65 Edição

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65º Edição MARÇO 2025

Em tempos de estupefação encontramos este cantinho que eleva o Sonho ao Poder

damos asas à imaginação e à escrita

Queríamos falar de factos, de política, de economia, de recuperação mental, de psicologia mas preferimos salvar os dias entre uma meia de leite e um Croissant falando de Berlim ou do Pianista.

Tudo isto é a Linguagem das Palavras que nunca é inocente que nos preenche e enche de Dúvidas

Entre a agonia dos homens Bons e as aparências dos homens fortes, há recantos e cantos de imaginação que nos guiam. E só para não dizerem que não falámos de Flores, acabámos por falar delas, é só procurarem nos textos, ... estão lá todas de uma maneira ou de outra....

Até na pergunta: "Depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? – Ser feliz é para se conseguir o quê?"

Perante um Mês de Março que nos oferece Primavera, mais uma hora de Sol por dia, o dia da Poesia e das Mulheres de todo o Mundo, o que são as discussões ovais em salas brancas?

(...)

Adelina Barradas de Oliveira Diretora

Indíce

MARÇO 2025

04 ....... Carnaval no Rio | Fernando Corrêa dos Santos

06 ....... Language is never innocent | Filomena Lima

08....... O pianista | Licínia Quitério

10....... Cantinho do João | João Correia

12....... Um dia com Clarice Linspector | Julieta Monginho

16....... Redenção por entre rosas e pitangas | Mariana Roque

20....... Salvações | Nelson Escórcio

22 ....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes

24 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues

26....... Entrevista Adelina Barradas de Oliveira | por: Ana Gomes

32....... Dúvidas | José Luis Outono

34 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

36 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho

38 ....... Entre Linhas | Recomendações literárias

40 ....... Mulheres | Maria Teresa Horta

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

DESIGN E PRODUÇÃO: INÊS OLIVEIRA

PUBLICAÇÕES: ISSUU.COM/JUSTICACOMA

FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

Foto de Fernando Corrêa dos Santos, gentilmente cedida pelo mesmo para a revista Justiça com A.
CARNAVAL NO RIO
‘LANGUAGE

IS NEVER INNOCENT’

A linguagem modela o pensamento. Forma o cérebro e cria emoções, não se limitando a traduzi-las. Será por isso que Roland Barthes disse ‘Language is never innocent’ ?

A importância do verbo, o poder cabalístico de uma palavra. Nada me seduz mais do que o sabor de uma palavra quando alguém a diz da forma diversificada e intrigante que ela pode ter.

Se uma criança de apenas 4 anos de idade pode pedir : ‘Mãe, podias não ficar tão nervosa quando te zangas connosco?’ , falando por si e em representação da sua irmã que tem metade da sua idade, como entender que adultos não consigam verbalizar o que sentem?

Provavelmente porque se colocou um fosso intransponível entre o cérebro que sente e aquele que pensa.

Eu, adulta, me confesso. Quantas vezes reconheci uma emoção mas deixei de me limitar a vivê-la enquanto tal, perdi a aventura única de a viver simplesmente. Na ansiedade de a conseguir identificar ou entender.

A primeira preocupação foi situar, catalogar, organizar, dar-lhe um enredo e explicação racional. Ah, e um contexto.

Duas ideias se cruzam na minha perplexidade. A de que a maturidade nos priva da simplicidade complexa e rica do ser. E a de que o domínio da língua nos pode devolver a consciência e a pureza do sentir. E, se a palavra se perfila como arte, então até nos salva.

Mas, maior perplexidade ainda, se esse trabalho de entender a emoção, passa então pelo controlo da sua definição, tal como esta é

verbalizada. A importância da comunicação, da conversa nas mãos coladas, do falar dentro da boca do outro.

Da avidez de encontrar e de se encontrar dentro do outro.

Uma criança sabe pedir à mãe que não fique nervosa até quando a mãe, que foi quem me contou isto, tem por norma ser calma e paciente o que faz as filhas serem gulosas dessa calma. Um ser sabe dizer a outro ‘encontra me’.

Ainda não tens idade para perceber, dizias me tantas vezes para que eu entendesse que tu já entendias e eu ainda não e que haverias de me levar pela mão até àquele local onde o humano encontra a sua forma única de sagrado.

Na conjunção extrema, na conjugação de ser, na busca única de companhia. O ser não procura senão essa forma de companhia. Que lhe perfure a película de morte em que está mergulhado até que alguém a rasga e penetra na água morna de uma placenta gigantesca em que nos movemos .

E sei que não termino como comecei.

Comecei com ordem e acabo na convulsão.

É esse o mistério da palavra que cria e nos tira da célula privada em que não somos ninguém para nos remeter para o oceano em que somos toda a gente.

Através de uma convulsão íntima que gera combustão e que sinergeticamente nos traz a dose de loucura que nos alimenta e emprenha.

LÍCINIA QUITÉRIO

O pianista

Reformado de muitos teclados, este será talvez o seu último amante. As teclas sob os dedos, contra os dedos, em leves corridas e arrastados andamentos. O brilho da aliança de casamento desgastada por décadas, sinal de que alguma coisa se salvara do rescaldo de todos os combates. Sobre o piano um caderninho, manuscrito a azul e vermelho, em letra média, desenhada. Os títulos, apenas. As notas, não. Essas estavam todas na cabeça, orgulhosamente adornada pela cabeleira branca, suficientemente volumosa para arriscar uma poupa à Tony Bennett. Um piano pequeno, “new wave”, um pianista discreto e baixinho, numa loja modernaça com requintes de decoração “fin-de-siècle”. Ficava ali bem, o piano, na amplidão da sala. Não estorvava ninguém, era apenas um ponto no centro do espaço que as gentes rodeavam, sem o tocar, sem dar sequer por ele. Ninguém o olhava, ninguém o ouvia. Era um buraco negro com um assomo de teclado. Indiferente aos manequins de plástico e aos de carne e osso, uma velha senhora sentou-se numa poltrona, afagou discretamente a imitação de “Gobelin”, abriu uma revista de moda, traçou a perna, num difícil exercício de elegância, e aquietou-se. Não virou uma única página da revista. Olhou sempre o pianista, ou o piano, ou a música dolente e vulgar. Ao fim de longos minutos, reflectida no espelho de moldura “rocaille”, em vez de uma risca de teclas num buraco negro, a glória tardia de um pianista em concerto a solo, perante a requintada assistência do palácio dos concertos da sua Viena imaginada. Não se conteve. Abandonou a revista e aplaudiu. De pé.

O CÉU DE BERLIM

CANTINHO DO JOÃO

Por diversas vezes olhei para o céu de Berlim à procura da presença de Damiel e Cassiel da obra de Wim Wenders, mas não os encontrei. São coisas que acontecem. Nem sempre é fácil encontrar anjos de um filme a preto e branco apenas porque nos encontramos na cidade em que eles, supostamente, existem.

Procurei por cima da cúpula do Reichstag onde, devido ao calor avassalador que fustigou a cidade, senti-me como enfiado numa estufa. Subi à torre da TV no centro da cidade e percebi que a mesma era plana, com edifícios baixos, mas quanto ao mais, nada mais encontrei, a não ser a beleza do local. Na realidade, o céu sobre Berlim naquele local contrastava com a confusão de Alexanderplatz onde a circulação dos pedestres faria as delícias dos anjos que trocariam opiniões sobre as sensações e emoções dos berlinenses cujos pensamentos conseguiriam ouvir.

Quanto a estes, não os achei simpáticos. Também não os achei antipáticos, mas seja como for, achei que comunicavam apenas o mínimo que lhes era exigido, ou se calhar fui eu que não soube comunicar. Quem sabe, numa próxima oportunidade as coisas sejam diferentes. Não vá o diabo tecê-las vou comprar um manual sobre como comunicar com berlinenses. Talvez resulte.

