64º Edição
DEZEMBRO 2024
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Indíce DEZEMBRO 2024
04 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho
08 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues
10 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira
12 ....... Cantinho do João | João Correia
14 ....... Hoje |
Júlia Laura Srecht
16 ....... Human Centered-Design | Vânia Vargues
18 ....... Fotografia |
Fernando Corrêa dos Santos
20 ....... Breve Encontro | Luís Roque Alegria
22 ....... Em defesa da previdência dos advogados(...) | Carlos Pinto de Abreu
24 ....... Promoção da inclusão dos refugiados | Ana Monteiro
28 ....... Da revisibilidade (humana) das decisões automatizadas | Manuel David Masseno
32 ....... Osmose fatal | José Luis Outono
34 ....... Entrevista Ana Gomes | O mar logo ali
38 ....... Zé da Fonte | Licínia Quitério
40 ....... Fotografia |
Fernando Corrêa dos Santos
42 ....... Entre Linhas |
Recomendações literárias
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A
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Editorial
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
Nós já não somos Novidade, não diríamos que somos como o Natal que vem e aquece os corações, aviva os olhares e provoca a imaginação. Não, não diremos, mas nós já não somos Novidade, somos quase como o Natal... Somos como as memórias do Passado, as vontades do Presente e os desejos do Futuro e, mantemos as lInhas que tínhamos no inicio em mente. Sendo uma revista de gente livre e responsável publicamos o que é assumidamente escrito por quem escreve. Assim, teremos este mês um texto que vem falar de um outro texto só porque não tem a linha do mesmo. E como a nossa tendência é não ter tendências somos livres (tanto como os que escrevem), de publicar no corpo da nossa revista todos os textos que têm interesse público, ou interesse mais ou menos lúdico, mais ou menos reflexivo e, que vos puxe para dentro, pode ser da revista, pode ser para dentro de vós mesmos e depois vos vire para fora... do avesso. Acresce que acreditamos tanto na Liberdade de Expressão que aceitamos sem sequer pensar, o Direito de resposta Por isso não se surpreendam ou escandalizem. Dizem que da discussão sai da luz... e é verdade. Este mês temos tantos textos diferentes que começamos pela capa com um postal de Natal que vos fale da Alegria da época e, entre textos que vos chamam, temos outros Natais que também existem paralelamente ao Natal Feliz e enfeitado, e brilhante , e de luzes e de músicas... e que se cruzam com os nossos sentires. Gostávamos de ter uma frase mágica que definisse tudo o que é o Natal, para colocar na capa, para colar nos vossos corações, para vos provocar os olhos e a mente... Mas não temos. Tudo o que queremos é que seja UM FELIZ NATAL porque temos direito a esse pedacinho de céu na terra e o dever de o dar ou oferecer aos outros. Que os 3 espíritos do Natal de Charles Dickens nos acompanhem não para sofrermos ou recuarmos, mas para sabermos que estamos Hoje mais humanos, mais felizes, mais solidários.... Estamos?! Escrito num Natal de Guerras à volta, num pedacinho de terra em Paz, onde podem nascer muitos Meninos Jesus.
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A outra vida de Sebastião Raia (parte 2) Segue, pois, no barco ainda sem crer na aventura que o tragou sem pedir licença. Vê a noite correr de mansinho, o som das águas apenas interrompido pela tosse forte do homem sentado no fundo do barco. A sua tez parece espelhar a lua, ao contrário das duas pessoas que estão sentadas ao lado de Sebastião que se confundem com a noite sem estrelas em que viajam. Enquanto o barco segue lento, o avanço marcado pelo balanço do mar, cada um vai entretido consigo mesmo. Sebastião sente um tal susto que não está assustado. Não tem palavras para descrever o que lhe vai no espírito engolido por uma perplexidade feita de assombro e apreensão.
embarcação, quase desfeito em trilhos de sal que as ondas ali deixam, Sebastião observa o fio de luz da lua que parece indicar o caminho ao barqueiro. Lembra-se então de um dia da sua infância – tão longe, parece a vida de outro! – com o livro aberto em cima da secretária ouvindo a explicação da professora sobre o auto da barca do inferno, do velho Gil Vicente. Que ensinou ela? Já não se recordava... Lembrava-se apenas de três barcas, cada uma recebendo passageiros para três destinos, confirme a viagem preparada em vida. Sacudiu os ombros num impulso. Não tinha sido um santo, claro. Mas não tinha sido tão mau que lhe coubesse o abismo sem vista de O santo que iluminava o redenção. O espírito fugiu-lhe para caminho desapareceu minguada H, recordando - se da sua despedida a tempestade, foi talvez ajudar no que lhe parecia também outra outros navegadores a quem os vida. Olhou então em volta, céus mostraram menos clemência. mirando os seus companheiros Sentado no banco gasto da
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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
de viagem. O homem que o tinha agarrado horas antes, no meio da sua tormentosa chegada à nau, parecia estar dormente. A barba rala era já ainda mais negra que branca, mas o tempo sulcara-lhe o rosto de forma indelével, gravando-lhe séculos para lá dos anos de vida. Ao lado, alguém um pouco mais jovem, mãos no ventre e respiração compassada, olhava o céu em silêncio. Atrás, seguiam mais três companheiros de viagem, o da tosse e outros que murmuravam entre si. Tentou Sebastião entabular conversa, mas a ausência de idiomas comuns levou a que o esforço lhe naufragasse nos lábios, com um ténue sorriso como boia salva vidas. De repetente, o barqueiro fez um movimento rápido e ficaram todos às escuras. A um sinal da sua mão todos se deitaram no chão da barca, em silêncio. Sebastião questionou-se se estariam a chegar ao seu destino, talvez a costa
estivesse escondida pelo breu da noite. Mas não, levantando ligeiramente a cabeça, percebeu que ao lado deles passava um enorme navio, feito de aço e ferro, com janelas de vidro e canhões que lhes saíam do casco. Silêncio, silêncio, que vão passar os senhores do mundo, ouviu-se Sebastião pensar. E não soube de onde lhe tinha vindo este pensamento onde sentiu a ardência da revolta. Como lhe chegou, foi-se levando consigo o navio que o trouxera e que seguiu cego pelo mar. O medo e a raiva, afinal companheiros não de uma, mas antes de muitas vidas, toldavam o espírito de Sebastião. Porque começava a ter uma desconfiança e sentia-se no num limbo depositado entre fios existenciais, ora em desgosto, ora em júbilo, ora temeroso, ora afoito com o que lhe estava a acontecer. Sim, parecia-lhe que iniciava a perceber ainda que tudo lhe parecesse fantástico e digno de um
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daqueles contos das mil e uma noites em que tantas vezes mergulhava ao anoitecer. Também ele agora … - e o fio de pensamento cortou-se-lhe ao ouvir um grito atrás de si, Depois outro e outro ainda, uivos vindos do centro da terra e do princípio do tempo, que fizeram com que todos menos um na barca se levantassem, agitando-a ao ponto de quase os atirar borda fora. O barqueiro, mais uma vez, restaurou a calma. Voltaram a sentar-se e ele aproximou-se de quem gritava, respirando agora ofegante. O gesto de impaciência transmutou-se em lágrimas ao compreender o que se passava. Abriu uma caixa que tinha perto do leme e tirou dois cobertores que colocou no chão do barco, ajudando o passageiro queixoso a deitar-se. E então Sebastião, e com ele todos os outros, perceberam que era uma mulher, com o rosto feito de suor e lágrimas que se preparava para dar à luz. Estranha e bonita expressão, essa, mas não teve tempo para nela filosofar. Pai de cinco filhos e avô de doze netos, tinha acompanhado gente suficiente naquela hora, que se queria pequenina mas que chegava a preencher dias, para saber como ajudar a
