58 Edição

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OUTUBRO 2023

58º Edição

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Indíce OUTUBRO 2023

04....... Investigações Inconclusivas | Carlos Pinto de Abreu

08 ....... (In)visibilidade das mulheres no tráfico de seres humanos | Maria José Branco

12 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho

14....... Cantinho do João | João Correia

16 ....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes

22....... Sóis |

José Luis Outono

24....... E o direito da vítima também poder ser assistida por advogado/a | Fernanda de Almeida Pinheiro

26 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

28....... Halim |

António Manuel Monteiro Mendes

30 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

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Editorial DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

A JustiçA com A, vocês não sabem, mas faz anos.... Faz anos que fala de Direitos Humanos Faz anos que tem um sorriso nos olhos de quem a escreve Faz anos que não desiste Faz anos que continua a falar de Direitos Humanos e da Violação dos mesmos. Neste número de aniversário e, porque no aniversário realizou um Colóquio na UAL sobre Justiça e Dignidade Negadas no que respeita a Seres Humanos, justiça com A vem dar nota disso e dizer-vos que deseja que a continuem a ler.

Deseja que a continuem a Ler só porque fala de Direitos, de Liberdades e de Garantias Deseja que a continuem ler porque já faz 8 anos que a lêem e escrevem nela. Deseja que continuem a lê-la nem que seja só porque sim

Até breve !

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CARLOS PINTO DE ABREU

INVESTIGAÇÕES INCONCLUSIVAS CASOS NUNCA RESOLVIDOS

O MASSACRE DE KATYN O massacre de Katyn foi uma das atrocidades da Segunda Guerra Mundial mais repetidamente relembradas e com consequências políticas mais marcantes, tendo consistido na execução de mais de quinze mil prisioneiros de guerra polacos, capturados durante a guerra levada a cabo pela URSS e pela Alemanha Nazi em Setembro de 1939 contra a Polónia, a qual tinha resultado de um acordo firmado num anexo secreto ao Pacto Molotov-Ribbentrop assinado no mês anterior entre as duas potências. O massacre decorreu durante os meses de Abril e Maio de 1940. A designação “massacre de Katyn” foi adoptada por referência à actuação perpetrada contra um grupo de 4600 oficiais no bosque de Katyn, perto do campo prisional de Kozelsk na Rússia. A expressão viria, no entanto, a adquirir com o tempo uma conotação mais vasta, expandindo-se no sentido de incluir ainda outros casos de assassínios em massa cometidos em diferentes locais na mesma altura e tendo por vítimas polacos de quadrantes sociais distintos e com várias ocupações.

Entre eles contam-se grandes números de militares detidos no campo de Starobelsk na Ucrânia e de guardas prisionais e fronteiriços, funcionários da polícia e escuteiros mantidos no campo de Ostashkov na Rússia. Subjacente a toda esta chacina estava uma decisão tomada por Estaline e ratificada pelo Politburo, o comité superior do Partido Comunista Soviético. Quanto à razão para uma tal decisão, pode apenas especular-se mas não será de ignorar o facto de não terem sido apenas executados membros de forças militares ou paramilitares mas também pessoas com funções muito diferentes, como proprietários de terras, padres e juristas. Poderá acolher-se uma tese aventada segundo a qual o motivo teria sido o de tranquilizar os alemães quanto à existência de uma verdadeira política anti-polaca por parte dos soviéticos? O historiador Gerhard Weinberg considera que uma tal explicação carecerá de fundamento tendo em conta as precauções que o regime soviético veio a tomar no sentido de esconder os factos do governo alemão, para além do que nada na actuação

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dos soviéticos na Polónia fazia suspeitar o estreitamento repentino de laços de amizade entre um país e o outro. Sugere em alternativa que a União Soviética visou com uma tal actuação prevenir um futuro restabelecimento de um Estado polaco forte e viável: a ideia seria a de que era necessário, para um tal propósito, privar a Polónia, não apenas das suas forças para combate mas mais genericamente da sua elite. Se foi este ou não o objectivo, a verdade é que o massacre produziu efeitos devastadores junto da nata social polaca, sendo que por outro lado não deixa de ser irónico que em 2010 a Polónia viesse a perder mais uma vez uma parte significativa da sua elite política e militar com a queda do avião que levava o Presidente Lech Kaczyński e a sua comitiva para Smolensk onde iria participar nas cerimónias de celebração dos 70 anos do massacre. No que diz respeito ao massacre propriamente dito, uma coisa parece em todo o caso certa, como se pode depreender a partir de informação agora disponível: verificou-se uma seriação dos prisioneiros a serem assassinados que foi determinada em parte pela sua potencial hostilidade às autoridades soviéticas. Os documentos mostram que os prisioneiros foram sujeitos a interrogatórios e que a sua sobrevivência ou morte foi determinada em parte pela atitude expressa dos prisioneiros face ao ocupante soviético.

O governo da Alemanha Nazi, numa primeira fase conluiado com o regime soviético, veio a entrar em guerra contra a União Soviética, a ocupar a região de Kozelsk em 1941 e a anunciar em 1943 a descoberta de valas comuns na floresta de Katyn cuja responsabilidade atribuiu aos soviéticos. A comunicação deste achado, que se seguiu a informação comunicada aos alemães por polacos conhecedores dos factos, foi um rude golpe em termos de imagem para os soviéticos, sendo que envolveu aliás toda a máquina de propaganda alemã, sob a orientação directa de Goebbels, no que se considera ter sido a maior manobra de propaganda durante a guerra do lado Nazi, e que envolveu o envio de repórteres e a realização de entrevistas a prisioneiros de guerra sobreviventes como forma de corroboração da versão difundida. Com base na notícia veiculada, o governo polaco no exílio veio requerer à Cruz Vermelha Internacional que realizasse uma investigação quanto ao sucedido, sendo que, em consequência desta iniciativa, Estaline quebrou relações diplomáticas com o mencionado governo, acusou-o de colaborar com a Alemanha Nazi e encetou uma campanha destinada à obtenção de um reconhecimento por parte dos Aliados de um governo polaco alternativo pró-soviético estabelecido em Moscovo e liderado por Wanda Wasilewska. Na verdade a URSS não se ficou por aqui e decidiu mesmo passar à ofensiva, negando totalmente a versão dos factos e alegando

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Investigações Inconclusivas Carlos Pinto de Abreu

que os mortos tinham sido afinal vítimas da opressão Nazi durante o período que se tinha seguido à sua ocupação. Veio aliás, para efeitos de credibilidade, providenciar uma narrativa pormenorizada da responsabilidade alemã, de acordo com a qual os prisioneiros de guerra teriam estado envolvidos em trabalhos de construção para oeste de Smolensk e teriam sido capturados e executados por unidades alemãs em Agosto de 1941. Mais tarde, com a recuperação da zona de Katyn pelo Exército Vermelho, o esforço de propaganda assumiu ainda mais uma dimensão: a do encobrimento de quaisquer vestígios da responsabilidade soviética pelo massacre, que incluiu a convocação de todas as testemunhas e a ameaça de acusação de colaboracionismo com os alemães se fizessem afirmações contrárias à versão oficial dos factos, e a fabricação de indícios de actuação alemã. Para além disso, a União Soviética tentou produzir um relatório definitivo dos factos, baseado numa investigação supostamente imparcial por parte de uma comissão constituída exclusivamente por soviéticos e cujo nome é curioso pelo que permitirá revelar quanto às verdadeiras intenções da mesma: Comissão Especial para

Determinação e Investigação da Execução de Prisioneiros de Guerra Polacos pelos Invasores Alemães Fascistas na Floresta de Katyn. Finalmente, a União Soviética abriu uma outra frente nesta batalha pelos factos, convidando um grupo de jornalistas britânicos e alemães a Katyn, os quais acabariam por ter a possibilidade de conversar com testemunhas e inteirar-se das atrocidades ‘cometidas pelos alemães’. Mau grado toda esta contra-ofensiva soviética, os detalhes que tinham sido revelados anteriormente pelos Nazis, eram mais convincentes e vieram a suscitar uma tensão viva entre polacos e soviéticos, e, para além disso, uma consternação generalizada entre os Aliados, que colocou mesmo em risco a própria aliança angloamericano-russa. De resto, no Tribunal de Nuremberga, os acusadores soviéticos revelaram-se totalmente incapazes de fazer valer a tese da responsabilidade dos alemães, isto em resultado da sua falta de provas documentais convincentes e também da forte defesa alemã, o que veio aumentar o fosso já existente entre a percepção generalizada e a versão soviética dos factos.