No monumento ao holocausto assisti a um palerma a circular de trotinete eléctrica no meio dos blocos que o compõem, situação que motivou uma senhora alemã, segurança do local, a dar-lhe um sermão tão grande que até a mim me doeu. Senhoras alemãs à parte, nada de anjos, por isso, nada como procurar nas margens do Spree navegando no mesmo enquanto via a população local a apanhar banhos de sol junto às suas margens a ponto que pensei que deve ser bom ser berlinense. Tão bom que nem

se compreende porque é que eles não são um pouco mais simpáticos, mas enfim, devem ter as suas razões. Não sei quais, mas devem tê-las, certamente.

No mais, ainda bem que a parte ocidental não foi entregue aos soviéticos e isto sem prejuízo do charme que os “Trabis” nos despertam. Não conduzi nenhum mas, cá está, fiquei com um bom motivo para regressar a Berlim, como se de bons motivos precisássemos pois, Berlim não é uma cidade a preto e branco pautada por efémeros momentos a cores tal como na obra de Wenders.

Há quem ache Berlim mais interessante que bonita, mas, tal como a humana Marion por quem o anjo sacrificou a sua imortalidade, de tão interessante que é, que tão bonita se torna.

Auf Wiedersehen Berlim. Se depender de mim, regressarei em breve.

João Correia

UM DIA COM CLARICE LINSPECTOR

Julieta Monginho

Entre sábado e domingo o meu pensamento guiou-se pelo mover do dia, amanheceu com a luz devolvida pela casa, escoando entre frinchas finíssimas das persianas corridas. Ainda antes das sete horas, o despertar irreversível apesar do sonífero da véspera e de tantas vésperas antes dessa. Uma lucidez total, impiedosa, aquela que se escondia de mim nos últimos tempos, em confronto excessivo com o passado.

Ainda na cama, uma larga cama de casal onde agora poderia esticar-me à vontade se não temesse o lado frio, pensei estou viva, estou aqui, a casa está tranquila. O vento faz bater a porta, um ruído conhecido, uma voz matutina e desta vez amável, que estranho.

Logo a seguir pensei na minha amiga renascida através de uma mensagem e em como lhe devia esse assomo da paz. Ter tomado com ela um chá de erva-príncipe, sem que se intrometesse a voz da avó Laura, que noutros tempos preparava todas as tardes um bule dessa erva subtil, foi um bálsamo entre mim e a realidade. Ter falado com ela sobre a sua vida ao longo dos anos silenciados, uma forma de acalmar a minha própria vida. Um desejo, mantê-la perto de mim. Perto do meu coração tresloucado.

Foi com esta determinação que me levantei e preparei o pequeno-almoço. Misturei iogurte com pedacinhos de fruta que demoravam a cortar, enquanto a fome se avivava. Nesse debate com a vida em mutação lembrei-me de Clarice e do coração verdadeiro de Joana.

Fui à estante buscar Perto do Coração Selvagem. Mastigava a fruta acabada de cortar, o suco acendia-me a língua, quando a primeira frase: A máquina do papai batia tac-tac…tac-tac-tac…O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? Não, não.

São ingénuas, as onomatopeias? Sigamos

então para a segunda frase: Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Pronto, acabou-se a ingenuidade, chega o mundo através de uma orelha singular. Já com a chávena de café numa mão e o livro na outra, pensei, através dos aromas, que as únicas vozes ouvidas nessa manhã foram a da máquina do papai, a do relógio, a do silêncio, a de Clarice e a da faca que cortava os pedacinhos dos frutos, sottovoce.

Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?

A mulher encarava-a surpresa.

– Que ideia! Faça a mesma pergunta com outras palavras…

- Ser feliz é para se conseguir o quê?

No entanto essa paz, o golo de café, as frases de Clarice, assemelhavam-se a uma ideia de felicidade. Mas para quê, indagava eu com Joana e com quem a escreveu. Haverá tempo durante ser feliz? Depois de ser feliz? Haverá depois? Seria alcançável algo mais íntimo do que a felicidade? Seria disso que andava à procura? Que andava à procura, completamente à toa?

Na biografia de Clarice, chamada Porquê este Mundo, Benjamin Moser chama a atenção para a influência de Espinosa na concepção do romance, através da personagem Octávio, marido de Joana. A leitura de Espinosa veio ao encontro das suas próprias reflexões: «O que era real era a eminência divina que se manifestava na amoral natureza animal, no coração selvagem, que animava o universo. Para Espinosa, como para Clarice, a fidelidade a esta natureza íntima divina constituía o mais nobre objectivo».

Nesse domingo eu tinha um só objectivo, nada nobre: não ouvir vozes além das que

Um dia com Clarice Linspector

a casa podia abrigar e os meus dedos pudessem tocar. Um alívio de cada vez. Uma felicidade tímida, um aquém satisfatório.

Eu antes tinha querido ser os/outros para conhecer o que não era/eu. Entendi então que eu já tinha/sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o /outro dos outros: e o outro dos/outros era eu.

Parecia destinado precisamente a mim, naquele domingo, este poema de Clarice que acabou por me fazer companhia o dia inteiro.

Com meio frango cortado aos pedaços que encontrei no congelador e os dois ovos que restavam, sem hortelã, acabei por fazer galinha mourisca, um prato meio árabe, como o nome indica, um prato de difícil preparação. Ao polvilhar os ovos escalfados com canela, o último passo antes de a mistura ser vazada para uma terrina onde repousam fatias de pão duro, o aroma voltou a evocar a cozinha da avó Laura, onde as especiarias se alinhavam numa prateleira contígua à dos chás e as laranjas espalhavam toda a

sua alegria. Com grande esforço, consegui conter a voz da avó, mesmo ali, na concha da orelha, a voz nunca cansada de definir o mundo, contando histórias ininterruptas, uma história sem fim.

Quando, nesse domingo, reli Clarice, recostada na cama, à luz de um candeeiro, senti-me atraída para o fundo do enigma, com a leveza de quem me levasse a passear através dos recantos desconhecidos da casa, onde certos ruídos conversavam comigo, em língua estranha. Ruídos de madeira velha, de passos que ora correm no telhado ora nas minhas descompassadas veias.

Antes de adormecer, revi a entrevista de Clarice ao programa Panorama. Ela tinha acabado de escrever A Hora da Estrela e ainda não queria revelar o nome da protagonista, a moça que se chamaria Macabéa. O livro começa assim: Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim.

Nessa entrevista Clarice definiu a sua escrita da juventude como caótica, intensa, inteiramente fora da realidade da vida. Diz também que o seu texto preferido é o conto O ovo e a galinha, para si mesma um mistério, «não o compreendo muito bem», diz.

Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo

Ao entrar no sono, misturei as imagens desse dia na minha cabeça que começava

a ausentar-se. Uma história que a certo momento – mas que momento? – terá virado sonho.

Vi o ovo rolar na minha direcção e veio-me a ideia de uma escolha, de um não-acaso. A voz dentro do ovo dizia por favor não me abandones, não me deixes sozinho. Eu também não queria estar sozinha, por isso sim, peguei nele com relutância, sem afecto, as mãos querendo não sentir o calor, os olhos querendo não ver os restos de palha e de detritos. Pensando, ainda assim, que o ovo viera ter comigo para me contar o seu segredo, que era, supunha eu, uma hipótese, vaga esperança de vida. Não o partir, a primeira decisão. Colocá-lo no parapeito da janela, a segunda. Esperar, a terceira. Arranjarlhe uma caixa onde se sentisse confortável já não foi uma decisão, mas curiosidade e jogo, algo parecido com a fé. A caixa era a de um relógio que Ele me tinha oferecido no aniversário, bem acolhedora, à prova do frescor da noite. Três luas depois, acordei de manhã ao som do triste piar. O pintainho estendia bico e asas para uma mãe imaginária. Eu não era essa mãe, demasiado real, demasiado humana. Para não deixar morrer o pintainho pus-lhe um nome, Pinto Calçudo. Pus-lhe também um sorriso. Depois vi-o aconchegar-se bem na caixa e ouvi o coração batendo tictac-tic-tac-tic, um tempo tão acelerado que o meu, suspenso, seria incapaz de acompanhar.