parturiente. Ganhou-lhe a confiança a ela e ao barqueiro que deixou no comando da situação enquanto se ocupava de novo do leme e da vigia. Convocou Sebastião todos os conhecimentos que a vida que tinha acabado de deixar lhe tinha dado e que não eram poucos, diga-se, entre vida real, filmes e novelas. Ao nascer do sol sobre o barco, apresentou ao dia, a sua mãe e depois aos demais expectantes, um rapaz roliço feito de ébano e luz. Como chora, pensou Sebastião, não se apercebendo que também ele chorava, contrastado com o silêncio sagrado dos demais ocupantes da barca, timoneiro incluído. Antes de entregar a criança à mãe trocou com ele um olhar, “olá, bebé”, disselhe e pareceu-lhe que também ele lhe sorriu, o que pode ter sido impressão. Terminada a tarefa magna, percebeu a fome a galgar-lhe o espírito, desbravando-o sem dó, nem hesitação. Há horas, sim, que não comia. E mal disse isto sentiu o sabor do leite a passar-lhe nos lábios, bebendo-o
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FLORES NA ABISSÍNIA A outra vida de Sebastião Raia
sofregamente. Quando a mãe o levantou tentou encontrar o homem de pouco antes, aquele que o tinha saudado ao chegar ao mundo. Já não o via no barco, porém. Ali ficou ao colo, envolvido numa manta branca que sua mãe retirou da mochila com uma destreza inesperada para quem tinha passado tão grande transe há tão poucas horas. Adormeceu no momento em que o barqueiro avistava a costa tão almejada. Acordou horas depois, quando sua mãe tinha já tomado o lugar na casa lhe cabia, sentindo-se enfim recomposto da longa viagem empreendida. Um homem alto e esguio, com o sorriso nos olhos a descer para os lábios carnudos, chamava-o “filho querido”, “tesouro” e “gota mais preciosa do seu sangue”. Os olhos escuros de Mohar, assim se chamava agora, percebeu, fixavam as paredes brancas do quarto, as plantas do jardim verdejante que a mãe lhe mostrava perante o olhar encantado do pai, ouvindo a palestra dos pássaros feitos de plumas de cores incandescentes. “É agora esta a minha vida”, pergundizia-se Sebastião ainda presente em Mohar. Mas esse dualidade, adivinhava-o, não iria durar muito. Cada dia que passava, cada conquista da criança, faziam-no crescer por dentro. A pouco e pouco, Sebastião desaparecia. Às vezes, Mohar falava aos pais no amigo, não lhe sabia o nome, mas reconhecia-o ali. Os pais riam-se. Mas um dia, a mãe preocupada contou ao médico as conversas do filho, sobre um homem velho esquecido num jardim feito de verde mesclado de rosa, anil e gemado onde se escutava o chilrear dos pássaros todo o dia sem parar. O médico ouviu-a atentamente. E disse à mãe que o menino tinha um amigo imaginário, coisa normal que com o passar dos anos se diluiu
sem rasto, nem memória. Isto ouviu Sebastião, confirmado. Seguiu o menino enquanto pode, brincando com ele ao pião, a jogar à bola e a correr veloz no triciclo, pois queria acompanhar o mais que pudesse o tempo que lhe restava. E, assim, Mohar ganhou cada vez mais espaço. Aprendeu a andar, a dizer frases completas num idioma que Sebastião nunca tinha sequer ouvido, correu pelos campos semeados de trigo e oliveiras, largou os brinquedos para se entreter com tintas, pincéis e lápis de cor, enterrou sua mãe ainda mal saído da adolescência e acompanhou o pai que se mudou então para a grande cidade que se apresentava branca e doce depois de atravessarem o deserto. Por fim, apenas o pai de Mohar falava de vez em quando no seu velho amigo imaginário, uma vezes para a brincar com o filho, outras para explicar a si mesmo a seriedade que sempre o tinha acompanhado desde tenra idade. Mohar, a seu tempo, deslembrou-se totalmente de Sebastião. Cada experiência vivida lhe soube a novidade, como é direito de todos em cada vida que nos cabe viver. O mergulho nos mares, o sabor do gelado de pistáchio debruado a mel, o exame de matemática ou o anoitecer em Roma quando pela primeira vez se sentou nas escadas da Piazza di Spagna. E tão completo foi o seu olvido que, quando numa tarde de final de Primavera se cruzou com H numa rua da capital italiana onde estava a estudar, pensou, genuinamente, que se apaixonava então pela primeira vez.
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PANO PARA MANGAS Margarida Vargues
E M TO M DE CONFISSÃO Confesso-me num silêncio de olhar cerrado, como se todas as palavras que constroem cenários dentro da minha cabeça fossem as únicas possíveis e verdadeiras. Como se nelas residisse uma única hipótese de penitência, ou talvez de construção de uma realidade onde o que é dito nunca poderá ser desfeito. Confesso? Não… Não tenho nada a confessar.
E, no entanto, esta liberdade nunca chega sem amarras. Como se cada escolha fosse uma algema dourada, bela mas limitadora. Preferia soltar estes devaneios, afinal, como diz o ditado, palavras levaas o vento, ou se escritas no papel podem acabar fugidas numa enxurrada ou destruídas pelo poder do fogo. Os quatro elementos. Sempre.
Até porque esta palavra, dita, escrita, pensada, imaginada num contexto sem som, ecoa ao pecado que a religião nos faz crer existir nos mais pequenos devaneios diários. Parece ser tudo inapropriado a uma realidade que se diz livre. Livre para se amar quem se quiser. Livre para se ser quem se desejar. Livre para se ser feliz. Livre para se deixar mergulhar na amargura em que (não) nos podemos transformar.
O ar. A água. O fogo. A terra. E a terra?
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A terra é onde quero viver as tais pequenas fantasias diárias que tendo a ocultar nas confissões silenciosas. A terra, ao contrário do vento que se dispersa ou do fogo que consome, parece-me a única que pode sustentar o peso do que somos e das palavras que dizemos. Mas até ela, com o tempo, esgota-se, quebra-se, transforma-se noutra coisa que não sabemos, muitas vezes, o que é.
Há um ponto de encontro, um limbo, onde as linhas do amor e do ódio se cruzam, como num desenho geométrico perfeito, mas cruel. Os anos transformam a vida num labirinto de encontros e desencontros. Visto de cima, poderíamos saber onde estamos, quem vem na nossa direção ou quem caminha à nossa frente a uma distância segura para que se evite um choque em cadeia. É um emaranhado que nos chega sem a tecnologia de ponta de um GPS. É um espaço onde os limites O tempo, senhor de tudo isto, terá o trabalho de se encontram com a ciência, mas de onde ninguém as fazer esquecer ou de as tornar grandes. Pouco sai ileso. importa. São confissões que, depois de partir, já não me poderão causar qualquer prejuízo. Mas pergunto-me: que preço pagamos por esquecer? E, O labirinto dá sentido à vida? E as confissões e se crescerem, que impacto terão no que sou? devaneios conferem-lhe som? Acomodo-me. Ou não.
Talvez sim. Que cada curva inesperada, cada confissão sussurrada ou gritada, são os ecos que enchem o seu vazio e o tiram da escuridão.
Solto as confissões. Transformo-as. Tiro-lhes o O que faz, então, aqui o amor e o ódio, peso do pecado e faço com que se tornem mel aos ouvidos de quem as recebe. E o prejuízo que não amarrados ao mesmo porto? O porto do medo de se vive no esquecimento? Aceito-o na liberdade de amar. O porto do receio de odiar. Lutam, ambos, pelo mesmo barco, enquanto o mantêm à deriva ser quem sou. Em quem me transformo. no labirinto da vida. Mudo, apenas o tom.
E, aí, vislumbra-se algo mais. De um destino, ou pelo menos de uma ideia de destino. Não é Digo-te, com o coração na alma, o quanto te um fim - porque finais são definitivos - mas talvez uma pausa. Um momento em que as confissões amo, mas que me amo mais ainda. se tornam não num peso, mas numa ponte. Uma Digo-te o fel do quanto te odeio e que esse ódio forma de atravessar as águas turvas e chegar ao me corrói as entranhas. outra margem. Digo-te que amor e ódio são opostos que se atraem e que me afastam do tom confessional. Lá, espero encontrar a terra novamente. E nela, as sementes dos meus devaneios, antes sufocados, O amor, enquanto tal, é tão rebelde quanto o terão espaço para crescer. E talvez, só talvez, o ódio que se cola ao corpo, à alma, à vida. Ambos vento que antes levava as palavras seja agora a brisa têm o poder de me transformar. Em boa ou má que as faz florescer. pessoa? Isso pouco importa. Consigo aniquilarme pelo amor que sinto e é-me possível sobreviver no seu oposto.