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Multiplicaram-se as iniciativas internacionais no sentido de se apurar a verdade dos factos já depois da guerra. Só nos Estados Unidos, por exemplo, foi constituída uma comissão em 1949 sob a chefia de Arthur Bliss Lane, diplomata reformado, que se empenhou na recolha de provas documentais e testemunhais, sendo que em 1951, numa altura já de solidificação da Guerra Fria e um ano após o início das hostilidades na Coreia, a Câmara dos Representantes veio também a votar unanimemente no sentido de se proceder a uma investigação relativamente às circunstâncias deste incidente. Na própria União Soviética apenas muito mais tarde se procedeu a um inquérito com uma base relativamente séria quanto ao apuramento dos factos. Em 1990-1991 foram realizadas diligências a cargo do Ministério Público e foi no período da Federação Russa que se confirmou a responsabilidade soviética pelo massacre. Interessante é no entanto a discussão que, mesmo no âmbito de um espírito de assunção da culpa, se desenvolveu em termos de qualificação jurídica: se se confirmou o homicídio de 1.803 cidadãos polacos, verificou-se no entanto uma recusa no sentido de se qualificar esta actuação segundo as categorias criminais gravosas dos crimes de guerra ou do genocídio. Por outro lado, há uma outra questão que se prende com o número de homicídios confirmados: o número de 1.803 apontado pelo Ministério Público ficou muito claramente aquém do das presumíveis vítimas, uma tal discrepância parecendo reflectir uma tentativa de mitigação ― de carácter quantitativo ― da natureza do crime. Não surpreende, portanto, que a organização Memorial, fundada em 1987 para memória e reabilitação das vítimas de repressão política na URSS e para promoção de uma forma reflexa dos direitos humanos na actualidade, se tenha fortemente insurgido contra a posição do Ministério Público. Como explicar realmente a morte dos restantes prisioneiros? O próprio Estado disponibiliza dados que permitem uma conclusão muito diferente

da apontada. Um acervo de documentos do Ministério do Interior, agora finalmente disponíveis ao público, comprova não só o homicídio dos prisioneiros, mas ainda o enquadramento da maior parte dos mesmos (com a excepção de 395) numa operação bem orquestrada, em três fases, levada a cabo pela agência de segurança pública e sob a direcção do Ministro do Interior, Lavrentii Beria, seguidor próximo e fiel de Estaline, e do seu vice, Vsievolod Merkulov. Há certamente um melindre ainda nos dias de hoje na Rússia quanto a revisitarse estes casos do passado estalinista e a responsabilização do Estado ao seu mais alto nível por actos de uma tal natureza ainda oferece resistência: resta apenas recordar que só em Novembro de 2010 é que finalmente a Duma, o parlamento russo, emitiu uma nota de responsabilização do próprio Estaline e de outros funcionários de topo do aparelho governativo pelo sucedido. BIBLIOGRAFIA Achmatowicz, Aleksander; Douchy, Thérèse. ‘Le crime de Katyn dans la conscience nationale des polonais.’ Vingtième Siècle. Revue d’histoire. 31 (Jul.-Sep., 1991), pp. 3-23. Fox, John P. ‚Der Fall Katyn und die Propaganda des NS-Regimes.‘ Vierteljahrshefte für Zeitgeschichte. 30.3.H. (Jul. 1982), pp. 462499. Sanford, George. ‘The Katyn Massacre and Polish-Soviet Relations, 1941-43.’ Journal of Contemporary History. 41.1 (Jan. 2006), pp. 95-111. Szymczak, Robert. ‘A Matter of Honor: Polonia and the Congressional Investigation of the Katyn Forest Massacre.’ Polish American Studies. 41.1 (Spring 1984), pp. 25-65; e ‘Cold War Crusader: Arthur Bliss Lane and the Private Committee to Investigate the Katyn Massacre, 1949-1952.’ Polish American Studies. 67.2 (Autumn 2010), pp. 5-33. Weinberg, Gerhard L. A World at Arms: A Global History of World War II. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

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Maria José Branco

IN(VISIBILIDADE) Das Mulheres No Tráfico de Seres Humanos

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Escolhi este Tema IN(VISIBILIDADE) DAS MULHERES NO TRÁFICO DE SERES HUMANOS, porque independentemente de estarmos em pleno século XXI, na era digital, de grande avanços tecnológicos, o TSH em geral e de mulheres em particular, permanece invisível, por ser uma realidade dura, desumana e potenciadora de elevados lucros pelo crime organizado, cada vez mais adaptado e estruturado á nova era digital. Para tal, a pobreza e quebra de suportes familiares e comunitários quer pelo agravamento dos conflitos armados, quer pelas catástrofes naturais, agravaram ainda mais as assimetrias endémicas entre países mais desenvolvidos e os mais carenciados, já fragilizados com a última Pandemia Covid-19, que deteriorou mais a situação social/económica em particular aumentou todas as formas de maus-tratos e violência contra as mulheres, incluindo a exploração sexual, numa clara discriminação e violência do género, não subestimando ainda a falta de oportunidades, aliada aos reduzidos níveis de educação, que as mulheres constantemente sofrem com a alienação dos seus direitos e liberdades fundamentais e que estão espelhados na atualidade mundial com a restrição violenta e com práticas desumanas dos direitos das mulheres Afegãs, desde o controle do Afeganistão em 2021 pelos Talibã. Sendo uma realidade à escala global, importa destacar que, direta ou indiretamente, as

mulheres e as crianças continuam a ser as principais vítimas do tráfico, isto porque continuam a apresentar um maior risco de vulnerabilidade, acabando na exploração sexual, abuso sexual de menores devido à elevada procura, ainda o crescente tráfico laboral, tráfico de órgãos, mendicidade, as adoções ilegais, os casamentos forçados e a exploração de outras atividades ilegais, que tem como resultado direto a destruição de vidas, privando-as da sua legítima dignidade e liberdade.

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In(visibilidade) das mulheres no tráfico de seres humanos Maria José Branco

Nos últimos anos, a União Europeia estabeleceu um quadro jurídico e político abrangente e consistente para combater o TSH com a Diretiva 2011/36/UE de 05.04.2011, (Diretiva Antitráfico) que proporcionou uma base jurídica para uma resposta robusta da justiça penal e para normas de elevada proteção e apoio às vítimas, que devido às múltiplas crises migratórias e ameaças constantes à segurança pelos grupos de crime organizado, exigiu uma ação mais forte a nível da EU e em cada Estado-Membro, tendo em 14.04.2021 sido aprovada a Estratégia da EU em matéria de luta contra o TSH para o período entre (2021-2025), que veio trazer a novidade cfr. decorre do parágrafo 5 duma abordagem baseada nos direitos humanos, específica do género – mulheres e raparigas - e sensível às crianças. Este documento identifica as principais prioridades, focando-se no desencorajamento da procura, com o objetivo de combater mais eficazmente, com prevenção, passando pela proteção das vítimas, quer na assistência como na perspetiva de reintegração para uma vida melhor. Estima-se que na EU, num único ano, as receitas criminosas do TSH para exploração sexual, (72%) que é especificamente predominante no tráfego de mulheres e crianças, (60%) seja de cerca de 14 mil milhões de Euros. Em Portugal, os Relatórios Anuais do MAI e do OTSH – último 2021 dão a conhecer esta realidade, indicando que somos um predominantemente um ‘País de Destino’23

com -› → 143 sinalizações de (presumíveis) vítimas a que corresponde (73%). A segunda tipologia é como ‘País de Origem’ -› 50 sinalizações (25%),e a menos representativa, Portugal como ‘País de Trânsito’ com apenas 4 sinalizações (2%). Em síntese, em 2021, 80% das sinalizações de (presumíveis) vítimas em ‘País de Destino’ foram em TSH para fins de exploração laboral no setor predominantemente da agricultura e apenas 4% de presumíveis vítimas de exploração sexual (mulheres e crianças) cujos números são particularmente baixos, em pleno contraciclo com os números restantes da EU. Por trás de cada vítima existem experiências e sofrimentos devastadores que devem ser devidamente reconhecidos e abordados e que no âmbito da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, das Nações Unidas, destaca-se o caráter absoluto e inderrogável da proibição da tortura, maus tratos e penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes (cfr. artigos 2º e 16º) sendo importante o Comentário Geral nº 2, - Implementação do artigo 2º pelos Estados-Partes - que nos leva a refletir se a tortura tem um só propósito cruel: quebrar o espírito humano, vencer toda a resistência física, psicológica e emocional dos seres humanos através do sofrimento então não estaremos a falar também do TSH, como forma de tortura que os Estados tem a obrigação de tomar medidas eficazes para prevenir, punir, e reparar todos traumas e danos presentes e futuros das vítimas destes crimes hediondos. Os números evidenciam que o TSH é, sobretudo, uma violação dos direitos humanos das mulheres e constitui uma

