O terreiro encantado de Rita Benneditto

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Goiânia, quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

ESSÊNCIA

Gritos no Carnaval Nos próximos dias 14, 15 e 16, 54 bandas de rock, MPB e hip hop se encontram na nona edição do Grito do Rock>> P. 18

Rita Benneditto O terreiro encantado de

Cantora maranhense lança CD em que mescla erudito e popular e une sagrados de várias religiões

JÚNIOR BUENO

oje o mundo carece de fé. Então, tenham fé,” diz o Babá Oboromim T’ogunjá no início da música Banho de Manjericão, no novo álbum de Rita Benneditto. A frase é um mote que percorre o disco, nove anos após seu último trabalho, o projeto Tecnomacumba, que rendeu uma turnê bem sucedida e um registro ao vivo em CD e DVD. Agora, a cantora maranhense desencanta e lança um palbum que pode ser descrito como um manifesto pela beleza da fé. Encanto possui um repertório que mescla músicas que poderiam caber no disco anterior – dedicado às religiões de matriz africana – e demais canções, que evocam outras manifestações de fé. É o mesmo caminho, mas com um olhar novo para as crenças brasileiras. A novidade também está no nome da artista. Até 2013 ela assinava e era conhecida como Rita Ribeiro. Após tomar conhecimento de outras cantoras que tinham registro idêntico, ela preferiu mudar a ter que enfrentar longos entraves judiciais para decidir quem deveria ficar com o nome. Ao adotar o Benneditto, ela, de uma vez só, homenageia o pai, Fausto Benedito, já falecido; sua cidade natal, São Benedito e a entidade Pai Benedito das Almas. Some-se a isso o bom auspício do nome, que significa abençoado, o que ela tratou de reforçar dobrando o“n”e o“t”. “E tem dado certo essa mudança”, ela disse em entrevista exclusiva ao Essência. E é com esse reforço cabalístico que o disco confirma a missão de Rita Benedito de colocar seu canto mundano a serviço de difundir as religiões do Brasil. O disco abre com Centro da Mata, uma invocação à cabocla Jurema, de domínio público, aqui adaptada por Rita e Felipe Pinaud (que produz o álbum com a cantora e Lancaster Lopes. Logo em seguida vem Guerreiro do Mar, ponto de Ogum, que ela mistura ao Canto para Iemanjá, música comum no candomblé do Maranhão. Santa Clara Clareou tem autoria de Jorge Bem Jor e já foi do repertório de Clara Nunes. Aqui há um medley com dois pontos de Iansã. “É uma homenagem às divindades femininas, como as santas católicas e as orixás,” define Rita. Pedra do Tempo também é parceria de Rita, Lancaster e Felipe e saúda Xangô. Água, música de Djavan, vem misturada a Eu e Água, de Caetano Veloso. Rita brinca que, sem querer caetaneou e djavaneou ao mesmo tempo. Banho de Manjericão, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, traz na introdução a prece de um médium encarnando um preto velho e é um retrato do sincretismo brasileiro. “Pai Antônio cura desengano, e tem a reza de São Cipriano e tem as ervas que abrem os caminhos do cristão”. E pra quem acha que todas as rezas, simpatias e orações do Brasil não dão conta do recado, tem a encanteria cubana de Babalu, um antigo sucesso de Ângela Maria, aqui

Em Encanto, Rita Benneditto reforça a latente religiosidade sincrética brasileira e a turbina com arranjos e experimentos espetaculares

com um interessante arranjo de guitarras. Estrela é Lua Nova é de Villa-Lobos, “nosso índio de casaca,” como define Rita, música que brinca com a sonoridade da palavra macumba e no final tem uma fusão com Batmacumba, poema tropicalista de Gilberto Gil. Uma releitura interessante e roqueira de Fé, de Roberto e Erasmo é uma surpresa interessante. Os temas religiosos do sempre muito católico Roberto Carlos costumam causar enfado em muita gente, mas na voz de Rita a música ganhou um viés universal, pois pode se referir a qualquer religião, a qualquer divindade. Um libelo de tolerância, em tempos de violência fundamentalista. Extra, de Gilberto Gil é um dos pontos altos do disco, com participação da banda Reggae B e a inusitada inclusão do Salmo 24 recitado (em inglês) por Priest Tiger, um padre jamaicano rastafári. Filha de Tupinambá é mais um ponto para Cabocla Jurema, onde os atabaques dão lugar ao piano. De Mina homenageia os terreiros maranhenses, com participação do roqueiro Frejat na guitarra. O Que é Dela é Meu, de Arlindo Cruz, que também canta na faixa, é um samba feito para Rita, que em Tecnomacumba cantava “o que é meu é da cigana, o que é dela não é meu”. O samba de Arlindo vem para que Rita diga que agora ela pode dizer“hoje agradeço e posso afirmar, o que é dela é meu.”

