limpas e sedosas do mundo haviam sumido. Aquilo era maravilhoso. Era o paraíso que Deus havia preparado exclusivamente para ele. Ele perguntou-se sobre abrir a porta de sua casa e ir ver o que estava acontecendo lá fora, pois tudo parecia tão tranquilo. Calmo. Mas, bem de dentro de sua mente, veio uma ordem em voz dupla para que ele não saísse de casa. Ele repensou e percebeu que vozes que dão ordens são vozes criadas para serem desobedecidas. Procurou pela casa a chave do seu carro. Depois de trinta minutos, achou. Muito sujo e fedorento, vestiu uma roupa. Não queria chamar atenção com o seu aspecto. Por dentro de sua imaginação e desejo, teve uma ideia espetacular. Pode ser que eu resolva meu problema agora. Pensou, ao ligar o carro. Dirigiu pela rua onde morava. Estava vazia. Hoje é domingo? Perguntou-se, em silêncio. As casas e as avenidas estavam vazias. Se fosse uma coisa anormal, no mínimo, deveria haver carros abandonados pela rua. Não tem. Concluiu, ainda em silêncio. Em dez minutos, chegou à frente de uma clínica de cirurgia plástica. A clínica era o seu melhor cliente. Ele vendia instrumentos médicos. Não tinha ninguém na frente. Nem seguranças. A recepção estava fazia. Era domingo? Talvez. Sua cabeça não raciocinava bem. Uma ideia fixa levou-o para o fundo do prédio, sem ponderar outras ideias. No fundo do prédio, ele avistou uma grade de proteção. Por trás da grade, que cercava o local, havia pelo menos cinco grandes lixos selados. Os lixos eram reservatórios de gordura humana. _Ou seja, o lixo mais lixo é igual a homem, que é igual à gordura e podridão – ele, sorridente, filosofou sozinho. Com agilidade, pulou a grade e foi aos lixos. Como se Deus estivesse guardando aquele momento para ele, um dos lixos estava aberto, mal selado, vedado. 26


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_Deus olha por mim! – ele comemora altivo, abrindo a lixeira e pegando os sacos lacrados de gordura. Mesmo com o conteúdo ainda por dentro dos sacos, seu nariz já conseguia sentir o aroma, passando o desejo imediatamente para o cérebro, que mandava uma resposta desesperada para o estômago, onde não tinha nada. A dor em seu estômago só não era pior do que a dor nos estômagos magros dos meninos “mortos” de fome nas ruas de São Paulo e Teresina. Rapidamente, ele pegou os sacos e pulou a grade, com todo cuidado. Cinco vezes ida, cinco vezes volta, para transportar todo o líquido. De volta para o carro, não reparou que pela rua não havia ninguém, a não ser sombras que o espiavam a distância e com medo. Sombras de medo. Em oito minutos, fez o percurso de volta para casa, com agonia para chegar logo e comer a gordura. Em casa, ele foi até a sua geladeira e abriu-a. _Quantos dias será que eu dormi? – ele pergunta-se na cozinha. Os alimentos estavam todos podres e cheios de fungos. Era um milagre. Sem perder tempo, derrubou todos os alimentos e dejetos que estavam em sua geladeira numa panela. A panela era enorme. Era a panela que ele usava para fazer uma feijoada social quando recebia uma grande quantidade de pessoas em casa. No fogão, com boca de forno industrial, misturou tudo com a gordura. Depois de uma hora cozinhando, o sorriso instalou-se em sua boca. Finalmente ele chegou ao ápice com um prato de refeição. Depois do jantar, quase esquecendo Mary por completo, novamente praticou a antropofagia. Desta vez, dava para ver quase todos os alimentos podres da geladeira carcomidos e espalhados pelo chão. Era maravilhoso comer e vomitar, e depois comer e vomitar. O ciclo da vida sendo redescoberto. Como ele sempre foi um comilão, não podia esquecer que os ralos ainda continham um pouco de sujeira. Serviram de sobremesa. Isso sem contar que todas as merdas que eram defecadas durante o dia ficavam para o jantar. 27


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Neste dia, antes que anoitecesse, Mary entrou pela sala da casa chorando e desesperada. Com ela, vinham paramédicos e duas amigas conhecidas do casal. Ele estava nu e mais podre que ontem. Ele sorriu para Mary e abriu os braços para abraçá-la. Ela passou por ele como se passasse por um vento frio, triste e perdido. Ela não sentiu nada. Nem calafrio. Quando ele olhou para trás, viu seu corpo ao lado de um vômito. _O vômito do ralo – ele falou em voz alta, constatando que havia morrido e que ninguém o veria nem o ouviria. _Mas eu morri desse jeito, sem nem perceber? – perguntou-se, ainda gritando, querendo ser ouvido. Ele não lembrava bem o que havia acontecido e ela não lhe ouviu. Mary ajoelhou-se ao lado do corpo do marido e começou a chorar descontrolada. Ela amava-o muito, apesar dos defeitos dele. _Ele é o pai do meu filho. É o pai... – ela gritava, abraçada ao corpo. _Se eu estou morto, como não veio a Morte, o Ceifador e nem Deus me buscar? - ele perguntou-se. _É só mais a porra de um sonho! – ele grita, afirmando. – É mais um sonho... – continuou gritando. Mary e os paramédicos não lhe deram bola. Até que um som de carro chegando pela rua chamou sua atenção. Ele voltou aos seus olhos e ainda era quase uma da manhã. “É a mesma noite?”. Pergunta-se em silêncio. _Onde está Mary? Ela estava aqui agora. Foi só delírio? Sonho? Era um sonho. Ela não chegou. Eu estou vivo. Graças a Deus, meu Pai. Obrigado, meu Senhor. Meu grande criador. Estou vivo. Essa loucura toda, esse aroma: são reais. Eu sou a evolução. Eu sei, Deus! Grande Deus! – ele comemorava extasiado, até relembrar a esposa. – E Mary, está na rua? Ele caminha pela sala e vai até o jardim. Nem sinal de som de carro aproximando-se. Nem sinal de vida. Ela não ia chegar. _A safada. Estou no melhor dia da minha vida e ela está na rua, 28


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com o celular desligado. Já comi, dormi duas vezes e nada daquela safada chegar. Ela está com meu filho na barriga e fica na rua até esse horário, sem dar uma satisfação. Talvez esse meu surto com os cheiros e as minhas degustações (ele fala sorrindo) seja culpa dela. Até que torna a surgir, quebrando o silêncio da madrugada e seus pensamentos rancorosos e inseguros, um som de carro, chamando a sua atenção. A porta abre-se. Mary entra pelo jardim. Ela está chorando desesperada. Talvez tenha sentido o cheiro de podridão que vem de sua casa, ou então, com a sua intuição feminina, soubesse o que a esperava ali dentro. O motivo daquele choro não lhe importava muito, e sim “por que ela havia chegado naquele horário?”. Ele pergunta, gritando. Ela não diz nada. _Você não vai dizer nada? Vai direto para o seu quarto? Não está vendo como está a nossa casa? – Mary passa pela bagunça sem dar um pio, e entra no quarto. Ele tenta abrir a porta, mas não consegue. Ela trancou. De frente para o quarto, ele diz: _Quer saber? Eu digo e repito: hoje eu comi merda, vômito, a sujeira do ralo, tudo de podre que você possa imaginar. E isso foi muito melhor do que comer você de quatro por cinco vezes seguidas. Tá ouvindo? – pergunta furioso, batendo à porta. – Eu tenho certeza que você engravidou só para ter mais direitos sobre a minha fortuna, sua safada! Mas eu não estou mais nem aí pra isso. Você não percebeu? Isso aqui não vale mais nada para mim. Eu descobri que essa história de cultivar uma imagem é balela. Eu descobri que essa baboseira de que você vive me falando, que amar o próximo (ele fala imitando a voz dela) “faz bem pra nossa alma e que Deus vai nos ajudar mais ainda quando fizermos isso”, é balela. É BALELA! Amar ao próximo é a maior mentira que existe, porque o próximo não te ama. Nem sabe de você. Amar o próximo não chega perto da elevação de cagar, pegar a merda e repassá-la no cu – ele solta uma gargalhada insana. – Só os fracos fingem amar o próximo. E você é uma fraca. Você me enfraqueceu, mas agora vou me livrar disso. Vou me livrar de você – ele fica um pouco calado e 29


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retorna a filosofar. – Hum! Será que são os fortes que fingem amar o próximo para depois poderem cagar na cabeça desse tal otário próximo? – depois de rir sozinho mais uma vez, parecendo um lunático, continua: _Temos que amar quem nos amar, o resto que se lasque! E você, Mary, me ama? Ou prefere amar o próximo, sua aproveitadora! Eu sei muito bem o que você estava fazendo na rua até essa hora. Será que esse verme que você carrega aí dentro é meu filho, Mary? Ou é a porra de um langanho de outro PRÓXIMO por aí? Sabe ao que a humanidade que você tanto ama merece ser associada, hoje? Ao mais repugnante dos sentimentos. A humanidade é pior do que o cheiro de merda do seu incenso de pétalas de rosa. A humanidade não é nada... Depois de quinze minutos gritando como se estivesse descontando a raiva e sua frustração pela sua rotina e o mundo mentiroso em que viveu até aquele dia em sua esposa, e batendo à porta do quarto de Mary, ele percebe que está silencioso demais dentro do quarto, e que ela não abrirá a porta. Normalmente, quando ela tranca-se no quarto, liga o som no volume máximo. Mas nem isso ela fez. Pensou. Ele tenta abrir novamente a porta. E nada. Chuta a porta e tenta arrombar com seu peso. E nada. Ele vai até a cozinha e procura algo que abra a porta. Ele olha para o corredor que sai da cozinha até a sala principal da casa e vê um extintor. Ele pega-o e vai até o quarto. Quebra a fechadura, que cai no chão, e não estava trancada. Ele consegue entrar no quarto, suíte do casal. Mary estava na banheira, ainda muito chorosa. Ela estava nua e com o pensamento muito longe. Ele não aguenta o silêncio e continua pedindo explicações e respostas à sua mulher. Ela não olha para ele. Ele enfia o dedo na goela e vomita bem no meio do banheiro. “Agora vou comer em sua frente!”. Ele diz a ela. Mary olha na direção dele, mas ainda não o olhava. Ele começa a comer o vômito. Ela não dá atenção à insanidade do marido. E, quando ele termina de comer, ela levanta-se da banheira, parecendo que falará algo a ele, mas antes tenta 30


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pegar o sabão que está na pia. Por um acidente, por vontade divina ou macabra, ou vontades conjuntas, ou por causa de qualquer explicação que não se pode descrever nesta história, pois não importa agora, o rádio de seu marido, que estava na pia e ligado à tomada, cai na banheira. Infelizmente, antes que eles trocassem qualquer palavra, ou pudessem desfrutar do novo hábito dele, Mary assou. Fritou com a eletricidade. Ele, assustado e choroso, não pôde fazer nada, a não ser gritar de desespero. No início, ele chorou como uma criança. Ficou durante horas rodando pela casa, atônito. Vezes ele chorava e babava, vezes ficava em silêncio pelos cantos mais frios e menos visitados da casa. Orou algumas vezes. Pediu por Deus, por qualquer criatura que lhe pudesse ouvir. Depois de um dia inteiro, seu coração ainda não se conformara, mas o seu estômago, que não tinha nada a ver com a situação, queria mais. Era a fome. A fome não perdoa. Não tinha mais vômito. Seu estômago e sua barriga não tinham mais força e sulco gástrico a pôr para fora. Os ralos secaram. Não sobraram nem as crostas de lodo preto (uma mistura inimaginável de sujeira acumulada) que ficam grudadas nas tampas dos ralos da pia e dos banheiros, nem as que ficam grudadas nas suas paredes cônicas. Até as folhas meladas de papel higiênico e as merdas incrustadas pelo seu corpo e cômodos da casa, em algum momento não narrado nesta história, ele comeu. Ele tentou, sim, cagar. Forçou de várias formas, e por pelo menos duas horas. Inclusive enfiando o seu próprio dedo em seu ânus, para ver se saía algum alimento. Não havia mais nada. _Como alimentarei a minha alma? – perguntou-se, quase em lágrimas. Naquele momento, ele não queria sair de casa. A sua amada estava no banheiro e morta. Não iria abandoná-la. Nem ao seu filho, que estava em sua barriga há quase seis meses. Não há o que fazer na rua. Ele pensou. Mas a sua fome era enorme. Até que ele decidiu vestir uma roupa, pegar a sua chave e ir para a rua atrás de comida. Antes que ele saísse, teve uma ideia 31


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melhor. Vou invadir a casa de um dos vizinhos e comer o seu lixo. Arquitetou. Ele foi até o banheiro e tomou um banho rápido. A água também não era tão interessante para o seu paladar. Mas ele precisava de um plano. E esse plano passaria pela boa imagem que ele tem de homem de negócio e empresário bem sucedido. _Vou invadir a casa com a desculpa de quê? – perguntava-se no banheiro. Já em seu quarto, quando ele estava terminando de colocar a sua camisa, o cheiro de carne assada entrando no estado de putrefação invadiu suas narinas como uma iguaria afrodisíaca e majestosa. Esse cheiro mexeu com ele, que saiu do quarto e foi ao banheiro. Ficou durante cinco minutos rodando o corpo de sua mulher, sentindo o cheiro espetacular que exalava, mas não teve coragem. Depois de duas horas a mais, nas quais ele chorou muito dando voltas pela casa, procurando alimentos, passou pelo banheiro novamente para admirar o cheiro de putrefação. Parado, de frente à sua esposa e ao seu filho, chorou só de imaginar o que ele estava por fazer. Tentando cagar de novo. Vomitar. Verificou os ralos e nada. A fome estava comendo seu estômago. Novamente, tentou cagar. E nada. _O que fazer? – ele gritava, já no meio da sala. Mesmo conseguindo concentrar algumas gotas de seu suor em um copo, e beber junto com um pouco de urina, a sua fome não sumiu. Com certeza era uma força maior que não o deixava defecar e nem vomitar. _Se Deus tem um plano, ele sabe o que faz – disse para si. Ele voltou ao banheiro, olhou-se no espelho por mais três minutos chorando. Depois respirou fundo e foi até a cozinha. Abriu uma de suas gavetas que tinha variadas facas. Facas de melhores valores e gostos. Escolheu uma afiadíssima, de ouro branco, que sua falecida mãe havia lhe trazido de Zanzibar. Com essa cara faca, voltou ao banheiro e pensou sobre como fazer. Mas, antes de tomar qualquer atitude, ouviu, como um milagre, os latidos dos seus cachorros pastores no quintal da casa. Como 32


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se Deus escolhesse aquele momento para libertá-lo de tal heresia e sacrifício por causa de sua fome insana. Foi caminhando a passos largos, com um martelo e a faca de ouro branco. No quintal, os cachorros estavam agitadíssimos por causa do cheiro de carne assada e sangue coagulado que exalava pelo ar. Eles latiam de forma desesperada, melindrosos, pois sabiam da intenção de seu dono. Cachorro sabe quando vamos lhe fazer mal. De frente ao canil, ele observou bem os olhos assustados de suas crias. A fome era imensa. Os cachorros vivos não têm um bom cheiro para que eu os coma, mas, mortos, quem sabe? Pensou. E, novamente antes de tomar qualquer atitude, um insight, quase uma catarse iluminou suas ideias. Ele fixou bem seus olhos nas pupilas desfalecidas e sobressaltadas dos cachorros e chegou à conclusão: _Vocês são melhores e mais fiéis do que qualquer pessoa que se diz pensante. Não vale a pena. Já tinha tomado a minha decisão. Não voltarei atrás – como se ele fosse um prodígio para milagres, essa conclusão foi encaminhada para a sua cabeça pela outra face de Deus. A face que ama mais os animais irracionais do que os animais que leem a bíblia. Ele voltou direto para o banheiro, onde estava guardada a sua verdadeira aspiração. Sem meias palavras, abriu facilmente a barriga de sua mulher. Depois do gesto infame, ficou de pé observando bem o feto. _Ainda não dá pra ver exatamente se o feto tem meu sangue, minha aparência, ou é apenas mais um langanho em minha vida, filho de outro – Depois de uma observação breve, com as suas mãos, puxou o feto da barriga de Mary. O cordão umbilical prendia a criança ainda em formação, mas não foi problema para a faca de ouro branco. Depois de cortá-lo, saiu com o filho para a sala, onde, como um animal irracional morto de fome, iria comê-lo, como fez com aqueles primeiros vômitos no início desta história. Antes da primeira mordida, verificou: seria um homem. Nas primeiras mordidas, ainda chorava um 33


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pouco. O senso comum sempre nos enfraquece. Mas depois lembrou o tanto de problema que aquele menino traria à sua vida, e que esse feto não era cria dele, era de outro. Ele, de certo, amava a mulher, e queria o filho. Mas, em momentos ultrarracionais, egoístas e de desconfiança geral, percebia que os dois só seriam entraves em sua vida. _Não posso negar. Foi a melhor refeição desde que eu renasci para esse novo prazer em minha vida – ele comemora, sem lágrimas. No outro dia, ele estava com fome novamente. Ela já está morta e iria querer que eu me alimentasse. Uma pena não ter vivido para provar comigo tudo que tenho degustado – ele fala sozinho, imaginando cegamente que sua mulher aprovaria os seus atos, indo em direção ao banheiro com um serra de madeira e a sua preciosa faca de ouro maciço branco. Antes que ele terminasse o seu serviço, a campainha tocou. Ele olhou para trás assustado e foi até uma das janelas da sala espiar quem era. Ele não a reconheceu, mas era a enfermeira que estava cuidando de Mary nos últimos dias, por causa de seu estado depressivo. O plano de saúde ofereceu a ela tal mordomia e Mary aceitou: “Seria bom uma companhia naquela casa tão vazia...”. A enfermeira percebeu que a porta estava aberta e entrou. De cara, assustou-se com o cheiro que vinha de dentro da casa. A casa estava toda escancarada. As portas e as janelas abertas. Caminhou pelo jardim, que estava destruído. _Meus Deus! – sussurrou sozinha, indo em direção à porta principal. Na sala, horrorizou-se com o odor e aspecto de destruição da casa. Percebeu que havia pequenos pedaços de merda espalhados pela casa. Sentiu-se observada por alguém que estava no fim do corredor. Assustou-se quando se bateu em uma panela gigantesca e fedorenta no meio da sala. Ele estava no fim do corredor escondido, observando os passos da visita inesperada. A enfermeira caminhou pela sala e começou a chamá-la: 34


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_Dona Mary? Dona Mary... Pelo corredor até a cozinha, seu coração já estava a mil. Ouviu um barulho estranho, parecia um zumbido, fugindo da cozinha e indo para outro lugar. Ela, devagar, foi à cozinha, e constatou que era sua imaginação criando ideias por causa do seu medo. Ela rodou a casa, sem pensar em ligar para a polícia pelo celular. Como se fosse uma vítima calculada meticulosamente por alguém que comanda os destinos e os filmes de terror “B”. Quando chegou ao banheiro onde estava o corpo de Mary, frita e sem o seu filho, não acreditou na cena. Adentrou o banheiro e, de mais perto, conseguiu entender o que era aquilo. _MEU DEUS! MINHA MÃE DO CÉU! – ela gritou e saiu correndo desesperadamente. Quando a enfermeira estava saindo pelo jardim, escorregou em algo roliço que saiu de dentro dele em um dos seus extraordinários vômitos. Ela bateu a cabeça e começou a chorar, deitada ao chão. Quando estava tentando levantar-se, viu uma sombra com uma faca enorme na mão, com olhos avermelhados, dentes pontiagudos, brancos e sujos de sangue, com rosto de humano. Sim. Humano. Não deu tempo de gritar. Ou foi o medo que tirou a sua voz? Ele esfaqueou-a diversas vezes, até que ela ficasse dilacerada. E, com um sorriso juvenil entre os dentes, ficou olhando a cena, esperando que essa refeição também passasse do tempo e ficasse naquele sabor especial: podre e aromático. Depois de algumas horas rodando pela casa, retornou ao jardim para comer de seu jantar. Por curiosidade, procurou encontrar em que exatamente a enfermeira tropeçou. Entre sua grama verde e vermelha, viu dois pedaços de dedo dilacerado. A ponta do dedo mindinho e o meio do dedo indicador. Nesse meio, em especial, tinha um anel. Em sua cabeça, instalou-se, como um flashback, a sua imagem comendo uma mão humana. Depois de um minuto em transe, relembrando, o que naquele momento parecia um sonho, voltou-se a si e, enfim, degustou solenemente o que 35


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merecia. Dois dias depois, alimentando-se e vivendo solitariamente dentro de casa, ele acordou no sofá. Havia quase vinte pessoas em sua sala e outras tantas espalhadas pela casa. Ele continuou fingindo que estava dormindo. Não entendeu por que não tinha sido preso até o momento. Não temeu ser preso. Depois que alguns, como eu, virem a minha obra, entenderão. Ele, em pensamento, afirmou-se em suas convicções. Assim, continuou fingindo que estava dormindo, quando ouviu uma voz feminina falando em seu jardim: _Depois que Paulo Chagas Vitorino de Albuquerque Morais morreu atropelado por um caminhão de coleta de lixo, no centro da cidade, agora a tragédia dessa família só aumenta. A sua esposa, a socialyte Mary de Albuquerque Morais, foi encontrada em casa morta eletrocutada. Provavelmente assassinada. E, de forma misteriosa, o corpo de Mary estava sem a sua perna esquerda, parte de suas tripas e intestino, sem seus seios e coração. E, muito pior, o corpo estava sem o feto, que tinha quase seis meses... Credo! Não consigo, não – disse a repórter, cheia de lágrimas nos olhos e ânsia de vômito, interrompendo a gravação que fazia sobre o caso, abismada com aquela história misteriosa e horrenda. _Continua! – ordenou o produtor da jornalista. Enquanto eles discutiam sobre como fazer a matéria, Paulo lembrou-se do dia em que, antes de atravessar a rua, um homem, dizendo-se poeta, entregou um poema em suas mãos. O que o distraiu na hora de atravessá-la. O caminhão de lixo, que passou no sinal amarelo e dobrou de vez, não teve como frear, atropelando-o. Logo em seguida, sem ferida, sangue e dores, quase pleno, com as pupilas dos olhos dilatadas e cintilantes, Paulo comeu as tripas e parte da mão da outra vítima do atropelamento. E fez isso sentindo um aroma espetacular de podridão, da putrefação, iniciando seu processo de iluminação, com a ajuda do corpo morto que estava estendido ao chão, também atropelado. Mastigava, 36


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dilacerava com seus dentes. Insano e sem dó. Com fome. Como se fosse um trabalhador que come carniças a mando de um plano maior e sabido. _Vou continuar de onde parei – diz a repórter. – O corpo estava sem o feto, que tinha quase seis meses. A principal suspeita é Maria dos Remédios, a enfermeira que cuidava de Mary. Segundo a polícia, ela está sumida e as primeiras buscas já foram iniciadas. As únicas testemunhas que sabem o que realmente aconteceu são os cachorros da família, que infelizmente não têm capacidade de comunicação e raciocínio. Pronto! _Ok. Vamos fazer o “Boa noite” para o fim da matéria – ordenou o produtor. Depois de ouvir a verdade sobre a sua situação, ele levantou-se e, sem muito que fazer, aceitou sua realidade. Foi até seu quarto, pegou o papel com o poema escrito, releu os versos, colocou-o em seu bolso e foi atrás de mais comida. Enquanto passava pela sala de sua casa, percebeu que, além das pessoas que estavam ali, existiam também sombras que, diferentemente das pessoas, olhavam para ele. Mas olhavam escondendo-se nas sombras alheias, nos cantos da casa, elas tinham medo. Sem dar muita bola, Paulo passou pela sala, pelo jardim e saiu. Antes, olhou para a cara de todos que estavam em sua casa, sentiu com detalhes os seus cheiros. “É tão agradável para mim, que se torna uma realidade nojenta”, disse sozinho. E foi atrás de algo para comer, perambulando pela rua como um errante.