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uma situação de casamento forçado em troca de dinheiro, situação de tráfico de pessoa para fins de utilização sexual e propriedade, a senhora vivia em situação de privação total de liberdade em relação ao agressor, controlo total de todos os passos, impossibilidade de contato com os familiares e outras pessoas da comunidade, sujeita a tratamento desumano, violência sexual, física e psicológica. Com a fuga deste agregado de casa e proteção em casa abrigo, a senhora entra em contato com a família de origem que a quer obrigar a voltar para o indivíduo, devido a ameaças de morte à família.

forma de violência contra as mulheres, havendo uma necessidade urgente de análise e integração de género em todas as políticas, estratégias e medidas destinadas a este combate. Por último e de forma a dar “visibilidade” às vítimas/mulheres que são atendidas, na AMCV como organização não governamental especializada na área da violência às mulheres deixo um caso de estudo: Mulher, 35 anos, nacional da Guiné Conacri, com uma filha de 3 anos, a viver em Portugal há 4 anos, foi referenciada na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica, por intervenção da Educadora da creche da filha ao revelar estar numa situação de violência doméstica grave por controlo coercivo. Após entrada em Casa Abrigo, foi identificada

Mais tarde, teve conhecimento que o irmão foi chicoteado quase até à morte e que pairava no ar a ameaça de pegar fogo à casa de Família. Esta mulher passa a ser amaldiçoada e a Família também e caso não retornasse ao seu comprador poria em causa a vida de toda a sua Família na Guiné. Estes acordos de venda de filhas são feitos através do aliciamento do dinheiro e a possibilidade de uma vida melhor para as vítimas na promissora Europa. No entanto, o que verificamos é que, se tratam de casamentos forçados combinados entre redes que atuam África→ Europa, sendo muito difícil o desmantelamento de tais redes de tráfico de seres humanas pela envolvência da própria Família nestes negócios. Tendo em conta os danos causados às vítimas, a prevenção deve continuar a ser a pedra angular da Ação Antitráfico da Europa e por sua vez em cada Estado-Membro.

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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho

Escrevo este texto no dia 11 de Outubro de 2023. O mês não tem corrido pelo melhor. Está calor, como se estivéssemos em pleno Verão. Já é má tal situação quando temos de ir todos os dias trabalhar em vez de estendermos uma toalha junto ao mar e dedicarmos o dia ao dolce fare niente. Mas ainda se torna pior quando a onda de calor é recordação omnipresente das alterações climáticas. Depois, há o mundo humano lá fora. Como sempre, está cheio de coisas bonitas e também de sofrimento. Prossegue a exploração da natureza e o desrespeito pela vida animal não humana. Continuam as mortes sem sentido, um pouco por todo o planeta. No Sudão como na Síria. No Iémen como na Índia. E também na Ucrânia, em Israel e na Palestina. O iluminismo escocês teorizou a empatia. Adam Smith definiu-a como uma qualidade da imaginação que nos permite colocar na pele do outro e simpatizar, sofrer pelos seus padecimentos como se fossem nossos. Jean Jacques Rousseau também

pensou sobre o tema, para concluir que se todos temos capacidade de empatia, só alguns de nós conseguimos estendê-la para muito mais longe do que as nossas fronteiras de pensamento. Diria eu que a nossa capacidade empatia é proporcional à nossa imaginação. Será por isso que no mundo ocidental empatizamos com o sofrimento dos cães e ficamos indiferentes com o de outros animais, como os porcos (apesar dos estudos feitos provarem que os segundos são mais inteligentes do que os primeiros). Também será por isso, avento, que alguns conflitos nos tocam mais do que os outros. Reagimos com maior emoção a um atentado em Londres ou em Madrid do que a outro ocorrido no Sudão, por exemplo. Sentimos alguns conflitos bélicos como mais próximos porque, não só o são do ponto de vista geográfico, como as vítimas parecem-se mais connosco (até no estilo de vida que lhes adivinhamos).

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E no meio de tudo isto, como levar a vidinha? Por todo o lado, vejo reinterpretações mais ou menos bem conseguidas de Cândido e Pangloss. Perante os males do mundo concentram-se no seu próprio jardim. Não digo que seja uma má ideia. Parece-me é insuficiente. Não há muros tão altos, nem paredes tão espessas que impeçam as tempestades e ervas daninhas de, no limite, nos destruírem o jardim mais belo. Há também a estratégia do cinismo. Recordo um dos contos orientais de Marguerite Yourcenar. Uma das personagens, maravilhada com a beleza natural que contempla, desabafa “Deus é um grande pintor”, recebendo a resposta do seu companheiro de passeio “foi pena não desenhar só paisagens”. E depois, há a esperança. Para lá de toda a lógica ou antes assente no conhecimento de que a História é feita de muitos capítulos e cada um de nós, por mais longa que a vida nos seja, apenas conhece dois ou três parágrafos desse romance milenar. Há dias tive um vislumbre dessa narrativa de esperança. Fui ver Orlando – A Minha Biografia Política, de Paul B. Preciado. Como filósofo Preciado não me é sempre de fácil apreensão, confesso. Contudo, neste filme feito em forma de documentário a sua proposta pareceu-me clara. Pegando no livro homónimo de Virginia Woolf, Preciado reflecte sobre o fim das fronteiras de género e espaço (retomando uma analogia feita em alguns dos textos inseridos na colectânea, Um Apartamento em Urano), concluindo com a proposta de criação de um passaporte planetário não binário. Com a ousadia dos sonhadores propõe o ano de 2028 para a sua concretização. Num filme feito de testemunhas pessoais, Preciado mostra-nos as insuficiências da estrutura jurídico-política em que nos movemos nas vidas de pessoas feitas de carne e osso como nós. Mas também nos indica que outro mundo é possível. Um mundo em que cada um de nós pode ser tudo aquilo que em cada momento traz em si, descobrindo-se uma e outra vez ao longo da vida. Como escreveu Amin Malouf no seu livro

As Identidades Assassinas: “Cada um de nós deve ser encorajado a assumir a sua própria diversidade, a conceber a sua identidade como a soma das suas diversas pertenças, em vez de a confundir com uma única, erigida como pertença suprema e instrumento de exclusão, por vezes instrumento de guerra”. Esse é o mundo em que quero viver. É com ele que sonho e é para ele que trabalho. Entendi o filme de Preciado como uma obra de filosofia política portadora de uma proposta não menos radical do que foram a abolição da escravatura ou o reconhecimento da igualdade jurídica entre homens e mulheres no mundo moderno. Saí do cinema a pensar nas múltiplas dificuldades de concretização que se antecipam perante qualquer utopia. No entanto, também dei por mim aliviada por alguém propor uma solução e com esperança em melhores tempos em que as identidades não sejam assassinas. E, tenho de confessar, com renovada fé no papel da filosofia política.

