África na cabeça

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Goiânia, sexta-feira, 31 de julho de 2015

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ESSÊNCIA África na cabeça Mais do que acessório fashion, o turbante é um símbolo da ancestralidade africana e ganha adeptas cada vez mais consciente de suas origens

JÚNIOR BUENO

turbante, este clássico que divide opiniões, está de volta no infinito ciclo da moda. Não é de hoje que o acessório, proveniente da África Negra, ganhou status fashion. Ícones de estilo como Greta Garbo, Elizabeth Taylor e Coco Chanel eram grandes fãs dos turbantes. Carmen Miranda também abusou da moda, que ganhou os complementos dos balangandãs e frutas. As celebridades adoram e adotam: Jennifer Lopez, Sarah Jessica Parker e Kate Moss já se renderam ao “lencinho com amarração charmosa”. A consultora de moda Glória Kalil é outra que volta e meia aparece desfilando de turbante por aí. E é aí que entra a importância de se saber a origem do turbante e como seu uso pode ter diferentes significados, além de apenas um acessório fashion. Um exemplo disto ganhou as redes sociais no último mês. Watusi Santiago, candomblecista, esperava o sinal abrir, no Centro de Goiânia, ia para o traalho, na Secretaria Municipal de Igualdade Racial, quando veio um agravo. Antes que pudesse recuar, ou ao menos se dar conta, da janela de um carro saiu um objeto em direção ao seu rosto, acompanhada de um sonoro “você vai para o inferno!”, que é para não deixar dúvida de que não era por acaso. Watusi ostentava um turbante, símbolo de sua orgulhosa identidade e religião. Para uma alma sebosa como a que ia a bordo do carro, uma mulher com colar de contas e turbante, assim, a céu aberto e longe dos guetos, não merece o céu. Watusi relatou esta história no Facebook e recebeu muito apoio, na forma de comentários e compartilhamentos. E enquanto enrolava turbantes na cabeça para as fotos desta matéria, disse que se sentiu ferida em sua ancestralidade, em sua identidade. Para ela, mais que um adereço fashion, o turbante é um símbolo de pertencimento que traz consigo uma história. “Quando um acessório que é característico do povo negro vira moda, os traços culturais dele são retirados, e para nós, que tivemos nossa história negada, isso é muito caro,” ela explica. Em outras palavras, um turbante é um sinal de afirmação de uma raça que, numa sociedade ainda tão racista, é constantemente “lembrada” de que não deve se expor, se manifestar, se fazer notar. Então, quem usa um turbante deve ter em mente seus significados e sua origem. Existem muitas versões para o surgimento do turbante, já que ele é característico de países como Índia, Bangladesh, Paquistão, Afeganistão e Jamaica. Mas o turbante como é difundido no Brasil, vem diretamente dos ancestrais africanos, que chegaram aqui como escravos. Além do contexto racial, tem também o uso religioso, nas religiões de matriz africana. Watusi explica que apesar de ojá ser o nome que se dá à arte de amarração de tecido sobre a cabeça, aqui esse nome se dá especificamente ao uso religioso do turbante pelas mães de santo do candomblé.

Ultimamente, ganharam força nas redes sociais coletivos de mulheres negras que compartilham experiências, tutoriais e fotos com seus turbantes. Grupos como o Encrespa Geral, o Meu Turbante é Minha Coroa e o Turbante-se têm dezenas de milhares de likes. Para Luciene Dias, doutora em Antropologia, o uso do turbante como agente empoderador é bem-vindo. “A indústria cultural se apropria desses símbolos, mas sempre com uma esterilização, com uma negação dessa identidade”. Ela conta que não costuma usar turbantes fora do ambiente religioso, mas que utilizar o adereço como um traço de afirmação da raça negra é valido. “Só usar por usar não é certo. Vale usar como um instrumento de politização, pois todos os elementos que usamos sobre nosso corpo devem vir para afirmar. O que é pessoal é político também”, defende. Para ela, um dos viés mais problemáticos em se adotar o turbante como ícone fashion é a pecha de “exótico” que a peça acaba ganhando. Há alguns anos, estampas chamadas de étnicas ganharam as vitrines e editoriais. Mas a que etnia elas pertenciam? Ninguém sabe dizer. Com o turbante é a mesma coisa. “Ao se exotizar uma cultura, comete-se um novo massacre, pois se determina o que é norma, padrão, correto, em oposição ao que é exótico, diferente, ancestral,” explica Luciene. A estudante Ana Cláudia conta que o uso dos turbantes é recente, mas veio com o reconhecimento do valor de sua raça. “Eu comecei a participar de oficinas de turbante e a enxergar como são bonitas nossas raízes”, diz ela. Sophia Costa, publicitária, começou a usar turbante quando resolveu deixar os cabelos, antes alisados, com cachos naturais. Na fase de transição, em que o cabelo deixa de receber química, os turbantes são ótimos aliados. Mas foi o orgulho de sua negritude o maior fator. “O motivo foi eu estar entrando em contato com a cultura negra e entendendo a força que o turbante tem e o que ele significa”. Para ela, o turbante também tem mais a ver com afirmação do que com estética. Já para Jordana Barbosa, o uso, além de funcionar como uma provocação aos valores estéticos pré-estabelecidos, é também uma maneira de se sentir bonita, um acessório que funciona bem para ela. Ela conta que recebe elogios, mas também já ouviu insultos como “que coisa estranha, que garota esquisita!” de algumas pessoas. “Tem dias em que fico abalada, tem dias em que xingo de volta – o que eu não acho legal – e tem pessoas que dá pra conversar e explicar”, diz ela. Ela conta que uma vez acompanhou o filho em uma festinha e quando entrou no local, todos pararam para observá-la. Jordana diz que se sentiu incomodada. “Mas depois vieram me contar que fui super elogiada e perguntaram de onde era essa mulher tão bonita,” diz ela. Mas então apenas mulheres negras podem usar turbantes? Segundo Watusi, não é uma questão de proibição, de separação, mas sim de se saber qual significado histórico há por trás da peça. “Todo mundo conhece a

história da calça jeans, do biquíni, da minissaia. Por que não ensinar também de onde vem o turbante?”. É uma proposta interessante para se resguardar a memória histórica de um povo. “A nossa história pouco é contada nas escolas, apesar de haver uma lei que determina isto. Quem pode se dar ao luxo de abrir mão de traços culturais é a cultura europeia, que já é consolidada há séculos,” conclui Watusi. Para finalizar, outra questão: homem de turbante, hot or not? Jordana, diz que sim, é lindo. Sophia, Watusi e Luciene têm ressalvas. “Se for um negro, deve. Se for um branco, apenas pare”. diz Sophia. “No contexto religioso não, porque o ojá é um adereço feminino do candomblé, mas na sociedade sim,” diz Watusi. Já Luciene dá exemplos: “Se for o Gianechini de turbante, não me interesso em ver, mas o Lázaro Ramos ou o Criolo, aí sim, acho lindo”.

Jordana, (no alto) e Sophia exibem orgulhosas seus turbantes e aprovam o uso do acessório por homens também

Watusi e Ana Cláudia oferecem oficinas de turbante para ajudar mulheres a se empoderarem


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