Fim

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Depois do fim, a história prossegue... Na rua, Paulo seguia radiante, falava, gritava sozinho, quase delirante, muito extasiado, gritava para Deus, qualquer anjo, ou até mesmo Satã, qualquer criatura que pudesse ouvir a sua vã filosofia: _Alguma coisa putrefata de verdade. Quero carne. Seja fresca, seja podre. Algum coração que não tenha mais habitante. Ou um coração habitado – completou, sorrindo de forma estridente. – Algum órgão desses vitais. Quero comer gente podre. Podre e viva. Pessoas mortas ou vivas, todas são deliciosos pratos podres. Seus delírios e frases não eram ouvidos por quem passava pela rua e seguia sua vida, mas eram ouvidos pelas sombras. Milhares de sombras, sobras de vida em todo canto, no nada, sombras nas sombras que se escondiam dele, que não sentia mais medo e ainda estava com muita fome. Antes que decidisse o que comer, uma voz em tom duplo, ouvida por poucos escolhidos, sussurra em seu ouvido: _Agora, você não é mais Paulo. Você é Nasu. O escolhido para ser o Demônio da Putrefação por mil longos anos. Tem poder no mundo dos vivos e dos mortos. Você conseguiu atingir a meta no seu teste pessoal. Bom. Muito bom. – Até Eles fazem teste! – afirma o narrador. Não precisou que se repetisse o recado para Paulo. Entendeu-o bem e, sorrindo aquém, Nasu seguiu adiante para cumprir seu trabalho, deliciando-se com a humanidade podre, triste e repugnante, cultivadora das mentiras, mesmo depois de fazer parte dela e contribuir com toda essa carniça. Carnificina. Antes que ele dobrasse a próxima esquina, um riso suave sopra no ar, e a voz em tom duplo sussurra novamente em seu ouvido: _Boa sorte em seu caminho. E lembre-se: não há elevação que não passe pela putrefação. 40


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... Pensei que fossem carnes ambulantes Mas são carniças falantes. Os podres estão escondidos. As sombras, à vista. O medo paira. A mentira cativa. Homens. José Couto

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A cama

perfumada Ou Rosinha, eu te amo.



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Na tarde ensolarada, dentro do ônibus vago, Rosa chegava da rodoviária, tinha vindo de seu interior para a capital. Ela veio para ficar na casa de Margarida, a filha da patroa de sua mãe, que era faxineira há mais de vinte anos do casarão daquela família no interior. Agora, Margarida era a sua nova patroa. No meio do caminho, Rosa ouvia mp3 e observava a paisagem. Até que a capital não é tão diferente do interior. Pensou. E, por sinal, talvez os arranha-céus, progresso e largas avenidas tragam alguma diferença e “pomposidade” à cidade grande, mas se vê na fisionomia das pessoas certa agonia, segredos e tristeza, igual às fisionomias conhecidas por ela em seu interior. Ela não trazia muito: uma sacola com seus vestidos feitos pela mãe, que só os trouxe para agradá-la, mas nunca que os vestiria, “são bregas”, afirmava. Duas calças jeans. Uma para usar ocasionalmente e outra, a sua preferida e “de marca”. Rosa trazia também calcinhas, shorts, sutiãs e poucas camisetas. Tinha dois livros: Eclipse, que ganhou no sorteio do colégio rural em que estudava, na comemoração das festas no fim do ano passado, e a Bíblia, o Novo Testamento. Presente de sua avó falecida. Ela era um pouco religiosa, herança de família, e muito inteligente. Acreditava com certeza em Deus, talvez em Jesus, ela não sabia responder. Ela vinha cheia de orgulho e com coragem, apesar de estar com o coração apertado de saudade de sua mãe e irmãos. Principalmente dos seus irmãos. Ela amava a mãe, mas não concordava com tudo que sua mãe designava para ela e para os seus irmãos. Mas, por amor, ela respeitava a mãe e a entendia. “É o sangue. A necessidade da família vem sempre em primeiro lugar”. Dizia sua mãe para Rosa. Do seu interior, ela sentia saudades apenas deles: a sua família. Não tinha boas lembranças de sua cidadezinha. Aquele interior era o fim do mundo e Rosa sempre quis mais. “A terra da mentira e da hipocrisia”. Assim rotulou Rosa para sua mãe, sobre sua cidade. “Na cidade grande também é assim e pior”, replicou sua mãe. Sem medo, já acostumada com o lidar diário, Rosa 45


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aceitou o convite de Margarida para morar com ela na capital e ajudá-la nos serviços de casa. Ela ganharia uma ajuda em dinheiro para se locomover pela cidade, vale-lanches, dentre outras vantagens que a cidade grande tem a mais que aquele interior infernal de onde viera, e “se você se dedicar prontamente aos seus estudos sem esquecer-se do seu serviço, vai ganhar um dinheirinho a mais para comprar umas boas roupas e sapatos”, dizia gentilmente Margarida à menina quando tudo ficou combinado no interior. No ponto de ônibus marcado, estava Margarida acenando. Rosa apressou-se e puxou a cordinha. O ônibus parou, Rosa desceu em passos singelos e disse para a sua patroa: “Oi!” – Margarida respondeu-lhe com um sorriso e ajudou-lhe com as malas. No caminho da casa de Margarida, as duas conversavam: _Rosinha ou Rosa? Como eu posso te chamar? _Minha mãe me chama de Rosinha, mas todo mundo me chama de Rosa. _Como você gosta mais? _Eu gosto mais de Rosa. _Vou te chamar de Rosa. Então, Rosa, é a segunda vez que você vem à capital? _Não. É a terceira. As outras duas vezes foram: uma vez com seu pai e sua mãe, quando eu tinha onze anos. Ficamos naquela sua casa antiga, que tinha piscina, lembra? – Margarida faz uma expressão de quem lembra. – E a outra vez eu vim com minha mãe e meus irmãos, eu tinha seis anos, não lembro muito, mas deve ter sido bom. Faz tempo. _Agora você está com quantos anos? – perguntou Margarida, de forma educada e afável. _Dezesseis. Este ano eu termino o colégio. Antes de ter dezoito anos, estarei na faculdade – afirmou Rosa, inchando seus sonhos com base em seu orgulho. _Que bom. E nós vamos te ajudar. Eu vou te ajudar. Você vai deixar a sua mãe muito orgulhosa quando você voltar pra sua 46


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cidade – disse Margarida, bem sorridente. Rosa sorriu pelo orgulho que dará à sua mãe, mas esboçou no sorriso, de forma escondida, no canto da boca, o desejo de nunca precisar retornar para aquele “fim de mundo”. Depois de três dias, Rosa apaixonou-se pelo estilo de sua nova patroa. Ela vestia-se de forma moderna e, quando queria variar, usava umas batas de hippie, com saias de cigana. Tinha as melhores maquiagens e joias. Tinha lindos sapatos. Tinha closet em seu banheiro. Pelo trato das unhas, toda semana ela deve passar pelo salão de beleza. Pensava Rosa. E Margarida passava nos melhores salões. Faz unha, faz pé, faz cabelo, fala dos outros, não desce do salto, assim era Margarida. Uma mulher independente, inteligente, bem casada e com uma casa linda. Todo tipo de visual descolado passava pelo guarda roupa de Margarida, e parecia que toda felicidade do mundo estava também contida em seu sorriso. A sua patroa exalava energias boas. Era essa a sua impressão. O coração de Rosa ficou feliz, ela teria ali a chance de crescer como pessoa, como mulher. À noite, Margarida bateu à porta do quarto de Rosa. _Posso entrar? _Espera – disse Rosa, dentro do quarto, onde se olhava nua no espelho. Admirava a sua juventude aflorando, amadurecendo. O corpo dela causava inveja a oito entre dez mulheres. Ela cobre-se com a sua toalha e diz: _Entre _Desculpe te incomodar, pequena, é que meu marido Ângelus está chegando daqui à uma hora, depois de uma semana viajando. Ele estava no café literário promovido pela editora dele. Ele é escritor e músico, passa a maior parte do tempo em casa, enquanto eu trabalho. Mas a nossa renda junta dá um bom dinheiro. Você percebe que a nossa casa não é bem pequena, né? Você vai ter um pouco de trabalho – Margarida ri de forma intrínseca e contínua. – Sim! Ângelus é muito calado. Mas é educado. Não se preocupe se ele não lhe dirigir muito a 47


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palavra. É o jeito dele. Mas, acredite: ele não lhe fará mal nenhum. Sempre será educado com você. O que eu quero é o seguinte: você já está aí no seu quartinho, com seu armário, na sua cama, uma TV só sua, com seu espelho particular... – ela dá outro riso, Rosa acompanha a patroa. – Eu quero apenas que você faça o que ele lhe pedir sempre, ok? Ele quer comer: ajeite a comida dele. Ele quer dormir: venha fechar a janela do quarto e ligue o ar condicionado para ele. Eu conheço bem meu Ângelus. Aqui para nós... – ela chega bem perto de Rosa, olha em seus olhos e continua com a voz bem baixa. – Ele é contra eu ter tirado você de perto de sua mãe. Mas nós duas sabemos que isso só te fará bem, não é, Rosa? E, depois, você é tão linda. Só tem a melhorar. Ele vai compreender o quanto foi bom para nós você vir para a nossa casa – depois de cinco segundos calada, olhando os olhos de Rosa, ela continua: – Ah! Nunca deixe o estúdio de áudio-visual de Ângelus sujo. Ele trabalha nele e, quando está sujo, não consegue criar nada. Ângelus tem um pouco de mania de limpeza. Ele é acostumado assim, mas é gente boa. Entendeu, Rosa? – Margarida termina a sua fala apertando a bochecha de Rosa de forma delicada. Elas sorriem em comum acordo. Margarida sai do quarto cheirando a ponta dos seus dedos. Rosa fecha a porta, sem trancá-la, e fica nua de novo. Margarida abre a porta de surpresa, assustando Rosa, que se cobre rapidamente, e pergunta: _Que perfume é esse? _É... – Rosa fica embaraçada. _Olha, mulher, não fica assim. Também tenho uma como a sua – as duas riem. Rosa, ainda coberta com a sua toalha, vai até a gaveta, pega o perfume e entrega à sua patroa o pote. _Está no final – constata Margarida. – Vou à rua e comprarei dois, um pra mim e outro pra você – elas riem novamente. Depois de uma hora, Ângelus chega em casa. Margarida recebe seu marido com muitos beijos e afagos. Rosa estava na cozinha lavando os pratos. 48


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_Rosa! – Margarida grita, de forma educada, chamando-a para apresentá-la a Ângelus. Rosa vem calmamente da cozinha até a sala. _Rosa, esse é o seu patrão e meu marido: Ângelus. Rosa, sem jeito, mas sem vergonha, levanta a mão direta para cumprimentá-lo. Ele retribui. _Oi. Seja bem-vinda – ele cumprimenta-a e continua sua fala, mas dirigindo-se à Margarida. – Meu amor, pede pra ela guardar tudo que eu trouxe nessa mala, no meu estúdio, naquelas prateleiras vagas. _Você ouviu, Rosa. _Ok – responde Rosa, que sai com um olhar pensativo. Mas antes que ela fosse fazer o que Ângelus pediu, terminou de lavar os pratos. Depois de quase uma hora organizando no estúdio todos os livros, documentos e CDs que estavam na tal mala, Rosa escolheu um dos livros e desceu para o seu quarto. Entrou e trancou-se. Depois de quinze minutos, saiu e foi para o banheiro, com uma toalha nas mãos, para tomar banho. Ângelus, que tinha ido verificar a arrumação, deu conta da falta desse livro. “Onde está o livro que nem tirei o plástico ainda?”. Perguntou-se. Ele desceu e foi até o quarto da menina. A porta estava entreaberta. Ele bateu duas vezes e ninguém o atendeu. Adentrou o quarto. Em cima da cama, estava o livro. “Já começou fazendo o serviço errado.” – reclamou-se em voz alta. Antes que Ângelus pegasse seu livro, uma fragrância maravilhosa tomou conta de seu nariz e pulmões. _Que cheiro é esse? – perguntou-se. Ele procurou pelo quarto, mas não identificou. Depois de uns dois minutos procurando pelo cheiro, Ângelus percebeu que Rosa estava destrancando a porta do banheiro e saiu do quarto rapidamente, com o livro em mãos. _O senhor quer alguma coisa? – ela perguntou para o seu patrão. Ele, que estava caminhando de costas para ela, não respondeu nada. 49


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Depois da primeira semana de aula, Rosa já estava mais ambientada. Adorou o colégio novo. Ela era novidade e a sua beleza interiorana fez sucesso com seus colegas. Nesses dias iniciais, ela acostumou-se à seguinte rotina: de dia, às seis horas, já estava de pé preparando o café da manhã. Ela tomava seu café com a sua patroa, enquanto Ângelus só acordava perto das nove. O humor de Margarida é maravilhoso pela manhã. Pensava Rosa. Às nove, quando Ângelus já estava no banheiro escovando os dentes, ela fazia um ovo frito e preparava a fruta que ele comeria naquela manhã. Quando um mamão, ela cortava e tirava as sementes. Quando uvas, ela as tirava do cacho e deixava em um pires para ele comer. Quando banana, ela descascava, cortava a fruta em rodelas e misturava com mel. Ângelus tinha uma alimentação balanceada, apesar do ovo frito. “Pela manhã, não tem problema”. Dizia Ângelus a Rosa. Esses dias foram maravilhosos. Nas manhãs, o clima era agradabilíssimo ao lado de Margarida. Rosa, em pouco tempo, já a considerava a sua segunda mãe, ou melhor, uma segunda mãe passageira. Seria a sua porta de entrada para a independência financeira. Mães servem para isso. Concluía Rosa, quando pensava sobre a patroa. _Ela realmente tem brilho, é inteligente, bem sucedida, bem casada, tem uma casa muito grande, um pouco sem verde, meio cinza, não são como as casas que estou acostumada a ver no interior, mas é uma casa grande e aconchegante – dizia Rosa, para uma de suas novas colegas de colégio. A rua onde eles viviam sempre estava vazia, apesar das casas grandes e constante movimento de carros. Rosa não entendia por que os vizinhos não se falavam e, quando se falavam, não passavam de duas palavras e muitos cumprimentos formais: bom dia, boa noite. Ela aprendeu que, ao meio dia, o almoço deveria já estar pronto. Ângelus tinha mania de almoçar sempre ao meio dia em ponto. Nem antes, nem depois. Ele tinha manias estranhas. Mas Rosa preferia 50


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não enxergar e agradar ao seu patrão. Aquele convívio com essas pessoas de sua nova vida lhe trazia bens demais para se ater em pormenores. Ela só via coisas boas. Durante as tardes, ela ia para o colégio, onde era uma festa. Depois de três semanas, tornou-se atração principal entre seus colegas. Mas, mesmo com os muitos olhares cobiçadores, Rosa não se esquecia de seu principal intuito, e aplicava-se no cuidar da casa onde vivia e, principalmente, em seus estudos. Desde criança, mesmo com todas as dificuldades e acontecimentos que existiram em sua vida, Rosa sempre gostou muito de ler. Ela sabia que a leitura iria tirá-la daquele inferno: seu interior. Nessa sua vida nova, o que estava em jogo era o seu futuro. Durante as noites, era tudo mais calmo. Depois de preparar e servir o jantar, que sempre era resto do almoço, Rosa lavava os pratos e ia para o quarto ver TV, estudar, sonhar e dormir. Durante essas primeiras semanas, ela percebeu que alguém estava sempre rondando seu quarto e, quando não, sentia que estava sendo observada. Quem a olhava? Ela não se perguntava, apenas deixava. Já sobre o seu quarto, sempre em momentos nos quais ela estava pela cozinha lavando os pratos, varrendo pelo quintal, limpando os banheiros, ou no colégio, nunca em seu quarto, era o momento em que alguém ia ao seu dormitório. _Uma menina de dezesseis anos não pode ficar investigando esse tipo de coisa, eles são meus patrões, sabem o que fazem. E, se eles me olham, é porque querem ver como está o meu serviço – concluía Rosa, para a mesma colega do colégio. E, assim, com esse pensamento, ela fazia questão de criar lacunas em seu tempo para deixar que entrem em seu quarto e procurem pelo que estejam procurando, e mais, analisem o seu trabalho. Que a analisem. Depois de dois meses, Margarida definitivamente tinha perdido aquele bom humor matinal. Na verdade, ela havia perdido o seu brilho. Em uma noite, Margarida chegou 51


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estressada em casa e, por uma pequena besteira, a falta de açúcar no açucareiro, brigou de forma truculenta e humilhou Rosa, jogando os pratos de comida inteiros no chão para que ela limpasse e depois lavasse. _Você está com a vida boa demais. Pensa que eu não sei? Eu ando te analisando. No colégio, só quer saber de namorar. Aqui em casa, Ângelus não te dá nenhum trabalho, quase não vejo você estudando – toda noite Margarida a via estudando. – E ainda você acha que tem o direito de estragar a nossa janta assim? Cadê o açúcar, sua folgada? – disse Margarida, de forma irônica, jogando os pratos no chão. – E limpe tudo depois, bem limpo – completou a patroa. Rosa assustou-se, mas as palavras não a derrubariam. Talvez Margarida não esteja em seus melhores dias. Pensou Rosa. Realmente, não eram os melhores dias de sua patroa. Margarida começou a ficar irritadiça, reclamava e humilhava a empregada quase todos os dias. Rosa não chorava, sentia muita raiva, sabia que seu sonho era maior e seu orgulho também. Rosa parecia uma menina frágil e inocente. Mas, no fundo do seu olhar, tinha garra e muita vontade de crescer e ser realmente uma mulher independente. Em quatro meses, Rosa só tinha sossego depois que a sua patroa saía para o trabalho pela manhã, à tarde em seu colégio, onde o seu rendimento não era mais o mesmo, apesar de ser querida pelos professores e colegas, e à noite, depois que a Margarida chegasse, jantasse e fosse deitar. Durante a noite, ela sentia muita paz e alívio. Não há o que temer, em breve terei o que preciso e quero. Juntando forças e remoendo motivos, Rosa pensava antes de dormir. Sete meses depois, Rosa, apesar do desempenho mediano, passava fácil pelo colegial. Nesse meio tempo, fora de sua morada no interior, ela teve boas experiências. Amou um dos colegas de classe e, platonicamente, um professor. Fez muitos amigos. Conseguiu ir a boas festas, duas vezes escondida e três vezes permitida pela Margarida. Apesar do 52