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A PAIXÃO SEGUNDO AS TUAS LETRAS

CANTINHO DO JOÃO João Correia

A confusão que habitualmente grassava dentro da cabeça da generalidade das pessoas não era invulgar a este homem em particular pois este não se distinguia dos restantes. Tinha um sentido de humor estonteante pautado por laivos de ingenuidade que levava muitos dos seus semelhantes a considerá-lo um génio. Um pouco confuso, mas genial na mesma. Sentia-se mal entre os seus e pretendia muitas das vezes respirar num local onde pudesse sentir que todo o oxigénio da terra apenas a si lhe pertencia. Solidão era uma palavra que não o repugnava e, aos poucos, habituou-se a não conviver com outros pois sabia bem que era mais confuso gerir as suas sensibilidades do que as dele próprio. Não assistia a nada de vulgar na televisão, a rádio pouco ou nada lhe interessava e apreciava a internet apenas porque nesta não havia qualquer imediação, não porque privilegiasse o seu conteúdo. Era assim a sua vida, sem altos nem baixos apenas com uma linha recta de emoções

e sem lugar para outros que não apenas ele próprio. Também sabia ler e escolher muito bem aquilo que lia. Arquitetava na sua cabeça todo um monumento de palavras estruturadas a pouco e pouco à medida que as retirava dos livros que se atrevia a comprar. Cimentava-as com considerações pessoais e, por vezes, tais palavras davam origem a pirâmides imponentes como aquelas, as dos antigos faraós. Outras vezes a cabanas feitas de gengibre como as dos contos de Andersen. E por vezes ainda, desenhavam torres renascentistas como as da Toscânia, inclinadas, quase a cair mas em perfeito equilíbrio, a desafiar a lei da gravidade como nós gostamos de as ver. Por vezes, misturavam-se todas. Cada livro que escolhia era retirado da livraria a medo pois as desilusões provocadas por escolhas erradas, em momentos anteriores, eram muitas e depois ficava sempre, após a revelação da desilusão da sua escolha, com a consciência pesada.

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Pesada por ter adoptado um livro, por o ter retirado do seu ninho feito de uma prateleira qualquer, numa qualquer livraria, e de o ter transportado com expectativa para sua casa para depois descobrir que afinal não tinham muito para dizer um ao outro. Tinha até receio pelos sentimentos que o livro por si selecionado poderia ter em relação a si, seu leitor, receio que fazia com que o manuseasse com muito cuidado, com muita gentileza. Folheava as páginas sem brusquidão, na expectativa de que aquele livro de capa interessante e pelo qual se sentiu atraído momentos antes, dentro da livraria, sentisse o mesmo por si. Ou pelo menos, não o rejeitasse após a primeira aproximação. Nada mais comum e provável. Se se apaixonava por um livro, se o achava interessante e cheio de cor, substância ou sentimento, se dele guardava boas memórias o inverso também poderia acontecer. O livro poderia apaixonar-se por ele, o seu leitor, ou pior, poderia achar que ele afinal, não tinha interesse rigorosamente nenhum, nada sentir a não ser vontade de o ver pelas costas, ou melhor, pela lombada. Era um risco que assumia. Tentava ocasionalmente encetar uma relação intensa com um livro que à primeira vista o cativasse ou pior ainda, que alguém tivesse elogiado. Por vezes escolhia-o aleatoriamente, sem critério nenhum. Arriscava. Porém lidava mal com a rejeição. Reservava uma prateleira escondida na sua casa para os livros com os quais tinha uma relação frustrada. Se a pudesse batizar, chamar-lhe-ia “a prateleira das histórias de amor que nunca o chegaram a ser”. Com outros livros, pelo contrário, até os deixava repousar na sua cama após forçar as suas pálpebras até ao limite. Quando acordava na manhã seguinte procurava-o entre os lençóis, por debaixo ou em cima da almofada que se encontrava a seu lado.

Os anos tornaram-no mais cauteloso nas suas escolhas pois agora, quando selecionava um livro, já não o fazia de forma precipitada, mas aproximando-se dele aos poucos, via a sua capa com cautela, e só o escolhia quando sabia que as suas hipóteses eram razoáveis. Viu-o, aproximouse, escolheu-o. Abriu e leu as suas páginas com curiosidade. Deixou-se levar. Perdeu-se entre as suas linhas. Absorveu a sua pontuação. Releu o que lhe interessava. Suspirou após cada capítulo e cogitou sobre o próximo com ansiedade. Terminou a leitura, regressou às partes que lhe agradaram e releu aquelas que não compreendeu. Zangou-se quando não o compreendeu, gritou com as páginas que achou confusas e atirou-o para o sofá, com desprezo e na expectativa de assim o tornar mais simples. Mas simples era aquilo que ele não era. Receou não o conseguir compreender nem terminar com uma opinião sobre o que ele continha. Voltou a entusiasmarse e releu-o num ambiente mais adequado, sem distrações. Escolheu um cenário mais apropriado pois as suas palavras só faziam sentido quando lidas em sítios bonitos. Caso assim não fosse, seria um livro indecifrável. Pior, não só apenas se revelava em cenários poéticos, um pôr-do-sol numa praia ou uma encosta junto a um rio, como exigia mudança e variedade a quem o lia. Lê-lo todo dentro do mesmo cenário era impensável pois havia que saltar de ambiente em ambiente após terminar um capítulo e se iniciar outro. Era um livro com personalidade, exigente com os seus leitores pois fazia-os correr capítulo após capítulo, de paisagem em paisagem, de contexto em contexto, fazendo o seu leitor sofrer mas também rejubilar-se não apenas e só com o que lia mas também com o que este descobria para encontrar o local certo para o ler, para o revelar. Estava sem rumo na vida até que se apaixonou pelas palavras que este lhe revelava em troca da sua leitura, nos locais certos e da maneira certa. Tal como certas pessoas se revelam.

Uma relação privilegiada que ocasionalmente acontecia não com a frequência que ele desejava.

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E O MAR LOGO ALI Ana Gomes

TRÁFICO DE SERES HUMANOS A R E P A R A Ç ÃO D A S V Í T I M A S

I. Começo por fazer referência às palavras que constam do título deste colóquio da Justiça com A: liberdade e dignidade, conceitos que integram o que podemos designar por direito natural, mas, para que nunca nos esqueçamos, encontram voz em textos jurídicos internacionais e nacionais, como a Declaração dos Direitos Humanos, a Convenção Europeia e a nossa Constituição. Depois, em outros textos que vão tentando dar resposta a problemas cada vez mais específicos. Basta ver a lista de tratados entre países e também as Convenções das Nações Unidas e protocolos adicionais e os assuntos que elas tratam.

Hoje o que aqui se discute é o tráfico de pessoas. Além, da Convenção das Nações Unidas e protocolo adicional de Palermo, de 2000, temos a Convenção do Conselho da Europa de Varsóvia, de 2005. Temos Diretivas da União Europeia como a Diretiva 2011/36/ UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa à prevenção e combate ao tráfico de seres humanos e proteção das suas vítimas, que foi criada para estabelecer regras mínimas a nível da UE sobre a definição de infrações penais e sanções em matéria de tráfico de seres humanos. Mas avancemos.

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II. Segundo o ordenamento jurídico português, o tráfico de pessoas constitui crime, associando-se, pois, à condenação uma pena. Se alguém praticar alguma das ações previstas no art. 160.º do Código Penal, como “oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher” comete o crime de tráfico de pessoas. Vejam que algumas, se não todas as ações, são inócuas ou até muito positivas. A questão está, além do sujeito passivo – pessoa, nos meios, em que existe algum tipo de violência, física, psíquica ou emocional e que põe em causa a liberdade: “a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave; b) Através de ardil ou manobra fraudulenta; c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima (…)”; E nos fins, alguma forma de exploração: “para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas”. Não é aceitável que uma pessoa possa ser sujeita a uma ação que ponha em causa a sua dignidade. O tráfico de pessoas é um crime público e nem o consentimento exclui a ilicitude do facto. Recordamos que, em geral, “o consentimento do titular do interesse jurídico lesado exclui a ilicitude do facto” e, por isso, o facto não é punível (art. 31.º, n.º 2, al. d), do Código Penal). No caso, não é assim:

nas palavras do Tribunal da Relação do Porto, a propósito de um caso concreto “(…) o querer dos ofendidos, por não terem outra melhor opção de vida da que lhes é dada pelo arguido, não invalida que ocorra a exploração do seu trabalho” acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de outubro de 2021, disponível aqui Tratando-se de um crime, a consequência da condenação há-de ser a aplicação de uma pena que, segundo o Código Penal, ainda é: pena de multa, para os tipos de crime menos graves; pena de prisão; proibição do exercício de profissão, função ou atividade; e penas acessórias. Mas será que o cumprimento da pena de prisão (que só se for fixada até 5 anos é que permite a suspensão da execução – art. 50.º do Código Penal) podendo dar um tempo às vítimas, às futuras potenciais vítimas e ao sistema no seu todo, é reparador ? É verdade que muitas vezes se refere que a condenação do agente dá uma

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certa satisfação à vítima, no sentido em que reconhece nisso a solidariedade da sociedade e isso conforta e, de alguma forma, repara. Mas não podemos ficar por aí, neste como em outros crimes. É neste quadro que tem vindo a ser dada uma progressiva relevância à vítima. Vamos centrar-nos na vítima direta.