MARIANA ROQUE

A porredenção entre rosas e pitangas

Amante das artes, da literatura, apaixonada pela escrita, dona de um estilo peculiar, repleto de emotividade, Clarice Lispector, considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX, foi uma mulher que se movia pela intuição e pela emoção, problematizando, como ninguém, a situação da mulher, questionando o rotineiro, o lógico, o politicamente correto.

Não raras vezes sentimos, ao lê-la, nos enredos que nos apresenta, uma certa inquietação, olhando com estranheza para o que lemos. Mas depois, a partir do momento que nos lançamos na história, o puzzle encaixa.

Nos seus textos viajamos, sentimos o toque da pele, das texturas, os cheiros, ouvimos música e conversas, ouvimos as personagens, vivemos e entramos no mundo. Como que somos conduzidos pela mão da autora, no labirinto das emoções vivenciadas por cada personagem, seja no momento de calmaria, como transportados

por uma suave brisa, como nos momentos de turbilhão, como que atirados por um furacão.

É intemporal, as suas palavras e a mensagem que passa são atemporais. Paralelamente, a sua escrita é inteligente, audaciosa, crítica, por vezes, mordaz.

Assim foi (é) Clarice Lispector – uma mulher de convicções, revelando uma enorme perspicácia e clarividência, uma apurada consciência sobre a condição da mulher e de ser mulher.

O conto “Cem Anos de Perdão”, integrado no livro “Felicidade Clandestina” (1971), passado nas ruas do Recife, numa leitura imediata e superficial, podia até ser lido como um conto infantil. Parece ser para aí que nos transporta: a linguagem simples, o ritmo imposto pela narradora, como parecendo uma brincadeira de crianças. Podemos mesmo imaginar a narradora / menina e a amiga, de vestidinho, laço na cabeça, de mãos dadas e em passo saltitante, a percorrer

a cidade, deslumbradas por tudo o que esta lhes oferece: ruas bonitas, palacetes imponentes, cercados por apelativos jardins, com “canteiros bem ajardinados”, que acordam a admiração e cobiça daquelas crianças de origens mais desfavorecidas, fascinadas pela vida dos ricos.

Somos transportados para a nossa própria infância, num tom saudoso e até melancólico, e parece que a autora regressa ela à sua infância, como se nos fosse brindar com alguma memória ou recordação desses tempos de meninice. Mas rapidamente, quase tão rápido como o momento em que as meninas se detêm em frente ao portão do palacete, “que parecia um pequeno castelo”, logo percebemos que a história irá oferecer ao leitor muito mais do que um conto infantil, num ritmo que nada terá de melancólico.

Nele encontrei uma linguagem simples, uma narrativa descomplicada e cheia de ritmo, chegando a ser “visual”, saborosa e tátil.

Em cada parágrafo vemos Clarice a evoluir, subindo e alcançando a etapa seguinte do seu plano, tendo como cúmplice a sua amiga. Clarice que começa menina, passando por préadolescente, adolescente e jovem mulher.

O teor do texto, a meu ver, pode conter em si vários sentidos e interpretações, repleto que está de simbologia.

E como juíza que sou, não pude deixar de fazer o paralelo com a descrição que é feita num processo judicial, daqueles com que lido diariamente – os passos dados para concretizar um crime de furto, por introdução num lugar fechado, para apenas levar uma rosa!...

A autora, socorrendo-se da amiga, usando-a como cúmplice ou coautora, toma a decisão de subtrair a rosa que avistou, tão fascinada e inebriada pela sua beleza – “tao altaneira, de cor de rosa vivo, entreaberta”.

“Então aconteceu: do fundo do meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.”.

E, assim, decide invadir o palacete para subtrair a flor, deslumbrada que fica por ela.

Desde logo, a autora alerta-nos para o que se segue: “Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender.”, continuado dizendo “Eu, em pequena, roubava rosas.”.

E aqui a autora / narradora, revelando a sua coragem, audácia e rebeldia, assume o comando, colocando a amiga de vigia, e entra em propriedade alheia. Passa à ação, a sujeito ativo da história - da sua história. “Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão.”.

E ela vai, não espera que a flor vá ao seu encontro.

Aqui vemos a menina / pré-adolescente ousada, transgressora, desviando-se da norma, quebrando regras e padrões.

E, assumindo o papel de “criminosa”, de “ladra”, de forma livre, deliberada e consciente (como ensina o nosso Direito Penal), transgride.

Finalmente, a narradora / menina alcança a rosa - “Até chegar à rosa foi um século de coração batendo”. “Eis-me afinal diante dela. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda.”.

A menina viu então aquela flor ruborizada, suprema, de pétalas sedosas, com vários tons de rosa. Era flor “soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá”.

A redenção por entre rosas e pitangas

Apaixonada pela sua cor, fica fascinada pela sua beleza, que logo a prende. “No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho”. Agarra no caule da flor, arranca-a e leva-a consigo, não sem antes sentir a dor dos espinhos que lhe rasgam a pele, soltando a dor e o vermelho sangue. Finalmente, quebra-lhe o talo, arranhandose com os espinhos e chupando o sangue dos dedos.

E triunfante diz “E, de repente – ei-la toda na minha mão”.

Cheio de simbolismo, podemos considerar a rosa como sendo o amor, o amante, o namorado da agora adolescente. O primeiro amor. A jovem que se apaixona pelo outro, encantando-se pela beleza, sentindo-se atraída pela novidade, deixando-se inebriar pela cor e cheiro da flor / do rapaz. E deixase levar, seduzir, numa clara alusão ao envolvimento físico, à primeira experiência sexual – o arrancar do talo, a dor provocada pelo espinho, a alusão ao sangue. A rosa, como o amor, exposto, belo, atraente, mas ao mesmo tempo com espinhos, com sofrimento. A narradora /a jovem sente a dor, sente o sangue que lhe escorre, chupa-o, mas não recua. Não se arrepende. Não se demove. Persiste num ato libertador rumo à sua emancipação. “E então, nós as duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.”.

Podemos também associar o sangue provocado pelo espinho da rosa, como sendo o desabrochar da menina, passando de menina a mulher, numa clara alusão ao primeiro período menstrual.

E a menina, desarmada e deleitada, confidencia: “Foi tão bom. Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas.”.

E remetendo para a repetição do ato, de novas experiências, de novas descobertas do prazer com o outro, num misto de excitação e triunfo, a autora / narradora diz: “O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.”.

A menina, agora jovem mulher, sai do jardim do palacete, trazendo a rosa. Volta para casa,

e claramente surpreendida com o seu ato, diz: “O que é que fazia com a rosa? Fazia isso. Ela era minha”. Aqui, como no crime da vida real, o sabor do proveito, do ganho obtido, ainda que de forma ilícita. O puro prazer obtido através do desvio, do ilegal, que começou como uma aventura.

E, por isso e por não se arrepender, prossegue.

Já perto de casa, junto de uma Igreja (da qual vê apenas a cúpula - a evidência da proibição), vedada por uma sebe alta e densa, a jovem mulher deixa-se levar mais uma vez.

Agora o ilícito intensifica-se: ela ousa roubar junto a uma igreja – a pura ousadia, o desafio total – o crime e o pecado lado a lado.

Agora é o desconhecido, o escondido, o que não se vê, o fruto proibido, o pecado que a chama. E assim coloca a mão por entre as grandes e, apertando o fruto que ali se lhe apresenta, apalpa-o, aperta-o, esmaga-o. “Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensanguentados”.

O fruto é vermelho, sumarento, suculento. Uma alusão clara ao erotismo, à sensualidade, à lascívia, ao carnal, o despertar dos sentidos, da sexualidade. Mas também uma alusão ao pecado ou dor – dedos ensanguentados. “Vermelho como as pitangas, que escondidas na folhagem era preciso buscar às apalpadelas cegas, até sentir o húmido, o sumo da fruta”. Ao ler vemos a cor, o movimento, sentimos o seu cheiro e sabor e sabemos a sua consistência. É assim que Clarice desperta em nós todos os sentidos.