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terror que se tornava a convivência com a patroa, ela sentia ainda mais orgulho de si, por ter passado por tudo que já passou na vida. Por isso, jogou-se de cabeça em suas metas intensificando seus planos em relação à sua independência financeira. Todos os dias, antes de seu último banho, ela trancava-se em seu quarto e, depois de quinze minutos, saía para se banhar. Era certo que alguém entraria e teria contato direto com a sua cama. A sua cama perfumada. E esse cheiro seria seu trunfo em busca de sua independência. Nesse mesmo dia, da sala, uma hora da madrugada, veio a voz irritadiça de Margarida: _Rosa! Venha até aqui na sala. Rosa vai à sala com os seus trajes íntimos de dormir. _Isso é roupa pra vir até a sala? Você não sabe que temos um homem em casa? Você sabia que cinco a cada sete meninas como você, que vêm desses interiores fim de mundo, que se vestem como vadias dessa forma, são molestadas pelo seu patrão? Vá botar a roupa de trabalho e volte. Você tem sorte que Ângelus é um homem digno. Margarida dá um safanão em Rosa e bate na bunda da menina de forma agressiva, passando o dedo entre as bandas. Essa puta parece gostar da minha cara de dor. Rosa pensa. No quarto, ela troca-se rápido e veste um uniforme que Margarida deu-lhe, volta para a sala e pergunta: _Do que a senhora precisa, dona Margarida? _Eu não falei para a senhorinha que era pra limpar essa TV e esse rack hoje? Olhe como eles estão empoeirados, parecendo o seu quarto. Rosa limpava pouco o seu quarto, por cansaço, mas a sua cama sempre estava arrumada e perfumada. _Dona Margarida, hoje eu fiz tudo como a senhora me pediu. Não terminei esse último serviço porque vim para o quarto rápido pra estudar. Tenho provas pela frente. Desculpe-me. Amanhã cedo eu limpo. _Você vai limpar agora. 53


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_Mas você e seu marido nem vão mais assistir TV hoje... _Quem te perguntou isso? Quer voltar pro inferno de onde veio? Quer ser uma lascada, analfabeta, como a sua mãe? Limpar merda dos outros a vida toda? – Rosa tenta expressarse, mas antes: – Cala a boca, sua cadela! – Margarida ordenalhe e dá um tapa na cara de Rosa. Vai até a cozinha, enche um copo de 300ml com leite, volta até a sala e joga o copo de leite em cima da TV. O copo estraçalha-se, não quebra a TV, mas suja tudo. _Limpe agora. Ou amanhã você nem vai acordar aqui na capital. Rosa, audaz, fez uma cara de quem estava gostando daquilo tudo. Margarida percebeu e agrediu a menina com socos em suas costas. _Vai ficar aí com esse sorrisinho? Vá! Limpe logo! – gritou a patroa. Ela realmente gosta. Pensou Rosa, que foi até a cozinha, pegou os materiais de limpeza e veio limpar. Depois de 40 minutos, terminou. Ela achou estranho a câmera caseira de Ângelus estar ligada e filmando toda aquela cena. Ele a esqueceu ligada aqui na sala? Pensou, e até se viu roubando o vídeo, denunciando aquilo tudo. Mas, para quê? Para voltar à merda do meu interior e perder tudo que quero pra mim. Ela concluía em silêncio e limpando a sala. Depois do trabalho-matinê, Rosa estava no banheiro, já eram quase duas e meia da manhã. Ela olhava-se no espelho e imaginava como faria para disfarçar aquela marca em seu rosto (ou que mentira contaria), para quem a perguntasse “o que era aquilo?”. Margarida tinha marcado seu rosto com um tapa. A porta do banheiro abriu-se bruscamente. Rosa assustou-se. Era Ângelus. _Desculpe. Não sabia que você estava aqui. Termine que uso o banheiro mais tarde. _Tudo bem, senhor. Já estou de saída. 54


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_Fique. Desculpe-me. Volto depois. Ângelus fechou a porta. Mas, depois de uns quinze segundos, ele tornou a abri-la. Dessa vez, Rosa não se assustou. _Você precisa de alguma coisa, senhor? – disse Rosa, olhando seu patrão de forma singela, com a cabeça abaixada e os olhos para cima. _Quando você chora assim, fica linda. Mas fica melhor ainda sorrindo – ele fecha a porta e volta para o quarto. Rosa abre um sorriso discreto e satisfeito, e Ângelus, que nunca se manifestou ou disse nada a respeito de sua mulher maltratá-la, nem quase lhe dirigia a palavra, conseguiu tirar dela um belo sorriso e proporcionar-lhe uma boa noite de sono. Já com onze meses de estadia, era aniversário de dezessete anos de Rosa, no qual ela não ganhou absolutamente nada de Margarida, mas, de Ângelus, ganhou um livro. _Obrigado, senhor. Imagine alguém te olhando do escuro. Nunca ouvi falar desse livro – comentou Rosa. _É um livro apropriado para maiores de dezoito. Mas você já tem dezessete. Tá pertinho. Pode ler – Ângelus, sempre sério, mas dessa vez a sua seriedade era cortada por um leve sorriso nos lábios, deu a ela de presente o tal livro. No ano novo, dez dias depois do aniversário de Rosa, a sua mãe veio para a capital com dois dos seus irmãos mais novos. A sua família era composta por: ela (a irmã mais velha), a sua mãe, e mais cinco irmãos. Quatro homens e mais uma menina, a mais nova, que era deficiente mental. Nas festas na casa da mãe de Margarida na capital, Rosa não comentou nada sobre o que acontecia com ela para a sua mãe. Muito pelo contrário, mostrou para a mãe o quanto estava feliz e tinha vergonha da sua antiga vida no interior. _Mãe, aqui é uma cidade de verdade. Não traga mais pra mim esses vestidos. Parece coisa de matuto. Eu não sou uma – Rosa falava para a mãe, que tinha um coração tão bom para todos 55


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que a conheciam socialmente, e reconhece a si mesma na filha, quando tinha a mesma idade. _Tudo bem, minha filha. Mas você está feliz? Está estudando? _Sim. Com certeza. Quando preciso de ajuda, a dona Margarida me ajuda. Ela é ótima. _E o marido dela? _O que tem o senhor Ângelus? _Você já tá uma mulher e sabe do que estou falando. Não se faça de besta. _Ele me olha. Mas sempre de longe. Ele é muito educado. Apesar de calado. _Cuidado, filha. Tenha muito respeito pelos seus patrões, que eles lhe darão respeito também. _Mas, no interior, respeitar era diferente. A senhora sabe muito bem disso. Já está grandinha também – disse Rosa, irônica. _O que você disse? Onde é que você está aprendendo a ser tão mal educada? _Eu não disse nada. _Tá aprendendo a ser respondona aqui, Rosinha? Respeite quem é de seu sangue. Quer voltar pra esse lugar que você odeia? _Não, mãe. Desculpe. _E digo mais: lá tínhamos respeito demais pelo nosso patrão. Não é? Se não fosse a ajuda dele, não sei o que seria de nós. Depois de um silêncio morno entre as duas, a mãe de Rosa diz: _Está diferente mesmo por lá. Desde que o seu Túlio faleceu. _Não está melhor? _Faz falta aquele dinheiro que ele dava pra nós pelos seus cuidados. Mas agora tá melhor mesmo, pelo menos tenho menos trabalho. Com aquele velho vivo, a gente não parava. _Mãe, vamos parar de falar do pai da dona Margarida. Hoje só quero festejar. _Tudo bem, filha. Uma semana depois, Margarida, ainda no amanhecer, 56


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acordou-a, usou e abusou de novo do seu maltrato com Rosa. Ela sujou de propósito a sala com uma das lixeiras da cozinha e a fez limpar. “Esse é seu verdadeiro presente de aniversário”. Dizia Margarida à menina. Rosa limpou, e com aquela feição de prazer. Margarida olhava sua face e atacava a menina com mais agressividade. Realmente parecia gostar. A patroa ordenava: limpa aquilo, passa isso, faz o café, pedindo tudo de forma grosseira e sem escrúpulos, sem esquecer-se de dar uns pequenos tapas e arranhões em Rosa, que, por sua vez, entrou no jogo da patroa. Ela tinha certeza de que Margarida adorava vê-la sentindo dor e com a expressão tristonha, com um sorriso pequeno na boca. E quando uma rara lágrima, talvez de dor, descia, Margarida ficava até mais arisca com Rosa. Engraçado é que, durante a noite, ela não parecia usar todo esse prazer com seu marido. Nesse mesmo dia, à tarde, quando disse aos professores que estava sentindo-se mal, Rosa voltou para casa mais cedo. Ângelus estava na sala, só de cueca, o que não era novidade para ela. Essa era uma de suas manias estranhas. Desde o início, ela nunca se incomodou, até acostumou-se a vê-lo assim. Gostava do que via. Ângelus tinha perto dos quarenta, mas conservava uma boa forma e aparência. Margarida também era bonita, mas, para os homens da idade de Rosa, não. A patroa já tinha mais de quarenta. Em casa, Rosa passou direto pela sala e foi para o quarto. Ela entrou e deixou a porta entreaberta. Já tinham meses que ela deixava a sua porta entreaberta. Hoje, a porta do seu quarto abriu. Era Ângelus nu. Rosa assustou-se e tampou os olhos. _Não precisa tampar os olhos. Eu sei que você já viu isso. Todo mundo de sua idade, hoje, se não viu ao vivo, viu pela internet. E eu sei de seus namoradinhos. Margarida me disse tudo sobre você – ele diz certo e sorrindo. _Mas o senhor é casado. Saia do meu quarto. _Margarida te explicou que você tem que fazer tudo que eu quero? 57


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_Nem tudo – ela já falava olhando diretamente para o pênis alterado de Ângelus. – Por que isso? Pra que isso? Você não vai me fazer nenhum mal? – Rosa indagava com um olhar acuado e começou a chorar. Vítima. _Não. De jeito nenhum. Só quero que você deixe-me aqui em seu quarto. Só vou te fazer bem. A Margarida só chega às sete da noite. Temos muito tempo. Quero descobrir de onde vem esse cheiro que aflora de sua cama. _Que cheiro? – Rosa, com uma voz meiga e tímida, pergunta. _Esse cheiro. Você não está sentindo? – Ângelus pergunta a ela com um sorriso na boca e encarando-lhe nos olhos. Rosa nada diz, prefere evidenciar e demonstra nervosismo. _Calma, calma, menina. Quando fazemos tudo devagar, sempre chegamos à meta. Tenha calma. Rosa estava calma, mesmo sem parecer, e o deixou dentro do quarto. Mesmo assim, ele nada fez, só disse, de forma educada, enquanto fechava a porta: _Eu entendo que você não queira fazer nada, eu só quero uma coisa: me olhe. Rosa sentou-se na cama e ficou olhando Ângelus masturbar-se até gozar na sua frente, como um adolescente que descobriu o bom do cinco contra um. Quando ele terminou, ofegante, perguntou: _E esse cheiro, quando o terei? Rosa não respondeu. Olhou para ele com olhos de condolência e um riso etéreo. Ângelus saiu do quarto sem falar mais nada. Antes das sete horas da noite, Rosa foi até o estúdio, onde estava o seu patrão, e perguntou: _Você que entrava sempre em meu quarto quando eu não estava? _Entro sim. Todas as noites, enquanto você está banhando. Venho sentir esse cheiro em sua cama. É o seu cheiro, não é? – ele pergunta a ela. – Depois de sentir o cheiro, saio do seu quarto excitado e trepo gostoso com Margarida – Ângelus completa. Entre eles, acontece um breve silêncio. _Trepo com ela pensando em você – afirma Ângelus. Mas Rosa 58


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muda de assunto e pergunta: _Por que você demorou um ano para vir assim ao meu quarto? Por que esperou tanto para me procurar? _Rosinha, eu não falo pouco à toa, falo pouco porque com certeza sou um homem de princípios e, confesso, desde a primeira vez que entrei em seu quarto, senti esse cheiro e te vi saindo do banheiro de toalha, essa sua imagem de toalha, o cheiro, isso tudo ficou em minha cabeça, mexendo comigo. Demorei porque tive que demorar. Tenho princípios. _Dona Margarida entende esses seus princípios? – indolente, perguntou Rosa. _Pequena, Margarida te trouxe pra cá sabendo que isso poderia acontecer. E você sabia também – disse Ângelus, com um riso incomum, rangendo os dentes. _Não venha mais ao meu quarto. Apesar da negativa, Rosa saiu do estúdio, cheia de orgulho em seus lábios risonhos. Ângelus não disse nada e voltou para o seu amado trabalho. E, bem tranquilo, escreveu versos para um novo projeto musical e conceitual. No outro dia, Rosa saiu mais cedo de seu cursinho prévestibular e chegou mais cedo em casa. Ângelus estava em seu estúdio compondo algo. Rosa entra sem bater e pergunta: _Boa tarde. O senhor precisa de algo? _Não, querida. Tenho que me concentrar aqui. Obrigado. _Qualquer coisa, a porta do meu quarto está aberta, é só chamar. Depois de dez minutos, Ângelus bate à porta de Rosa e pergunta com uma voz doce e bem intencionada: _Posso entrar? _Sim. _Quer me ver de novo? _Talvez – Rosa responde relutante. _Talvez, no meu vocabulário, é sim. Rosa sorri. Ângelus não perde tempo e tira suas calças. Ele estava apenas de calça, não costumava usar camisa e nem 59


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cueca em casa. A não ser nos momentos em que está apenas de cueca. Ele já estava alterado. O fato de ele ter a perspectiva de possuir aquela ninfeta o deixava com o pênis inchado. Rosa, dessa vez, olhou para ele com mais precisão e disse: _Mudei de ideia. Pensei bem e acho que você pode descobrir mais do tal cheiro que te transformou em um invasor de quartos – disse, rindo. Ângelus sorri e encosta bem devagar nela, começando a beijála no pescoço, na boca e pelas costas, ao mesmo tempo em que tirava a sua camisa tamanho “p”. Ângelus mamou nos seios imponentes como as pirâmides do Egito como se mamasse em uma mãe-deusa das belezas canônicas do mundo. Ao mesmo tempo, esfregava-se pelo corpo da menina, como um asno cheio de tesão pela sua égua, como um cachorro tarado por canelas. O seu short, Rosa tirou, desprendendo-se de Ângelus, que parecia estar no cio, deitando-se enfim em sua perfumada cama. _Vem, anjo – disse Rosa, em sua cama, de calcinha, sem sutiã, para Ângelus. Depois de quase uma hora, Ângelus saiu do quarto de Rosa. Ele estava suado e um pouco ofegante. Seu olhar era de satisfação. Ele vestiu-se e foi a uma banca qualquer comprar cigarro. Rosa ficou em sua cama, perfumada, deitada. O cheiro era todo dela, só que Ângelus ainda não tinha percebido como ele surgia e exalava, tomando conta da cama e do quarto. Rosa, afortunada, estava nua. E só Deus podia ver a sua exuberância. Ela tinha em seus lábios um contentamento e, em seu peito, um gosto de vingança. Agora vou usar e abusar dele. Refletiu Rosa. Ela não era menina virgem desde o seu interior. _Agora só me falta a independência... Rosa falava sozinha, no quarto, com um olhar de sonhadora. Dias foram-se, noites chegaram, e o amor, da parte dela, e o sexo, da parte dele, repetia-se com frequência. Como nunca, ela amou esse homem. Era um homem de verdade. Margarida não merece esse homem. Pensava nos momentos 60


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em que estava sendo humilhada pela patroa. E essas humilhações passaram a ser, depois de começar esse caso, até certo ponto, prazerosas para Rosa. Ela olhava para a sua patroa e sentia pena, ou então graça, pois via o prazer nos olhos de Margarida quando a atacava de alguma forma. Mulher patética. Será que ela transa com Ângelus pensando na surras que me dá? Pensava Rosa, rindo por dentro. Ângelus e sua empregada passavam o dia a sós. Rosa estava apaixonada, amando de verdade seu patrão. Na cama dela, depois do sexo, ele dizia o porquê do caso deles: _Rosa, não aguento mais Margarida. Eu sei que você também não aguenta. Eu quero coisas diferentes. Sensações novas em minha vida. E você tem sido a luz, a grande verve dessa mudança que sinto por dentro. Você me traz um fogo interno que deve queimar apenas no inferno mais profundo de todos. _Você não sente mais isso pela sua mulher? _Não. Só quando te toco – ele diz. Ângelus acaricia Rosa entre as pernas e completa: _Está incontrolável a minha vontade de te ter – Ele falava isso com chamas nos olhos. Ela sorria de felicidade, às vezes entendia, outras não, mas achava bonita as suas palavras. Ela realmente não sabia o que era verve, nem entendia aquele prazer e sentimento de Ângelus. Mas ela o amava e nunca havia se sentido daquele jeito. Os dias foram passando. Rosa já não aguentava mais ficar longe de Ângelus. Contava as horas para Margarida ir ao trabalho. E, quando eles ficavam a sós, era maravilhoso. Nunca Rosa sentiu aquela forma de gozo em sua vida. A menina entregou-se de cabeça, mas, mesmo com toda sua entrega, Ângelus parecia insatisfeito. Então, numa tarde ensolarada como o dia em que ela chegou à capital, Rosa indagou o seu amante-patrão: _O que você precisa pra que eu te satisfaça? _Preciso do novo. _Que novo? 61


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_Se eu te falar, você não me acha louco? _Não. Diga! _Espera! Ângelus foi até o quarto em que dormia com Margarida quase correndo e pulando de felicidade. _Está vendo isso? – ele, de volta à sala onde eles tinham acabado de transar, mostra a ela uma câmera filmadora. _Sei. Conheço. É a câmera caseira de vocês. _Eu quero te gravar. Ela não gostou nem desgostou da ideia, aceitou para agradá-lo. Eles foram ao quarto principal da casa, o quarto dos patrões, acoplaram a câmera no tripé e treparam de forma animal em frente a ela. Ângelus exigiu que Rosa usasse algum tipo de máscara. Era um fetiche dele, assim como, quando ele estava penetrando, dava closes na penetração. Depois de trinta minutos: _Por que você não filmou meu rosto? – pergunta Rosa, depois do sexo. Ângelus fica em silêncio e, encarando-a nos olhos, diz: _Pra te preservar. Os vídeos, hoje em dia, são muito perigosos. Se é que você me entende – ele responde, com um pequeno ar de insatisfação com a pergunta. _Fiz alguma coisa errada, meu amor? – ela diz, preocupada. _Não – ele desconversa. – Vire-se agora e se deite. Ponha os seus braços para trás, que vamos te amarrar um pouquinho – ele diz, mostrando-lhe o cinto. _Vai machucar os meus pulsos, esse cinto. _Vai não, amor. Farei o laço bem de leve, só farei com força o meu movimento em cima de você – Ângelus sorri. Rosa sorri também e deita como ele pediu. Mas, antes, ele lembra-lhe: _Pequena, não se esqueça de pôr a máscara. Um ano e meio depois da chegada de Rosa, sua relação com Margarida ora intensificava e ora tranquilizava, mas não mudava muito. Já o amor entre ela e seu patrão acontecia todos os dias. Ângelus, apesar da idade, tinha fôlego de um adolescente de dezessete anos. Com o passar dos dias, ele, 62


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sempre estranho, mudava cada vez mais a forma de transar e gravar as cenas. Virou febre fazer esses vídeos caseiros. _Eu quero o novo, cansei do igual – ele queixava-se e inventava um novo quadro para filmar. Rosa, que o amava, mesmo se incomodando um pouquinho com algumas das novas ideias de Ângelus, sempre compartilhava. Essas experiências faziam parte do que ela escolheu. E Ângelus continuava inovando: amarrava e enfiava nela, de forma estúpida, sua pica, e objetos estranhos eram penetrados em via dupla. Rosa machucava-se toda, mas o amor curava. Quando ele não a amarrava com cordas, eram com cipós, cintos. Quando não estava mais tão ereto, eram vibradores, pepinos, velas consideravelmente grossas, garrafas plásticas e vazias de água mineral, etc. Tudo com interesse em vê-la sendo deflorada e gemendo. Quando ele queria sentir mais poder, amordaçava-lhe de um jeito que a fazia perder o ar, e a comia dessa forma. Ela gritava de dor, com o pau de Ângelus em seu cu e uma garrafa ks de Coca em sua boceta. Sem citar a máscara, que se tornou quesito obrigatório no sexo dos amantes. Isso o deixava loucamente excitado. Tão excitado, que Ângelus começou a comprar vários tipos de máscaras diferentes para usarem nas gravações. As máscaras eram das mais engraçadas, como de celebridades e ex-presidentes, até as mais assustadoras como a do It (A Coisa ou o Palhaço Assassino, de S. King) e de animais com feições assassinas e perturbadoras. Rosa tinha um pouco de orgulho disso, apesar de seu incômodo, porque tinha certeza que Margarida não o satisfazia como ela. E ela o amava, mesmo sendo tudo documentado. O sexo preferido de Ângelus com Rosa era amarrá-la de cabeça para baixo, com as pernas abertas em um ângulo que facilitasse a penetração pela vagina ou pelo cu, ou ambos, e ainda saísse bem na tela. E os gostos mais estranhos de Ângelus eram dois, tinha um pouco de escatologia e necrofilia. Na hora da necrofilia, Ângelus pedia que Rosa deitasse de bruços por cima de um cobertor, que cobria uma 63


