ANTÓNIO GANHÃO Critico Literário
SOBRE...
QUOTIDIANO INSTÁVEL
DE MARIA TERESA HORTA
A grande literatura vive do olhar atento do narrador sobre os dias informes, sobre a distância que nos separa do outro e se deixa contaminar pela sua presença. Nunca, como nestas crónicas, esse olhar foi tão longe, transformando-se no próprio narrador, promovendo cada pormenor a protagonista, convidando-o a contracenar dramaticamente com a ação de se vai desenrolando, ação essa quase sempre remetida para segundo plano. Minimalista, mas intensa. Estamos perante o gesto, o esboço de uma intenção, o desejo de um afago que mal se concretiza, e nesse momento, o ambiente é magistralmente convocado a entrar na história, num travelling lento, seguro, abrindo-se em dimensão e profundidade. Esta coletânea de crónicas, escritas entre o final da década de 60 e início da de 70, em
plena primavera Marcelista, surge marcada pela arte do não dito, a que abre janelas no subentendimento do leitor. O mundo feminino possível. que guarda a casa, os móveis, os filhos, que se debruça sobre a madrugada enquanto os outros dormem e grita silenciosamente sem uma única lágrima. Existe uma força imensa nesse mundo. “A manhã tinha um tom doce a descer sobre as ruas, um tom a descair displicentemente, a entornar-se como um líquido peganhento e grosso. Com uma das mãos a reter os cabelos, tirou depressa a outra da frescura dos dedos dele: uns dedos esguios, nervosos, trémulos, e ficou a olhá-lo, admirada, a chávena de café meio vazia sobre a pequena mesa à sua frente.” Se desconhecêssemos a escrita de Maria Teresa Horta conseguiríamos adivinhar-lhe a poesia, porque nestas páginas habita o