Mais uma vez, a transgressão, o desvio, o proibido, o ilícito. E mais uma vez a narradora, jovem mulher, decide e ousa quebrar as normas.

Aqui uma clara menção à religião e ao modo como a mesma se impõe na sociedade, que dita igualmente regras e oprime.

E a forma como a menina-mulher, não temendo o desconhecido, o que não se vê, o que não se apreende desde logo, decide nele mergulhar, descobrindo o prazer de ser mulher, encontrando na pitanga

o seu corpo, que apalpa, que acaricia, que experimenta. Aqui a autora, mais uma vez socorrendo-se de símbolos, fala-nos da auto sexualidade (masturbação). A pitanga pode ser assim o sexo da mulher, que é assim descoberto, agora pela jovem mulher que, num gesto de liberdade, de autonomia, de emancipação, num ato singular e só, descobre o seu corpo e o prazer solitário. “As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens”.

E tanto a menina, como a adolescente e a jovem mulher não se arrependem: “E a menina se arrepende? “Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão.”

O conto transporta-nos para a existência de papéis sexuais e a autora ousa não obedecer, recusando-se a encaixar nestes ditos papéis.

A autora coloca-se na “pele do lobo”, do lado oposto ao que se espera das meninas, das jovens mulheres, das mulheres. Elas deveriam ser o inverso: as meninas sossegadas, recatadas, obedientes.

Impostos pela sociedade, nascidos das convenções sociais, à mulher cabem papéis de mãe, cuidadora, protetora, de passividade, de submissão, de delicadeza, de bondade, de castidade, de pureza.

A autora reclama. Indigna-se. Insurge-se. Rebelase, inconformada com o status, com as imposições sociais, com o que é “esperado”, mormente por parte de uma menina / mulher.

E, em contrarregra, transporta uma mulher para um campo que não era tradicionalmente o dela – da proatividade, da decisão, de sair de casa, desobedecer e prevaricar.

E é através destes dois “desvios” – roubo da rosa e de pitangas – que a narradora / autora / mulher se liberta, numa rebeldia libertadora, se emancipa, que se conhece a si própria e ao mundo, quebrando regras, rompendo com os papéis sociais impostos, com as convenções, com os estereótipos, rasgando os tabus e o “politicamente correto”.

E com isso sente-se bem! Sente-se livre. Sente prazer. Não sente culpa nem remorsos.

Senhora de si. Independente. Empodera-se.

enquanto mulher e enquanto indivíduo.

Conquista espaço, por si e por todas as mulheres.

No texto, como na vida, a autora mostra-se inconformada com o status quo imposto, com as imposições sociais, com a divisão de papéis, com o que é “esperado” por parte da mulher. E com isto indigna-se e reclama.

E protesta assumindo, desde logo, o papel do outro, do lado oposto, daquele que transgride.

Coloca-se deliberadamente num papel lido como naturalmente masculino – daquele que sai do lar para o exterior, daquele que é forte, corajoso e audaz - numa clara afirmação de poder ou contrapoder, de desafio. Sai de casa e rouba rosas e pitangas.

Como numa brincadeira, joga com os opostos, quebra as regras do jogo.

Veste a pele do lobo, como dissemos, mas sem despir as vestes de mulher. Assume-se e colocase, deliberada e conscientemente, como imoral, transgressora, criminosa e vilã.

Com essa atitude revela audácia, ousadia e coragem, assumindo uma voz que contraria a identidade feminina imposta, numa linguagem que rompe com o discurso dominante, bem como com os seus silêncios que dele emanam.

As diferenças existentes entre homens e mulheres, diferenças que não se resumem, como sabemos, à parte biológica, não podem, por isso, ser negadas ou ignoradas. E também não podemos esquecer que os papéis que foram, ao longo de séculos, impostos à mulher são o produto de uma visão patriarcal da sociedade e isso, necessariamente tem reflexos, implicações e não deve ser ignorado.

E Clarice tem essa capacidade, de desconstrução, rompendo com a norma, desmontando as “lógicas” instituídas.

As seis patas aparentavam coordenação e propósito desconhecido pelo corpo. A pequena criatura procuraria um caminho, talvez até destino. Contornou duas, três vezes o pé da cadeira sem encontrar fuga ou segurança, carreiro ou companhia.

Os olhos nublados e pesados do homem acompanhavam-na.

Mas o acético piso vinílico e rodapé obeso de silicone não permitiam recantos ou refúgios e fizeram-na arriscar, ou desistir, rumo a um qualquer outro lado, por entre tormenta de solas prensantes que definiriam o ocaso de uma vida já desgarrada, sem propósito ou esperança.

O homem tentou impedir-lhe o percurso, mas o bicho parecia indiferente ao destino, contornando-lhe o pé e prosseguindo, intrépido ou vencido, não se percebia, para o inevitável oblívio. Com mãos trémulas frias, procurou qualquer coisa ou ideia e encontrou a carteira, de onde retirou um cartão, de débito ou crédito, dourado ou platina, mas agora como nunca relevante, prestável. O bicho, após insistência, deixou-se subir para o plástico colorido e ali prosseguiu, desorientado, uma marcha, ou fuga, para qualquer coisa não já reconhecível.

Com o cartão feito bandeja e um coração sem governo, correu o homem empurrado pela maior urgência de todo o seu atual universo e passou uma e depois mais cinco ou seis portas até encontrar ar, céu, e depois uma meia dúzia de metros de relva comprimida entre vidro, asfalto e betão. Pousou o plástico

na erva e, sem pressa, aguardou os segundos ou minutos necessários a que a meia dúzia de patas ganhassem vontade de nova mudança de espaço, rumo à possível amostra de natureza, vida e esperança. Feliz e comovido, engoliu nós e soluços, e acompanhou com a maior atenção o desaparecimento da pequeníssima criatura entre folhas, rumo a um futuro incerto mas possível.

As lágrimas do homem regressaram, mais intensas, complexas.

Que mais pode uma Alma salvar do que o que permite Salvação?

Procurou, de braços caídos, o regresso, menos natural e urgente, mais difícil e penoso, à sala do terminal, por entre portas, luzes e placas mentirosas a informar de partidas e chegadas mas não das partidas sem chegada, e palavras e códigos sem significado, e depois mais salas e corredores indiferenciados e indiferentes, sempre com passagem e acesso assegurados pelo olhar perdido, rosto sumido, passo sofrido do homem. Por fim e no fim os reconhecíveis, incontíveis sonidos de choro e dor, preâmbulo de velórios por agendar. Uma figura muito profissional e vagamente feminina, nervosa e pálida, envolta em roupa escura e triste, elevou uma folha e voz. Proferia palavras feitas escombros entre ruídos e silêncios agitados. Pesar, acidente, vítimas, lista, nomes. Pensou na sorte do bicho, libertado para lutar num mundo arbitrário e hostil. E aguardou, suspenso na e pela vida, os nomes que não queria ou podia ouvir.

E O MAR LOGO ALI

Ana Gomes

O TESTAMENTO

De repente, de modo vertiginoso, a tênue lembrança do interior do prédio se materializa diante de mim com toda a evidência. Ali está o pé-direito alto, as paredes creme, ali está o cheiro de alho e coentro, ali está o eco dos meus passos, ali estão os oito degraus da escada de mármore e a passadeira vermelha até ao elevador, com porta art déco de ferro e vidro. E sobretudo ali à direita está a porta da minha casa, de madeira maciça mais escura que o portão da rua.

Chico Buarque, Bambino a Roma, 2024, Companhia das Letras

Em poucas horas, Adelaide lê o regresso a Roma do artista que já cantava quando ela nasceu. Fica encantada com a descrição de uma cidade que não conhece. Mesmo aquela que Chico expõe como sendo a atualidade, traz uma profundidade que não se capta quando se chega em passeio.

Que bela ideia!, a de deixar escritas pequenas memórias, cogita. Por vezes, invade-lhe a tentação de registar o que serão as memórias dos outros, daqueles que partilham parte da sua vida com ela, enquanto Juíza. Mas nunca há tempo, para além de ir despachando os processos, lendo, ouvindo e decidindo.