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camada de cubos de gelo, que estava em um caixote, e que parecia mais um caixão. E, pelas costas, ele praticava a sua sodomia filmada, no corpo imóvel e gelado da menina. Rosa, que ficava morrendo de frio, nada falava, nem gemia. _Não gema e não abra os olhos, não fale nada, fique como se fosse uma morta – ele ordenava. E quando Ângelus envolvia escatologia, era nojento no ponto de vista de qualquer pessoa, menos no dele e, pelo visto, no de Rosa, porque disso ela também gostou, apesar de estranhar a ideia. Mas um dia ele pediu: _Rosinha, amanhã fique o dia todo sem cagar. No final da tarde, estarei em casa e eu te explicarei por que. Nesse fim de tarde, com os dois nus na sala, Ângelus explica: _Olhe, menina! Ficarei aqui deitado e com a câmera ligada. Bote a sua máscara e venha dali – ele aponta para a porta do quarto dela e continua. – Chegue por cima de mim, se acocore de costas para o meu rosto e, em cima dos meus peitos, cague. Ela achou muito estranho, mas o fez. E ele filmou o cu da garota cagando. E, depois, masturbou-se, com ela observandoo, vendo o vídeo na TV da sala. Rosa, depois de algumas práticas como essa, até passou a gostar e acompanhar o seu amante nessas fantasias. Ângelus também passou a cagar em cima dela e deixar o seu cu ser filmado, para depois trepar com Rosa vendo o vídeo. Talvez ela já tivesse a pré-disposição para tal ação, por isso tanto entrosamento. O curioso nisso é que ele nunca filmava o rosto de Rosa. Apesar de tudo, ela o amava. Tinha dias que ele, de madrugada, quando Margarida estava naquele sono roncador, aparecia no quarto de Rosa e, com ela, fazia amor de forma comum. Sem a câmera. Em um dia rotineiro, Rosa estava com Ângelus em seu estúdio, aprendendo como editar e produzir aqueles vídeos, quando ela pergunta: _Meu amor, você ainda não descobriu de onde vem o cheiro que te excita tanto? _Sinto sempre em seu lençol, em sua cama. Deve ser alguma 64


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loção afrodisíaca que vocês, mulheres, compram nessas revistas de cosméticos. _Não. Não é. Quer saber de onde vem o cheiro? _Quero. Como é? _Quero que você me filme. Vamos para o meu quarto. No quarto dela, ele prepara a câmera, só de cueca. Rosa coloca um dos vestidos cafonas que sua mãe fez e diz sorridente: “Como você gosta, vou ser sua menininha travessa...” Ela tira a calcinha e deita-se em sua cama. Lentamente, levanta a saia até a cintura e, com o dedo indicador, começa a tocar-se. Com outros dois dedos da outra mão, penetra-se. E, durante uns dez minutos, masturba-se para a câmera e seu câmera pessoal. Ela goza, bem silenciosamente. Como Ângelus já havia sentido antes, dessa vez, observando com mais atenção, vê que Rosa goza de forma avassaladora. O líquido sai em quantidade estupenda, como se fosse um homem gozando. Ela realmente é uma mulher diferente. Ele pensa, constatando. Ângelus não aguenta e vai até ela, que, ofegante, ordena para ele: “Fique aí! Não terminei...”. Depois desse dia, Ângelus guardou esse vídeo com carinho. Quase dois anos depois, Rosa já estava cursando o curso de Administração, ainda morava com Margarida e Ângelus. Ainda sofria com as humilhações de sua patroa, amava loucamente e trepava mais que insanamente com Ângelus. Mesmo com isso tudo, Rosa sabia que podia mais. Ela veio querendo mais pra si. Não precisava continuar perto da patroa. Apesar do seu amor, ela tinha certeza que poderia conseguir sua independência sem precisar confrontar Margarida. Ela estava no limite, mesmo com seu coração ocupado. Ela não aguentava mais as loucuras da patroa. Queria formar-se, ganhar grana, pegar o “Ângi” e tirar Margarida das suas vidas. E ainda vou ficar com a casa dela, mas, antes, vou convencer Ângi a divorciar-se e, depois, entraremos na justiça para pegar a casa. Rosa arquitetava em seus pensamentos. E os 65


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dias com Ângelus continuavam entre deleites e prazeres, dores, odores e sadomasoquismos lancinantes. Apesar de todo esse amor único e original, ela estava cansada de não ser assumida por Ângelus. Já tinha tentado conversar duas vezes sobre o futuro e hipotético divórcio entre ele e sua atual mulher. Todas as duas vezes que Rosa puxou assunto, Ângelus desconversou. Disso, decidida, pensou em ir embora. _Vou procurar outro emprego, ir morar só, ele sentirá minha falta. Não ficará sem meu cheiro. Assim o tomarei de vez pra mim – Rosa afirma para si, enquanto tomava banho. Já fazia um bom tempo que ela entregara-se de corpo e alma para Ângelus, e nada de conseguir convencê-lo a largar a velha da Margarida. Nem a sua beleza jovial e escaldante, nem a sua entrega sexual, nem a aceitação de todas as loucuras de Ângelus e as exposições de seu corpo sendo “bulinado” nos vídeos que ele filmava. Nada. Nada fazia Ângelus largar Margarida. Rosa, então, olhando-se no espelho de sua faculdade, e reconhecendo a sua enorme beleza, decidiu partir atrás de uma nova vida. Vou contar tudo à Margarida. Ela vai ter o que merece e, depois, vou embora. Se ele quiser, sabe onde me encontrar, se não quiser, vou esquecer tudo – Rosa pensava sozinha, ela sabia de sua competência para a vida. Naquela tarde, ela não assistiu às suas duas últimas aulas e voltou para casa mais cedo. Iria contar para Ângelus sua decisão. Rosa, assim que chegou à frente de casa, viu o carro de Margarida parado. A patroa chegou cedo hoje. Pensou. Ela abriu o portão silenciosamente e entrou em casa. Ficou com medo de ter feito alguma coisa errada e dar mais um motivo para a sua patroa brigar com ela. Mas, em sua cabeça e memória, tudo estava correto. Ela passou pela sala de estar e sala de jantar. Chegou até um corredor que leva para seu quarto e o dos seus patrões, que estava com a porta entreaberta. Ela pensou bem e passou direto, foi para o seu quarto. Se o quarto está em silêncio, é melhor eu ir pra minha cama e esperar que ela peça a janta. Refletiu. Antes que ela 66


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fechasse a porta de seu quarto, ouviu sua própria voz saindo do quarto de sua patroa e seu amor. Rosa, em passos leves e silenciosos, foi até a abertura da porta do quarto dos patões e observou. Os dois transavam e sorriam juntos. Na TV de LCD do quarto, estava o vídeo de Ângelus trepando com Rosa de cabeça para baixo. Ela assustou-se e foi direto para o seu quarto. Ali mesmo ela desabou. Ela só serviu de consolo para o casal?! Ela era só um objeto para aumentar o tesão de Ângelus e Margarida?! Ângelus não a amava de verdade?! Nada do que ela fez por ele deu certo?! Desde o início, Margarida queria que o seu marido usasse Rosa como objeto de masturbação para apimentar o seu casamento. Por isso ela foi escolhida para estar ali. Foi escolhida a dedo. Ela concluiu em seus pensamentos. Por isso aquela máscara? Margarida gosta de ver a putaria e ouvir os gritos de dor, mas não gostava de ver o rosto de sua emprega nos vídeos. Pela primeira vez, em quase dois anos, as suas lágrimas desciam em rios e seu coração não tinha mais a felicidade de outros tempos. De tanto chorar, adormeceu. Milagrosamente, naquela noite, não foi mais incomodada sexualmente, nem repentinamente, pelos patrões. No outro dia, depois que Margarida saiu para trabalhar, Rosa até pensou em brigar com Ângelus, terminar tudo e ir finalmente embora para outro lugar na capital, ou voltar de vez para o seu interior. Mas ela não fez nada disso. Pelo contrário, ela segurou-se em duas forças essenciais que todo animal humano tem dentro de si: o orgulho e o ego. E, disso, espelhou-se também em sua própria história de vencedora. Nesse dia, ficou calada e transou, trepou com Ângelus como sempre. Mas, dessa vez, ela fez questão de mostrar seu rosto para a câmera. Ângelus inicialmente não deixou, mas, naquele dia, os olhos de Rosa tinham outro fogo. Isso o convenceu, e ele deixou que ela mostrasse seu rosto para a câmera. Eles treparam de todas as formas que a sua imaginação pode criar. Ainda mais que isso. E, em todos os closes, ela demonstrava prazer e domínio sobre o macho. Ela 67


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teve ideias maravilhosas para o momento. Ângelus gostou daquilo, nem imaginou a reação de sua amada esposa quando eles fossem usar a fita para o seu amor casual. Dois dias depois, de noite, Margarida chegou um pouco tarde. Não jantou como de costume. Havia comido na rua. Especialmente nesse dia, ela tinha recebido uma promoção no trabalho e vinha feliz para contar ao seu marido. _Ângelus, vem comigo aqui no quarto. Desliga tudo e vamos nos deitar. Temos que conversar. Eles foram para o quarto. Margarida, empolgada, contou tudo ao marido. Os dois comemoraram. Rosa ouviu tudo no corredor. Parece que Margarida fazia questão de falar mais alto as suas vitórias para que fosse ouvida. Depois de uns trinta minutos de silêncio no quarto, Rosa, que já estava atrás da porta, ouviu Ângelus sugerir “Vamos assistir a um vídeo?”. Em menos de dez minutos, Margarida saiu de seu quarto gritando, nua e possessa, deixando Ângelus lá: _Sua putinha dos infernos! Que porra de vídeo é esse? Você acha que tem o direito de ter esse sorrisinho em sua cara? Margarida viu que não tinha ninguém no corredor, nem na sala de jantar. Bateu de forma violenta no quarto da empregada, querendo derrubá-la usando a força de sua raiva no coração. _Abra a porta, sua vagabunda! Você está demitida! _Você que está demitida, Margaridinha – Rosa diz, sorrindo de forma irônica e contínua. – Ele agora quer gozar comigo. Com ou sem máscara. Você está velha, gorda. Caída de banha. _Abra a porta, sua prostituta! Você quer que eu derrube? Margarida bateu na porta do quarto de sua empregada, praticamente a esmurrando. Um silêncio de pelo menos um minuto vinha de dentro do quarto, quando a voz de Rosa, em deboche, e com tons de felicidade, diz: _Além de velha e gorda, é brocha! É estéril! Você não pode nem dar um filho pra ele e eu posso. _EU VOU TE MATAR! – gritou Margarida, com um som agudo que nunca antes havia vibrado em sua garganta, nem em suas 68


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humilhações e raivas por Rosa. Margarida foi até a cozinha e pegou uma faca e o martelo de amassar carnes. Voltou rapidamente para o corredor da casa, em frente à porta do quarto de Rosa. Ela começou a golpear e esfaquear a porta do quarto daquela interiorana, sua funcionária. Dentro do quarto, só se ouvia o riso zombador. _Por que vocês não adotam um filho? – pergunta Rosa, rindo ainda mais alto. _Não vale a pena amar quem não é de nosso sangue. Como você, sua vadia dos infernos! – gritou de volta Margarida. _Tá na lei de Deus “Amar o próximo como a si mesmo” – diz Rosa, com uma voz bem séria e debochada. _O próximo tem que ter meu sangue. E você não tem, por isso vai morrer, sua desgraçada... Gritou Margarida, interrompida por Ângelus, que por não aguentar mais o barulho, saiu do quarto, segurou a esposa e, de forma violenta, jogou-a no canto da parede. _Parem as duas! – Ângelus gritou. _Margarida, vá para o quarto deitar e me espere lá! – Margarida levantou-se inquieta e foi para o quarto, sem dar um pio. – Rosinha, minha pequena, abra pra mim. Sou eu. Margarida não vai te fazer nada. Rosa abre a porta com um largo sorriso no rosto. Ângelus diz: _Pequena, adorei a sua ideia de fazer ciúme à minha mulher, você sabe como trazer coisas novas à nossa vida – Ângelus disse sorrindo. Rosa sorriu também e perguntou: _Você me ama, Ângelus? _Se você me ama, Rosinha, eu quero que você entre em seu quarto, deite-se em sua cama maravilhosa, durma e esqueça essa noite. A partir de amanhã, continuaremos do mesmo jeito, ok? Continuaremos do meu jeito – os dois abraçam-se e, com um sorriso no rosto, Ângelus continua: – Vai se deitar, que, com Margarida, aqui no quarto, eu me acerto. Rosa aceita o pedido de seu amor e dirige-se para o seu quarto. Só que Margarida queria deixar a sua marca na noite e saiu 69


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bruscamente do quarto. Numa de suas mãos, estava a faca de serra que ela tinha deixado dentro do quarto por algum motivo irrisório, e, assim, acertou um tapa na cara de Rosa com a outra mão. Com a mão da faca, cortou o pescoço da menina. Saiu muito sangue, mas, felizmente, para Rosa, o corte foi superficial. Rosa, sem medo, foi pra cima de Margarida, Ângelus a segurou e empurrou Margarida de forma violenta novamente. _Caralho! Vocês duas vão parar ou não? Eu que terei que mostrar a minha agressividade a vocês? – Ângelus gritou com elas. Rosa puxou um catarro do fundo de sua alma e cuspiu em cima de Margarida. _Não pegou, sua idiota. Vagabunda de beira de estrada! – Margarida afirmou sorrindo. _Você ainda vai engolir esse catarro, sua puta! – Rosa prometeu. _Puta é você, que dava pro meu pai! – afirmou Margarida. _Seu pai me estuprava, aquele velho nojento e tarado. Você não sabe de nada de minha vida. Você não sabe como seu pai me fez de objeto para a perversão escrota dele. _Sabemos tanto que você está aqui hoje, servindo de consolo. Assim como você servia para o meu pai. Por isso que escolhi você, idiota. Sabia que ia servir de momento masturbação pro meu marido – diz Margarida. _Chega! – gritou Ângelus. – Rosinha, a gente sabe de seu histórico de vida no interior e não me incomoda. Margarida gosta também. Faça um curativo nisso, depois limpe aqui essa sujeira e vá para o quarto, a gente conversa depois, ok? – Rosa fez o curativo, limpou a sala e foi para o quarto, com um sorriso meio doentio na boca, obedecendo ao seu amor. Depois de dois anos, Ângelus estava feliz. Ele tinha duas mulheres que o amavam. Ele também as amava, do seu jeito sádico. Ele amava-se e as amava. Rosa aceitara fazer os vídeos sem mostrar o seu rosto como antes, só para agradar seu amor. 70


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E Margarida, por sua vez, parou de pegar no pé de Rosa. Isso ajudou aumentar a sua tara por seu patrão. Mesmo usando máscaras e outros artifícios, Rosa refinou sua habilidade, aumentou o prazer. Como ele não seria um cara mais completo? Durante aquele período, Margarida e Rosa conheceram um Ângelus mais vivo. Tudo estava ao seu controle. À noite, Ângelus recebeu um telefonema de sua editora. Margarida, que estava jantando com ele, ficou de ouvido aberto, espiando a conversa de seu marido. E Rosa, que lavava pratos, também ficou prestando atenção. _Terei que viajar amanhã. Alguns intelectuais paulistas querem que eu faça uma leitura de meu novo livro. Irei amanhã e voltarei em três dias – avisou Ângelus em voz alta. As duas ouviram-no e não responderam. _Quero que vocês se comportem. Se, quando eu voltar, a nossa casa tiver uma zona, eu que vou embora e deixo vocês duas sós. Ok? – ele disse a elas com uma voz grossa. Margarida veio até seu marido e prometeu que nem falaria com Rosa, contanto que ele volte para ela. Rosa veio depois e prometeu o mesmo. Com o seu olhar faceiro e original, incomum aos jovens de sua idade, ela beijou a sua boca na frente de Margarida, que fingiu não ver. Depois, dirigiu-se novamente para a cozinha. No primeiro dia, com Ângelus distante, as duas quase não trocaram palavras. Algumas pequenas amenidades eram ditas: sobre a novela, sobre uma limpeza mal feita, na opinião de Margarida, sobre a limpeza bem feita, na opinião de Rosa, sobre o calor que fazia todos os fins de tarde, sobre a falta de Ângelus. Como sempre, elas conversavam pequenas coisas. E assim terminou o primeiro dia. No segundo dia, quando Margarida acordou, o café da manhã estava pronto. _Faz tempo que não como assim. Acho que você só se esforçou pra fazer um café desses nos primeiros meses de sua chegada aqui, depois ficou folgada demais – disse Margarida à Rosa. 71


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_É, eu sei. Eu tenho meus motivos, você tem os seus motivos, mas eu quero falar com a senhora. Dona Margarida, quero falar com você. A senhora pode, por favor, me ouvir antes de começar a brigar e usar de ironia comigo? _Não tomou seu remédio hoje, não? Está estranha, Rosa. Diz! _Por favor, vamos tentar conversar de bem. Pelo Ângelus. Podemos? Margarida sorriu insolentemente e sinalizou com a sua cabeça que sim, enquanto passava manteiga em uma torrada. Rosa, em pé de frente à sua patroa, diz: _Por que não fazemos um vídeo nós três? Margarida solta uma risada histérica e levanta-se bruscamente, falando em alto e bom som: VOCÊ É LOUCA? Ângelus quer assim e ficará assim. Ele gosta assim. Tem que ser como ele gosta. Ele se acostumou assim. Entendeu, ousadinha? _Você não vê mesmo, né? Ele está feliz demais. Está todo dono da situação. Nós temos que ter o nosso lugar de comando também. Como é que você sabe que ele não tem outras mulheres na rua? _O importante pra mim é que ele sempre volte para dentro de casa. _Quando te conheci, Dona Margarida, achei que a senhora era dona do seu nariz e de sua vida. Dona da situação. _Eu sou dona da minha vida. Diga aonde você quer chegar com essa conversa, menina? _Eu? Eu, dona Margarida, sei que a dona da situação é você. E sei como é difícil imaginar que ele tenha outras, além de nós, melhor que nós – antes que Rosa fosse interrompida pela patroa, ela continua: – Calma, eu vou falar. Vou ser direta. Mas preciso de coragem. Entende. Coragem, Margarida – Rosa diz isso, com uma voz meiga e dengosa. aproximando-se da patroa, e continua: Margarida, eu sempre quis você. Desde o início! _Você está doida, menina? Quer levar uns tapas na cara? _Eu quero. Quero sim. Você nunca percebeu que eu gosto. Eu 72


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adoro quando você me faz sofrer. Quando você é agressiva e violenta comigo. Amo quando você me bate. Margarida, eu te amo. Margarida dá um tapa na cara de Rosa, que não reage e inclui em sua face a expressão que usou durante os últimos tempos que sofreu humilhações de sua patroa. _Tire esse sorriso de sua cara, vagabunda! – Margarida aplica outro tapa em Rosa. Com muito mais força. Mas a sua empregada, audaz, faz uma expressão de quem está gostando e diz: _Eu te amo, Margarida. Eu sei que você se excita me batendo. Eu vejo em seus olhos. Você me quer – enquanto ela falava, tirava a sua roupa de servente. _Você está louca, menina! – Diz Margarida, hesitante. Rosa, já nua, segura as mãos de Margarida, que está atônita com a atitude da empregada, e diz: _Vai, bate em mim. Sou toda sua. Rosa dá um tapa em sua própria cara, usando uma das mãos de Margarida. E, com as suas mãos, Rosa leva ariscamente até sua vagina a mão da patroa. _Você gosta e me quer, eu sei. Você também me ama. Rosa diz e beija sua patroa, que a empurra ferozmente. Rosa cai no chão da sala, toda aberta. Ela olha para a patroa, que está com os mesmos olhos de quando a agredia. Ainda deitada, ela abre-se, encaixa seu braço direito entre as pernas e começa a se tocar falando em voz baixa, quase sussurrando o nome de sua patroa: Margarida, Margarida Margarida, Margarida, vem me bater, me agredir, Margarida... Depois de três horas, Rosa acorda primeiro que Margarida e sai do quarto. _Aonde você vai? – pergunta Margarida, sonolenta. _Vou fazer uma café, quer? _Sim – responde Margarida, por demais sonolenta. Rosa sai do quarto e não vai até a cozinha. Sobe as escadas e entra no estúdio de Ângelus. Ela pega a câmera caseira e o tripé. De volta ao quarto, Rosa liga a câmera e a coloca em cima 73