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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira
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O Natal é um Gineceu Sentou-se, a mesa estava fantástica, branca e dourada, cheia de pormenores da data natalícia Trouxera consigo o bolo de laranja, costume antigo de todos os invernos desde pequena. Sabia que a ceia seria espartana, mas rica, porque o bacalhau com todos era o seu prato preferido de Natal. Não havia nenhum outro prato que lhe soubesse a tanto e a tão pouco. E os doces tinham as memórias da infância e dos rituais em família cheios de receitas antigas... Lá fora tinha o silêncio da noite fria, porque só seria Natal se houvesse frio... E os olhos desceram para os pensamentos e as imagens do dia.... Era Natal, mas em Lisboa ainda havia os sem abrigo... passara nos Restauradores antes de vir para casa e vira-os deitados sobre cartões tapados com jornais cozidos a roupas velhas... Ainda havia os que procuravam vida no seu país e viviam em casas apinhadas de esperança e frio lá dentro Era Natal mas havia guerras, ... no seu telemóvel eram constantes as imagens via Instagram, os campos de refugiados, as crianças sujas e chorosas... Era Natal mas morrera alguém que era caro aos seus e os serviços de urgência estavam fechados, na véspera de Natal... - Vamos lá menina - disse alguém, - Hoje não é dia de estar pensativa. Vamos lá abrir o coração e partilhar porque temos direito a ser felizes, fazemos por isso, fizemos sempre por isso. Era verdade, fizéramos sempre pela nossa
felicidade e nunca tínhamos impedido a dos outros. Branco ou tinto? Branco, muito frio, pode ser, aquece a alma. Havia sempre aquele dilema do ser feliz enquanto os outros não são, do vamos brincar e dançar “enquanto o lobo não vem”. Sinatra cantava na sala, preso à coluna de som e invadia-a de memórias. A mesa tinha aumentado, era sinal de festa, e tinham mesa e comida e podiam partilhar o quentinho da casa... Mas faltavam os pais ,faltava a felicidade do pai de os ver todos juntos ainda que poucos, e a azáfama da mãe para que tudo fosse perfeito. O Natal era só uma palavra ou era muitas memórias? Olhou as outras mulheres e percebeu que o Natal era feito de mulheres, elas não andavam lá fora a gritar slogans ou a agitar bandeiras, tinham os filhos para cuidar e os brinquedos para encomendar... eram elas que se lembravam das cartas ao pai natal, de arrumar e desarrumar o presépio todos os anos, eram elas que escolhiam as bolinhas de Natal para a árvore, eram elas que separavam as roupas para a noite e para o dia, para o Natal, que faziam as receitas das avós... Eram elas que escolhiam as toalhas, dobravam os guardanapos, dispunham as mesas brancas e cristalinas de Natal, que tinham lugar para todos , talheres para todos, prato para todos.... Eram elas que mal comiam para que tudo estivesse a tempo e horas e sempre bem.... Esqueceu o Androceu lá fora, de repente tornara-se feminista ou coisa que o valha. Olhou a mesa, o vinho branco no copo, as últimas indicações das mulheres.... Todos se sentaram, ... faltava a água e a travessa do grão… Ela levantou-se e trouxe tudo o que ainda faltava.... O Natal era um Gineceu...
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CANTINHO DO JOÃO João Correia
Pequenos apontamentos sobre o Mindelo (os quais comportam em si o potencial de uma morna de Cabo Verde).
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O Mar é difícil (sim, o “M” maiúsculo não foi erro). Complicado mergulhar no Djeu (ilhéu dos pássaros). Não admira que aquele mar esteja pejado de destroços. Foi como mergulhar numa máquina de lavar a roupa, ou seja, complexo. Se associarmos isso ao facto de estarmos literalmente no meio do oceano tudo se torna um pouco mais assustador (na pior das hipóteses vamos parar ao Senegal). Trânsito ordeiro, os condutores param nas passadeiras e os motociclistas circulam de capacete. Conduzir é viável por aquelas bandas ao contrário do que ouço dizer de outros países de África. Excepção feita para os adolescentes que faziam “cavalinhos” de mota, na rua para onde dava a janela da casa onde dormi, sem ar condicionado e em que toda a humidade do ar (sim, toda), à noite, mitigada por uma poderosa ventoinha pendurada no teto, obrigava-nos a dormir de janela aberta. O Mindelo assemelha-se a Olhão antes de este se ter aberto ao turismo, com a sua arquitetura e simplicidade. Muitos cafés antigos com nomes portugueses, tais como “Pastelaria Algarve” (local muito simpático onde se anunciavam “aulas de violão”, entre outros eventos culturais, como Stand Up Comedy em crioulo), Café Império (onde fui o único cliente), e a Pastelaria Morabeza (mais conhecida como a pastelaria portuguesa, onde se podem comprar pasteis de nata e bolas de Berlim, ou comer uma
cachupa ao pequeno almoço, caso se prefira). Esta última abre às seis da manhã, ou seja, recolhe todo “o pessoal da noite”, por isso, pouco recomendável para tomar pequeno almoço num domingo de manhã cedo (a não ser que se chegue directamente “da noite”, o que não foi o meu caso) pois o pessoal ainda está “animado”. Marginal encantadora que começa no mercado do peixe e termina no porto cujos ferries nos transportam para todas as outras ilhas. A baía é invulgarmente bonita e as condições de abrigo justificam a existência daquela cidade, naquele local. Mais uma vez a humidade. Muitas estátuas e edifícios portugueses. Lidam bem com o passado colonial, ou seja, não as destruíram. Têm uma réplica da torre de Belém, construída pelos portugueses para servir de capitania e que, hoje em dia, é um museu. Consomem o nosso futebol com paixão, os três grandes clubes portugueses geram fervor neste local. Casamentos. Agosto é mês de casamentos no Mindelo, igrejas cheias com os casamentos, muitos cortejos de carros na rua a celebrar os casamentos e hotéis com jardins sempre cheios com festas de casamento. Lá, como cá. Emigrantes cabo-verdianos regressam em Agosto, para casar. Mercado de rua pejado de senegaleses, estes são imigrantes em Cabo Verde, alfaiates de rua, vende-se tudo. Compra-se tudo. Encomendei uma camisa por
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medida, em tecido africano, correu bem. Seguiu o plano à risca, mas com o padrão africano. Humidade. O que falta em chuva sobra em humidade. Acho que tenho um problema com os trópicos, fico com a sensação de estar, permanentemente, a tentar fazer uma vida normal, mas dentro de um banho turco. Talvez um dia me habitue. Cachupa ao jantar e ao pequeno almoço (cachupa de ontem). Comi tantas que as posso avaliar. A melhor de todas na Pastelaria Sissi no Mindelo, seguida pela feita pela Dona Mimi, na casa onde esta habita e sita num lugarejo chamado “João Afonso”, em Santo Antão, e por fim, a da residencial onde tomávamos o pequeno almoço no Mindelo, por vezes acompanhados de uma equipa de futebol sub-19, de Santiago, chamada “Bola para a frente” que, apesar do nosso apoio e torcida, perdeu os dois jogos do campeonato inter-ilhas que se propuseram a ganhar. Contingências da vida. O regresso de Santo Antão para Mindelo em São Vicente. Fiquei com a sensação de estar a chegar a Nova Iorque, depois de vários dias a fazer trekking em Santo Antão (pequeno paraíso). Chuva, a maior bênção de Djá.
HOJE Queria tanto que o sol aquecesse.