III. A vítima é “a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime - art. 67.º A, n.º 1, al. a), i), Código de Processo Penal. O dano pode ser patrimonial ou não patrimonial. Dentro deste distinguimos o dano físico, psíquico e emocional. Quando se trata de dano patrimonial, é fazer contas: o dano tem uma correspondência direta em dinheiro, incluindo, por exemplo, custos de consultas e tratamentos médicos, transporte, ganhos que se deixou de auferir. No dano não patrimonial, falamos numa compensação: não é possível fazer a “reconstituição natural” quando alguém vive uma experiência totalmente fora da experiência comum de qualquer pessoa, uma experiência direta, ao vivo, que perdura no tempo que gera sentimentos de medo, de incapacidade de obter ajuda, com um impacto enorme, dramático na saúde mental das vítimas, em que se destaca: perturbação de stress pós-traumático, privação do sono, insónia e pesadelos, depressão, dinâmicas relacionais (íntimas) disfuncionais ou tolerância a relacionamentos pessoais desiguais ou perigosos. No caso da vítima do tipo de crime de que estamos a falar, ela é considerada vítima especialmente vulnerável, beneficiando do estatuto mais cuidado a que aludem os arts. 20.º e ss. do Estatuto da Vítima: o art. 67.º A, al. b), do Código de Processo Penal considera “vítima especialmente vulnerável, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”; o n.º 3 adianta que “as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade

especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1”, sendo que no artigo inaugural onde são enunciadas as definições de certos conceitos, é dito: “criminalidade violenta: as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos” – art. 1.º, al. j). do Código de Processo Penal. À vítima em geral, e também a esta, são reconhecidos diversos direitos: “direitos de informação, de assistência, de proteção e de participação ativa no processo penal, previstos neste Código e no Estatuto da Vítima” – art. 67.º a, n.º 4. O Estatuto da Vítima (aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, alterado pela Lei n.º 45/2023, de 17 de agosto, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade – art. 1.º) estabelece vários direitos como o da igualdade (art. 3.º), respeito de reconhecimento (art. 4.º), autonomia da vontade (art. 5.º), confidencialidade (art. 6.º), consentimento – art. 7.º, informação e comunicação (arts. 8.º, 1.º a

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13.º), acesso a cuidados de saúde (arts. 9.º e 15.º) e direito a decisão relativa a indemnização – art. 16.º.

IV. Como é que se repara um acontecimento como o de ser reduzido à ordem das coisas, isto é, sem liberdade e sem dignidade ? Usando a imagem de Notre-Dame (em 2019, agora e como se prevê que esteja aquando da reabertura em 2024), como é que se faz a restauração, por dentro e por fora? Será possível? Desde logo, uma vez sinalizada a situação é muito importante que haja uma assistência precoce, de forma a que o sofrimento não continue e o processo de recuperação da dignidade e liberdade tenha início. Sem acentuar esse sofrimento por exemplo com a perseguição pela possível infração à lei, porque a vítima não age livremente; proteger no que se refere à autorização de residência (no caso de vítimas fora do espaço europeu), pois existe um regime especial de concessão de autorização de residência, que se manterá enquanto houver risco de ser objeto de ameaças ou ofensas praticadas pelos agentes do tráfico – cfr. arts. 109.º e 110.º do Regime de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, aprovado pela Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, sujeito a diversas alterações; evitar inúmeras audições em diversos momentos e por diversas entidades, existem as declarações para memória futura! (art. 271.º, n.º 1, do Código de Processo penal) porque as audições sucessivas e estendidas no tempo não permitem que a vítima avance no seu processo individual de recuperação. Se ela quiser estar presente na audiência das pessoas que vão ser julgadas, tem de ser escolha dela, não pode ser o sistema que a deve proteger que lhe deve impor esse sofrimento adicional. Nesse caso, nos termos do art. 16.º da Lei de proteção de testemunhas em processo penal, pode o depoimento ser prestado com reserva do conhecimento da identidade da testemunha, objetivo que poderá ser atingido através de depoimentos com ocultação de imagem ou distorção de voz, por teleconferência ou por outro meio adequado, conforme consta do art. 19.º. Mas também de um modo mais afirmativo, a proteção é alcançada com um acompanhamento efetivo a vários níveis (social, familiar quando possível, laboral, psicológico, emocional, …) para que a vítima reconstitua a sua vida. E esses direitos devem, porque contemplados na lei, ser efetivamente satisfeitos.

Esta resposta confere direitos no futuro, relativamente à prática do facto e evitará mais danos. Relativamente à experiência vivida, não podendo ser apagada e eliminados os danos causados, então como reparar ? A propósito do dano e da sua caracterização, avançamos um pouco sobre a forma de o reparar ou compensar: através de uma indemnização. É um conceito do direito civil – art. 562.º e ss. do Código Civil. E, em termos simples, nasce de uma ação ilícita e danosa, sendo necessário estabelecerse o nexo de causalidade - art. 563.º do mesmo código. A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. O cálculo da indemnização obedece ao disposto no art. 564.º do Código Civil: “o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. 2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis (…)”. “1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente (…) 3. Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados – art. 566.º do mesmo código. Apesar do conceito civilístico, a fixação de indemnização a vitimas de crime de tráfico de pessoas tem pouca ou nenhuma expressão em processos que dão entrada nos Juízos Cíveis, como acontece quando alguém mandou fazer obras em sua casa e o resultado não foi o acordado, quando alguém é atropelado por um automóvel e demanda a seguradora, quando alguém fica cego após uma intervenção cirúrgica e atribui tal resultado à má prática do médico. É verdade que os dois últimos exemplos também podem configurar a prática de crimes, mas a vítima pode vir a recorrer aos Juízos Cíveis. Mas então, a maior parte das indemnizações são fixadas pelo Tribunal que julga a prática do crime, o Juízo Criminal. Porquê? Sobretudo porque vigora no nosso sistema o princípio da adesão (art. 71.º do Código de Processo Penal): “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”, entre eles o

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previsto no artigo seguinte, o art. 72.º. Portanto, o Tribunal condena o agente pela prática de um crime e no pedido de indemnização civil à vítima. A vítima é informada da possibilidade de vir a apresentar o pedido de indemnização (art. 75.º do Código de Processo Penal), mas pode não o fazer. Nestes casos, existe outra via para se reparar/ compensar o dano: chama-se reparação oficiosa, a que alude o art. 82.º A do Código de Processo Penal: “1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham. 2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório. 3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.” Sobre o contraditório, não se discute que o arguido deve ter a oportunidade de se pronunciar não só sobre a factualidade pela qual pode vir a ser condenado numa pena de prisão, mas também na fixação de uma quantia que ele fica condenado a pagar à vítima. Em que momento é que o contraditório (n.º 2) deve funcionar? Aquando do recebimento da acusação (se houver já factualidade alegada pelo Ministério Público, desde logo) que permita, uma vez provada, preencher estas previsões do n.º 1) ? No decurso da audiência? Uma vez finda a audiência,

reabrindo-a? Nestes dois casos, deve o Tribunal deve fazer referência à factualidade relevante que pode vir a dar como provada? Cremos que sim. Chamar a atenção para o caráter oficioso da ponderação por parte do Tribunal (n.º 1), que a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem acentuado: por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22 de novembro de 2022, - aqui - em que se procedeu ao reenvio para a 1.ª instância para apurar os danos num caso em que não tinha sido determinada a reparação oficiosa. Sobre as particulares exigências de proteção da vítima: a desproteção pode não ter que ver com necessidades económicas – parte final do n.º 1. Independentemente da natureza penal ou civil da obrigação de pagamento à vítima, é pertinente perguntar se de facto, nas situações de condenação, a vítima recebe de facto alguma quantia da parte do arguido. Se o arguido vai preso e não tem bens que possam ser penhorados, temos NADA. Daí a importância dos institutos a que faço referência. Estão previstos nos arts. 227.º (caução económica) e 228.º (arresto preventivo) do Código de Processo Penal e são muito importantes, sobretudo, na fase de investigação, pois poderá ser a diferença entre a vítima poder vir a receber alguma indemnização. Só no caso dos crimes violentos é que há intervenção do Estado Administração a adiantar o pagamento de indemnização à vítima – cfr. o Regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, aprovado pela Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro, alterado pela Lei n.º 2/2023, de 16 de janeiro. Já vimos que o tráfico de pessoas está previsto

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no Código Penal como crime contra as pessoas, contra a liberdade pessoal, e constitui criminalidade violenta. Nestes casos, nos termos do art. 2.º, “1 - As vítimas que tenham sofrido danos graves para a respetiva saúde física ou mental diretamente resultantes de atos de violência, praticados em território português ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas, têm direito à concessão de um adiantamento da indemnização pelo Estado, ainda que não se tenham constituído ou não possam constituir-se assistentes no processo penal, quando se encontrem preenchidos os seguintes requisitos cumulativos: a) A lesão tenha provocado uma incapacidade permanente, uma incapacidade temporária e absoluta para o trabalho de pelo menos 30 dias ou a morte; b) O facto tenha provocado uma perturbação considerável no nível e qualidade de vida da vítima ou, no caso de morte, do requerente;

estariam a ir além da lei. O adiantamento é fixado pela equidade e como montante máximo em caso de lesão grave € 24 480 - art. 4.º.