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de um cômodo, enquadrando Margarida dormindo. Rosa entra no enquadramento. Ela está com o tripé em mãos. Com uma expressão de ódio, doentia, e de quem está botando muita força, ela golpeia sua patroa na cabeça, com o tripé. Golpeia duas vezes, larga o tripé, olha para a câmera e sorri. Margarida acorda depois de duas horas. Ela está no estúdio, presa a uma cadeira, toda amarrada e com sua testa rasgada e sangrando. “Onde estou?”, ela pergunta-se ainda zonza da pancada na cabeça. O condicionador de ar está ligado. Sua boca está tampada, com gosto de sangue. Ela tenta gritar, mas consegue poucos gemidos de desespero. Ela tenta levantar-se, mas está sentindo uma dor horrível nos pés. Depois de cinco minutos sozinha no local, Rosa entra pela porta sorrindo. _Antes de destampar sua boca, eu tenho que confessar: gostei de fazer com você, mas não sei o que Ângelus viu em você. Você está velha, com cheiro de velha, acabada – enquanto Rosa falava, Margarida debatia-se e gemia. – Se você continuar agitada, seus cortes vão inflamar. Os cortes que fiz em seus tornozelos – alerta Rosa, com olhos cintilantes. Margarida começa a chorar, sem deixar de tentar gritar, mesmo que sem conseguir. Rosa continua: _Sabe, patroa. No primeiro dia que vi Ângelus, eu me apaixonei por ele. Entrei em meu quarto e fiz um truque que minha mãe me ensinou quando eu ainda tinha 11 anos, para fisgar o seu pai. Eu trouxe daqui do estúdio um livro que ele nem tinha aberto. Ele tinha trazido da viagem que fez. Eu trouxe esse livro aqui pro meu quarto, fiz o truque e fui tomar meu banho. Tenho certeza que nesse dia ele entrou no meu quarto, sentiu aquele cheiro e percebeu o que era que ele queria. Era o que ele merecia. Rosa fica em silêncio por um instante, observando a agonia de Margarida debatendo-se, e diz: _Quer dizer algo? Ela vai até a patroa e tira a fita adesiva da boca dela, que 74


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começa a gritar e xingar a menina. _Sua cadela pirada! Escrota! Filha da puta! Você acha mesmo que ele ficou com você por causa dessa sua mandinga idiota, aí? Rosa não disse nada. Margarida continuou: _Eu que pedia pra ele ir atrás de você. Eu que implorei isso. Sabia que nós ficaríamos muito bem quando ele começasse a se masturbar com você. Você é isso, um apoio para a mão que se masturba, sua prostituta de velhinho! Você é um brinquedinho pra atiçar meu marido e apimentar meu casamento – Margarida terminou a fala dando gargalhadas. _Para você, foi isso, mas para mim foi o meu cheiro. O cheiro irresistível de minha cama perfumada. Isso é que importa – diz Rosa, irônica, sentindo-se dona da situação. _Você é uma burra mesmo. Ângelus é um frouxo politicamente correto, sempre teve a mamãe por perto fazendo as vontades dele, por isso eu tive que implorar pra que ele começasse a te pegar. Eu vou te matar, sua cadela, lanchinho interiorano... Antes que Margarida continuasse falando, Rosa tampa sua boca novamente e diz: _Ele pode até ser um frouxo, mas na hora que ele me come, ele é um demônio. A mamãe dele deveria ficar orgulhosa do filhinho dela, quando se diz respeito a esse quesito – ela diz ainda mais satisfeita. E, depois de quase vinte minutos em silêncio, sentada, sorrindo solitariamente, observando a agonia da patroa, ela diz bem séria: _Você acredita? Você acredita que seu pai me comia desde os oito anos e só continuou comigo porque eu aprendi tal truque secreto? É. Eu fisguei o velho com o mesmo truque que fisguei seu marido. Com seu papai funcionou, eu sei bem. Porque, para o tarado do seu pai, só servia menininhas e menininhos de dez anos pra baixo. Eu sei disso porque minha mãe que trazia as crianças pra ele. Fico me perguntando: como é que sua mãe nunca disse nada? Ou melhor, acho que ela gostava também, seu pai deveria contar para ela o que fazia com as 75


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criancinhas pra apimentar o relacionamento, já que não tinha câmera na época. Por isso que você é assim pervertida como ele. Rosa ficou uns trinta segundos em silêncio, observando Margarida. Depois foi na direção da patroa e destampou novamente a boca dela, que gritou com ódio e choro na voz: _A culpa disso tudo é de sua mãe! Você não percebe isso, vaca? Ela que trouxe as tentações pro meu pai. E ela que te ofereceu pra cá. Ela disse que você sabia respeitar muito os patrões. _A medida do valor e do tipo do produto vem de quem compra, de quem paga. Aprendi na faculdade, acredita? Minha mãe negou, mas eu sabia que ela tinha ganhado algo com isso. Mas, tudo bem, ela é minha mãe e sabe o que faz – disse Rosa. Antes que Margarida falasse mais, sua boca foi tampada novamente. _Além do mais, naquele interior nojento, a gente já passou muita fome. E seu pai foi a nossa saída pra isso, na época. Minha mãe sempre fez tudo pela família e seu pai pagava muito bem. Sabe como é que é? A família vem sempre em primeiro lugar – Rosa diz isso feliz. – E eu aguentei. Passei por aquele velho escroto e hoje estou aqui, passando por cima de você. Hoje estou fechando de vez quem pertencerá à minha nova família – Rosa terminou sua fala sorrindo com mais felicidade e demonstrando convicção em suas palavras Depois de alguns minutos observando o sofrimento e agonia de sua patroa amordaçada e amarrada, debatendo-se, ela perguntou: _Sabe que truque é esse? O truque que deixou seu marido pirado por mim. É assim, vou contar! Preste bem atenção porque direi só uma vez: eu vou ao quarto, passo o dedo em mim de uma forma bem gostosa. Gozo gostoso e depois esfrego o lençol da cama por completo em minha boceta. Faço do lenço um fio dental, entende? – ela sorri para a patroa presa. – Depois eu saio me esfregando por todo o colchão. Eu como, quase literalmente, o colchão nesses esfregões. Me esfrego nele como uma cobra se roçando pelo chão, atiçada. Ângelus gravou um vídeo meu fazendo isso. A cama fica perfumada, enlouquece 76


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Ângelus. Amanhã te mostrarei o vídeo, hoje chega de conversa! Rosa termina sua fala sorrindo e, sem dizer nada, pega um estilete em uma das gavetas do armário que tem no estúdio, direciona-se para as costas de sua patroa e faz diversos cortes da nuca até perto da bunda. Margarida chora e geme, contorcese de dor. Rosa sorri como se fosse dona dos risos mais contagiantes do mundo naquele momento. No terceiro dia que Ângelus estava viajando, Rosa entra no estúdio, comunicativa: _Tá com sede? Com fome? Não se preocupe, patroa, que a casa está sendo bem cuidada. Quando Ângelus chegar vai tudo estar no lugar, como ele gosta. Hoje nós temos muita coisa pra fazer, vou começar falando sobre o seu pai. Me diga uma verdade, você também foi molestada por ele, não foi? – Margarida, já mais esbranquiçada, com sangue em seu nariz, testa e bochechas, olhos lacrimejantes, nega com a cabeça. _Foi sim, que eu sei – afirma Rosa. – Aquela vez que vim para cá com seu pai, você viu o que ele fazia comigo? Viu sim, que eu sei – Rosa falava, sorrindo. – Será que seu pai fazia com você o que fazia comigo? Ele gostava de fazer comigo por trás como se eu fosse uma égua. Adorava comer meu cu e gostava de fazer isso apertando meu pescoço com um cinto. Várias vezes perdi o ar com ele. Eu sentia nojo todas as vezes. Seu marido tem uns gostos meio doidos também, mas com Ângelus é outro tesão, é amor de verdade. Ele se importa com meu prazer. Já com seu pai, era asqueroso, não aguentava mais o seu corpo suando como de um homem sórdido prestes a morrer, o bafo de urubu com mau hálito. O peso da velhice dele por cima de mim. Eu não aguentava mais aquele monte de banha, de merda, o cheiro abominável do filho da puta do seu pai. Por isso eu dei fim nele – Rosa, que falava gritando, gargalha novamente e continua:– Sabe, Margarida? O seu pai também gostava que eu montasse em cima dele e o enforcasse com o mesmo cinto. Sim, ele adorava gozar com falta de ar. E foi numa dessas que eu apertei o cinto o máximo permitido. Eu sabia que ele não aguentaria. E 77


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não aguentou. Mas até hoje fico na dúvida se ele faleceu porque apertei demais o cinto ou se foi porque meu rebolado por cima foi demais para ele – Rosa sorri, insana, e continua: – Depois desse dia, eu sabia que minha mãe iria me mandar pra outro lugar longe do fim do mundo que a gente vivia. E adivinha para onde ela me mandou? Por isso amo a minha mamãe, ela sabe o que faz. Rosa termina sua fala com um sorriso fantasmagórico. Ela vai até Margarida e destampa novamente a boca dela. A patroa xinga a sua emprega e grita pedindo socorro, mas ninguém vai ouvi-la, pois elas estão no estúdio. Chama-lhe de assassina e outros nomes. Rosa não se abala, não dá trela e continua com seu discurso: _Vamos assistir um vídeo? – Rosa vai até o DVD do estúdio e coloca a gravação que Ângelus fez dela, mostrando para ele de onde vinha o cheiro maravilhoso de sua cama. Sobre o DVD, Rosa comenta: _Nesse dia, Ângelus começou a me amar de verdade, porque ele percebeu minha determinação. Desde o primeiro dia que o vi, fiz meu truque para conquistá-lo. Ele me disse que nunca ninguém tinha feito uma prova de amor desse jeito para ele. _MENTIRA! – gritou Margarida. _Ele disse sim! Olhe, eu confesso, desde o início, eu quis o Ângelus, mas meus planos eram tê-lo, tirar você da minha vida e finalmente ter o meu amor e minha vida independente como eu sempre quis. A gente até podia continuar amiga – Rosa ri. – Mas como não foi assim, agora terei ele e essa casa junto – enquanto Rosa falava, Margarida xingava e gritava com sua empregada. – Eu não queria chegar a esse ponto, mas depois que descobri que vim pra cá para continuar sendo putinha de sua família, resolvi dar um fim nisso da forma mais concreta que existe. Do mesmo jeito que fiz com seu pai. Entenda, não farei isso com você só porque você me humilha. Acredite, depois de um tempo, passei a gostar da pena que eu sentia de você, e digo mais, o que rolou entre nós ontem foi real – Rosa 78


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range os dentes, sorridente. – Mas, infelizmente, pra você, eu escolhi Ângelus e não você. Quando o vídeo em que Rosa mostrava o truque para Ângelus, terminou, ela diz: _Pronto. Agora vamos fazer o nosso vídeo para o meu amor Ângi. Rosa direciona a câmera para ela e aperta “REC”. Depois de terminar parte do vídeo que fez, iniciou uma faxina exemplar na sujeira do estúdio, como Ângelus gosta. Então, desligou a câmera e sentou-se na cadeira do seu amor para editar o vídeo de presente para ele. Três dias depois de sua partida, Ângelus chega à sua casa. Ele entra pela varanda, a porta da sala está encostada, como se uma surpresa o aguardasse. Ele adentra. Nela, um som de nada ecoa. Um frio aperta seu coração. Ele não sabe por que. Ele vai até o quarto de Rosa, ela está dormindo feito um anjo. Ângelus poderia transar com ela dormindo, só porque ela é linda naquele estado. O cheiro que exalava no quarto, dessa vez, estava muito forte, o que já o excitou. Ele sai do quarto e chama por Margarida. É domingo e ela deveria estar em casa. Mas ela não responde. Ele entra em seu quarto e começa a despir-se. Um DVD com a escritura “Para o meu Amor Ângelus”, com a letra de Rosa, está em cima de seu aparelho de DVD. Ele tira a sua roupa, já excitado pelo cheiro que exalava do quarto de Rosa, e agora com a expectativa de assistir ao DVD. Insere o vídeo em seu aparelho. “O que será que essas duas andaram aprontando?”. Ele pergunta-se. O vídeo começa: no início, Margarida está dormindo em sua cama. Rosa aparece no enquadramento com o tripé em mãos e golpeia sua patroa de forma agressiva. O DVD tem um corte e já aparece com Margarida amarrada dentro do estúdio de Ângelus. Ela está esbranquiçada e com aspecto de doente. Sua boca não está tampada. Ela chora muito. Soluça. O seu nariz sangra. Seu rosto está todo sujo de sangue. Rosa, sem dizer nada, passa pelo rosto de Margarida uma faca de cortar 79


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carnes, ameaçando-a. Nas cenas seguintes, Rosa corta Margarida em vários locais e de várias formas. No rosto. Nos seios. Na testa. Nos braços. No tórax. Ela chora e implora pela sua vida. Rosa esfaqueia as pernas e a barriga da ex-patroa, de forma truculenta e visceral. Margarida grita e vomita de dor, chora como um bebê. Vomita, soluça, xinga a empregada, implora, chora e baba muito. Do seu nariz, sai sangue e catarro. A sua testa está aberta com um corte e tem muito sangue. Ela respira ofegante e implora pela sua vida. Ela promete Ângelus à Rosa, que diz olhando sorridente e excitada para a câmera: “Ele já é meu, não seu. Não o ofereça para mim!”. Rosa, já com a faca de serra, degola a patroa. Depois, passa novamente a faca no pescoço de Margarida, como se estivesse serrando um galho de uma árvore. O sangue espirra por toda parte. A cabeça de sua falecida patroa quase desaba no chão, fica pendurada no pescoço. Rosa começa a rir, olha para a câmera e diz “Eu te amo, Ângelus, espero que você goze do jeito que você mais gosta”. No vídeo, Rosa fica nua e começa a se masturbar com a mão do cadáver de sua antiga patroa. Ângelus, que ficou paralisado e com os olhos cintilantes na tela da TV enquanto o vídeo passava, desligou o aparelho da tomada, bem antes que ela gozasse e começasse uma faxina exemplar no estúdio, e ainda afirmasse, olhando para câmera: “Eu sou a dona desta casa, meu amor. Sei a melhor forma de cuidar dela e de você”. Como se a ficha tivesse caído, ele vai direto para o quarto de Rosa. Ele entra de uma forma tão brusca que a acorda. _O que foi, meu amor? – ela pergunta. _Por que você fez aquilo? _Fiz tudo pelo nosso amor. Agora só sou eu e o amor. Eu e você. Rosinha e Ângelus – ela diz, deixando no ar a sua satisfação. _Você é louca – ele fala, andando de um lado para o outro, como se estivesse refletindo sobre. De forma mais arisca, ele pergunta: _Você deixou o estúdio limpo? 80


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_Você não viu o vídeo inteiro? Claro que limpei. Entre os dois surge um silêncio complacente, no qual os olhares falam. Rosa ri e diz com seus olhos que o ama. Ângelus abraça-a e, não com seus olhos, mas com a sua boca, diz: _Você tem uma forma surpreendente de me excitar. O corpo ainda está em bom estado para o usarmos? – com os olhos, novamente, ela responde que sim e, com um sorriso sagaz, agrada seu amado. _Ótimo! – Ângelus comemora. – Vamos fazer amor vendo o vídeo. Rosinha, eu te amo.

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Beleza interior



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Quando o Grupo dos Aliados venceu a Segunda Guerra em 45, alguns dos nazistas que se entregaram trocaram com os países vencedores a sua condenação em julgamentos internacionais por informações cruciais e prestações de serviços vitalícios, como trabalhar na área científica, dentre outras áreas. Fazia parte também desse acordo a extradição desses nazistas para os países vencedores e a outros países que se adequassem ao comportamento vencedor capitalista dos Aliados, países esses que seguiram a cartilha e tornaramse aliados. Assim, esses ex-nazistas poderiam tocar as suas vidas em paz, longe dos seus antigos ideais, que também pregavam a paz aos seus semelhantes. Agora esses ideais iam dormir no peito, ou no calcanhar. De alguma forma ficariam encravados no corpo, escondidos, em sono profundo, desses ex-nazistas. A maioria escolheu ir para os EUA, tornaram-se grandes atores, banqueiros, políticos, etc. Hoje fazem parte do poder capitalista daquele país. A minoria escolhia outros lugares, como a Argentina, África do Sul, México, Inglaterra, Austrália, Brasil. Sim. Os mais espertos, com certeza, escolheram lugares como o Brasil, onde gringos são tratados como deuses e, também, onde as mulatas são deusas serventes. Desde aquela época, a fama do Brasil já era boa. A força do país do futuro está em suas belezas naturais e na felicidade de sua gente. Macunaíma nunca deixará de ser atual. Aqui no Brasil, nazistas, simpatizantes de Che e judeus sentam à mesma mesa e sorriem como grandes amigos. Desde que o riso instale-se nos assuntos sérios e seja ordem nas brincadeiras. Se o nazista guardar para si a sua vontade de fritar alguém vivo, o judeu esconder por dentro da cueca os seus trocados, e os simpatizantes de Che tramarem em segredo a retomada do poder na calada da noite, tudo fica na simpatia dos trópicos. Contudo, veio uma pequena, mas uma boa quantidade desses soldados alemães para cá. E vieram afins e a finco de liberdade. Afinal, não levaram o mesmo fim que seus antigos companheiros. Talvez longe, ou talvez por 85


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perto, com outra nomenclatura, talvez seu vizinho. Ou trabalhando no congresso. O fato é que alguns deles vieram para o Brasil e hoje estão proliferados entre nós. Hans, quando em 1946 chegou ao Brasil pelo porto de Santos, veio com a identidade falsa, como ele mesmo pediu na hora de fechar o acordo com os EUA. Agora o seu nome era Henry Keith Wall. Ele seria do Texas, EUA. Mas Hans, de Keith, só tinha a identidade e a sua vestimenta, pois nem seu sotaque teve preocupação de adaptar. “Quem saberia?”. Pergunta-se sozinho, olhando para a costa brasileira. Quando chegou ao país, na descida do navio, trajava um chapéu de cowboy texano e botas com couro dos búfalos mais finos da América. Calça jeans, camisa quadriculada de manga, um charuto cubano e óculos escuros completavam a bela figura “americana”. Hans também conseguiu uma boa poupança em seu acordo no tribunal. O que ele deu em troca? Hoje em dia, os americanos praticam, é certeza. E, com essa boa poupança, ele fez o que sempre sonhou quando imaginava a sua Alemanha dona do mundo: ser dono de uma boa terra, que fosse tranquila, para poder viver em paz, fazendo o que sabe fazer melhor. Ainda no porto, ao lado de três ajudantes que traziam suas malas, Hans descobriu o que existia de melhor no Brasil para espelhar em uma íris cor de céu, gringa e pervertida como a dele: as fabulosas mulatas. O gringo comprou muitas terras pelos prósperos interiores do Brasil, com as economias cedidas pelos EUA no acordo. Não só terras, mas também muita cabeça de gado. Na casa grande da fazenda, a Casa do Gringo, como era conhecida, aconteciam festas secretas. Nas quais, no fim das celebrações, todos os convidados partiam bem pagos. Eram negrinhas, negrinhos, branquinhas, italianas, japonesas, etc. Todos que precisassem de algum dinheiro e coubessem em seu gosto, o gringo laureava. Mesmo com esse movimento na casa, só participavam das festas pessoas que ele escolhia a dedo .Alguns dos coronéis e fazendeiros da cidade queriam 86


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participar, mas Hans não permitiu. O que acontecia em sua fazenda não podia sair de lá pela boca de ninguém, o que acontecia em suas terras não era para ninguém, apenas para ele e quem fosse convidado. Mas o Coronel Diego Machado, contrariado, usando a desculpa de que Hans estava aprontando demais, fazendo coisas até “demoníacas”, comentavam alguns, ameaçou que iria expulsá-lo da região se ele não entrasse na linha. Hans resolveu essa pendência com uma doação de gado e dinheiro para a fazenda do tal coronel. E fez uma festa especial com os grandes do local. Nela, as mulheres brancas dos fazendeiros não poderiam ir. Nesse dia, com uma das visões gerais da festa refletida em seus olhos, Hans lembrou-se das antigas comemorações nos quartéis generais de Hitler. E ele, para apaziguar ainda mais a situação com o coronel e a alta sociedade do local, escolheu uma entre as mais belas das empregadas de sua fazenda e casou-se, pois nenhuma branca da região queria arriscar a sua reputação casando com o Gringo Tarado, como era conhecido, por causa das suas subversões. Um homem casado vale mais do que mil solteiros. Ele pensou sabiamente. Depois de um ano no país, já quase ambientado com o português cafuzo e interiorano da região, e depois de muita devassidão que ele maculou em suas terras, Hans casou-se com Clotilde. Nos quatro primeiros anos, Clotilde não engravidou, mesmo com Hans atacando-a frequentemente para fazer sexo. Clotilde, que era uma linda negra genuinamente brasileira, apesar de estar casada com Hans por vontade própria, fazia, com ervas, de forma ciente, questão de não engravidar. No início, a ideia de casar com o gringo, mesmo ele tendo a fama de tarado, era muito boa, pois ele era rico e bonito. Mas, depois do casamento, Clotilde pôde conhecer Hans de mais perto. Um olhar próximo, mas tão próximo, que enxergamos os cravos velhos, escurecidos e podres, e os buracos em falso. O homem era um verdadeiro tarado, pervertido: _Ele tem parte com o capeta – dizia Clotilde, para uma das 87