Queria tanto ter jeito p’rá música, ter um piano de cauda na sala, onde pudesse tocar a Queria tanto que o brilho do sol fosse para mais bela das melodias. todos, que não se escondesse como às vezes é seu costume. Queria tanto que a riqueza fosse mais equilibrada, pão para todos e uma melhor Queria tanto que os abraços curassem, o saúde também. mundo precisa de abraços Queria tanto ver muitos sorrisos, eles confortam e podem Queria tanto saber nadar, sim nadar, porque curar também. nadar às vezes dá um jeitão do caraças. Queria tanto, mas tanto ver as crianças Queria tanto ver borboletas, nunca mais felizes a viver num mundo sem fome e sem vi borboletas, sabem o que lhes aconteceu? guerra, sem sofrerem maus-tratos, a correr e Cada uma mais bonita que a outra. saltar, a irradiar felicidade. Queria tanto ouvir o chilrear dos pássaros Queria tanto, mas tanto que as mulheres não e ver o desabrochar das flores, ver parques fossem violentadas, que pudessem abraçar a verdejantes, ver um planeta melhor. liberdade, que pudessem fazer as suas escolhas e como li algures “a liberdade da mulher é a Queria tanto um mundo melhor, ah... só medida de evolução de uma sociedade” – uma queria um mundo onde o Amor fosse palavra frase acertada. de ordem, sim porque o Amor é uma arma sem precedentes. Queria tanto que a velhice não fosse solidão e maus-tratos, só porque sim, que os 80, 90 Queria tanto que o Amor salvasse o mundo! e quiçá 100 anos fossem só um número e que as pessoas ao seu redor lhes pudessem proporcionar o que a vida tem de melhor – Amor.
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Júlia Strecht Júlia Laura Strecht, nasceu em Malanje – Angola no seio de uma família feliz e que sempre se pautou pelos melhores valores éticos e morais, sendo essa a educação que recebeu. Cedo começou a viajar com os seus pais e irmãos, e são muitas as memórias que guarda. Conhecer outros países, outras culturas, tem sido, sem dúvida, uma experiência enriquecedora e que tem feito a diferença, quer a nível pessoal, quer a nível profissional, tendo sido uma grande aprendizagem, ao mesmo tempo divertido. O lado humano é o que mais a preocupa e sempre que lhe é possível, está pronta a ajudar. Mulher de muitas paixões, é mãe de três raparigas e um rapaz e três netas maravilhosas que fazem as suas delícias. Na vida, procura ser sempre mais observadora e tem como lema – falar centímetros e pensar quilómetros. Adora música, cozinhar e sobretudo a companhia de um livro para ler.
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Vânia Vargues
Human-Centered Design e a Evolução NA JUSTIÇA PORTUGUESA A História ensina-nos que a mudança é inevitável. E no universo da Justiça não poderia ser diferente, embora a mudança visível aos civis seja muitas vezes na sequência da mudança social. À medida que avançamos para uma sociedade mais inclusiva e orientada para o cidadão, surge a necessidade de repensar a forma como o direito é comunicado, compreendido e aplicado. Falemos então sobre Human-Centered Design (Design Centrado no Ser Humano), uma abordagem que coloca
as necessidades e experiências das pessoas no centro do processo de design - seja design de produtos, serviços ou sistemas. Imagine-se, por um momento, um cidadão comum a tentar compreender um comunicado da Segurança Social ou da Finanças, um documento legal ou a navegar pelo labirinto burocrático dos tribunais. A linguagem rebuscada, os termos técnicos e a complexidade dos procedimentos tornam esta experiência intimidante e desafiadora para a
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maioria da população, mesmo para aqueles com literacia mais elevada. Haverá soluções para este cenário, sem ter que formar toda a população em Direito? Será possível melhorar a experiência das pessoas? Podemos ter uma espécie de tradutor de “legalês” para português corrente? Podemos ter um site do Diário da República mais user friendly e sem ter de recorrer ao Tretas (https://dre.tretas.org/) ou ao Informador Fiscal (https://informador.pt/)? Sim, claro que sim! Sim, é possível identificar problemas, pensar em potenciais soluções, prototipá-las, testá-las e implementá-las - ou seja, através de um processo de design. Demos um passo atrás, para contextualizar. Então o Design não é só “coisas bonitas”? Existem vários tipos ou Ordens do Design*, por exemplo:
fim simplificar e tornar acessível a informação legal, e resolver questões do universo jurídico, com foco no utilizador, e tangibiliza-se pela interseção entre Design, Tecnologia e Direito. Neste contexto, a empatia é rainha, e o Legal Design aplicase sobretudo no que toca ao atendimento e à compreensão de problemas de cidadãos/utentes. Não se pretende que a “experiência do cliente” seja como num hotel de cinco estrelas e sejam servidos chocolates e champanhe, mas sim que seja mais simples, útil, e eficiente para todos, sejam cidadãos/ utentes, os funcionários, ou os fornecedores. Estas abordagens human-centered são aplicadas sobretudo a produtos e serviços, e em Portugal temos a Agência para a Modernização Administrativa (AMA) e o LabX (https://labx. gov.pt/) , e um exemplo é o projeto do “Balcão Óbito”, desenvolvido com o objetivo de simplificar e tornar mais humanizada a experiência de lidar com as burocracias associadas ao falecimento de um familiar. O LabX conta com uma equipa multidisciplinar em ação, e até disponibiliza ferramentas para ajudar a conduzir a transformação (https://labx.gov.pt/ destaques-posts/toolkit-para-servicos-publicoscentrados-no-cidadao/). Em todo o processo (sequência de fases) de Legal Design, diria que o aspeto mais desafiante é “não julgar”. Esta agora!!
Créditos: Margaret Hagan (https://laybydesign.com)
É verdade, afinal o design existe em pequenas coisas como o MBway ou entregas de eletrodomésticos. E no lastro do HumanCentered Design, temos o Legal Design - termo flamboyant, não é? ;-) . O Legal Design tem como
*The Four Orders of Design (Buchanan, 2001)
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ÚLTIMO POEMA É NATAL, NUNCA ESTIVE TÃO SÓ. NEM SEQUER NEVA COMO NOS VERSOS DO PESSOA EUGÉNIO DE ANDRADE
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Foto de Fernando Corrêa dos Santos gentilmente cedida pelo mesmo.
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“Breve Encontro” Há despedidas que devem ser lembradas, para que o amor que elas encerram não possa ser esquecido. Há duas pessoas, um homem e uma mulher, que se preparam para apanhar os últimos comboios que partem para os seus destinos. Porque não quiseram pôr termo aos seus casamentos, preparam-se para dizer o último adeus a um amor escondido e culpado e, no entanto, um amor tão verdadeiro e tão belo. Os seus breves encontros na cidade, num qualquer dia de semana, numa esquina, rua ou jardim, num café ou quarto, tornaram-se na razão de ser das suas existências. Uma despedida é um adeus que pode ser para sempre. Nunca mais saberemos se voltamos a encontrar aquela pessoa ou se voltamos àquele lugar. Anda ! Fala-me, à janela da carruagem, as palavras mais bonitas que te lembrares, antes deste comboio partir. Beija-me pela última vez, com a intensidade do desejo com que me beijaste da primeira vez em que nos encontrámos. Entrega-te, por um segundo, como em todas as vezes em que te entregavas.
Luís Roque Alegria
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Tivemos estações de esperanças e apeadeiros de sonhos. Tivemos almoços de ternura, passeios por campos de saudades, tardes de amor furtivas e cheias de remorsos e de culpas. Fomos felizes durante muito tempo, enquanto a suave brisa do vento nos acompanhou no horizonte, que contemplámos juntos à sombra das nossas ilusões. Agora, deixa-me partir, para não mais voltar ! Depois de me veres partir, parte também tu ! Lembra-te de mim, só até veres o meu comboio, ao longe no horizonte. Depois, esquece-me ! « Breve encontro » é um filme de David Lean, baseado em tantas histórias verdadeiras desta vida.
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CARLOS PINTO DE ABREU
EM DEFESA DA PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES Contra as mentiras propaladas e as torpes tentativas da sua destruição
A Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) emana da solidariedade activa e recíproca entre os Beneficiários. É uma Instituição de Previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio, gestão privativa, património próprio e visa fins de previdência e de protecção social dos Advogados e dos associados da OSAE.