Adelaide está num Juízo Local Cível onde desaguam os conflitos das memórias mal resolvidas, quando alguém na família morre: os processos de inventário. Os poucos anos de experiência já lhe permitem assegurar que quem morre sem bens pode ter tido uma vida difícil (ou nem por isso, pode ter-se desfeito de tudo, como lhe apeteceu!, sem que alguém reclame), mas vai em paz. Quem deixa bens e não os destinou, ou os destinou à pessoa errada - na perspetiva dos que ficaram ou na perspetiva da lei – então, muitas vezes, temos um processo judicial difícil.

Por exemplo, filhos a fazer partilha do património deixado pela mãe, pai vivo, quando foi com o esforço do casal que os bens se acumularam; filhos a reclamar que os pais deram em vida mais isto e aquilo ao outro irmão ou a um amigo, deixando-os com menos do que estavam a contar…

Diz-se sucessão o chamamento de uma

ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam. É o que diz o art. 2024.º do Código Civil.

A sucessão legal é legítima ou legitimária, conforme possa ou não ser afastada pela vontade do seu autor. O art. 2027.º do mesmo código proíbe que o dono dos bens disponha dos seus bens conforme lhe aprouver, há limites legais que impedem uma pessoa com filhos de deixar todo o património à mulher, que impedem uma pessoa solteira com filhos de deixar todo o património a um dos filhos, normas previstas no Código Civil cujos princípios gerais sobre sucessões remontam a 1977 (pós 25 de abril de 1974). Não estará na altura de rever estas normas que limitam em geral a liberdade de dispor para depois da vida?

Adelaide ainda se lembra de ouvir conversas sobre a morte entre a família numerosa e a naturalidade com que os bisavós, ainda muito lúcidos, decidiriam “partilhar” em vida o seu património, com o acordo de todos e filhos e netos, todos conscientes de que o que eles amealharam era deles e que deviam fazer de tudo o que quisessem, em vida ou depois.

Adelaide tem ao pescoço uma medalha deixada pela bisavó e acredita que possa vir a escrever algumas memórias. E que, quando chegar a hora, possa deixar tudo aos filhos que terão nascido e crescido. Sabe, porém, que a vida dá voltas e gostaria de não renunciar à liberdade e poder vir a fazer um testamento sem limites legais.

PANO PARA MANGAS

Margarida Vargues

ENTRE UMA MEIA DE LEITE E UM CROISSANT

Entre o final de umas aulas e o início de outras, existe, apenas, meia hora de intervalo. Mal tenho tempo para despir o papel de professora e vestir o de aluna. Enquanto isso, engulo um croissant prensado e uma meia de leite.

Neste pequeno intervalo, aproveito para escrever sumários ou rever as notas das aulas da noite. Sento-me no bar da faculdade, onde escolho uma mesa junto à janela. O movimento ali é incessante, um vai e vem de passos apressados, conversas interrompidas e cumprimentos efusivos, num gesticular e linguagem que, nem sempre, compreendo e, por isso, quando dou por mim, já me dispersei das minhas obrigações e o meu ouvido de tísica entrou em funcionamento.

São, pelo menos, duas as gerações que ali se cruzam. Os saltos altos misturam-se com os jeans esburacados e os óculos cansados observam os que decoram rostos, apenas porque é moda.

No início, ouvia por acaso, de forma involuntária, apanhando fragmentos soltos que se misturavam na sonoridade geral, porém, ao perceber que ali se desenrolavam histórias dignas de nota, comecei a prestar mais atenção. A conversa das mesas vizinhas tornavase um convite irrecusável à minha curiosidade e as narrativas que ali se desenrolavam,

ora dramáticas, ora hilariantes, imediatamente passaram a ser material precioso para os meus cadernos.

Hoje, um grupo de três raparigas ocupou a mesa ao lado. Uma delas, visivelmente indignada, gesticulava freneticamente os braços no ar, enquanto as outras duas se mantinham mudas com expressões ora solidárias, ora divertidas. “Com’é q’ele teve a lata se esquecer! O nosso aniversário?” O desabafo fez-se acompanhar de um bater de mão na mesa - como se a mesa tivesse culpa do que quer que seja… -, o que fez saltar as chávenas de café acabadas de pousar. Os olhares e palavras atabalhoadas das amigas eram pouco convincentes. “ Opá, talvez estivesse distraído com a faculdade, ou algum trabalho...” A rapariga não se deixou convencer.

Noutra mesa, um rapaz moreno, semi desgrenhado e de bigode à Cantiflas debatia com um colega sobre um professor. “Ele acha que não temos vida! Como é que quer que entreguemos dois trabalhos na mesma semana?” A amiga que o acompanhava soltou uma gargalhada carregada e com a tranquilidade de quem já aceitou o destino. “Pensa pelo lado positivo: a seguir há mais!” - e continuou a rir. O primeiro fulminou-a com o olhar.

A única mesa que estava livre foi ocupada por outros dois jovens. Enquanto um se dirigia ao bar, o outro montava um estaleiro digno de uma sala de high-tech. Abre o portátil e começa a martelar o teclado com alguma parcimónia. Nisto chega um galão à mesa. A escrita continua. PXelo que percebo têm um relatório para escrever.

“Tooosttaaaaa mistaaaa!!! “ - ouço vindo de por trás do balcão.

O rapaz que estava a escrever levanta-se para ir buscar a tosta. O outro gira o portátil na sua direção e começa, com o dedo indicador a tocar no ecrã. Um. Dois. Três. Quatro…

Entre uma meia de leite e um croissant.

Apercebo-me que está a contar, manualmente as

palavras e agora sou eu quem não consegue conter uma gargalhada. Disfarço, como se tal fosse fruto da minha leitura.

E assim, entre um gole de café e uma dentada no croissant, as palavras alheias infiltram-se no meu pensamento. Algumas são anotadas no primeiro papel que me surge pela frente, outras ficam a marinar no pensamento,numa promessa vã de que não as irei esquecer.

Não sinto que seja invasão de privacidade ou bisbilhotice, mas sim uma forma de captar a essência da vida quotidiana, de dar voz às pequenas angústias e esperanças que nos tornam humanos.

Ao longo dos anos, tenho-me tornado um compêndio de conversas.

Um dia, um casal discutia baixinho sobre um futuro incerto, cada um defendendo um caminho distinto. “Eu quero aceitar a proposta no estrangeiro. É uma oportunidade única!” dizia ele, enquanto ela mantinha os olhos fixos na chávena pousada sobre a mesa. “E eu? É nós? Onde fico eu nessa história?” A questão ficouno ar, e eu nunca soube qual foi a resposta. Mas imaginá-la tornouse uma história em si mesma.

Há algo de fascinante nas conversas casuais que se desenrolam em cafés. Ali, entre o aroma do café acabado de tirar e o irritante tilintar das colheres contra as chávenas, esconde-se a verdadeira poesia dos dias que correm. Será esta a razão para os casos de amor entre escritores e mesas de café? Foi assim com Hemingway, Pessoa, Baudelaire e tantos outros. E é assim comigo, anónima cronista de intervalos apressados, colecionadora de palavras soltas, fiandeira de histórias alheias que se tornam minhas.

O bar da faculdade é, nos últimos tempos, o meu espaço de observação - ou direi, inspiração? Entre um sumário e uma revisão de notas, entre um gole na meia de leite e uma dentada no croissant, continuo a ouvir. Porque a vida, essa grande narrativa ininterrupta, nunca deixa de acontecer.

Entrevista Adelina Barradas de Oliveira

Quem lê a “Justiça com A” sabe quem é Adelina Barradas de Oliveira, a diretora da revista que teve a sua primeira edição em 2014. Ainda te lembras do que dizias no editorial da primeira edição?

Esta é a 1ª Edição de muitas que estão para vir na nossa e na vossa companhia. Um espaço diferente e em frente. Enfrente-o.

Contavas que passados dez anos, aquela revistinha em “PDF” viesse a ser o que é hoje?