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empregadas da casa. Hans era ateu, mas sabiamente usava do misticismo para amedrontar os nativos locais. Só ele tinha a real noção de que seus atos eram todos a favor de seu prazer pessoal. Ele trepava, literalmente, com homens, mulheres, animais e objetos. E envolvia Clotilde no meio. Comia animais crus e bebia o sangue deles em rituais. Antes, estupravam-nos. De vez em quando, algumas bezerras incomodavam-se menos do que era preciso. _Dá pra ver que ela está gostando – Hans gritava, sorrindo excitado, enquanto praticava o ato com uma cabra na frente dos empregados de sua fazenda e de alguns amigos que compartilhavam a mesma tara e ritual. Hans era bem dotado, os negros que o viam nu observavam semelhança, os brancos gordos e coronéis ficavam envergonhados. Hans, proporcionalmente, não passava longe de um asno. No quinto ano do casamento, Clotilde, que sempre sentia medo, agora sentia também pena. E começou a sentir nojo do marido quando descobriu que ele estuprava, a palavra é esta, estuprava crianças de nove, onze, treze, sete, oito anos. Não importava muito a idade. O interesse dele era sempre o ato sexual e o gozo pessoal em primeiro lugar. Independente da relação. A vizinhança desconfiava. Uns sabiam, mas todos condiziam, pois Hans era um bom provedor e sabia escutar os problemas da população carente e da mais abastarda, que também, de vez em quando, precisava da ajuda “caridosa” de Hans. Mesmo sem ser político, era também “um dos americanos mais respeitados nesse pedaço de chão”, alguém comentava em um brinde a ele, em algum evento social da época. Clotilde perguntava-se “o que teria acontecido com esse homem, durante a vida dele nos estrangeiros, pra ele se transformar nesse demônio?”. E, por isso, de forma deliberada, Clotilde fazia de tudo para não embuchar do “Gringo Demoníaco”, segundo ela mesma. Mas Hans sabia que passar cinco anos casado e não ter filhos não era nada bonito para sua imagem de homem, era um sinal de fraqueza para a 88


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sociedade. Sabendo que Clotilde usava as ervas, ele prendeu-a em um quarto durante quinze meses. Não demorou muito, ela engravidou. Clotilde pensou em tirar, mas Hans convenceu-a com seus métodos de ameaça e agressões. Eles tiveram Ana, que amenizou o pesar da vida de Clotilde. Mas Ana faleceu logo antes de completar um ano, com nove meses. E, com esse vazio, e pelo amor que Clotilde sentiu por Ana, ela decidiu ter mais filhos, mesmo que viessem com o sangue do seu marido. E ela teve mais dois: Vitorino e Rilde. Vitorino veio primeiro. Parecia mais com a mãe e virou o seu orgulho. Não era tão sensível ao sol como o filho caçula, Rilde, que nasceu da mesma forma que veio o pai. Era tão branco que brilhava aos olhos dos burgueses e pessoas honorárias da região. _Como é lindo os olhos azuis dele! Parece a água do mar – disse uma das visitas. _É da cor dos olhos do Cristo do calendário – disse outra visita. _Rilde já veio melhorado – comemorava Hans, sem pudor. Durante a infância, cada vez mais, Vitorino retraía-se ao lado da mãe. E Rilde “evoluía” com as ideias do pai. Vitorino também teve o azar de vir com a genética de tamanho similar à sua mãe. Com quinze anos, ainda tinha 1,57m, enquanto Rilde, com onze anos, tinha oito centímetros a mais que o irmão. Sem comentar, mas já escrevendo, Vitorino era o preferido do pai na hora em que ele não tinha Clotilde. Nessa altura, a vida de Vitorino e de sua mãe tornara-se uma prisão. Clotilde não tinha aonde ir. Ela era analfabeta e já estava ficando velha e cansada. Todos da mais pura e elegante alta sociedade tinham nojo e vergonha daquela mulher: “Além de ser preta, ela se casou com o Gringo Tarado”, comentavam as bocas mais elegantes da região. O dono do dinheiro era ele, não ela. E Vitorino, que podia fugir, mesmo jovenzinho, preferia cuidar de sua mãe e ficar por perto. Foi a atitude mais corajosa que tomou em sua vida. Com o tempo, tudo que é ruim passa a ser suportável enquanto ainda podermos sonhar. Vitorino leu essa 89


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frase em algum livro e segurou-se. Herói. Quando adulto, Vitorino decidiu que sairia de casa e levaria a sua mãe. Seria a sua vitória pessoal em relação à vida medíocre que ele levava. Ele encontrou uma amiga que tinha o mesmo desejo e, juntos, inventaram um noivado. Eles casaram cedo. Com vinte anos, quando tinha apenas 1,65m, casou-se com Amélia, de dezoito. Mas, antes que metade da família fizesse as malas e fosse para longe de Hans e Rilde, Hans teve um AVC e virou um vegetal. Quem mandaria na casa seria o irmão mais velho, ainda mais com o apoio da viúva. Para que a alta sociedade compreendesse a mudança de poder na fazenda e seu irmão, ainda menor de idade na época, respeitasse-o mais, Vitorino engravidou Amélia. Tiveram uma filha. “É melhor assim, para não ter a má impressão da sociedade”. Disse Vitorino a si mesmo. No parto, nasceu uma menina saudável e linda. O bebê mais lindo do mundo. Se não a sua mãe, quando teve a chance de vê-la pela primeira e única vez, ninguém mais pensou nessa frase quando viram o bebê. Sua avó Clotilde, que estava muito mal de visão, não viu beleza, mas sentiu beleza, e era a mais feliz naquele momento. No parto, faleceu Amélia. E o bebê mais lindo do mundo ganhou seu nome: Amélia, em homenagem à mãe. Nos vinte anos seguintes, a fazenda de Hans entrou em decadência e faliu. Os negócios da família ruíram quando os interesses de Vitorino, mais preocupado em unir a família novamente, que se destruiu depois do AVC do pai, cruzaram-se com as vontades de Rilde, que, quando virou homem, impôs-se fisicamente e inteligentemente sobre o irmão. Rilde precisava da grana para poder ter os prazeres e as belezas do mundo. Enquanto seu pai, o gringo Hans, que, se o aguassem todos os dias no horário do pôr do sol, criaria raiz e viraria uma cenoura, observava tudo por dentro do seu profundo. Findo. Vitorino, nesses vinte anos, vingou-se do pai de forma covarde, assim como recebeu do mesmo. Uma vez, perguntado por sua mãe por que ele ainda estava com a família e não tinha ido 90


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ganhar o mundo, ele disse: “Tenho dor na consciência por causa de Amélia”. Não a Amélia sua filha, que ele considerava a raiz do mal que matou a sua mulher, que era seu cartão para a liberdade. Ela, sim, Amélia, sua esposa, fez com que ele ficasse. Ele disse, poetizando para sua mãe: “Amélia me fez ver que a liberdade é a beleza mais invisível do mundo e está dentro de nós. Se não fosse a morte dela, a família estaria separada hoje. Ela foi o sinal divino que eu precisava. Ela me fez ver a minha missão nessa família.”. Vitorino enfim compreendeu a sua frase preferida: “Com o tempo, tudo que é ruim passa a ser suportável enquanto ainda podermos sonhar.”. E, nessa toada, Vitorino ficou com a intenção de unir a família. É do ser humano agir de forma consciente com motivos inconscientes. Clotilde contentou-se em ser viúva, cuidava e mimava a sua neta, para protegê-la do mundo. Vitorino não gostava de sua filha. No entanto, esforçava-se para provar ao seu irmão e à sociedade que a sua intenção era integrar a sua amada família. Rilde, que gastava todo seu lucro que conseguia na fazenda, curtiu todas as orgias e cus que o dinheiro poderia comprar. Rilde herdou a loucura sexual e “demoníaca” de seu pai. Começou a dar uma de touro reprodutor para vaqueiros, mocinhas de família e jovens com sensibilidades artísticas e inteligentes da cidade. Ele sabia usar muito bem de sua beleza batizada por Deus. E, na cidade, ninguém via nada. Mas todo mundo sabia. Quando Rilde já estava mais perto dos seus quarenta do que dos seus trinta, tentou abusar pela primeira vez de sua sobrinha Amélia. Ela, que já tinha problemas de obesidade e solidão, não permitiu tal insanidade. Rilde, como seu pai Hans, ou até ensinado por ele, desde que criou força para enfrentar o seu irmão mais velho, repetiu sucessivamente os abusos físicos e doentios contra Vitorino. Vitorino tinha muito medo de seu irmão, que media quase dois metros e era forte como um touro. Vitorino via-o como um deus dinamarquês, tão grande e imponente era a sua imagem. A família estava 91


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enclausurada em um labirinto de relações doentias. Clotilde, mais velha e caduca, tornava-se cada vez mais distante e calada. Ela, que estava com princípio de Alzheimer, não se importava e preferia escolher, para sorrir discretamente, as boas lembranças de sua juventude libertina, antes do seu casamento com Hans. Depois de vinte anos, Hans estava falido, vegetando, ex-viciado em cachaça. Só restou a velha fazenda e as memórias caladas no seu olhar medonho e profundo. Rilde vivia das ideias e loucuras que aprendeu com seu pai. Arranjou um emprego na cidade e começou a sustentar a família com seu trabalho. Vitorino morria de medo do irmão e tinha uma paixão reservada e platônica por ele, que aumentou depois que a fazenda faliu, e Rilde, com sua agressividade e sadismo, passou a procurá-lo mais. Vitorino carregava o mundo em suas costas e, mesmo com suas pequenas felicidades, não era feliz. Clotilde beirava a loucura e o silêncio notável. O tempo passava nas relações dos componentes dessa família e os adjetivos corriam por conta própria, adjetivandose em mudanças rápidas. Quando Amélia fez vinte e um anos, Hans morreu com a cara na merda dos poucos porcos que restaram na fazenda. Talvez ele tenha tentado mexer-se um pouco enquanto sua cadeira estava perto do chiqueiro, ou então ele voltou a andar, mas, com saudade dos porcos, foi até o chiqueiro, onde tropeçou e morreu afogado na merda de seu animal e ente mais querido de sua família, como ele costumava dizer. Ninguém sabe se foi ataque no coração, afogamento, ou o que ele fazia naquela posição de asno. O fato é que ele tinha ido “pra perto do capeta”. Assim dizia Clotilde, repetidamente, abusando de sua última sanidade, sorridente, no velório. A fazenda, nos antigos estábulos, tornou-se um local de nostalgia refletido nos olhos do filho prodígio de Hans. As orgias e sacanagens continuaram. Com menos pompa e mais drogas, mas continuaram. Rilde não se incomodava de ser chamado, pelas costas, na cidade, de Gringo Diabinho. Ele levava mais a sério 92


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que seu pai o que as pessoas chamavam de rituais satânicos. _Se for pra eu fechar meu corpo, tá valendo – dizia Rilde a si próprio. Amélia, que chegou aos vinte e um, era obesa. Pesava 143 quilos. Não recebia visita, quase não saía da fazenda e foi educada por uma professora particular até os seus dezesseis anos de idade. Seu pai não aparecia com frequência, pois estava sempre muito ocupado cuidando dos negócios da família. Ela não sabia o que se passava na casa. Tinha um olhar sonhador e melancólico. Ela sabia que a falta de beleza e sua gordura eram a causa de sua solidão. Começou a sentir na pele o sangue forte de sua família quando seu tio Rilde procurou-a pela primeira vez à noite em seu quarto e tentou beijá-la. Ela achou aquilo nojento e chamou seu pai. Que conversou depois com Rilde, mas, para ela, ele disse: “Minha filha, não fique pensando nisso. Reze e perdoe o seu tio. Ele não sabe o que faz”. Para o irmão, Vitorino pediu: _Rilde, para que fazer isso com a menina? Você não se sente satisfeito com o que já tem? Depois de um tempo calado encarando o seu irmão nos olhos e apertando os punhos como se os preparasse para agredi-lo, Rilde disse: _Por que você ainda não foi embora? Mamãe tá doida, nem lembra mais de nós na maior parte do tempo. Eu cuido dela. Tenho emprego. _Quero unir a família – diz Vitorino. Rilde dá um riso escandaloso e diz: _Mentira, franguinha. Você não gosta nem de sua filha. Você tá aqui porque é um canalha que gosta disso. Rilde acerta um soco com sua mão esquerda na cara de Vitorino, que cai no chão chorando. Rilde chuta-o duas vezes no estômago. _Por isso que você está aqui. Você quer isso. Não venha me dizer que o senhor é uma pessoa linda por dentro, que você é de Jesus – Rilde aproxima-se do irmão que está caído e 93


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fala perto do seu ouvido. – Você quer ser abusado. Eu sei, franguinha. Não venha me dizer nenhum sermão do seu pastor, que eu sei o que você fez ao papai – Rilde terminou sua fala com a voz elevada e levantando-se. _Rilde, eu... – Vitorino tenta explicar-se, mas Rilde interrompeo, dizendo: _Não quero saber de nada. Amava meu pai, mas ele já estava há muito tempo morto, só era carcaça. Meu pai é passado. Quero saber de agora. É agora que eu vivo. Compreendeu? – Rilde diz, saindo pelo corredor. Vitorino se refaz e vai para a igreja pedir pelos seus entes. Amélia sempre foi protegida em excesso pela avó. Ficou por inúmeras vezes presa em casa e não teve acesso às boas coisas da vida, a não ser comer. E ela comeu muito. Às vezes, proteção ao extremo não é exatamente amor. Numa dessas noites solitárias da fazenda, viu seu tio Rilde saindo a cavalo em direção ao estábulo. Sua avó, já sem sanidade, não poderia mais proibi-la de andar à noite pela fazenda e matar a sua curiosidade. A casa não tinha mais empregados, a não ser o próprio Vitorino que ajudava nos serviços de casa, sempre lutando pela família. Mas, nessa noite, ele estava no culto. E, na mesma noite, com muito sacrifício, pois seus joelhos doíam, seus pés davam cãibras e seu ar sumia, Amélia foi a pé até o estábulo. Depois de quase uma hora de caminhada, viu de perto como eram as noites de orgia e putaria, pelas frestas das velhas madeiras do lugar. Ela viu com seus bons olhos o que acontecia e o que seu tio Rilde fazia naquele local. Rilde, enquanto “cruzava” com uma mulher negra toda amarrada, era enrabado por trás por um oriental que tinha metade de sua altura. Num de seus relances e olhares para o lado, Rilde observou Amélia escondida e vendo a cena. Ele exagerou nos atos de loucura e gritos de prazer em sua selvageria. E, esperto, mostrou-se interessado no olhar de sua sobrinha que vinha de fora do estábulo. Amélia, por sua vez, voltou para casa no meio da noite com uma expressão de medo e êxtase nos olhos. Mas 94


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com um vigor empolgante em suas pernas. Na segunda vez em que Rilde tentou uma aproximação, Amélia permitiu que ele beijasse. Talvez isso fosse válido em família, já que nenhum rapaz da cidade vinha visitá-la. Na terceira vez, Rilde estava bêbado e tinha acabado de voltar do estábulo. Ela não deixou, e, com os seus vinte e um anos, foi estuprada pela primeira vez pelo seu tio. Ela não gostou. Na verdade, pensou em se matar. Já era gorda, feia, e seu pai, parecia que tinha vergonha e nojo dela. Vitorino nunca estava presente como a sua avó, que foi a sua grande amiga, até o Alzheimer. Ela não recebia nenhum ato de carinho e amor. A não ser de sua família. E, em sua família, ninguém demonstrava carinho, a não ser Rilde, quando ela permitia. Quando não, era violência. Vitorino passava a maior parte do tempo estressado porque tinha que cuidar de Clotilde, que se cagava todos os dias, tinha que cuidar da casa e ainda ajudar a filha, pois ela estava cada vez mais gorda e seus movimentos estavam quase inúteis. Não tinha como demonstrar amor por ela. Só quando vinha visita em casa e essa visita conhecesse a existência de Amélia, ali Vitorino amava sua filha. Mas, se fosse visita nova, Amélia era trancada em seu quarto sob a ordem de ficar em silêncio. Com os anos passando, Amélia foi cedendo ao tio. Vitorino estava ainda mais ausente da vida da filha, e Rilde fazia de tudo para que a sobrinha ficasse mais subordinada a ele. Levava mulheres para o quarto de Amélia e transava na frente dela. Uma dessas mulheres, um dia, muito bêbada, comentou: _Tenho nojo dessa gorda – disse rindo e cuspindo álcool na menina. Quando Rilde ficava com vontade de fazer maldade de verdade com a sobrinha, infernizava a sua vida com chantagens por comida. Deixava-a sem comer por quase setenta e duas horas. Quando Amélia já estava implorando muito e chorava, ele a obrigava a fazer sexo oral, depois anal e, por fim, dava-lhe comida. Restos de comida. Rilde não tinha 95


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pena de ninguém e não acreditava em Deus. Apesar de gostar de citar aos amigos que tem proteção do diabo. Ou seja, tinha o Deus, mas com outro nome. _Tenho certeza de que, quando isso aqui acabar, não iremos a lugar algum – Rilde afirmava, rei da situação. Quando Amélia completou trinta e nove anos, ela já tinha 271 quilos e não se locomovia sem a ajuda de um carrinho que carregava boi. Quase não conseguia comer sozinha. Quem dava a comida era o seu tio, e seu pai, de vez em quando. Seu pai, quando lhe fazia esse favor, dava-lhe comida de forma repugnante e humilhante. Os irmãos estavam velhos, mas estavam em família. Nessa época, até Rilde pensava “vamos manter a família unida”. A aproximação da morte e o cansaço da vida amansam as pessoas. Vitorino, depois da morte de sua mãe, perdeu a paciência com o mundo, abandonou Jesus, fechou-se para o seu irmão e praticamente abandonou a filha. Ficava horas e horas escrevendo um romance que ele nunca iria terminar, trancado em seu quarto. A sua relação com sua filha já não tinha mais uma desfaçatez social. “Hoje em dia, ninguém tá nem aí pro que você faz com sua vida”, dizia o velho Vitorino. Muitas vezes, ele cuspia no prato de Amélia. Na frente dela. E dizia: “Você foi a semente dos meus maus frutos. Quando você nasceu, tudo terminou para a nossa família. Rilde sempre teve razão. Temos que manter o sangue unido até na procriação. O sangue do próximo não é igual, nem dá e nem merece o respeito pregado pela Bíblia.”. Amélia ouvia e fazia-se morosa com tudo, como uma forma de defesa silenciosa. Ela, em certo momento, pensou que seu pai tinha ciúmes dela com seu tio, mas imaginou que sua família tinha pelo menos um pé na sanidade. Quando Amélia não se sentia satisfeita com a quantidade da comida, Vitorino, sem paciência, esfregava de forma grotesca parte da comida pelo corpo nu de sua filha. A ideia é humilhar o fardo e descontar a frustração do mundo em Amélia. 96


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Essa certeza parecia uma ordem naquela casa. Humilhar quem depende de você e quem você não conhece, tenha certeza, é uma ordem em muitos corações formados, simpaticamente, com a ajuda das mãos, juntando de forma simplória os dedos polegares e indicadores. Como está na moda fazer quando está na TV ou quando se exibe uma foto “cheia de felicidade e com o coração formado nas mãos” em redes sociais. O “coraçãozinho das mãozinhas”, o símbolo de paz e amor da modernidade é um indício de quem é capataz e ávido em humilhar e ser escroto. Cuidado! Amélia, sem mobilidade alguma, acostumou-se com os excessos, e fazia dos sonhos e de seu olhar otimista e analisador a sua sobrevida. De vez em quando, mutilava-os com seu olhar, como uma forma de ataque, mas não dava muito resultado contra seus agressores. Logo se conformava, sem movimentos que pudessem ajudá-la a sair desse estado letárgico e de alvo. Com uma boa análise em cada um, pode-se ver o que eles têm de bonito por dentro. Pensava a pobre moça, levando em consideração o seu amor familiar, mas sem perdoá-los. Depois de alguns dias sem banho, como era frequência em sua rotina, quando Amélia já estava muito suja e podre, quem tinha coragem de banhá-la era o seu tio. Rilde, com o passar dos anos, começou a gostar da menina, agora uma quase velha e obesa. Mesmo ainda tratando mal a mesma. Amélia estava tão grande e gorda, que não existiam roupas que coubessem nela. No máximo, quando estava frio, ela usava um remendo de cobertores que entrava em seu corpo pela cabeça, com se fosse uma batina. Amélia preferia ficar com frio de vez em quando. Seu pai, quando botava a roupa na filha, perdia a paciência rapidamente, sem suportar o cheiro da menina. “Sua podre, porca de bosta! A gente te deu tanto carinho e você se tornou isso!”, ele agredia Amélia, que sorria calmamente para ele. Já fazia dezoito anos que Rilde estuprava a sobrinha. E, ainda assim, Amélia aprendeu a amá-lo e reconhecer 97