•assistência médica e medicamentosa •subsídio de funeral
A par destes benefícios, a CPAS oferece, anual e gratuitamente, aos Beneficiários com a situação contributiva regularizada um seguro de protecção de rendimentos em caso de doença Desde a sua criação, em 1947, a CPAS assenta ou acidente, um seguro de acidentes pessoais e num modelo de repartição e de solidariedade um seguro de assistência médica permanente intergeracional e assume-se essencialmente e tem protocolos vários designadamente para como uma Caixa de Reforma, sendo finalidade seguros de saúde, da habitação, de escritório estatutária principal da CPAS a concessão de e outros da vida corrente, a subscrever pelos pensões de reforma e subsídios por invalidez. beneficiários interessados. Não obstante, para além da pensão de reforma e dos subsídios de invalidez, de sobrevivência Conforme resulta de imposição legal expressa, e por morte, a CPAS concede um leque vasto anualmente, são realizados por entidades de benefícios imediatos que corporizam a sua externas independentes, especialistas na vertente assistencial, designadamente: matéria, análises prospectivas do Sistema através de Estudos de Sustentabilidade que se •subsídios de nascimento e de maternidade encontram anexos aos Relatórios e Contas de cada exercício. Os Estudos de Sustentabilidade •comparticipação nas despesas de internamento têm sido claros no sentido da conclusão de que hospitalar, por maternidade e por doença, dos existe uma melhoria da sustentabilidade do seus Beneficiários e do seu agregado familiar Sistema a médio/longo prazo e dele retiram-se indicadores e dados de referência importantes • subsídio de assistência, em situações de para a percepção da trajectória da CPAS. carência económica dos requerentes Podemos assim afirmar, com confiança, que
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a solidez e a sustentabilidade da CPAS está assegurada se não houver tentativas da sua destruição com uma série de mentiras propaladas por quem tem responsabilidades. Importa realçar que o pagamento escrupuloso e atempado de contribuições para a CPAS assegura aos Beneficiários um rendimento futuro que lhes permite enfrentar a velhice ou o infortúnio com dignidade, estabilidade e segurança, sendo que quanto maior for o investimento durante a vida activa, maior será a pensão a receber. Por outro lado, também do ponto de vista fiscal, as contribuições para a CPAS assumem relevância, designadamente: • Quanto às sociedades de advogados, independentemente da sua dimensão, estrutura, balanço, etc., estão imperativamente sujeitas ao regime de transparência fiscal, o que se traduz por estarem sujeitas, por ora ainda sem possibilidade de opção, a um regime nos termos do qual a matéria colectável das Sociedades de Advogados é determinada nos termos do Código do IRC, sendo depois imputada, como rendimento líquido de categoria B, aos respectivos sócios para efeitos de tributação em sede de IRS, independentemente da distribuição de lucros. Tem sido entendimento da Autoridade Tributária que os encargos suportados com contribuições para a Caixa de Previdência dos Advogados, não configuram gastos fiscalmente dedutíveis como custo da sociedade, pois a sua utilização não se esgota na esfera dessa sociedade. Contudo, face ao disposto no n.º 6 do artigo 20.º do Código do IRS, tais encargos com contribuições obrigatórias são dedutíveis em sede de IRS na esfera dos sócios, bastando ter contabilidade organizada. • Para os trabalhadores independentes que optem pelo regime de contabilidade organizada, a totalidade dos valores pagos para a CPAS são aceites como custo fiscal da actividade. Para os trabalhadores independentes que optem pelo regime simplificado, os sujeitos passivos, podem
deduzir, até à concorrência do rendimento líquido, os montantes comprovadamente suportados com contribuições obrigatórias para regimes de protecção social, conexas com as actividades em causa, na parte em que excedam 10 % dos rendimentos brutos, quando não tenham sido deduzidas a outro título. Se inferior a 10% dos rendimentos brutos, se o montante de contribuições pagas para a CPAS for superior ao valor previsto no n.º1 do artigo 25º do Código do IRS (4104 €) são consideradas como deduções ao rendimento pelo montante total dessas contribuições (nos termos do nº 2 art. 31º CIRS). • No que toca aos trabalhadores dependentes as contribuições para a CPAS devem integrar a dedução específica da categoria A, nos termos previstos no artigo 25.º do Código do IRS, ou seja, se o montante de contribuições pagas para a CPAS for superior ao valor previsto no n.º1 do artigo 25º do Código do IRS (4104 €) são consideradas como deduções ao rendimento pelo montante total dessas contribuições. A CPAS assegura um Sistema de Previdência que é único e tem vantagens, desde logo porque permite a liberdade individual de escolha dos escalões, tem um regime adequado aos primeiros anos de actividade e sustentável, bem como, no seu universo, conta com cinco activos e meio por cada pensionista o que compara com apenas um activo e meio por cada pensionista da segurança social, sendo que a idade de reforma na CPAS está agora nos 65 anos, em comparação com os 67 anos e nove meses no regime geral da Segurança Social como é previsto para 2026. A informação, a participação e a confiança, assim como o empenho e o entusiasmo de todos na defesa, perpetuação e melhoria contínua da actividade da CPAS, tornando-a mais forte, são, também, um garante do prestígio, da autonomia e da independência das suas profissões e de um futuro mais seguro e digno para todos e cada um dos Beneficiários e para as suas Famílias.
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ANA MONTEIRO Mestre em Sociologia da Saúde e da Doença, pós-graduada em Comunicação e Gestão de Crises e em Gestão do Desenvolvimento Local, licenciada em Sociologia, com estudos doutorais em Globalização. Com experiência em ONGs como Amnistia Internacional e Cruz Vermelha, atuou em consultoria, coordenação de projetos, angariação de fundos, ativismo, educação para direitos humanos e investigação. Coautora do livro A Prevenção e a Resolução de Conflitos em África. Atualmente, é Senior Community Based Protection Assistant no ACNUR.
PROMOÇÃO DA INCLUSÃO DE REFUGIADOS:
O PAPEL DOS MUNICÍPIOS
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“Sinto-me em casa”. Estas são as palavras Unidas para os Refugiados através do Call to Local que mais gostamos de ouvir de refugiados após as dificuldades que sofreram ao fugir da perseguição para chegar a um local seguro.
A Agência das Nações Unidas para os Refugiados trabalha para ouvir estas palavras e os municípios têm um papel essencial em torná-las realidade através do acolhimento e da inclusão nas comunidades locais. Nesta senda, foram assumidos por municípios mais de 100 compromissos em 2023 para a inclusão de refugiados e migrantes no Fórum Global para os Refugiados da Agência das Nações
Action for Migrants e Refugees. Mais municípios podem juntar-se a esta iniciativa acedendo ao site referente a este mecanismo. Em Portugal, o município de Braga assumiu em 2022, juntamente com outras cidades europeias, o compromisso de receber as crianças refugiadas e as suas famílias, adaptando as capacidades locais para as acomodar, apoiar e incluir. Os municípios portugueses têm contribuído ativamente para a inclusão de refugiados em várias frentes. A contratação de refugiados pelos municípios para trabalhar com comunidades refugiadas tem sido essencial para estabelecer
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pontes entre os decisores políticos e estas comunidades. Outra forma de garantir que os refugiados têm voz nas políticas locais é a sua inclusão nos Conselhos Locais de Ação Social, assim como nas consultas e diagnósticos sociais. Estes passos são garantias de que participam diretamente no desenho de projetos e políticas que lhes dizem respeito. Os municípios têm conseguido, através de um pensamento inovador, adaptar os seus serviços para garantir uma inclusão eficaz. Numa das áreas mais desafiantes, a habitação, os municípios tentam arranjar soluções a longo prazo, seja modificando as suas estratégias locais de habitação de forma a incluir os refugiados no grupo que pode receber apoio municipal à renda, seja fazendo a mediação com os senhorios assegurando mais contratos de arrendamento. Conhecer uma cidade nova é sempre desafiante, pelo que um dos municípios desenvolveu uma plataforma que ajuda os refugiados a navegar pelo
território e a saberem como aceder aos serviços municipais. Outros municípios desenvolveram guias de acolhimento em várias línguas com o mesmo objetivo. Através de programas municipais as comunidades locais são chamadas a contribuir para a inclusão. Foi o caso de duas irmãs voluntárias que ajudaram uma mãe solteira refugiada e os seus filhos a aceder aos serviços na sua cidade e a aprender português, graças ao contato do município com o Banco do Tempo local. Os programas de voluntariado do próprio município também têm ajudado refugiados a integrar-se, sendo locais privilegiados onde os recém-chegados têm a oportunidade de interagir com as comunidades e aprender os novos costumes e a língua. Em paralelo a esta contribuição centrada em programas, os próprios cidadãos apoiam diretamente os refugiados. São várias as histórias, como a de um menino que doou os brinquedos que recebeu de
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Promoção da inclusão de refugiados Ana Monteiro
aniversário aos refugiados que estavam na sua cidade e a sua mãe que tinha uma pastelaria e que ofereceu a comida para uma celebração desta comunidade.
