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O Mar Logo Ali Ana Gomes
from 50 Edição
FÉRIAS?...
Estamos no hemisfério norte, verão de junho a setembro, espaço e tempo onde as pessoas sentem a maior incidência dos raios solares e os dias longos.
No lugar que escolherem, gozam férias, interrupção relativamente longa de trabalho, destinada ao descanso de trabalhadores.
Os estudantes têm direito a férias grandes. Quem já não estuda ou trabalha beneficia de férias permanentes, viajando ou ficando na casa de sempre.
Quem trabalha terá mesmo de otimizar o mês a que tem direito, concretizar tudo o que não teve oportunidade de fazer durante
os onze meses anteriores, seja descansar, seja mergulhar de cabeça no projeto que com o entusiasmo ficou guardado na gaveta de baixo. Chegado o momento, a maioria está exausta, desmotivada e ansiosa, menos pela preparação das férias, mais pelo que o trouxe até ali, trabalho, muito trabalho.
Sinal dos tempos.
Depois de alguns anos deslocada, Rebeca foi às nuvens quando finalmente conseguiu colocação perto da família e dos amigos. Pelo caminho fez outros amigos, é certo, e conhece Portugal como muitos dizem de outros países quando afirmam que gostam de viajar para conhecer novas culturas. Os portugueses, não deixando de ser portugueses, são tão diversos e esse conhecimento profundo devo-o à profissão que escolhi. Rebeca é Juíza há uma década. Como dizíamos, no movimento anual de Juízes voltou à casa de partida e pôde finalmente pensar em constituir família, pois a vida de saltimbanco nem faz prolongar casamentos nem é o ideal para fazer aumentar a família. Se
quisesse tinha ido para o circo.
Gosto da estabilidade de um lugar.
Estava feliz e crente de que tudo ia organizar-se como tinha previsto. Foi preencher um lugar num Juízo de onde tinha sido retirado um outro Juiz anos antes. Na área cível, eram quatro e passaram a três. O colega Juiz que lhe abriu a porta já lá estava desde a Reforma de 2014. Saiu para se dedicar a outra atividade. Quando a nossa Juíza lá chegou percebeu porque tinha tido tanta sorte. Perto de casa. Atolada em trabalho.
Ainda é do tempo em que chegado o fim do dia saía com a sensação de missão cumprida. Amanhã será outro dia. Conseguia respirar.
Agora, a secretária está sempre vazia e o “citius” (plataforma do Ministério da Justiça que os Juízes são obrigados a usar) é um poço na época das chuvas: vês os processos onde tens de trabalhar no próprio dia (com um zero), nos dias seguintes (com -1, -2, etc.) e à superfície e por vezes a transbordar aqueles que já estão no sistema há mais tempo, sem que tenhas um efetivo controlo de qual o trabalho que desenvolves em cada dia.
Depois, o “citius” talvez seja o sistema mais mal-educado que conhece: a meio de uma operação, muitas vezes “não responde” e amua mesmo, temos de lhe virar as costas e premir o botão “desligar”.
No início, Rebeca até lidava bem com isso, fazia uma pausa, ia à janela cravava um café ao colega do lado, e dizia que era o sistema a zelar pelo bem-estar de quem trabalha. O direito à pausa!
Quando as pausas eram forçadas num momento em que estava concentrada a escrever um despacho e o tentava guardar, Rebeca tinha vontade de subir pelas paredes de tão irritada.
São meses assim: a plataforma eletrónica, um ecrã que cansa os olhos, a falta de material para trabalhar, a litigiosidade a aumentar, o número de processos a crescer e Rebeca tem de os abocanhar, digerir durante uns meses e, depois de produzida a prova, verter a sentença, não
sem antes refletir muito sobre a situação e qual a melhor solução para o caso concreto, atividade humana demorada e dependente de uma disponibilidade mental que o Juiz de hoje, pressionado pela estatística, não tem.
Querem transformar os Juízes em máquinas para assim mais facilmente os substituírem pela inteligência artificial?
Estamos em junho, muitas audiências marcadas, muitas sentenças se lhes seguirão. Chegará julho e agosto. Férias? Juízes assoberbados? Juízes calmos, equilibrados e em paz consigo?
Estarei de volta em setembro?