Não contava, sinceramente não contava. Acho que demos grandes passos, fizemos grandes coisas, abrimos as portas a outras visões outros saberes, aprendemos muito, partilhámos e partilharam muito connosco. Também nos abriram as portas e escutaram o que tínhamos para dizer. Criámos muito, às vezes é como se para criar fosse preciso reunirmo-nos ou provocar as ideias e a imaginação os outros e depois, acontece tudo em catadupa, numa cascata de ideias como um Brainstorming. Temos dois números de coleção em papel, fazemos Colóquios sobre temas da atualidade, com quem estuda e estudamos para podermos estar à altura.

A “revistinha” passou a ser um espaço de criação, é polémica e é bonita e inteligente e consegue não ter tendências. Gosto!

Dizias assim:

(...)assumem ainda que, sendo Magistradas têm um dever de reserva que respeitarão. Declaram desde já que não renunciarão à sua liberdade de expressão e de opinião. Assumimos também que o mutismo e secretismo do exercício da função de julgar não dignificam a Justiça. Entendemos que, numa era que é a da comunicação, continuar fechado, de rosto encoberto e sem exercer a cidadania, não nos serve a nós magistradas e magistrados. Por isso, nasce este espaço comunicacional em que a opinião de cada um tem o seu valor ainda que não seja a nossa.

Juntas homens e mulheres, mas achas que foi por ser mulher que nasceu a “Justiça com A”?

Acho que não tem a ver com género, mas, sinto que se não fosse uma mulher a querer, e sermos na maioria mulheres, não teríamos sido tão atrevidas e inovadoras, talvez não tivéssemos sido tão desconcertantes.

Entrevista

A JustiçA com A é “fora da caixa”, a tendência é não ter tendências, o Norte é a total liberdade de expressão e opinião. Cada um assume o que afirma. E vimos que isso era bom. De uma palavra Grande escolhemos a última letra, porque a nossa tendência é não ter tendências e a tendência seria começar pelo “J” quando , afinal, tudo está na verdade com que acaba, o “A”. Se tivéssemos de ter alguma tendência seria pelos últimos, pelos mais desfavorecidos, pelos injustiçados. Mas não temos. A JustiçA com A nasceu de uma mulher e de várias outras mulheres, tem no seu núcleo duro mais mulheres que homens, mas junta homens e mulheres, todos eles riquíssimos em partilhas. Será a JustiçA com A um gineceu universalista?

Alguma referência positiva ou negativa do mundo da Justiça ou de outro campo que te tenha levado à escolha de ser Juíza?

De onde vem o curso de direito e a vontade de ser Juíza? Alguma coisa lá atrás, na infância, que ajude a explicar esta vocação?

Não me vais dizer que décadas na judicatura não é por vocação!...

Se se pode chamar Vocação a um bichinho que cresce em nós desde pequenos, o de poder fazer justiça,... Lembro-me de adorar filmes a preto e branco em que os “maus” quase venciam e os bons venciam sempre e, lembrome de um amigo do meu pai que era Juiz e um dia regressou de uma enorme viagem que fizera. Lembro-me da conversa dele e de dizer

que tinha atravessado o deserto, e não era em sentido figurado. Dizia ele que

precisara de andar pelo deserto sozinho, não os 40 dias de Cristo, mas os necessários para se encontrar e assim perceber os porquês dos outros... e eu percebi que aquele homem era o meu ideal de Justiça e era livre. Tinha uma forma serena de falar e era tão simples como o homem das sandálias do pescador. Decidi, pois, que, em vez de advogada eu queria ser Juiz. Mas, as mulheres não eram aceites no seio da Magistratura Judicial... E eu era tão pequena e sentia tanta revolta...jurei a mim mesma que lá chegaria, nem que fosse muito velha, porque o Juiz era aquele ser acima de tudo, ainda que perdido no deserto em busca de si mesmo e da Justiça.

O que me levou a sê-lo? A Injustiça e desigualdade, a sede e fome de justiça. Ainda hoje existem, ainda não desisti, ainda não consegui atingir o ideal que me impulsionou desde sempre. E lá fiz eu os meus 40 dias / anos de caminhada no deserto de uma carreira que me ensinou muito sobre o Outro, mas em que ainda não aprendi quase nada sobre o Todo.

Sendo Juíza presumo que nunca sentiste que tivesses menos autoridade por ser mulher. Mas em alguma ocasião aconteceu algo que tu atribuas ao facto de teres nascido mulher?

Sendo Juíza nunca senti menos autoridade ou menos liberdade de decisão ou qualquer desrespeito pelas minhas decisões. Por acaso lembro-me de um episódio em

Entrevista

que me pediram para me afastar de um processo de que era titular por ser mulher e mãe. Reagi mal, muito mal, essa condição, não podia ser uma razão para me afastar de uma decisão que de acordo com o princípio do juiz natural eu deveria proferir. Porem em causa a minha imparcialidade por razões de género foi das coisas que mais retrógradas que me aconteceu e aí senti a violação aos princípios constitucionais e imaginei a escolha de juízes pela cor dos olhos, talvez ainda pela cor da pele. Insustentável.

Há muitas decisões difíceis? O que é mais complicado? A decisão ou a fundamentação?

Não há decisões difíceis, há decisões mais demoradas, ou porque exigem mais estudo, ou porque os julgamentos são mais prolongados e a decisão demora a chegar.

Até à decisão é difícil, o caminho até lá por vezes é escabroso, é lento, é tortuoso. Mas a decisão em si, uma vez tomada é fácil, é tomada em consciência, na posse de todos os dados necessários. A Decisão é quase intuitiva embora sempre conjugada com a prova.

A Fundamentação é mais difícil, exige uma transparência de raciocínio que deve legitimar a decisão e convencer das razões da mesma.

O excesso de processos e de vidas, de alguma forma, a resolver já não é só um problema da Primeira Instância. Os Juízes nos Tribunais da Relação estão cheios de trabalho, não estão? E parece que os processos e métodos de

trabalho se mantêm. O sistema espera mesmo que o cérebro e o coração dos Juízes seja elástico, a ponto de aguentar tanta pressão, de fazer, de fazer rápido e de fazer bem? Como convive uma Juíza Desembargadora com estes tempos?

Convive,... sendo certo que, trabalho hoje muito mais em comparação com o que trabalhava quando iniciei a carreira há 40 anos e encontrava tribunais afundados por falta de juízes e em que tudo era manuscrito.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por exemplo, tem processos grandes, mediáticos e não tem só um ou dois, tem muitos. A resposta tem de ser célere em todos os processos, e tem de ser certa, e ter qualidade técnica. Somos poucos para tantos processos. Temos qualidade técnica, mas não temos tempo e temos de decidir. E não podemos esquecer o velho ditado de que “depressa e bem há pouco quem”, embora estiquemos o tempo, as ideias, o saber e o coração.

Precisamos de ser mais.

Os Juízes conhecem o sistema de justiça como ninguém, assim como os seus atores. Enquanto Juíza com tantos anos de experiência, que reflexão fazes sobre sistema de justiça? Qual o top 3 de mudanças urgentes?

Tantos anos de carreira, são muitos, atingi o exigível e parece que ainda ontem comecei. Não sinto grande evolução nestes anos todos a não

ser em termos informáticos que, a meu ver ainda não estão aperfeiçoados e, se facilitam a quantidade, não ajudam a qualidade.

Isso implica uma maior resposta da Justiça, mas, tendo em conta que o crime de hoje não é o crime de ontem e os processos são cada vez mais complexos e vastos, o que se poderia ganhar em celeridade acabou por se continuar a perder em qualidade. Precisamos de ser mais numerosos e ter programas informáticos que façam o trabalho de assessores.

Outra coisa que venho notando é que estamos a perder os rituais necessários à administração da justiça, a facilitar a imagem que deve permanecer da justiça, não no sentido do endeusamento, mas no sentido da imparcialidade e distância necessárias a uma boa decisão.