no setor imobiliário, setor privado e outros organismos regionais uniram-se para apoiar a análise e o desenvolvimento de propostas de soluções.
A Agência das Nações Unidas para os Refugiados tem mapeado estes projetos e partilha-os nos workshops entre municípios que proporcionam momentos de aprendizagem e trocas de experiências. Estes workshops, que já contaram com mais de 350 participantes, começaram a ser organizados a pedido dos próprios municípios depois do evento do lançamento do manual “Inclusão eficaz dos refugiados”, que pode inspirar o trabalho de inclusão dos refugiados das organizações. 16 municípios já receberam formação com base neste manual.
As autoridades locais em Portugal têm sido reconhecidas pelo seu trabalho de inclusão de refugiados e alguns exemplos foram incluídos no briefing “Promover a integração de refugiados e inclusão: capacitação de municípios na Europa” lançado pela Agência das Nações Unidas para os Refugiados em 2024.
Todos estes esforços contribuem para tornar o poder local cada vez mais consciente do seu papel de inclusão, trabalhando sempre com os refugiados como agentes de mudança, para que um dia todos possam dizer “sinto-me em Em outubro de 2024, o Município de Cascais casa” em Portugal. recebeu altos funcionários municipais de onze outros países no âmbito de um workshop sobre integração e inclusão de refugiados. O município foi selecionado pelo seu historial de compromisso com a integração de refugiados como parte da resposta da Ucrânia e não só. Presidentes de Câmaras Municipais, Vice-Presidentes e outros líderes municipais de Atenas, Istambul, Ungheni, Wroclaw, Plovdiv e Vantaa, para citar alguns, debateram e trocaram experiências sobre áreas de preocupação premente para os municípios de toda a Europa, incluindo o acesso ao financiamento, soluções de habitação a preços acessíveis e uma coordenação multissetorial eficaz da integração de refugiados. Instituições financeiras internacionais, partes interessadas
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Da Revisibilidade (humana) das decisões automatizadas depois do acordão Ligue des droits humains do Tribunal de Justiça da União Europeia
MANUEL DAVID MASSENO Professor-Adjunto e Encarregado da Proteção de Dados do Instituto Politécnico de Beja (IPBeja), Investigador colaborador do Centro de Estudo Globais da Universidade Aberta (CEG-UAb) Investigador convidado do Centro de estudos e análise da privacidade e proteção de dados (PDPC) da Universidade Europeia. Integrou vários anos o Grupo de Estudos Temático em Direito Digital e Compliance da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e a Comissão de Direito Digital e Compliance da Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Pertence à Comissão de Direito Digital da Seção de Santa Catarina da OAB, Acadêmico Honorário da Academia Paulista de Direito (APD) Assessor “pro bono” para as questões jurídicas digitais do Instituto para a Comunicação Social da África Austral – Moçambique (MISA- Moçambique); mdmasseno@gmail.com.
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1. Um ponto firme: a não coisificação da pessoa perante os sistemas dotados de IA – Inteligência Artificial, na Lusofonia A “Dignidade Humana”, entendida como um macroprincípio civilizacional já presente no Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, ao enunciar “Nós, os povos das Nações Unidas, decididos: [...] A reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana [...]”, logo depois reiterado no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, igualmente no Preâmbulo, também no articulado, “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos” (§ 1.º do Preâmbulo e Art.º 1.º)₂, assume uma especial relevância na generalidade das Leis fundamentais da Lusofonia vigentes na atualidade, inclusivamente enquanto valor supraconstitucional. Assim, na atual redação da Constituição portuguesa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” (Art.º 1.º) Depois replicada na angolana de 2010, enquanto a brasileira de 1988, a timorense de 2002 e a Cabo-verdiana de 2010 tendem a reforçar o status activae civitatis, embora com algumas variações menores. Porém, pelo menos em termos simbólicos, a sua relevância é menor na são-tomense, onde
surge no Preâmbulo no contexto da luta pela independência nacional Povo São-tomense”, embora apenas com referências pontuais na guineense, a propósito da salvaguarda do “património cultural do povo” (Art.º 17.º n.º 1) e na moçambicana, para reforçar a “liberdade de expressão e de informação” e o “livre consentimento” no casamento (Art. ºs 48.º n.º 6 e 119.º n.º 3), ainda que perpasse os correspondentes regimes de garantia dos Direitos Fundamentais. Em termos regionais, na União Europeia (EU), o Tratado da União Europeia (TFUE), coloca o “respeito pela dignidade humana” como o primeiro dos “valores” (Art.º 2.º) e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), além de igualmente afirmar no Preâmbulo “dignidade do ser humano” como o primeiro de entre os “valores indivisíveis e universais”, começa por determinar que “A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.” (Art.º 1.º). Ao passo que está pressuposta, ainda que implicitamente, na Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, do Conselho da Europa, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, da Organização de Unidade Africana / União Africana. 2. As concretizações normativas gerais, relativamente à IA Do mesmo modo, as menções da “Dignidade Humana” são uma constante também nas iniciativas orientadas a uma regulação da IA, embora todas revista uma natureza política, não sendo vinculativas para os Estados, as Organizações Internacionais ou as outras entidades que as elaboraram e ou subscreveram. Apenas em termos panorâmicos, pois nesta sede seria inviável ir mais além, são de assinalar a Recomendação do Conselho da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico] sobre Inteligência
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Da revibilidade (humana) das decisões automatizadas Manuel David Masseno
Artificial (C/MIN(2019)3/FINAL), de 22 Microsoft. de maio de 2019, incluindo os Princípios da OCDE sobre Inteligência Artificial, Ainda que de um modo muito genérico especialmente: e ténue, podemos identificar neste documentos a tendência para um consensus “2. Os sistemas de IA devem ser concebidos omnium gentium, inclusive de âmbito de forma a respeitar o estado de direito, os multicivilizacional e incluindo governações direitos humanos, os valores democráticos autocráticas ou até teocráticas, no sentido da e a diversidade. Devem igualmente incluir não subordinação a decisões finais tomadas salvaguardas adequadas – por exemplo, por “máquinas inteligentes”. Dito de outro permitir a intervenção humana, quando modo, o respeito pela “Dignidade Humana” necessário para garantir uma sociedade justa impões que IA deverá estar sempre ao serviço e equitativa.” dos desígnios de seres humanos, nunca o inverso. Logo depois, somou-se a Declaração Ministerial sobre Comércio e Economia No que se refere propriamente à regulação Digital, aprovada no âmbito da Cimeira da IA, temos que a “Dignidade Humana” [Cúpula] de Osaca do “Grupo dos 20” (G20), e a inerente revisibilidade decisional tem de 9 de junho de 2019, cujo Anexo recebe enformados as posições institucionais na os Princípios da OCDE. É de assinalar que UE, as quais assuma relevância central para o ambos instrumentos foram assinados pelo nosso objeto. Embora também as tenhamos já Brasil, mesmo não integrando a OCDE, além em Portugal, como Lei, e no Brasil, ainda in de serem uma preocupação presente em todas fieri as Cimeiras [Cúpulas] seguintes. Neste sentido, temos as sucessivas A estas, embora com um peso político Comunicações da Comissão Europeia, as quais menor, juntaram-se a Recomendação sobre culminaram na Proposta de Regulamento que a Ética da Inteligência Artificial (SHS/IGM- estabelece regras harmonizadas em matéria AIETHICS/2021/APR/4), aprovada pela de Inteligência Artificial (Regulamento 41.ª Conferência Geral da Organização das Inteligência Artificial), em cuja Exposição de Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Motivos consta que: a Cultura (UNESCO), em 23 de novembro de 2021, e o Apelo de Roma por uma ética “Dadas as suas características específicas da inteligência artificial / Rome Call, uma (por exemplo, a opacidade, a complexidade, iniciativa da Pontifícia Academia para a a dependência dos dados, o comportamento Vida, subscrito, a 28 de fevereiro de 2020, autónomo), a utilização da inteligência artificial pelo Estado do Vaticano, pela Organização pode afetar negativamente um conjunto das Nações Unidas para a Alimentação e de direitos fundamentais consagrados na a Agricultura (FAO), sedeada em Roma, Carta dos Direitos Fundamentais da UE (a pela República Italiana, ainda por grandes seguir designada por «Carta»). A presente empresas tecnológicas, como a IBM e a proposta procura assegurar um nível elevado
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de proteção desses direitos fundamentais e visa fazer face aos vários riscos mediante uma abordagem baseada no risco claramente definida. Graças a um conjunto de requisitos relativos a uma IA de confiança e obrigações proporcionadas para todos os participantes da cadeia de valor, a proposta melhorará e promoverá a proteção dos direitos consagrados na Carta: o direito à dignidade do ser humano (artigo 1.º), o respeito pela vida privada e familiar e a proteção de dados pessoais (artigos 7.º e 8.º), a não discriminação (artigo 21.º) e a igualdade entre homens e mulheres (artigo 23.º).”