V. Sobre a jurisprudência recolhida, a perceção é de que os Tribunais Superiores pronunciamse sobre a questão da reparação oficiosa (que não foi fixada, por exemplo), mas muito menos sobre a decisão da indemnização civil a qual não é objeto de recurso. Porque o arguido já sabe que não a vai pagar ? Porque a vítima sabe que nada irá receber ? Na verdade, na pesquisa que fiz encontrei muitas discussões sobre a medida da pena, mas poucos acórdãos – publicados – sobre o quantum indemnizatório. No que se refere ao tema do tráfico de pessoas, a finalidade principal é a da exploração para o trabalho (agrícola) e a exploração sexual.

c) Não tenha sido obtida efetiva reparação do dano em execução de sentença condenatória relativa a pedido deduzido nos termos dos artigos 71.º a 84.º do Código de Processo Penal ou, se for razoavelmente de prever que o delinquente e responsáveis civis não venham a reparar o dano, sem que seja possível obter de outra fonte uma reparação efetiva e suficiente.

VI.

(…) 6 - Quando o ato de violência configure um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual ou contra menor, pode ser dispensada a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 se circunstâncias excecionais e devidamente fundamentadas o aconselharem. – art. 2.º.

(…) «Eu tenho uma maneira particular de ver as coisas. Isto que faço é ilegal, mas não é crime. Porque se não o fizesse, alguém o faria. É algo que existe, que está aí, compreende? Eu preciso de dinheiro, faço o que tem de ser feito. Os africanos querem atravessar, alguém tem um barco, eu sou marinheiro ... (...) Tenho de fazer isto. Eles têm de ira para a Europa. Ou antes: pensam que têm de ir para a Europa. Está tudo na imaginação deles (...) Não vão enriquecer (...) Paulo Moura, “Passaporte para o céu”, 2006, Dom Quixote.

A Comissão de proteção às vítimas de crimes, no último relatório que elaborou (de 2021), critica esta solução: “a lei não previu a possibilidade de se dispensar o cumprimento da al. a), e que, no entendimento da Comissão, seria da mais elementar justiça também ali estar enquadrada. Referimo-nos aos crimes de escravidão e tráfico de pessoas (p. 24)”, isto devido à dificuldade em provar, na maioria das vezes, a incapacidade, justamente porque, no decurso da prática criminosa, a pessoas podem ser obrigadas a trabalhar, ainda que em condições indignas. Adiantam a possibilidade de fazer corresponder o período de incapacidade ao período em que a liberdade foi retirada, mas concluíram que

Voltamos à embarcação inicial que estava como fundo da apresentação. A voz que se segue é a de Karim, um intermediário de Tânger cujo testemunho foi recolhido pelo jornalista:

Aquilo a que assistimos de 2006 para cá demonstra que não secando a fonte que alimenta o tráfico (prevenção), então, estamos todos condenados a desenvolver e a aperfeiçoar mecanismos de compensação efetiva das vítimas deste crime.

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JOSÉ LUIS OUTONO

S Ó I S 22


Sóis que parecem Luas, mistérios continuados em momentos que defraudam o mostrador do relógio nesta guerra de continuidades ditas aceitáveis. Pergunto-me, e não me respondo face a calendários inconclusivos de um ouvir discursos sem nexo onde minorias gritam vitórias, e actos sensatos foram excluídos das enciclopédias das coerências. Gritam-me incertezas constantes nas tranquilidades de céus passados, e o ouro ganhou o campeonato do impróprio, em engenharias segregadas nos cantos dos pilares negociáveis. Os verdes esgotam-se, os gelos evaporam-se e os oceanos morrem doentes com a virose dos lixos que propagam nuvens de venenos convenientes na disciplina do “deixa andar”. As palavras ou gritos de razões sérias, são demolidas pelos protectorados de escudos coligados a ordens sem paz ou sensatez. O simples transformou-se numa equação incontrolável, e os medos albergam-se em retiros momentâneos, propícios às picadas de demagogias tatuadas. Tão simples conjugar o verbo ser, e respirar vontades e sonhos da marca “PAZ” ... mas os infernos continuam quentes incendiários de verdes benéficos. Cada passo é uma possível infecção. Cada leitura é um mar de questões. E o código da sensatez ... dizem que é um inverosímil panfleto. José Luís Outono in «ENREDOS & OUTROS MARES» Edições Esgotadas - 2021

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FERNANDA DE ALMEIDA PINHEIRO

E O DIREITO DA VÍTIMA TAMBÉM PODER SER ASSISTIDA POR ADVOGADO/A II Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) publicado em 31 de março de 2023, durante o ano no ano de 2022 ocorreram 97 homicídios voluntários no nosso pais, mais 12 que no ano anterior (2021). Desses homicídios, refere a mesma fonte, 60% ocorrem em contexto de Violência Doméstica, ou seja, são classificados nesses termos, sempre que entre o/a Autor/a e a Vítima exista qualquer uma das relações previstas no nº 1 no artº 152 do Código Penal (CP). No Portal da Violência Doméstica foram reportadas, neste primeiro trimestre de 2023, 5 vítimas de homicídio voluntário em contexto de Violência Doméstica (3 mulheres, 1 homem e 1 criança) Portugal regista, ano após ano, números bastante perturbadores nesta matéria, já que os crimes contra as pessoas

representam a segunda maior categoria de crimes participados continuando a destacar-se o crime de violência doméstica. Já em 2019 escrevi neste espaço sobre esta mesma temática. Não existe qualquer novidade nestes números, tal como não existe nenhum indício de que as estratégias de combate a esta realidade tenebrosa (que são algumas, há que o reconhecer) estejam a resultar em termos de eficácia e de maior proteção às vítimas destes crimes. Uma das coisas que fiz questão de propor, logo que tomei posse como Bastonária da Ordem dos Advogados Portugueses, foi, precisamente, a criação de uma escala a funcionar junto dos Gabinetes de Apoio à Vitima (GAV) para que estas vitimas, mas também as vitimas de crimes graves, como

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é também o caso do crime de violação (que regista também ele um aumento muito expressivo no ano de 2022), passassem a estar obrigatoriamente acompanhadas por advogado/a no momento de apresentação da queixa junto dos Órgãos de Policia Criminal (OPC). Propôs-se até que esses profissionais fossem técnicos de acompanhamento à vitima (TAV) ou recebessem formação prestada por entidade devidamente certificada, com experiência já comprovada nesta área especifica do direito criminal e, por último, tivessem condições (que seriam facultadas naturalmente pelo Estado), para poderem, para além de prestar aconselhamento jurídico às vitimas, acompanhá-las processualmente em todas as situações que tipicamente envolvem estas problemáticas, que envolvem tantas vezes ações de Regulação das Responsabilidades Parentais, Divórcio, Atribuição de Casa de Morada de Família, Inventário, Divisão de Coisa Comum, enfim, criar uma forma de proteção jurídica holística, que permite garantir o seu verdadeiro acesso à justiça nos termos que são garantidos pela Constituição da República Portuguesa (CRP). Pensei eu, quando propus esta solução em nome da Ordem dos Advogados, que esta

era questão absolutamente pacifica e óbvia, tendo em conta as dificuldades de acesso à justiça que nos são constantemente relatadas pelas populações e que são do conhecimento geral de todos/as os/as profissionais do foro. Foi, por isso, com enorme estupefação que assisti à rejeição de todas as propostas de lei que foram apresentadas no parlamento, no passado dia 28 de abril de 2023, que visavam assegurar às vitimas algo tão básico como a nomeação obrigatória de um/a advogado/a que lhes garanta aconselhamento jurídico e que lhes garanta uma defesa eficaz da sua vida, das vidas das suas crianças e o seus mais elementares direitos básicos humanos. Enquanto o Governo não alterar a forma como combate este tipo de crime, continuaremos a ter os mesmos resultados. Não conceder o acesso imediato a um/a Advogado/a às vítimas destes tipos de crimes, independentemente da sua capacidade económica, significa continuar a perpetuar o desamparo a que estão votados os cidadãos e cidadãs, que acabam por ser revitimizados por um sistema que é incapaz de os/as proteger e isso não é digno de Estado de Direito Democrático de um país da União Europeia como é o nosso.