Há pormenores, que podem parecer pormenores e não são. Dar um número a um Juiz, juiz 2, Juiz 6 , Juiz 12, é maquiavélico. 2º Juízo, 6º Juízo ou 12º Juízo era o certo.

Nós não somos números nem os utentes da justiça o são.

Mudanças urgentes?

Formar e nomear mais juízes

Afastar as sentenças longas e repetitivas, ou seja,

alterar a forma e acabar com as fundamentações cheias de citações

TOP 3? Não sei... talvez chegar ao Tribunal da Relação com 40 anos e ao STJ com 56.

Há uma grande diferença e essa é inquestionável e excelente, são muitas, e mais, as mulheres que desempenham estas funções.

Às vezes, o tempo não chega para viver fora dos processos. Quando consegues, o que escolhes fazer?

Ler, escrever, ir até ao mar, sair com a família, viajar, beber a Vida lá fora, observá-la, aprendêla e apreendê-la.

Temos uma Juíza que também é poeta. Nos teus poemas o mar está muito presente. É possível explicar a importância do mar na vida da Adelina pessoa e na Adelina Juíza?

O Mar, o som e o cheiro, a própria imagem de infinito são o meu equilíbrio necessário. Somos 70% de água... será por isso? A Adelina pessoa /Juíza é a mesma dos tais 70% de água, o Mar faz falta a ambas para olharem o infinito e terem a sensação de que não há limites que se possam interpor entre mim e aplicação da lei com vista ao conseguir a justiça do caso concreto, e depois, não há limites no respirar a praia e limpar o espírito. Junto ao mar sou livre.

É essa condição que quero manter como mulher e Juíza.

TRAÇOS DE OUTONO

José Luis Outono

VI

Por entre olhares de céus pragmáticos na sua ciência matemática de evolução, as agendas deste Mundo ligeiramente achatado nos pólos viram páginas confusas de interesses  muito próprios e bem escondidos.

Dizem as ciências conseguidas em séculos de estudos, que … amanhã poderá ser um ontem … ou até  um mero parágrafo de análise.

Perguntam os humanos, pelos oxigénios da vivência e a catástrofe por enredos insólitos queima as vontades de “livros” inseguros talvez rasgos planetários comandados por  guerras vazias e injustas … onde crianças  choram o não saber dos calendários seguintes!

Custa acreditar, que a PAZ seja criticada por arremessos insípidos num jogo  do logo se vê … talvez … será?

Nos diários do viver, as páginas amarrotam-se  de pontos interrogativos, e os gritos sociais deturpam-se em reticências sem definição. Curioso, hoje ornamentam-se gritos de PAZ nos vínculos de frente a frente programados, e nos minutos da assinatura vinculativa as balas fazem greve pela não continuidade enquanto o sangue coagula esperas mentirosas. Horrenda tela, que grita haver beleza exposta em traços enganadores … e mesmo assim bem caros e negociados!

RÉ EM CAUSA PRÓPRIA

Diziam que era a data do Alinhamento dos Planetas, aquele dia em que tudo poderia acontecer de bom!

E, logo no dia do Alinhamento Planetário eles desalinharam-se. Eles, os conflitos militares, a vontade de fazer a Paz (palavra gasta), os acordos fantásticos à volta das terras raras, dos drones, do titânio e do urânio.

É que as terras raras não são assim como que uns terrenos cheios de pedras semi preciosas de um conto de fadas. As terras raras, para além disso, são indispensáveis ao fabrico de veículos elétricos, turbinas eólicas e baterias de longa duração. Ah mas os veículos elétricos não têm futuro! E os a combustão poluem muito! E até estão a ter lugar manifestações contra as manias elétricas do Elon Musk o homem que circula em T shirt na Casa Branca onde não gostaram de ver circular a farda do Zelensky .

As terras raras não têm nada a ver com o Senhor dos Anéis de Tolkien, escrito entre 1937 e 1949, durante a Segunda Guerra Mundial, ou será que têm? Será que se poderá estabelecer uma ligação entre a Terceira Era da Terra

Média caracterizada pela luta contra o mal que alastrava, luta essa traduzida em conflitos entre raças estranhas com o fim de evitar que o Anel do Poder (que funcionaria conforme estatura psicológica do ser que o usasse), voltasse às mãos de seu criador, o senhor da Guerra , o Senhor Sombrio... .

Provavelmente alguns de nós depois de conhecermos melhor as linhas de pensamento do filólogo e professor universitário que escreveu a trilogia e, depois de a ler e a ver no cinema, poderiam estabelecer uma ligação entre a obra e a situação política atual. Mas isso, se calhar, só acontecerá aos que têm muita imaginação ou são apologistas das teorias da conspiração... como eu... .

Voltando às terras raras, atentem que o Presidente Ucraniano foi alertando, os presentes na conferência de imprensa, para a qualidade dos drones Ucranianos... Afinal a troca interessa tanto aos EUA como à Ucrânia. E será que aos restantes só interessará a tal palavra gasta - Paz?! Ou interessa também à Europa uma excelente ligação com a Ucrânia já que se fala em rearmamento? E à Europa interessa mais o que

se gasta com o gaz russo ou com os caças que se podem comprar com esse dinheiro?

Desiludam-se se estão a pensar que, nestes jogos de interesses, estão muito preocupados com os que estão a morrer neste momento na frente de batalha. Não nego que há quem se convença que morre pela Pátria, mas, ou é da idade que já vou tendo ou do que já fui lendo e vendo, que me ocorre que o que interessa é a segurança, a segurança dos continentes , uns contra os outros, a segurança económica, a riqueza, a IA.

E não sei se à mesa do Mundo não se fala, ou não se deve falar, das entrelinhas de um acordo e, falando-se, deve colocar-se gravata... ou arrancá-la e percebermos finalmente que o que vai acontecer é aumentar a “segurança” bélica dos Continentes e que as terras raras serão exploradas e administradas por aves raras e, a indústria da Guerra vai criar postos de trabalho... poluição e mortos.

Há muitos milhões de euros 150.000 milhões (acho que nem sei contar tanto dinheiro!) e endividamentos através de clausulas de escape. Gerar riqueza?! A quem? Não sei porque eu até nem percebo nada destas finanças.

Mas não estamos sozinhos, a Noruega vai avançar com um fundo de reserva com tantos zeros que fico com a vista trémula!

Ah vamos ficar a perder, faremos parte daqueles que não se armaram na percentagem prevista por Trump para lhes ser garantida segurança e cooperação.

Talvez não, porque temos empresas portuguesas a desenvolver drones, aeronaves e satélites, portanto, o senhor que não usa gravata e foi invadido pelo poder do Czar, tem 1,70m e não tem jeito nenhum para negociar porque é demasiado transparente, interessa-nos muito! O

estarmos ao lado de Zelensky significa partilhar dessas tais Terras Raras que tanta falta farão num futuro próximo, cheio de tecnologia e “segurança” e cada vez mais ameaçado.

Lembrei-me de repente que Emmanuel Macron, Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, são todos baixos, Ursula von der Leyen é um bocadinho mais baixa mas, resolve a diferença de saltos altos mas, todos têm em mente medidas altamente ambiciosas....

A futura ordem geopolítica mundial passa por aqui e por estes senhores e senhora e por Trump, com certeza, e Elon Musk pois claro. Só espero que a próxima reunião com ou sem gravatas, realizada em local neutro apenas entre Presidentes (em que um Vice com ambição a Presidente dos EUA não possa ter intervenção), traga Paz ao Mundo redondo que é o Planeta Terra que, mais uma vez, pacientemente, vai contribuir para o financiamento de meios que só servirão à sua destruição se o Anel do Poder não estiver no dedo certo.

As coisas que salvam o dia

Quando o silêncio toma conta da rua onde moro surge uma lua laranja. A primeira vez que a vi pensei que sonhava. Deitada no sofá afastei os olhos do ecrã e lá estava ela. Pequena, redonda, calorosa, difundindo um sentimento de conforto para quem a vê ao longe. Esfreguei os olhos, afastando a ideia de que estava num sonho. Não era o caso. A luz estava ali

Numa sala recortada por uma janela paralela à minha, alguém tinha marte em cima da mesa. Ou um sol a preparar-se para ir dormir como o vemos naqueles segundos preciosos antes de se pôr. Ou talvez fosse uma lua em tons laranja companhia reconfortante de noites hibernas que se seguem a dias pardos com chuva e vento a condizer.