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a sua verdadeira beleza, mesmo cultivando um grande rancor pelo seu tio. Ela ainda tinha que fingir uma negação e resistência para que ele se interessasse e demonstrasse qualquer sentimento. A sua desculpa, sempre que questionado por ela depois do ato, com seus olhos de lágrimas, era: “Não vou me misturar com outro sangue. Temos que fazer isso em família. Seu pai que foi idiota de pegar uma estranha.”, ele dizia com uma voz raivosa. No fundo, Amélia concordava e aceitava. Afinal, as suas lágrimas não eram de tristeza, eram apenas para agradar ao seu amado tio. Numa manhã branda, poucos anos depois, na qual o sol toca a pele com carinho, chegou de Frankfurt uma carta endereçada à Amélia. Vitorino recebeu e abriu com curiosidade. O conteúdo estava em alemão e português. Mesmo com o trecho em português escrito com alguns erros, Vitorino entendeu bem o que o destino reservava para a sua filha. Mas, antes que ele levasse a boa notícia para sua querida filha, Vitorino mostrou a carta para Rilde. Os dois foram dormir à noite com um calor de felicidade no peito e um brilho de esperança no sorriso. Amélia não foi incomodada. A casa dormia em silêncio divino. Depois de três dias, os irmãos descobriram, através de um velho amigo, que já advogou, que Amélia era a detentora da herança de um tio avô que tinha acabado de falecer na Alemanha e não tinha para quem deixar a herança, a não ser a neta de seu irmão Hans, com quem ele havia trocado cartas por algum tempo, antes que o imigrante tivesse o AVC. Os irmãos descobriram que seu pai era alemão, e não americano, que ele era Hans, não Henry. Rilde sentiu-se orgulhoso. Eles também descobriram que “... a herança de Hilld será entregue diretamente para Amélia, porque os filhos do seu irmão mais velho Hans já estão idosos e aposentados.”. Assim dizia parte da carta escrita a punho pelo advogado de Hilld, o tio avô de Amélia. _Não temos como revogar isso? – perguntou Vitorino ao 98


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advogado. _Pela idade de vocês, a justiça da Alemanha obrigará que o dinheiro seja entregue a ela. Assim como a abertura do inventário só será feita na Alemanha e com a presença de Amélia. _Como esse tio descobriu a nossa idade? – perguntou Rilde. _Parece que o advogado, a pedido do seu tio Hilld, antes de morrer, investigou sobre as condições de vocês para finalizar corretamente o inventário... – ambos ouviram calados às palavras finais do advogado e retornaram para casa. Cinco dias depois, no aniversário de quarenta e seis anos de Amélia, todos os três estavam reunidos dentro do quarto da garota, digo, da senhora Amélia. É engraçado como, na convivência em família, mesmo com todas as diferenças e atritos, sempre surge uma pequena porção de cumplicidade. Por isso, estavam ali a cantar “Parabéns”. Talvez aquele dia tivesse sido o mais feliz da vida de Amélia. Ela não sabia explicar bem por que, talvez fosse a luz amarelada do sol que adentrava de forma suave pela janela. Talvez fosse porque seu tio estava há dias sem procurá-la. E, quando tornou a procurála, pela primeira vez, não a estuprou como sempre fazia na madrugada. Rilde fez um pouco de carinho, pediu que ela o masturbasse e masturbou-a. Por fim, beijou-a na testa. Presente de aniversário? – ela perguntou-se. Também porque, naquele dia, seu pai estava presente e parecia estar de coração. Nos seus olhos existia cumplicidade e alegria com a situação. Na hora de assoprar as velas, Rilde pediu: _Faz um pedido! – com um sorriso quase forçado, mas feliz pela sobrinha. _Faço – em silêncio, Amélia pensou: “precisamos unir a família, termos entre nós mais paciência e mais amor”. Em seguida, assoprou as velas do seu bolo de três andares, encomendado por eles. Antes que terminasse de apagar todas as velas, junto com seu último fôlego, uma dor aguda surgiu de dentro de suas profundezas e atacou de forma fulminante o seu coração, que 99


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bateu em ritmo tão acelerado, que fez Amélia desmaiar. Vitorino achou que era brincadeira da filha, pediu que ela acordasse com pequenos empurrões e um riso desconfiado. Com dois minutos, irritou-se, pedindo que ela parasse com aquilo, perdeu a paciência e tirou seu sinto. Apunhalou, com o lado da fivela, quatro vezes. “Acorde!”. Ele gritava. Ela não reagiu. Depois de um minuto de silêncio, eles entraram em consenso e ligaram para pedir uma ambulância. Passadas três horas, o telefone tocou na casa da família. Rilde atendeu. A notícia era que Amélia não tinha resistido ao fulminante enfarto. A gordura havia tampado suas veias e artérias. Rilde primeiro riu e depois chorou copiosamente como uma criança esfomeada. Vitorino não chorou, andava enrolado, mas já desenrolado, quase esguio, foi até o seu quarto, pegou algumas roupas, um dinheiro que tinha guardado e foi embora. Quando Vitorino já tinha saído, o telefone tocou novamente, Rilde atendeu e, antes que o médico pronunciasse algo, disse que “tudo do enterro está nas mãos de vocês. Vou sumir no mundo.”. Terminou a fala largando o telefone e saindo pela porta da frente, com a roupa do corpo. Atordoado. No outro dia, no hospital, ninguém foi ao encontro do médico receber os resultados do menino vivo que tinham achado dentro de Amélia. Sim. Dentro dela, sobreviveria uma criança com a estatura e corpo de um adolescente de treze anos. Era um milagre de Deus e um presente para a ciência. O que atraiu um grupo de cientistas interessado no caso, oferecendo uma bolsa para cuidar da criança, que havia ficado dentro da mãe durante quase treze anos. Esse fato ficou conhecido na época pela mídia como “O milagre da beleza interior”. Depois que os estudos começaram a ser realizados, não demorou muito, repórteres já tinham espalhado a notícia do milagre. As notícias não atraíram os olhares dos familiares, pois a identidade da mãe da criança foi mantida em 100


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sigilo pelos médicos. Com o sucesso da história inédita, muitos patrocinadores bem intencionados surgiram querendo mostrar a beleza de suas marcas. Inicialmente os médicos disseram que o hospital iria bancar a recuperação física e mental da criança, mas quando uma mega empresa de material esportivo junto a uma emissora ofereceram oito zeros para realizar um reality que duraria até a criança recuperar-se e tornar-se homem de verdade. Não teve jeito. Depois de uma árdua hora de conversa com alguns desses patrocinadores, os médicos passaram o direito de imagem e tratamento da criança. Alguns dos médicos permaneceram na equipe, mas, para o bem do ibope, é interessante que entrem pessoas no reality de boa imagem e famosas. Celebridades. Charles. Charles foi o nome escolhido pela equipe dos médicos que fizeram o “parto” da criança milagrosa. A empresa detentora dos direitos gostou da ideia e lançou novos produtos com esse nome. Com quinze anos e a ajuda do milagre dos oito zeros, Charles já falava e andava pelo hospital. Quando ele fez dezoito e já tinha capacidade de ler e interpretar, diga-se muito bem, a TV tratou de arrumar uma paquera para ele. Ela tinha dezesseis e era a atriz mirim mais promissora do momento. Charles e sua primeira namoradinha formavam o casal do ano no Brasil, segundo a revista mais conceituada no ramo de vidas alheias. Com vinte anos de idade, e com uma facilidade extraordinária de adquirir conhecimento e expressar-se, que se originou em seus tratamentos à base de drogas super avançadas e recomendadas pelos mais conceituados especialistas do ramo, Charles ficou famoso em todo mundo. Recebia tratamento de rei onde chegava. As melhores marcas eram oferecidas ao jovem. As mais belas mulheres apresentavam-se. Políticos, empresários, atores, músicos, personalidades, celebridades, ex-bbbs, jogadores de futebol eram seus companheiros. Ele não tinha menos de dez 101


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assessores bajuladores por perto e nunca ficava sem ter pelo menos quatro amigos ao redor, não menos bajuladores. Em redes sociais, tinha milhões de fãs. Tudo que ele falava virava gíria. Tudo que ele vestia virava moda. Tudo que ele exalasse transformava-se em alguma fórmula positiva para o consumo e felicidade momentânea alheia. Mesmo depois de sete anos em que despertou de sua caverna de Platão, ele ainda era tratado pelos melhores massagistas, professoras particulares, tratamentos intensivos medicinais, com uma tabela semanal de alimentos e exercícios rotineiros para manter a sua boa imagem e forma. Charles tinha uma mistura física do nórdico e do africano. Era um brasileiro pé duro. O mundo, que tem acesso às redes sociais e vive de frente à TV, ou pelo menos 70% dessas pessoas que estão nesse grupo comoveu-se com a história do milagre de Charles. Assim, fizeram tudo para que aquele milagre sobrevivesse e provasse o quanto a vida é maravilhosa: doações, campanhas solidárias, abaixoassinados a favor de alguma vantagem para a recuperação do milagre 'Charles', etc. Sem perder o eixo da história, estava a empresa patrocinadora do feito, que agradecia o aumento nas vendas. Com vinte e um anos, Charles era superstar. Famoso. Celebridade. Muito inteligente. Praticava esportes radicais. Um exemplo de vida saudável e que tem tudo aos seus pés. O exemplo de como cada cidadão tem que ser no mundo atual. Ele ganhava dinheiro só para aparecer em eventos e programas de TV. Tinha todas as mulheres e carros. De vez em quando, fazia uma participação como ator na novela do horário nobre. Os fãs agradeciam, sonhando e sorrindo. A marca que ele representava estava cada vez mais fidelizada na cabeça dos consumidores e fãs de Charles. Tudo caminhava perfeito, até que surgiu um buraco negro por dentro do grande astro. Charles tinha que descobrir quem eram as pessoas que estavam na fotografia do colar que sua mãe carregava no pescoço. O colar que lhe foi dado pelos médicos que fizeram 102


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seu parto. Eram três pessoas. Sua mãe, ele sabia quem era. Apesar de muito gorda, seu amor pela imagem da mãe, uma mistura de pena, saudade e medo, era tão discreto quanto imenso. Existiam também dois velhos, que pareciam ser parentes de sua mãe. Um negro, baixo e barrigudo e outro alto, alourado, mas careca. Depois de três anos de buscas, eis que o detetive que Charles contratou apareceu com notícias. _Você prefere saber as boas notícias ou as más? _Más notícias? – perguntou Charles. _Pode-se dizer que sim. Mas podemos levar também como folclore. O passado, senhor Charles, muitas vezes é ficção. O detetive contou as boas notícias: que havia identificado os senhores da fotografia do colar. Eram seu tio avô e seu avô, Rilde e Vitorino. Mostrou-os apontando com o dedo, para identificá-los. Antes que a emoção dominasse Charles, por ver a foto de seu avô, o detetive começou a dar a má notícia, falando sobre o que as pessoas comentaram sobre o local onde sua mãe e sua família viveram: orgia, sodomia, zoofilia, pedofilia, rituais demoníacos, avareza, estupros, corrupção humana, etc. Charles, mesmo se assustando com as histórias, identificou-se no seu íntimo mais inconsciente. E o detetive continuou: _Senhor Charles, seu tio avô Rilde, depois que sua mãe morreu, sumiu da cidade onde eles moravam. Não deixou rastros. Mas, depois de oito anos desaparecido, ele foi fichado criminalmente na capital. Fui até a delegacia e conheci uma pessoa que trabalhou na mesma época e ele lembrou-se de seu tio avô, porque ele era um cara com cara de gringo, muito inteligente e bem apessoado. Mas sempre era preso por pequenos furtos e acusações de atentado ao pudor. Tudo indica que ele vivia nas ruas roubando para comer e mexendo com adolescentes e mulheres idosas. Só que, sempre que ele estava tentando violentá-las, começava a chorar e não conseguia terminar o ato. Nessa delegacia, existiam pelo menos dez queixas contra ele por masturbação em locais 103


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públicos, entre outros motivos. _Onde ele está agora? _Foi encontrado morto na rua. Parece que o mataram a pauladas. Na época, ele foi encontrado sem documentos. Por isso foi enterrado como indigente. _Como sabem que é ele? – perguntou Charles. _No dia do enterro, o legista que cuidou do corpo achou nos seus pertences os documentos do falecido sem nome. Estava no fundo falso de seu sapato. Já era tarde, ele já tinha sido enterrado. E você sabe a burocracia que é para desenterrar uma pessoa desse modo e fazer do jeito certo, aqui no Brasil? Como ninguém o conhecia de verdade, apenas enterraram seus documentos por cima do caixão. Para ele ter no mínimo a sua identificação, se um dia o desenterrarem – no final da frase, o detetive quase sorriu. _Engraçado, não é? – disse Charles, sarcástico. _Desculpe. Mas convenhamos que essa história é, no mínimo, pitoresca – mudando de assunto, ele continuou: – Já seu avô Vitorino foi para a Europa. Mais precisamente a Alemanha. Ele foi acompanhado de uma mulher chamada Darlene. Na Alemanha, herdou posses que estavam no nome de sua mãe. Provavelmente essa Darlene fez o papel de sua mãe para que ele conseguisse ter esse dinheiro em mãos. _Você quer dizer que meu avô matou minha mãe, a sua própria filha, por causa do dinheiro? _Não. Não chego a tanto. Que pensamento desvairado é esse, senhor Charles? Charles, expressivo, diz com seus olhos, continue: _Em seis meses, seu avô foi roubado por Darlene, que sumiu pela Europa. Depois de dois meses cassando a ladra, Vitorino foi preso em Londres por estar ilegal. Na delegacia, como já era um idoso, ficou numa cela reservada com outros idosos. Um desses idosos era um nazista que o matou com o cabo quebrado e pontiagudo de uma caneta. Enfiou em sua garganta. 104


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Depois de alguns minutos, calado e refletindo, Charles perguntou ao detetive: _Como você descobriu essas coisas? _Tenho meus métodos, senhor Charles. Demorou alguns anos, sabia que iria demorar. Mas, com o dinheiro que o senhor me pagou, eu descobriria até quem era seu tataravô – o detetive terminou a fala sorrindo. _Não precisa. Quero que você apague todas as evidências de que vim dessa família. Não deixe rastro. Vou te pagar o triplo para isso. Posso confiar em você? O detetive respondeu, com os olhos e um sorriso de satisfação, que sim. Ambos apertaram as mãos. O detetive deu as costas e, antes que saísse pela sala da casa do grande astro, Charles teve um insight e percebeu o risco que correria a sua imagem junto aos seus fãs, com essa informação flutuando por aí. Com a rapidez de um atleta velocista, pegou com as duas mãos uma das esculturas de aço que tinha em cima da mesa de sua sala e golpeou o detetive pelas costas. O detetive caiu no chão com a cabeça sangrando, ainda se mexendo e sussurrando, babandose. Charles não pensou duas vezes e, com um sorriso no canto da boca, golpeou o homem por mais nove vezes na cabeça e na nuca. _Os sonhos de muitos dos meus fãs estariam ameaçados se você pensasse em revelar essa informação – disse Charles, olhando para o corpo, como um Deus venerando o seu poder. Sem pensar duas vezes, chamou parte de seus assessores e falou o que realmente tinha acontecido: _Esse pobre entrou aqui em casa querendo fechar um contrato de imagem e uma campanha de marketing para a empresa de investigação dele. Porém, eu não aceitei. Ele, como um louco, começou a me agredir verbalmente e me atacou, sem mais, nem menos. Eu apenas me defendi – Os assessores compraram essa ideia, pelo amor ao grande ídolo e aos seus empregos. E a grande mídia nacional, assim como a mídia mundial vendeu a verdade para a massa faminta por grandes histórias das 105


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grandes pessoas. A família do tal detetive tentou recorrer, mas ninguém teve pulso para apoiá-los contra a reafirmada verdade geral e alheia. Com vinte e sete anos, Charles apaixonou-se por uma atriz. Não foi muito difícil ser apresentado, ficar amigo e conquistar. Em três meses, já usavam anéis de compromisso. O amor parece uma borboleta repousando sobre o galho de alguma árvore que lembre a infância. Antes que eles saíssem juntos, à noite, ela pediu-lhe: _Charles. Charles. Amor! _Sim. Desculpa. Estava concentrado no discurso que farei, se ganhar o prêmio. _Não me deixe só com aquelas pessoas. Você sabe que não gosto de multidão. _Tudo bem, meu amor. Estarei com você o tempo inteiro. Eles saíram. Ele recebeu o prêmio de “Personalidade Midiática e Figura do Ano” pela revista Glamour. Essa noite foi inesquecível para ele. Para ela, não foi nada boa. Durante a noite, ele fantasiou-se nos holofotes e ouvidos interessados em ouvir a pessoa do ano. O figurão. Em muitos momentos da noite, ela não se sentiu à vontade no ambiente. Foi deixada de lado por ele, como ela tinha pedido que Charles não o fizesse. A atriz apaixonou-se por Charles por três motivos: a sua beleza, a sua inteligência e oratória, e o sexo, que era “fenomenal”, segundo ela. Mas o seu orgulho, seu ego e sua vaidade transformavam-no em monstro. Foi a primeira crise do casal. A primeira discrepância descoberta entre eles. Em seis meses, já havia algumas crises a mais. Quando as essências são de cores diferentes, as anuências não se datam. Depois de mais um mês, ela já não queria mais. A sua carreira falava mais alto que ser simplesmente a mulher de Charles, o milagre humano. Charles caiu em si. Foi atrás de seu amor perdido, por isso sabido que é amor, durante quase um ano. Mesmo percebendo, e recebendo da atriz repugnância porque ele a perseguia, não desistia de sua amada. Só que nada adiantava, ela realmente não o queria. 106


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Charles ganhou um convite direto para a sua fossa. Nunca tinha sido ignorado por nada nem por ninguém. Ele entrou em seu inferno astral. Suas entrevistas já não tinham mais o mesmo humor. Alguns repórteres faziam seu trabalho, usando uma feição de “medo mesclado a pena” do pobre Charles, como se não gostassem de perguntá-lo sobre tal assunto: _Charles, perdoe a intromissão, mas o grande público merece saber sobre esses temas incômodos. O senhor confirma que reuniu em sua Casa um grupo de pessoas bem nascidas da sociedade para fazer orgias? A imagem de grande ídolo começou a esvair-se. Como um efêmero sonho. Como o nosso reflexo de ontem, tudo começou a ser esquecido e expurgado da sociedade de consumo. As drogas entraram em sua vida. Escândalos com putas e surubas. Apostas mal sucedidas. Ele amava jogos. A TV procurava-o cada vez menos. Os falsos amigos mostravam-lhe as suas verdadeiras faces. Sem contar que ele começou a criar uma silhueta maior, como a mãe. Perdeu seu patrocínio. Os médicos que fizeram seu parto e consideravam-no “milagre”, desiludiram-se com o novo Charles. Seus cabelos começaram a cair. Ele fez cirurgias e implantes. Não adiantou. Ficou com um visual artificial. Continuou engordando. Aquela mulher havia arrancado um pedaço de seu coração. O amor também destrói. As drogas faziam cada vez mais parte de sua vida. A cocaína. Depois o crack. Ele conheceu o crack através de um amigo que era jogador de futebol. Com trinta anos, já não estava mais na categoria de milagre. Nem de famoso. Ainda era uma celebridade. Não era mais lembrado pelos seus feitos. Ironicamente, feitos esses que se sucederam sem a sua ajuda direta. Charles era lembrado como uma criatura em transformação. Decomposição. Motivo de piada. O que ainda lhe gerava algum dinheiro em certos eventos alternativos. Tentou adaptar-se virando comediante de “stand up”. As pessoas iam vê-lo para rir da piada que ele tornara-se. Não deu certo. Charles passou de milagre nas TVs e internet, para os 107


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palcos como piadista, agora para o esquecimento. Chegou onde um homem apaixonado e rejeitado pode chegar, se não for correspondido e for fraco como ele foi: na merda. A obesidade já o pegara de vez. Ele tinha pelo menos 167 kg. Com trinta e cinco anos, teve que vender a sua casa, onde morava só, com piscinas, campos de golfe, parque pessoal e pista de kart, que ele amava muito. Comprou um pequeno apartamento, com quarto e sala, no centro da cidade. Não queria que os seus fãs reconhecessem sua imagem. Por isso aceitou engordar mais. Criou barba e começou a viver da renda que sua casa gerou na venda. E já estava com quase duzentos quilos. Daquela forma, não ia precisar passar pelo ridículo de ter que contar todo o milagre pelo qual passou, pois ninguém o identificaria na rua. Agora Charles tinha certeza de que não era mais milagre, era uma aberração. E, se fosse reconhecido, era bem grosso e negava. O mundo não o queria mais. O dinheiro da sua última casa, o que sobrou depois de pagar suas dívidas, rendia bem no banco e dava para viver assim. Comida não faltava. Com trinta e oito anos, ele já estava com 211 quilos. Ainda se movimentava, mas não gostava muito de sair. As suas roupas não cobriam a sua barriga, que caía por cima de suas coxas. Estava quase que totalmente careca. Ainda conseguia comer guloseimas, mas não as mulheres lindas que ele já teve em mãos. Charles já estava farto de tudo e dele mesmo. Hoje é o dia que resolverei meu problema. Pensou, caminhando lentamente pela rua solitária. Às onze da noite, ele já estava caminhando por uns vinte minutos, quando avistou a praça mais próxima de sua casa. Uma das praças mais famosas da cidade. Sentado no banco, observando as poucas pessoas que passavam por ali, refletiu o quanto aquilo tudo era uma grande mentira. _Minha vida foi uma grande mentira. Eu sou uma grande banha de merda. Pessoas que não cabem em cômodos para uma pessoa não são pessoas, são animais repugnantes e 108