Europeu, do Conselho e da Comissão, em 15 de dezembro de 2022. Logo no ponto (1) do respetivo Preâmbulo, é acentuado que:
“A União Europeia (UE) é uma «união de valores», consagrada no artigo 2.º do Tratado da União Europeia, fundada nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos humanos, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Além disso, nos termos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a UE baseia-se nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da Assim como do Parlamento Europeu (PE), igualdade e da solidariedade.” o qual inclusivamente antecipara-se, por iniciativa da deputada luxemburguesa Mady No que mais nos importa, a propósito das Delvaux-Stehres, em 2015, com a adoção “Interações com algoritmos e sistemas de da Resolução que contém recomendações à inteligência artificial”, no contexto do “Cap. Comissão sobre disposições de Direito Civil III – Liberdade de escolha”, resulta que: sobre Robótica, em 2017, retomada com a relativa a um Regime relativo aos aspetos “9. Todas as pessoas devem poder beneficiar éticos da inteligência artificial, da robótica das vantagens dos sistemas algorítmicos e das tecnologias conexas, em 2020, e pela e dos sistemas de inteligência artificial, sobre a inteligência artificial no direito penal nomeadamente fazendo escolhas próprias e a sua utilização pelas autoridades policiais e informadas no ambiente digital, estando e judiciárias em casos penais, de 2021, simultaneamente protegidas contra os riscos e confirmadas e reforçadas na Posição comum os danos para a saúde, a segurança e os direitos em Primeira Leitura sobre a Proposta da fundamentais. Comprometemo-nos a: a) Comissão, de meados de junho de 2023. Promover sistemas de inteligência artificial centrados no ser humano, fiáveis e éticos ao Por sua vez, as Conclusões da Presidência longo do seu desenvolvimento, implantação [alemã] do Conselho A Carta dos Direitos e utilização, em consonância com os valores Fundamentais no contexto da inteligência da UE; [e, em especial, a] c) Garantir que os artificial e da mudança digital, de outubro de sistemas algorítmicos se baseiam em conjuntos 2020, entretanto retomadas na Orientação de dados adequados para evitar a discriminação geral, de novembro de 2022, relativa à Proposta e permitir a supervisão humana de todos os da Comissão-. resultados que afetam a segurança e os direitos fundamentais das pessoas”. Mais recente e com uma relevância política reforçada é a Declaração Europeia 1 [interinstitucional] sobre os direitos e princípios digitais para a década digital, assinada pelos Presidentes do Parlamento
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José Luis Outono
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Osmose Fatal Há uma brisa cortante na inquietação do teu diálogo Os teus eventos outrora magmas cálidos secam Os enleios são agora meros rascunhos de aragens E a estrada é um caminho cego no teu rasgar. Tanto de teu no meu apegar sem ser valia de nós Osmose fatal de nadas olvidados em banhos soturnos Languidez nervosa da clausura que injustamente ditas Belezas que são apenas laivos de olhares cíclicos. Desnudo-me da minha ética de ser por inteiro Sinto-me vagaroso na elegância dormente e rugosa Percebo-me inóspito lugar cinzento e sem resgate. Quando...perguntam os invernos afoitos impossíveis Quanto...digladiam razões hercúleas e quebradiças Onde...lê-se algures na proibição rasurada de sentires!
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Entrevista
Ana Gomes E o mar logo ali 34
Ser Juíza é uma vocação ou uma opção? Nasceu como e quando? Só pode ser uma vocação! (risos). De outra maneira, não se aguentaria mais de 20 anos a tentar resolver problemas: os problemas dos outros e os obstáculos que surgem a toda a hora dentro do sistema. Apesar de adorar matemática, a opção pelas Humanidades, no 10.º ano, não suscitou dúvidas: era o gosto pela leitura, pela escrita e pelo que se passava no mundo. Cheguei mesmo a ponderar o jornalismo. Foi muito importante a intervenção de uma professora de uma das disciplinas de opção – direito – que chamou a minha mãe à escola e lhe disse que eu teria de ir para direito. Entre o jornalismo e o direito, acabou por vencer o segundo. Ao longo do curso, nunca pensei que a solução seria a Magistratura Judicial, quando muito a do Ministério Público, que não teria a responsabilidade da decisão final … acabei por perceber que há uma técnica para tudo e que, além do conhecimento, são necessários outros atributos como a humildade e o sentido de justiça. Com isso, qualquer pessoa pode ser Juiz.
Como é ser Mãe de rapazes? É top! É uma experiência e tanto! Em alguns momentos, por segundos, compreendi as mulheres que decidem não embarcar nesta aventura, mas é definitivamente a grande aventura de uma vida!
Entre ser mãe e ser Juíza vai uma grande diferença? O Norte é o mesmo? É uma diferença muito grande, Adelina! Enquanto Juíza, podes vir a decidir a vida de uma pessoa que passa por ti, uma, duas vezes … Enquanto mãe, percebo que todas as decisões têm uma repercussão na vida dos meus filhos e quem é mãe sabe que nós decidimos muitas vezes por dia … (risos). Além das decisões, há o exemplo: podes decidir, podes dizer, mas é o teu exemplo que mais educa! Se o norte é o mesmo? Diria que a seriedade e a honestidade têm de estar lá! Esse é o norte.
Se tivesses sido mãe de uma rapariga sentirias alguma diferença interior ou vinda do exterior, no teu objetivo de formar? Adoro os meus rapazes! Se calhar iria ter alguns problemas porque sou mandona! Os rapazes são mais relaxados, não há grandes stresses … Enquanto pais, devemos educar e tentar que os nossos filhos ou filhas sejam pessoas honestas, desenvolvam sentido crítico e que saibam tarefas básicas de sobrevivência, ligadas à alimentação, limpeza e organização. A rapariga teria de se adaptar …
Hobbies: há tempo? São absolutamente necessários? Quantos tens? Qual o último livro que leste? Se tivesse tempo, quantos hobbies? Muitos !!! Não há tempo, não, apesar de serem absolutamente necessários: não só para nos libertar a cabeça dos problemas, mas como forma de chegar a soluções difíceis de encontrar. O trabalho mais importante de um Juiz é pensar e coisas interessantes acontecem quando não estás à frente de um processo …
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Entrevista Ana Gomes
Livros, a grande paixão. Acabei de ler “No país do silêncio”, de Rita Cruz. Comecei a ler o “Deus na escuridão”, de Valter Hugo Mãe. Estou a ler “Cello, bow and you”, “Respirar”, “Como escrever”, que me vão acompanhando durante uns meses. Com um dos rapazes e em voz alta, estou a ler a “Ilíada”.