A luz que iluminava o escuro chegou-me travestida de mistério. Senti-lhe a propensão para a aventura. Dei a minha sala à escuridão e fiquei a observar aquele pedaço de beleza oferecido pelo anónimo vizinho da frente, insuspeito de que a sua escolha de candeeiro me enche de misteriosa alegria. E assim, neste Inverno quando o escuro vem, fico sentada a ver a luz (só ela me interessa) e a pensar em quantas histórias podem começar assim, com uma claridade misteriosa do outro lado da rua.

Uma história de amor, claro, imaginando que a luz acesa espera a amada que não chegou ainda a casa.

Um conto existencial com um twist esotérico, em que um sábio com olhos de criança procura num compêndio alquímico ainda e outra vez o segredo para fabricar ouro.

Um romance de espionagem, em que o candeeiro com luz laranja e forma redonda assinala a casa insuspeita onde estão os alvos da vigilância.

Uma história de solidão, em que a luz quente serve para contrariar a frieza dos dias de quem habita a casa.

Numa destas noites ocorreu-me procurar uma música para acompanhar a luz.

Depois de várias tentativas, encontrei uma música que nesse dia se casou na perfeição com a tepidez laranja que assomava tímida da sua janela. Ouvi-a uma e outra vez. Devagar, sem precipitações, com a segurança das grandes, Kiri Te Kanawa, cantou Nacht und Träume, D 827, de uma das canções de Schubert. Noite e Sonhos, uma combinação sem mácula. Porque enquanto ouvia Kanawa ocorreu-me que talvez o mundo tenha sido sempre assim como hoje o vemos. Cheio de guerras, dores, crianças sacrificadas e animais maltratados. Ou talvez tudo isto sejam sinais dos tempos, de uma nova escala de valores mais exigente e mais frágil na sua construção. Sim, talvez estejamos a viver tempos de transição. Gosto de pensar assim, confesso.

Certo é que se exige de cada um de nós empatia, reconhecimento do sofrimento dos outros, macro e micro, indignar-se com as dores alheias. O recusar embrutecer mesmo que saibamos que o embotamento dos sentidos muitas vezes não é se não uma forma de nos protegermos do sentimento de impotência. Em toda a luta, é preciso descansar, uma espécie de time-out entre nós e mundo. Para voltarmos à carga. E é aí que se compreende a importância das coisas que nos salvam e que são muitas vezes imprevistas. Como a alegria infantil que sinto quando vejo da minha sala um candeeiro com luz laranja que não escolhi, mas parece estar aqui para me recordar uma lua mágica à beira da qual podemos viver muitas histórias com altos e baixos, lágrimas e dores, mas a fecharem com um final feliz.

Carla Coelho FLORES NA ABISSÍNIA

1. O HOMEM DE AREIA

Jon Fosse

Longe vão os tempos em que o romance policial terminava com uma sensação de apaziguamento para o leitor face ao castigo do mau (por vezes antecedido da sua revelação de modo teatral, como sucedia nos livros protagonizados por Poirot) e reparação da paz social. Hoje, e sobretudo se estivermos no mundo dos autores nórdicos, terminamos a leitura em desassossego. Este O Homem de Areia é disso exemplo. Desde logo pelo modus operandi do criminoso, um serial killer com uma metodologia muito particular e aterradora, mesmo na escala de um universo já feito, por definição, de coisas assustadoras. Depois, pelo caminho que leva a investigação que entre agentes infiltrados no meio prisional e um psicopata que parece prever cada passo da polícia, nos deixa de coração nas mãos. E por fim pelas páginas finais quando o que parecia ser a resolução do caso acaba por sofrer uma reviravolta que nos corta a respiração por instantes. Este é um livro de acção com uma trama bem urdida. Quando fechamos o livro pensamos que não pode mesmo acabar assim, tem de haver uma continuação. Será?

Recomendação de Carla Coelho

2.OLHOS GASTOS

Pedro Cabeça

Uma escrita transparente como o homem que a escreve, apaixonada ou dorida, reflexiva, violenta às vezes, de tanta paixão, angustiada, mas sempre transparente, como um reviver ou uma catarse.

Neste livro não se escreve apenas, não se alinham só as palavras em sentimentos, neste livro, o autor despe-se e, perdendo o medo mostra-se, liberta-se de um aquário, quebra o vidro da observação alheia e grita, grita-se!

Mais do que um livro é a história de um homem inteiro ... ... “no fim de contas, somos todos peixes num aquário”.

Lemos e ficamos à espera de mais, quem sabe um romance, um ensaio, mais um livro de poemas... mais outro romance... mais outro livro de poemas. Quem tem tanta Vida tem de a escrever... .

Gosto das reticências porque elas nunca terminam nada..

Recomendação de Adelina Barradas de Oliveira

RECOMENDAÇÕES

3. OS DIAS DA BIRMÂNIA

George Orwell

De leitura obrigatória para quem tem saudades da estética do Império Colonial Britânico.

Após a sua leitura perde-se o encanto pelo mesmo. O elogio mais bonito que consigo encontrar para os funcionários/ militares da administração colonial britânica na Birmânia é “cambada de alcoólicos”.

George Orwell, nascido “under the British Raj”, consegue pôr o único ser humano decente naquela terra perdida na Birmânia a pôr termo à vida.

Especial referência para o “Clube Europeu” local onde a sua biblioteca estava carregada de bolor face à humidade e à incapacidade que os seus sócios tinham em ler um livro que fosse e onde a mesa de bilhar tinha que ser limpa vezes sem conta devido aos escaravelhos que nela caíam.

Orwell, nesta obra baseada nas suas experiências pessoais em jeito de exercício para o “Triunfo dos Porcos” faz-nos detestar os jogadores de Polo e os seus cavalos, as caçadas a tigres, os pontapés dados pelos membros do “Clube Europeu” aos empregados do mesmo quando estes não lhes traziam gelo para o seu whisky, o gin que bebiam antes do pequeno-almoço, entre outras coisas, tais como a raiva que sentiam perante todos os outros, os birmaneses em especial. O génio de Orwell, o que escreveu 1984.

Recomendação de João Correia

«MULHERES»: O PRIMEIRO POEMA

O primeiro poema a que Maria Teresa Horta deu o título «Mulheres», foi publicado em 1966 no livro «Jardim de Inverno». Fala-nos de Mulheres sujeitas a uma situação de discriminação absoluta, que só com o novo Código Civil sería atenuada.

Maria Teresa Horta uma desobediente que defendeu sempre o Direito a ser Inteira.

M U L H E R E S

Há nas mulheres o sono duma ausência como uma faca aberta sobre os ombros

à qual a carne adere impaciente cicatrizando já durante o sonho

E há também o estar impaciente calarmos impacientes todo o corpo

Sorrir não devagar claramente lugares inventados sobre os olhos

E há ainda em nós o estar presente diariamente calmas e seguras

mulheres demasiado serenamente nas casas nas camas e nas ruas

E como toda esta herança não chegasse como se ainda quiséssemos aumentá-la fechamos os braços de cansaço como se da vida chegasse o inventá-la

E se do sono nos vem o esquecimento quantas insónias cansamos nós por dentro

(...)

Perante a agonia de um Homem Bom que se cruzou nos nossos caminhos numa Jornada de Jovens que acreditam na Paz, que importância tem um chefe de Estado usar gravata e outro não?

O Hábito não faz mesmo o Monge ... E cada um de nós no seu dia a dia vem aqui partilhar convosco um pedacinho de Primavera que vamos colhendo pelo caminho e nos fazem acreditar que tudo não passará de Jogos de Poder e no fim todos os interesses se encaixarão.

Escrito no final de um Inverno à beira de um ataque de nervos.

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