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descartáveis – disse para si mesmo, choroso. Charles passou mais dez minutos sentado no banco, refletindo sobre ter sobrevivido dentro de sua mãe, sobre o auge e o horror diário. Charles usava de sua inteligência para conseguir uma saída, respostas. E, antes que se levantasse, teve o seu veredito pessoal: _Independente de quem vá sofrer, eu vou me matar. Na volta para casa, Charles resolve parar em um bar alternativo e movimentado por artistas lado B, que frequentam o centro. “Algumas doses de conhaque não fariam mal antes do derradeiro exemplo de milagre que deixarei na terra. É bom também para pensar no que escreverei em meu cartão de despedida desta vida”. Ele pensa. _Como vai, Charles? – Francis, um dos poucos amigos que ficaram depois que ele entrou para a sua fase obscura, cumprimenta-o no balcão. _Você tava aí, nem te vi, Francis. Me desculpe, mas não estou afim de papo. Quero pensar. _Tudo bem. Só queria te dar uma dica. Afinal, sou seu amigo, ou não? _Só essa dica e me deixe com meus pensamentos, ok? – disse Charles, suando. Depois que engordou, passou a ter ódio de conversar com qualquer pessoa, mesmo que fosse um amigo. Eles sempre vinham com alguma crítica para ele. _Ontem eu tava na internet e vi um vídeo de um cara que tinha o seu corpo e perdeu tudo. Emagreceu total. Hoje está se dando super bem. Ganhou dinheiro, ficou rico. Está casado com uma delícia de mulher. Tudo depois que ele emagreceu. Você precisa ver! _Depois que ele emagreceu? – perguntou Charles, ironicamente. _Nesse vídeo, ele diz que usou uma fórmula infalível de regime, emagreceu toda sua morbidez e “sobreexcelência” de gordura, à base de Buscopan... _Buscopan? 109


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_Aquele remédio para dor estomacal. _Sim?... _Cara, no vídeo, ele diz que fez o regime à base desse remédio. Toda vez que ele sentia a dor da fome em seu estômago, tomava o Buscopan e a dor da fome passava. Até que ele parou de comer de vez, e emagreceu. Charles dá uma risada insólita. _Cara, ele fala de forma descontraída desse regime no vídeo. Muita gente diz que é só brincadeira e que ele emagreceu com cirurgia de redução de estômago. Mas, se eu estivesse no seu lugar, eu tentaria. Ou melhor, por que você nunca fez redução de estômago? – perguntou Francis, curioso. _Fiz uma época. Em dois anos, ganhei todos os quilos de novo. Você não sabe a minha história? O milagre que nasceu com treze anos de dentro de uma mulher obesa? Então, está no sangue. _Sei, meu amigo. Mas não te incomodarei mais. Vou me encostar naquelas meninas ali na mesa – ele fala, apontando para uma mesa com três mulheres. – Vamos? _Não. Estou bem aqui. Charles vira-se, paga a garrafa de conhaque e sai do bar com ela em mãos. Quando Charles chega à sua casa, com o texto da 'Carta do adeus' na cabeça, ele pega uma caneta e escreve. Depois guarda dentro de sua gaveta. Vai até a cozinha e procura uma faca afiada e um copo. Ele volta para o quarto, senta-se de frente ao seu computador e entra em um site pornográfico enquanto abre a garrafa e enche o seu copo. Na internet, e sem conseguir masturbar-se por causa da gordura e dos pentelhos há anos sem cortes, ele lembra-se do que seu amigo falou. Ele entra no site de busca e escreve: “regime do buscopan”. O vídeo do qual Francis tinha falado aparece em primeiro na lista. Ele assiste. O tal do Mark fala do regime, mas em tom de deboche. Charles não leva muito a sério. E, quando está terminando o seu último gole, antes de se cortar com a faca, o seu interfone 110


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toca. Charles leva um susto e vai até a cozinha, onde ele atende: _Alô? O que foi? _Senhor Charles, me desculpe o incômodo, mas é que tem uma moça aqui embaixo que insiste em ver o senhor agora. _Moça? É bonita? _Sim. _Mande subir. Quando a campainha toca, Charles já está vestido. Ele abre a porta e, para a sua surpresa, é Ana, a atriz que o deixou anos atrás. _Oi. _Oi – Charles responde, desconfiado. _Não vai me pedir para entrar? _Entre. Assim que ela entra, Charles pergunta, arisco: _O que você quer? Não basta me ver assim na lama? _Quero me desculpar. Tava no bar agora com Francis e te vi lá. Ele me explicou onde você morava, aí vim aqui. _Você estava naquela mesa? _Sim. _Veio aqui por pena? – perguntou Charles, irritado. _Não. Vim me desculpar. _Pelo quê? _Não queria que tudo terminasse assim. Eu quero seu bem. O que me afastou de você foi o Charles egocêntrico e vaidoso. O Charles que só liga para os seus discursos e suas fotos. Eu amava o que tinha por dentro de você. _E daí? Por que não vai direto ao ponto? _Quero dizer, Charles, que você, mesmo com essa imagem, ainda é o cara que tem a beleza interior mais linda que já conheci. E que, se você precisar de mim, pode contar comigo. Quero ser sua amiga. Charles ficou calado e sem resposta. Emocionou-se. Ana percebeu os seus olhos cheios de lágrimas e, por causa do seu bom coração, foi até Charles e deu um beijo em seu rosto. 111


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_Era só isso. Francis sabe meu telefone, se você quiser falar comigo. Fique bem. Tchau.Ela saiu rápido pela porta e não ouviu Charles dizer-lhe, com uma voz emocionada: _Tchau, Ana. Charles voltou para o computador e repensou sobre o que fazer de sua vida. Viu mais uma vez o vídeo do regime. E tomou a sua decisão. No outro dia, cedo, antes do café da manhã, ele vai até uma farmácia comprar duas caixas de Buscopan. Em casa, começa a questionar-se sobre a sua fome matutina. Antes de comer, toma três pílulas de vez. Ele não diz em seu vídeo quantas pílulas se deve tomar. Pensa. Em quatro minutos, a dor da fome em seu estômago passou. E nessa semana foi assim: toda vez que ele sentia fome, tomava pelo menos três ou quatro pílulas para que ela passasse e ele não precisasse comer. Para não dizer que Charles não comeu nada, apenas os chocolates, que ele era viciado, foram degustados. Depois de um mês, Charles já havia perdido pelo menos trinta quilos. Um quilo por dia. Talvez se não tivesse comido os chocolates seriam quarenta. Isso não importava mais, o que importava é que o tal Mark estava certo. O regime era real. Depois de dois meses, foram-se 55 quilos e alguns convites de entrevista para falar sobre essa recuperação física e corrida contra o tempo “para ser o Charles que o mundo ama”. Assim rotulou um dos repórteres que o entrevistou. Depois de seis meses, foram 90 quilos. Em um canal de TV, no qual participou de um programa de auditório, reencontrou Ana. Ele esnobou a atriz. Ana sentiu-se mal e foi até ele no estacionamento lhe questionar. Charles não teve dúvidas quanto às suas palavras: _Vá se foder, sua safada. Você me levou pra merda. Vou ter tudo na mão de novo, em breve. Você, pra mim, é lixo – Charles, rancoroso, tendo a certeza de sua recuperação, não se contaminou com sua emoção de meses atrás quando a reencontrou. Ana chorou de raiva, queria apenas a amizade. 112


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Charles percebeu que estava além, depois de tanto tempo sem comer. O efeito da “greve de fome” era revolucionário em seu corpo e em seu ego. Depois de dez meses, ele perdeu 115 quilos. Charles já estava totalmente apresentável e tinha perdido o viço de querer comer algo. Com onze meses, pesquisou outras ideias de regime pela internet. Não achou mais nada válido. Contratou um cientista com o dinheiro que estava conseguindo com a sua virada na carreira, para pesquisar mais fórmulas que o melhorassem. O milagre estava de volta. Com mais de um ano e meio, depois de tomar as primeiras pílulas de Buscopan, já estava no seu peso ideal. Fazia um sucesso danado com as mulheres da época em que ele esteve no auge. Atingia uma parte do público, mas ainda não a massa. Estava careca. Precisava de algo diferente. Foi quando seu cientista trouxelhe um elixir que qualquer pessoa sã não se atreveria a usar. Charles tinha em mãos uma fórmula inovadora, que depois de combinada, deixava-o sem sede. E, sem a água e a comida seu corpo parecia mudar por regra e consenso, com o mundo e Deus. De forma surpreendente, o seu corpo mudava da noite para o dia. Como se fosse um presente divino, suas formas foram modificando-se. Os seus músculos tonificavam-se como mágica. Seu pênis aumentou pelo menos cinco centímetros. Seu cabelo voltou a crescer. Seu rosto, que parecia ser de um senhor de idade que sofreu muito durante a vida, rejuvenesceu. “Isto é revolucionário, ninguém mais pode ter isto em mãos.”. Pensou. Ele logo radicalizou e comprou os direitos do vídeo do tal Mark. Charles também tentou contato com o próprio, mas não teve resposta. Para garantir que ninguém mais usaria o regime completo, a fórmula e o Buscopan, e chegasse ao ponto em que ele estava, matou o seu cientista. Dessa vez, envenenado. Ele era uma mera personagem para compor a loucura fantástica de Charles. _Matar um qualquer não fará falta ao mundo, quando eu 113


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mostrar que do milagre nasce a perfeição – disse para si, enquanto via seu contratado morrer contorcendo-se. Dessa vez, ele mesmo se livrou do corpo. Primeiro cortou em pedaços e depois fritou em óleo quente cada parte do cientista. E por fim os queimou em sua lareira elétrica. E as sobras, em cinzas, Charles enterrou em seu jardim e por cima plantou roseiras. Nessa altura, já se fazia dois anos e seis meses que ele estava nessa corrida pela perfeição. Ele, além de ter ganhado músculos, altura, cabelo e até mais inteligência com o seu estilo de vida, e ter de volta todas as mulheres que queria em mãos, também conseguiu mais dinheiro e mais fama. Muito mais patrocinadores. Primeiro, por causa de sua proeza do emagrecimento e da mudança de visual espetacular. E, depois, porque o texto que Charles havia escrito para deixar de recordação depois que se matasse foi visto por um dos seus novos amigos artistas e músicos. Esse amigo de Charles fez a melodia. Então, aquelas que antes eram palavras de despedida, tornaram-se uma música de muito sucesso nacional. O que deu a Charles também a vigência de compositor. Mark procurou Charles em sua nova mansão. Charles já estava com quatro centímetros a mais de altura e dez vezes mais rico do que já foi. A sua vida era realmente um milagre para as pessoas. Alguém que nasceu quase morto e de forma milagrosa, ficou rico, famoso, depois despencou e partiu para dentro de sua mais profunda desgraça. Como outro milagre e com muito “esforço”, ele conseguiu dar a volta por cima. Era um exemplo para qualquer cidadão que precisa de exemplo. Charles não ficou surpreendido quando Mark apareceu. Ele imaginava que um dia Mark viria cobrar sua parte. _Eu faria isso também – afirmou Charles ao seu visitante. _Você sabe que realmente é um milagre. Assim como eu – disse Mark, mudando de assunto, a Charles. 114


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_Por que como você? _Conheci outras três pessoas que tentaram esse regime, como nós. Mas elas transformaram-se em aberrações. Ou seja, só existem duas pessoas no mundo que sofreram essas mudanças, dessa forma tão milagrosa. Eu e você – Charles sorriu, olhando para ele. E Mark retribuiu o riso. Mark e Charles conversaram amigavelmente por horas. Charles até ensinou a Mark a fórmula para parar de beber água. Os dois pareciam grandes amigos e dois narcisos olhando-se no espelho gigante que Charles tem em sua casa. A beleza de ambos incandescia tanto o lugar, que Mark aproximou-se de Charles, sem resistir, e beijou-o. Charles gostou, mas gostava ainda mais de si próprio. Quando Mark afastou-se e deu as costas, sorridente, Charles, com uma frieza que vem de família, pegou um dos seus cristais e quebrou-o na cabeça de Mark, que, meio tonto, caiu no chão. Charles não perdeu tempo e bateu novamente em sua cabeça com a garrafa de uísque que eles bebiam. Quando Mark acordou, estava amarrado na cozinha da mansão de Charles. _Depois de quase quatro anos sem comer, hoje eu vou te cortar em pedaços e servir aos meus visitantes no jantar que farei daqui a uma semana, aqui em casa, em homenagem à minha beleza, o espelho para o mundo – ele sorri, insone. – E experimentarei um pouco de seu sangue, que usarei para fazer uma farofa de picadinho. Comerei também um pouco de sua carne inútil. Eu mesmo farei e prepararei os pratos. Ficarei orgulhoso vendo meus convidados comerem cada parte do seu corpo durante o jantar. Mark riu, sem acreditar. Charles também riu, mas depois foi direto à dispensa e voltou com três facas de diversos tamanhos, um facão, um martelo e uma serra elétrica. Sem mais conversas, passou pelo pescoço de Mark a faca mais curta e afiada que tinha. O regime e a falta de água no organismo de Charles mudaram-no físico e psicologicamente. A sua imagem diante das câmeras de jornalistas e fãs alucinados que o seguiam pela 115


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cidade era quase de um Deus. Algumas pessoas juravam que o viam brilhar. Outras pessoas diziam que ele era o anjo salvador e da beleza. Ele flutua. Afirmavam outros. Foi fundada até uma religião para Charles, como fizeram para Maradona, na Argentina. Os seus olhos não deixavam ninguém inerte a ele. Quem olhar aqueles olhos cederá à vontade do dono. Dizia algum crítico de arte por aí. Charles era uma obra prima humana. Uma arte ambulante. Esplêndida. Viva. Viva! Mulheres faziam fila para um sexo diário. A beleza de Charles estava dominando os sonhos femininos e masculinos. Quem era seu amigo tinha inveja. Quem não era, queria ser. Tudo se direcionava a perfeição na vida de Charles, até o dia do jantar em homenagem à sua beleza. _No prato principal, ensopado de batatas com filés de gado holandês. Como acompanhamento: pedaços de costela de suíno gigante da África, farofa com miúdos e carne moída em massa italiana. Feitos por mim – disse Charles às suas visitas. Todos olhavam para ele sem nem entender quais palavras saíam de sua boca, pois seus olhos e sua beleza paralisavam a interpretação dos convidados. E o jantar foi servido. Charles, que durante todo o tempo do seu regime apenas comeu pequenas porções de chocolate, nessa noite se permitiu a degustar de um prato de ensopado com um pouco de sua farofa. Antes que ele terminasse de comer, uma reação adversa mexeu profundamente com o seu estado emocional. Com a junção da carne e do sangue de Mark dentro de Charles, uma certeza invadiu-o: o mundo não faz mais sentido. Pensou. Mesmo que ele tivesse toda grana, carros, mulheres, tudo que o dinheiro e a fama pudessem trazer e comprar, não seriam suficiente diante de sua extrema e magnânima perfeição. Quanto mais ele raciocinava, mais entendia que, naquele mundo, só existia pessoas inferiores. A raça da humanidade é inferior a quem se diz Charles. Não existe nada nem ninguém que possa completá-lo. “Talvez eu tenha vindo para purificar o mundo e guiá-lo para uma evolução. Talvez eu tenha que 116


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passar para vocês como podem evoluir sem precisar comer e beber água. Talvez eu busque na internet pessoas que tenham o mesmo ideal que eu e comece uma grande revolução. Talvez eu faça uma guerra e destrua essa raça inferior, presa aos sonhos. No meu mundo só cabe perfeição”. Pensou Charles, sentado à mesa. E, enquanto todos sorriam e babavam a figura mais ilustre da noite, ele levantou-se e saiu do jantar sem falar com ninguém. Um dos convidados chamou: Charles! - ele não respondeu. O convidado chegou perto e puxou-o pelo braço de forma delicada. Charles virou-se e o agrediu com socos e pontapés. As pessoas assustaram-se. Ele saiu pela porta de sua casa, vagando pela rua, parecendo que, inconscientemente, buscava passar pelos mesmos caminhos do seu fadado e falecido pai-tio-avô. Nessa noite, ele vagou até o centro da cidade, perto de onde havia morado. Parou na praça em que esteve antes de tentar matar-se no auge de sua obesidade. Foi ao mesmo banco, no qual chegou à conclusão, quando estava obeso, que ele não pertencia àquele mundo de merda e refletiu do mesmo jeito, só que invertendo as peças. “Este mundo de merda não pertence a mim, tenho repulsa por essa mediocridade. Vou mudar isso...”. Antes que ele terminasse o seu pensamento, um pássaro posou em seu ombro, interrompendo sua concentração. Charles percebeu e deixou, esperou o momento certo de matar o ousado pássaro. Antes que ele continuasse com seu ato de violência contra a pobre ave, um fenômeno, desse que ninguém acreditaria se não o visse, aconteceu. Charles, em cima do banco, petrificou da cabeça aos pés. O pássaro saiu voando além. Charles e o pássaro. No outro dia, pessoas na praça faziam uma roda em volta da estátua, que antes foi Charles. _Como é linda! _Que obra de arte fenomenal! _Nunca vi uma estátua com essa beleza e acabamento. 117


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Todos comentavam sobre a maravilhosa escultura e queriam saber como apareceu ali. Ninguém reconheceu que a imagem era do super astro Charles. Jornalistas atualizaram seus blogs e sites sobre a aparição da obra de arte. A imagem de um homem contemplando o horizonte com se fosse transformar-se no eterno, polida de forma exemplar. É a imagem mais bela que tem no centro da cidade. E uma das mais belas que vi em minha vida – escreveu um dos repórteres especializados em arte contemporânea e urbana, em seu blog. Na prefeitura, a notícia chegou rápido sobre a tal estátua. O prefeito não perdeu tempo, informou-se e descobriu que ninguém sabia de onde tinha vindo a tal estátua. Sem fazer licitação, mandou organizar uma comitiva com desfile e tudo que tinha direito. Foi inaugurar a estátua. _Eis aqui uma das minhas ótimas ideias para embelezar a cidade, melhorar a qualidade de vida do nosso cidadão e marcar o progresso que o meu mandato vai trazer. Vejam! – o prefeito, em cima do palanque armado às pressas, aponta para a estátua. As pessoas, caladas, contemplam a escultura. O prefeito, com a voz cheia de emoção, continua: _Essa obra representa bem a beleza interior de cada um de nós. Vislumbrem! Depois de alguns segundos em silêncio e contemplação, as pessoas presentes no evento cívico inaugural da grande obra de arte estouram de alegria e aplausos. Todos tinham sorrisos contaminados com a mais pura felicidade, que se formavam em suas faces afortunadas e sonhadoras, como se algo novo e belo tivesse nascido dentro de cada um.

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A carta de suicídio de Charles. Fui, porque nunca estive aqui. Quem me viu, ou ouviu, Está enganado Esse assunto tem que ser evitado. Mas minha morte não será. Deixo para as pessoas que me amaram As pessoas me amaram? Deixo este ato final Não existem milagres na hora de dar adeus. Charles

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À minha Isana, mulher que está no momento do riso, no momento da lágrima, e, principalmente, no momento do amor que sinto em vida. E ao meu cachorro Tony, o ser com olhar mais humano que tenho contato.

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Sobre o autor José Augusto Couto Sampaio Neto nasceu em 28 de outubro de 1983, na cidade de Alagoinhas, recôncavo da Bahia, onde viveu até os sete anos. Mudou-se com a família para Juazeiro da Bahia, divisa com o Estado de Pernambuco, ao lado da cidade de Petrolina. Ambas cidades banhadas pelo Rio São Francisco. Aos 18 anos, mudou-se para Salvador, capital baiana, junto à família novamente, onde cursou Publicidade e Propaganda na Universidade Católica de Salvador, localizada acima da Estação da Lapa. Centro da cidade. Casou-se aos 24 anos com Isana Barbosa e mudou-se para Teresina, Piauí, onde reside e trabalha como publicitário, produtor e escritor. Narrativas do horror cotidiano é o seu segundo livro de contos. O escritor publicou, em outubro de 2010, O outro lado do olho, livro de poemas, e Imagine alguém te olhando do escuro, livro de contos e crônicas. Em junho de 2012, publicou Desigual, mais um livro de poemas. Para saber mais informações, acesse: joseaugustosampaio.blogspot.com Segundo o escritor, “A literatura é a minha salvação pessoal e liberação dos meus demônios”. Contato: guto.sampaio83@gmail.com Facebook: José Augusto Sampaio

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