Que te falta fazer ainda profissional e pessoalmente?
Tanta coisa!... Precisaria de umas quantas vidas mais para aprender a desenhar decentemente, a pintar, a tocar um instrumento, a competir num desporto, a viajar, a ler os livros que já foram escritos Que mudarias no Mundo da e os outros espetaculares que virão... Do Magistratura? A adesão à tecnologia ponto de vista profissional, infelizmente para quem é Juíza, infelizmente também é absolutamente necessária? para o sistema, posso dizer que, sendo Juíza Assusta-te ou facilita a vida? na Primeira Instância, não tenho grande É verdade que existe pouco tempo para ambição profissional de subir à Relação ou hobbies e também para refletir sobre o ao Supremo. Desse ponto de vista, a carreira sistema. Alguém assoberbado com processos deixou de ser atrativa. Talvez passar o não tem disponibilidade para pensar além conhecimento e a experiência aos vindouros disso. Os dias e os anos vão passando... Mas … também é verdade que quem tem poder de decisão não tem muito interesse em ouvir, Numa palavra o que te define? de facto, quem está no terreno … Por isso, diria que tento fazer as mudanças possíveis, É sempre muito difícil tentar fazer uma à minha escala, junto das pessoas com quem autoanálise sobretudo quando não se faz terapia. Acho que sou uma pessoa trabalho e para quem trabalho. Sobre a tecnologia, ela está aí e não dá para simples e séria. É verdade, as gargalhas negar. Sucede que não é muito coerente estar enganam! (risos). Séria de honestidade e de num sistema que acha que tu deves analisar compromisso. um processo de muitos volumes em PDFs num ecrã de computador de pouquíssimas Por último: polegadas e de qualidade sofrível (para não O que há neste projeto da JustiçA gastar papel); dependente de uma plataforma com A que te leva a aderir ? que é controlada por uma entidade diferente do órgão de soberania que são os Tribunais A tua ousadia! Desde o pensar ao concretizar e que bloqueia frequentemente; escravo da normalmente vai um caminho infinito e só produtividade, como se estivéssemos nas com ousadia é que é possível lançar mãos linhas de montagem do século passado … à obra e fazer acontecer. O gozo de ver um Ao mesmo tempo, poderá estar a descer à projeto como este fazer dez anos é um grande Terra a deusa artificial da justiça … Veremos privilégio. Sinto-me muito grata. Obrigada! o que queremos fazer enquanto sociedade.
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ZÉ DA FONTE Chamavam-lhe Zé da Fonte. Todos os dias, mal o sol acordava, ia até à nascente modesta, escondida por entre pedras gastas e ramadas pendentes. Ajoelhava-se e lavava os olhos, longamente, com as mãos inundadas pela água fria das manhãs. Punha-se de pé, tirava do saco atado à cintura um naco de pão escuro que mastigava devagar, muito devagar, sempre de olhos fechados. As costas abauladas, o saco a oscilar, as pernas a ensaiarem uma dança que só o Zé sabia. Quando parava de comer, de dançar, abria os olhos para o céu, para a água. Dizia baixinho: - Até amanhã, Mãe. Ninguém lhe conhecia família. Não se poderia dizer que idade tinha. Caminhava aos saltinhos tal qual rio a correr em leito pedregoso. Havia quem o temesse, quem dele se afastasse. Havia quem por ele sentisse uma ternura, uma vontade de lhe pegar na mão, de o perceber. Por uns dias ninguém o viu. Procuraram em redor da fonte. Nem rasto do Zé da Fonte. Foi quando um corpo apareceu a boiar no ponto em que o ribeiro que nascia da fonte se casava com outro ribeiro nascido de outra fonte que as pessoas exclamaram, com curiosidade, sem pesar: - Coitado do Zé da Fonte. Como foi que isto sucedeu? Só a Rosa Maria, que também caminhava aos saltinhos e tinha os olhos cor de musgo, explicou, na sua voz murmurante: - Voltou a ser água. Um homem tem de cumprir o seu destino.
LÍCINIA QUITÉRIO
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DAS MÃOS DADAS TALVEZ O FOGO NASÇA, TALVEZ SEJA NATAL E NÃO DEZEMBRO, TALVEZ UNIVERSAL A CONSOADA. DAVID MOURÃO-FERREIRA, IN ‘CANCIONEIRO DE NATAL’
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Foto de Fernando Corrêa dos Santos gentilmente cedida pelo mesmo.
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ENTRE LINHAS
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RECOMENDAÇÕES
1. VERMELHO DELICADO Teresa Veiga
Fez carreira como professora, notária e conservadora, publicando também vários livros. Vermelho Delicado, o mais recente, reúne sete contos, uns narrados na primeira pessoa, outros na terceira, com as mulheres em papel central. Isso, contudo, pode ser apenas um detalhe. O que realmente une os contos que compõem este livro de forma indelével é a riqueza de detalhes descritivos, já não usual na literatura contemporânea, bem como a forma delicada e firme como eles ilustram a diferença que tantas vezes existe entre o passado e o presente e o idealizado e o vivido. Mas também as falhas de comunicação entre os seres humanos. O eu e os outros. Os contos partem sempre da materialidade, mas as personagens rapidamente resvalam para o limbo em que aquela esbarra e, com sorte, se entrelaça com outros planos, imaginados ou recordados. No quotidiano há mistérios, disso Teresa Veiga deixa-nos a certeza. Recomendação de Carla Coelho
2. SUL Álvaro Poeira Há nos filhos da Terra Quente uma Saudade que lhes tentaram Silenciar. O autor grita-a bem alota sua escrita e rompe com o silêncio que, imposto, não será mais do que letra morta . A escrita flui como a chuva em tardes quentes de trovoada sobre o capim, fresca, violenta ou suave Tanta memória !… Ou, se preferirem: Nunca as palavras foram tão sensíveis na escrita de um homem, nunca falaram tanto nem gritaram tanto a saudade , a verdade, as imagens que lhe ficaram para sempre. Recomendação de Adelina Barradas de Oliveira
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ENTRE LINHAS
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3. O RETRATO DE DORIAN GRAY Oscar Wilde
Sentir-me-ia tentado a cair numa armadilha fácil. A de fazer escárnio de Dorian Gray dizendo (com alguma inveja, claro) que “nunca se deve confiar num homem bonito”. Se o fizesse, porém, seria injusto com a obra não sabendo se a mesma, neste caso, seria o romance de Oscar Wilde ou porventura o famoso quadro à volta do qual tudo se desenvolve. Ficamos na dúvida, sendo certo que lê-la equivale a assistir a uma peça de teatro na qual se consegue ouvir as vozes dos seus actores e de uma actriz também, aquela que representa o papel de uma outra actriz, a pobre Sibyl, que teve azar de se cruzar com Dorian e assim conhecer uma criatura tão bonita por fora como feia por dentro. É arriscado opinar sobre um romance filosófico mas, seja como for, confesso que associei Dorian Gray à Medusa da mitologia grega pois ambos apenas soçobram quando se confrontam com o reflexo da sua própria imagem. Uma num espelho, outro num quadro pois, ninguém gosta de ser confrontado com o feio que é. Nem mesmo a Medusa que, segundo Ovídio, já fora uma bela mulher nem mesmo Dorian, cujo bom gosto extravagante só é comparável a um jardim do Éden. Tão bonito como este, mas em que o pecado acaba por ser uma inevitabilidade para quem nele habita. Recomendação de João Correia
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Fotografias de Fernando Corrêa dos Santos...
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