ENTREVISTA Rita Benneditto Em tempos de terrorismo causado pelo fanatismo religioso, seu novo disco, Encanto pode ser considerado um manifesto pelo lado bonito da fé? Sim, é um manifesto. É o meu sexto disco e é um desdobramento do Tecnomacumba, em que se revelam reflexões sobre a fé. Quando lancei o disco anterior, notei que havia pessoas preocupadas demais se era um trabalho religioso ou não. E é um questionamento pequeno, diante da dimensão planetária que cada um possui, independente da fé que professa. Para mim, não interessa a religião, interessa a condição humana. Interessa a fé, independente dos dogmas. Pode ser uma fé na família, na natureza, estruturada Nos planetas. Não uma fé com regras que nos impõem, que nos limita. O disco se chama Encanto exatamente por isso, porque ele tem o intuito de trazer às pessoas uma sensação de encantamento, de conviver, de comungar. É um manifesto da fé como veículo dessa mensagem interplanetária. Nós estamos em um momento de passagem: da passagem da Era de Peixes para a Era de Aquário; da passagem do século 20para o século 21. A própria internet esta aí para revelar frequências, apesar da linha tênue que separa o diálogo do discurso de ódio. A mensagem é a elevação de ideias, independente de dogmas e denominação.

Encanto é o início de uma nova fase na sua carreira? O ciclo de Tecnomacumba se encerrou? É óbvio que ele tem muito da energia de Tecnomacumba, porque foi um trabalho muito forte, que teve muita repercussão, muita receptividade e gerou muitos frutos. Mas também tem a ver com meus momentos, com novas descobertas. É um disco formatado por dois novos nomes, Felipe Pinaud e Lancaster Lopes, que trouxeram ideias novas de montagem, de sonoridade, de repertório. A matriz é minha, desde a produção às pessoas envolvidas, mas estive bem aberta e atenta às novidades que eles trouxeram. E o disco tem essa intenção, de trazer à tona 25 anos de carreira e apontar essa seta. E eu digo seta no sentido indígena mesmo, dessa força guerreira. Tecnomacumba não morre, ele é atemporal.

Eu sou muito grata às forças positivas que me ajudaram a realizar esse projeto. Sou cria de artistas que já vinham fazendo esse trabalho bem antes, como Caetano, Gil, toda essa turma. Bebi na fonte. Eu fui muito feliz e muito bem recebida pelo público com essas músicas, é um projeto atemporal. Se eu quisesse ficar mais alguns anos só fazendo esse show, eu teria espaço. E eu posso afirmar que depois de mim, alguns outros artistas também começaram a fazer trabalhos que reverenciam os deuses afro-brasileiros. O Criolo,por exemplo, fala sobre isso em seu novo disco e tantos outros. Vêm dessas iniciativas esses trabalhos. E o principal é que o público brasileiro pode se reconhecer, aprender sobre suas mussicas sagradas, sobre sua cultura.

Como foi o processo de mudança de nome artístico? Já são dois anos de mudança. Eu já vinha com essa vibração de mudança, e o meu público compreendeu isso muito naturalmente. Benedito é o sobrenome do meu pai, e eu nasci em São Benedito do Rio Preto, então é um nome muito forte na minha vida. E tem o fato de que eu fiz um estudo numerológico e soube que dois enes e dois tês trariam mais sorte, mais alegria, mais sucesso. E o significado é ótimo também, não é? Quer dizer abençoado, bendito, é um sentido muito forte, um rebatismo. E é uma questão de tempo para todo mundo se acostumar,como foi com a Sandra de Sá, o Jorge Ben Jor, etc.

CRÍTICA É a cor da Cabocla Jurema, são as cores de Rita Benneditto, são as cores do Brasil! Somos de uma geração de brasileiros que desconhecem o Brasil, poucos se propõem a entender nosso país multicultural. Mas para aqueles que querem aprender um pouco mais de música brasileira, recomendo o álbum Encanto. Rita Benneditto consegue neste trabalho cruzar os ritmos do país sem perder o caráter universal. E tem uma voz limpa, clara e forte, com uma técnica vocal que não precisa de firulas para mostrar sua capacidade. Mas o principal que caracteriza esta cantora é sua capacidade de dar alma para as músicas. Encanto é um CD no qual não existem barreiras geográficas, religiosas ou estilos. Rita Benneditto consegue ultrapassar todas as barreiras criadas por nós mesmos fazendo uma música genuinamente brasileira. Ela consegue, ainda, harmonizar canções populares com arranjos de música clássica, ao mesmo tempo em que leva canções sagradas para pular ao som de guitarras. Fiquei encantado mais uma vez com a bendita Rita, e reafirmo o lema da própria Rita, “A minha religião é a musica, é para ela que eu bato cabeça”. Religião no sentido de “religare”, refazer os laços com algo. Encanto nos religa com nossa alma, essência e brasilidade de forma única e contemporânea. Abençoada seja Rita Benneditto, cheia de encantos!

Como surgiu a ideia de fundirVilla-Lobos com Mutantes, entre outras misturas inusitadas que aparecem em Encanto? Veio da pesquisa de repertório mesmo, que eu e os produtores fizemos. Em Estrela No Céu É Lua Nova eu fiz essa mistura para reafirmar algumas questões. O Villa-Lobos foi o primeiro tropicalista, o nosso índio de casaca. Ele foi buscar a música dos índios, dos negros e incorporou à música erudita. E fez isso ser conhecido pelo mundo. Eu escolhi essa música porque ele utiliza a sonoridade da palavra macumba, as pessoas usam no sentido pejorativo, negativo. E é um instrumento sagrado, não existe esse peso. E junto com isso eu inseri a música dos Mutantes, Batmacumba, que na verdade é de Gilberto Gil, e é um poema concreto, que também brinca com a palavra macumba. Após 12 anos de Tecnomacumba, como você vê o legado dessa ponte que você fez entre as religiões afrobrasileiras e o público brasileiro?

Por Guto Rocha


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