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA

UM TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL FORTALECIDO (REFLEXÃO BREVE DE UMA MULHER DE LEIS)

Adelina Barradas de Oliveira

“Nós, os povos das Nações Unidas decididos A preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; A reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; A estabelecer as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional; A promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade; e para tais fins A praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos; A unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais; A garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum; A empregar mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de todos os povos; resolvemos conjugar os nossos esforços para a consecução desses objetivos.”

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Vivemos num tempo que nos parece de falência das instituições políticas e ineficácia das decisões jurídicas que é o mesmo que dizer, do Poder Judicial. Houve um tempo em que entendi o Poder Judicial como o solucionador de conflitos, não como apaziguador, mas sempre, como o último reduto de punição do mal infligido ao bem comum com vista, a repor o equilíbrio. Voltei a esse tempo. Não é por acaso que sentimos o Direito Penal como o organizador da Ordem, o terceiro que vem de fora, que não se envolve, imparcial, a solução para a necessidade de resposta de quem se vê confrontado com males inesperados e brutais como o terrorismo, o genocídio, o tráfico de seres humanos. No entanto, quando olhamos em volta e nos damos conta do Tribunal Internacional de Justiça, em funções 24horas, e do Tribunal Penal Internacional, sentimos que existem de forma silenciosa, aguardando a possibilidade de se darem a conhecer, mas, as suas decisões são “suaves” quer quanto aos Estados aquele, quer contra os indivíduos este. À custa de nos perguntarmos quantas fés seguem os homens e porque as seguem, qual a firmeza e bondade das suas convicções, qual a intensidade da busca pela igualdade de Oportunidades e Direitos, qual a força das sanções perante quem viola as regras, perdemo-nos num labirinto que nunca terá resposta e que, a cada esquina, nos oferece crimes contra a humanidade. Etiquetamonos e marginalizamo-nos, odiamo-nos, tememonos e destruímo-nos. E quanto a isto não há Tribunal que nos valha, nem que seja só para nos dizer culpados. Tenho para mim, que sou uma mulher de leis, que os conflitos armados são desnecessários, que bastaria deter os que violaram bens e direitos e sujeitá-los a julgamento, de um Tribunal, decidindo depois da sua culpa e, necessariamente da medida da sua pena. Os conflitos armados dispensar-se-iam, teríamos apenas um julgamento de detidos para uma condenação de culpados. Pois se eles até entrevistas dão, pois se até chefes se intitulam! Fácil é detê-los, ouvi-los, julgá-los e condená-los... ou não. A Europa recusou rever o Tratado de Maastricht apagando aquilo por que se lutou durante anos, numa tentativa de globalizar o Mundo, facilitando a livre circulação dos povos, ... MAS!... será que foi feliz em tê-lo feito? A verdade é que esta tentativa de acreditar numa globalização e

vulgarizar fronteiras, baixando a guarda, levou necessariamente à necessidade de punir mais severamente uma circulação livre com fitos criminosos, mas, isso não se verifica. Os europeus estão fartos de aparências, fartos de cimeiras, fartos de acordos. Querem indiscutivelmente a saída de uma crise que parece esmagadora e que é humanitária.

MAS ESTÁ A EUROPA PREPARADA PARA UMA CRISE HUMANITÁRIA? A Europa já não é só a Europa. É a Ásia, é Àfrica, é uma amálgama política e religiosa que teme. Não vale a pena continuarmos a falar de igualdade quando o que é absolutamente necessário entender, respeitar e proteger, neste momento, são as diferenças. A criação de restrições normativas transnacionais, a concorrência robusta de poderes nas decisões da política interna mundial, são necessárias agora. A Europa que sempre conhecemos não voltará a ser a mesma. Nem o Mundo. Temos de admitir que se queremos que as decisões das Nações Unidas sejam executadas na forma de intervenções legais, o Direito Internacional Humanitário tem de intervir e ser desenvolvido no sentido de sujeitar os autores de crimes contra a Humanidade ao controlo do Poder Judicial Internacional. A tendência é para que os Estados membros se relacionem como potencias soberanas, mas também como membros solidários da comunidade internacional. Na era da comunicação ganha forma uma opinião pública mundial e uma necessidade comum de controlo e punição de violações dos Direitos Humanos. Tal não é para amanhã, é para de imediato. A época da boa vontade está a diluir-se. O domínio político e as respostas armadas nunca serão justas se os culpados não forem julgados e condenados. Não é por acaso que em sociedades em conflito o que há é falta de normas e atropelos ao Direito porque ninguém é sancionado ou receia, sequer, vir a sê-lo. O Poder Judicial faz parte de uma Ordem Mundial sendo-lhe necessário para que esta funcione e progrida. Não somos mais a Europa de sempre, somos um continente aberto a culturas e religiões, um Mundo onde acontecem crimes contra a humanidade em larga escala. Somos um Mundo a necessitar mais de Lei e Justiça que de intervenções armadas.

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António Manuel Monteiro Mendes

H A L I M Diálogo imaginário, ainda a bordo dum navio, daqueles que tentam salvar vidas e recolher cadáveres no Mediterrâneo. Diálogo entre um refugiado ainda sem estatuto de tal condição, jovem, negro escuro, olhos castanhos com um brilho baço. O outro, era um dos médicos que prestava ajuda, branco alvo. Pálido de cabelo atado atrás, já acinzentado, ou pegava numa tesoura, ou numa gaze ensopada em líquido antisséptico.

O Halim já tinha perdido a mãe e o pai. O médico, português, ainda tinha os seus. Plenos montes vinícolas. O pai do Halim morrera no caminho. A tiro. Partiram de noite pela planície, depois surgiu a savana, teria ele 8 anos. Nilo Branco ao seu lado e quando ali chegaram, sempre pelas margens. Desde os arredores de Juba que o silêncio era quase total. Murmúrios. Disfarçados com uma voz mais audível quando os animais ocupavam a linguagem com avisos sonoros. Os avós paternos tinham bens. Lavrador e lavadeira, sabiam que o neto não teria possibilidade de singrar no Sudão. A única via que reunia alguma segurança, era o porte de uma arma num exercício qualquer. Reuniram os bens que tinham e venderam tudo. Os

avós maternos tinham morrido na guerra que dividira, dividia o Sudão. Sudão do Sul, pobre, sofrera a bom sofrer mercê da etnia e religião. Vieram pelo caminho mais difícil e longo. Em direcção ao Uganda, isto para fugirem à guerra civil e à viagem, diferente no trajecto, que muitos outros entenderam fazer. Estes, os que viajaram a pé cerca de 5000 quilómetros até chegar ao Mar Mediterrâneo, passaram pela Etiópia e Djibouti, muito ligados e esperançados pelas saídas marítimas deste país, arriscando também, porque este último estava muito controlado pelas potências mundiais com as suas bases militares que os ignorava. Atravessaram o Golfo de Aden, Iémen, Arábia Saudita, Jordânia, Síria e Líbia. Halim, com os pais, calcorrearam cerca de 3000 quilómetros, pela República CentroAfricana, Camarões, Nigéria e Níger, Argélia e Tunísia quase em frente à Sicília. Os pais morreram em Constantine, quando se opuseram à sua venda por traficantes de seres humanos. Brancos, mestiços e negros. Muçulmanos, católicos e outros credos sem fé e esperança. Pôde ver a mãe agarrar-se ao pai, e ele nas mãos de um polícia Tunisino que o colocou num campo de refugiados

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em Ras Dajir. Aprendeu a sobreviver. Ouviu no fundo, pareceu-lhe longe, vindo de uma nuvem de pó a voz da sua mãe, num grito atroz, lancinante, um urro que ecoou sem destino a não ser a memória de Halim. Primeiro a água, depois a comida, de seguida os cobertores, depois pequenos utensílios, foram todos, todos furtados. Tinha uma tenda pequena, só para si. Falava inglês, árabe e percebia, aprendeu, francês. As redes que programavam as partidas dos refugiados utilizaram a sua esperteza e capacidade para estabelecer pontes entre estas centenas de milhares. Tanto dinheiro, pensava Halim. Tanta fome. Tantos mortos. Viu passar por ali, muitos brancos fechados em jeeps. Alguns olhavam para ele. Num misto de impotência e culpa. Não ousavam abrir os vidros devido ao mau cheiro, fétido, à morte. Diziam que era por causa do calor. Quem conhece estes tipos de “campos de concentração” sabe que a única coisa limpa que se pode encontrar é a agulha duma seringa. Por critério. O resto está sujo, murmurava Halim, - “está sujo, está sujo!”. De noite, abraçava a singela memória que tinha da sua infância. A bola. A enxada. A bacia de água fresca. Detestava a sua fraqueza. Memórias que se esbatiam traumaticamente. Os pais e avós, as brincadeiras da escola. Adormecia a estabelecer um plano de fuga. Juntava dinheiro. Num buraco tapado com fezes por cima. Já não havia cães para esgravatar a terra. E, um dia, conseguiu iludir a vigilância. Partiu num bote. As costas do homem que seguia à sua frente esmagava-o. Estava entalado por outro atrás de si. Ninguém ousava falar. Houve quem defecasse ali, apesar de todos terem sido aconselhados a fazê-lo antes de subirem para “a jangada” que nada de seguro apresentava ser. Mas ele considerava-a a melhor. Tinha escolhido o traficante mais batido. Aquele que lhe confidenciara que, um dia, também, partiria. Acordou de noite. Uma e outra. Passados dias, julgava ele, longos dias. Sedento, os lábios roxos, gretados e inchados quase não permitiam falar. A garganta ressequida, dorida, os olhos inchados, rodeados de salitre conseguiram ver uma luz. Primeiro pensou que estava morto, depois ficou a olhar

para um tipo barbudo, branco que lhe falava em inglês. Procurou a bolsa de plástico onde transportava os documentos dos pais e um documento desbotado onde constava a sua data e local de nascimento. O plástico estava com sangue. Por dentro, a protecção que ali tinha colocado para não ser molhada, talvez, tivesse permitido a sua segurança. Não teve forças para o barbudo. Grande. Este, enquanto lhe molhava os lábios, outro, abria-lhe uma veia para o colocar a soro, enquanto outro mais, lhe lavava o corpo nu com uma esponja, molhada em água nova, com cheiro. Abriu a bolsa e após uns instantes disse-lhe: -Halim? - Sim, num sussurro. - Halim, estás em terra. Agora, descansa. - Vou para onde? Não sei ainda… - Posso ficar em sua casa, eu posso ser seu amigo, durmo no jardim, tem jardim não tem? - Os teus pais ficaram…? Enterrados…disse, virando o rosto. O barbudo de branco, já empedernido com estas causas e consequências, não viu ali um jovem, viu uma criança. E o futuro dela estava nas mãos de engravatados que criminalizavam a sua acção. A de salvar Halim. - Halim, não te vou deixar enquanto puder. Descansa que eu guardarei os teus documentos. - Não sou terrorista, sou apenas pobre…posso dormir no jardim….

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PANO PARA MANGAS Margarida Vargues

QUANTAS LÍNGUAS FALAM AS NOSSAS ESCOLAS 30


Se há uns anos a resposta era simples e directa, actualmente torna-se complexo responder com clareza a esta questão. Porquê? Porque à subjectividade de um “muitas”, juntase a complexidade de manter os dados actualizados, pois a cada dia surge alguma nova nacionalidade que se junta à Torre de Babel que circula nos corredores das nossas escolas. Os alunos de nacionalidade brasileira continuam a dominar o grosso dos estudantes estrangeiros no ensino básico e secundário, representando cerca de 50% do total de crianças e adolescentes, e a eles juntam-se muitos mais, oriundos de países mais ou menos distantes, como Angola, Ucrânia, Bangladesh, Índia e Nepal, entre muitos outros. Ao todo, há mais de cem nacionalidades nas salas de aula portuguesas. E como é que vêm cá parar? Dependendo da situação, podem chegar sozinhos (sim, sozinhos!) ou com a família. Logo que chegam, e cumpridos os requisitos legais, tal como qualquer criança portuguesa em idade escolar, são integrados numa escola da rede de escolas públicas existente de Norte a Sul, de Este a Oeste do país, embora estejam mais concentrados nos grandes centros urbanos, como Lisboa. Há, ainda, os que optam pelo ensino privado, porém são a excepção à regra. Assim? De uma forma tão directa? E a barreira linguística? Pois é… a barreira linguística! Os alunos provenientes de países da CPLP, como é o caso do Brasil ou Angola, são integrados numa qualquer turma, no ano correspondente à equivalência que trazem de fora. Parte-se do princípio que, como falantes nativos do português, estão aptos a aprender todos os conteúdos de todas as disciplinas. Parece fácil, mas não é… E os demais? Segundo a legislação em vigor, têm o direito de frequentar uma disciplina conhecida, entre o meio escolar, como PLNM, que é como quem diz: Português Língua Não Materna. Como funciona? Teoricamente, é muito simples! Retira-se a disciplina de Português do curriculum e substitui-se por PLNM. Todas as outras permanecem como estão, o que levanta muitas dúvidas sobre o processo de aprendizagem. Como é que, não tendo conhecimento dos mínimos de Português, conseguem acompanhar aquilo que é ensinado em Ciências, Matemática, História, Filosofia e tantas outras? É necessário uma dose extra de boa vontade e de trabalho - por parte dos alunos e dos professores que

os acompanham - além de, na minha opinião, “super poderes”, qual heróis da Marvel. Infelizmente, a rede escolar ainda não está totalmente preparada para a vaga de imigração dos últimos anos e os recursos disponíveis chegam a ser escassos ou inexistentes. À falta de professores, junta-se o facto de nem todas as escolas conseguirem reunir o número mínimo de alunos - dez - para constituir uma turma de PLNM e quando conseguem, as idades entre eles são tão díspares que se torna impossível ter, dentro da mesma sala, crianças com 9 ou 10 anos, juntamente com adolescentes de 15 ou 16. A estes desafios juntam-se outros que nos passam ao lado. Em que língua está escrita a sinalética nas escolas? Coisas simples como “cantina”, “refeitório” ou “bar”, “secretaria”, “biblioteca” ou “sala de professores”. Em português, obviamente! Alguns destes jovens chegam a Portugal com a ideia de que estão de passagem, que a vida aqui é temporária e que algum tempo depois irão regressar aos seus países de origem. Outros sabem que vieram para construir aqui o seu futuro. Enquanto professora, confesso que tenho um especial carinho por estes adolescentes. Apesar de tudo, e independentemente daquilo que os traz a Portugal, são pequenas grandes pessoas que carregam uma bagagem enorme - maior do que aquela que conseguimos imaginar. Guardo alguns junto ao coração. Não sou professora de PLNM, mas recebo na minha casa alguns destes imigrantes. Passamos muitas horas juntos. Partilhamos histórias de cá e de lá. De vez em quando trazem-me iguarias dos seus países de origem, mostramme fotografias e vídeos e ensinam-me mais do que imaginam. Sei que não sou ninguém num sistema que enfrenta tantas dificuldades, mas acredito que posso fazer a diferença na meia dúzia de vidas que se senta comigo numa mesa repleta de frutas, legumes, copos, pratos, saias, calças ou sapatos e folhas de papel em branco onde, através de desenhos conseguimos comunicar. À chegada, na minha opinião, o principal é que se façam entender. Os verbos, as preposições e a sintaxe podem vir depois. Ficam comigo anos a fio e confesso que me enche de orgulho a evolução de um “Não sei!” e “ Não percebo!” ditos com timidez até um “Margarida, entrei na universidade!

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