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Não existência - um direito João Pires da Rosa
from 50 Edição
JOÃO PIRES DA ROSA
NÃO EXISTÊNCIA - UM DIREITO
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CONFESSO
O meu ponto de chegada há-de ser o meu ponto de partida. Ou … o meu ponto de partida há-de ser o meu ponto de chegada.
Tanto faz.
No Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista nº9434/06.6TBMTS.P1.S1, relatado pela Exma Conselheira Ana Paula Boularot, no qual intervim como adjunto, com acórdão datado de 17 de Janeiro de 2013,
uma mulher grávida sujeitase aos meios de diagnóstico pré-natal, com o escopo de determinar se o seu feto é, ou não, portador de uma deficiência;
em virtude de falta de informação correcta sobre o diagnóstico, a gravidez é levada até ao seu termo, acabando por nascer uma criança com deficiências tais que teriam permitido à mãe lançar mão da faculdade de interromper voluntariamente a gravidez, nos termos que são traçados pelo art. art. 142.º, n.º 1, al. c), do CP;
contra Clínica onde realizou os exames e o médico ecografista que os subscreveu, os pais da criança que nasceu deduziram pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais próprios e, em representação do filho, pedido de indemnização igualmente por danos patrimoniais e não patrimoniais deste.
No que agora importa direi – a acção foi julgada procedente quanto ao pedido de indemnização por danos próprios dos pais da criança, improcedente quanto ao pedido de indemnização dos danos da própria criança.
E foi quanto a esta última parte que expressei o meu voto de vencido, colocando a mim mesmo a exactíssima pergunta que é o ponto de partida para este texto:
se alguém, podendo não ter nascido, nasce na situação de uma insuportável deficiência, que lhe não permite o direito à vida como um direito à vida com qualidade, deve ou não deve essa pessoa ser indemnizada pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que essa não qualidade transporta? Deve, ou não deve, essa pessoa ser a primeira das pessoas a ser indemnizada, por forma a que a sua vida se aproxime o mais possível de uma vida … com qualidade?!
Que resposta deve dar o direito a uma acção intentada por um criança, que nasceu, contra a clínica ou o médico que, com culpa, subscreveram os exames que roubaram à mãe a faculdade de decidir pelo não nascimento, pedindo uma indemnização por danos patrimoniais ou não patrimoniais emergentes do seu nascimento deficiente, a essa acção comummente chamada de wrongful life?
Pode ou não pode o direito dar uma resposta afirmativa a um tal pedido?
Porque se pode …deve.
Não pôde, em particular não pôde na acção em que fui vencido, em 17 de Janeiro de 2013, como não havia podido já no acórdão do STJ, relatado pelo Exmo Conselheiro Pinto Monteiro em 19 de Junho de 2001, ao que sabemos o primeiro que entre nós se debruçou sobre tal matéria.
Mas não me conformo com uma tal resposta.
Alguém, pensando na criança que nasceu e suporta o peso acrescido da vida, pode aceitar uma tal resposta?
Não creio.
E acredito que o direito pode, ao contrário, dar uma resposta ao pedido de quem sofre.
Sobretudo se o direito procurar uma resposta em nome da vida e não, rodando sobre si próprio e esquecendo a vida, atingir ainda mais a vida … com qualidade, em nome do respeito por uma amargura de vida.
Porque a vida que nos interessa, que interessa ao direito, é esta vida em concreto, esta vida que – sem qualidade – não pode todavia deixar de ser vivida, e não uma ideia abstracta de vida pela vida que esquece quem, podendo não ter nascido, tem todavia que suportar a vida – a sua vida. E como a vida pode ser uma sobrecarga!
Não devem ser chamadas para aqui quaisquer considerações morais ou religiosas que tenham a ver com o princípio da vida, até porque a principal de todas essas questões é sempre o respeito por esta vida que nasceu, que vive, e à qual é imperioso trazer a qualidade sem a qual a vida não é vida.
Dir-se-á, desde logo, que há a dificuldade de encontrar o contraponto para o cálculo, para a fixação de uma indemnização a arbitrar, pois sempre se poderá dizer que a vida que se vive ( mesmo sem qualidade ) é necessariamente melhor que a vida que se não viveu. Então, entre o não ter nascido e o ter nascido, ainda
João Pires da Rosa
Não existência - um direito
que sem qualidade, sempre será mais valioso o ter vivido e, por isso, não haveria um dano que seja necessário suportar – e sem dano não há indemnização.
Mas não é assim: o dano, a sobrecarga, existe e o contraponto não pode ser a não existência, o contraponto há-de ser a existência … com qualidade. Quando se quer olhar para o dano sofrido o farol só pode ser a vida ( a vida com qualidade ) e não a nãovida. É por aí que se há-de sentir o peso de viver, o encargo de viver, quando se podia não ter vivido.
Poderá, como já referimos, existir uma dificuldade acrescida no cálculo da indemnização. Mas não poderá ser isso a obstar ao reconhecimento do direito a essa mesma indemnização
Dito isto: não há indemnização sem dano, como não pode nascer no património de alguém o direito a ser indemnizado se correlativamente não nascer num outro património o dever de indemnizar, a obrigação de indemnizar.
E onde poderá radicar esse “pretenso” dever se a deficiência que traduz o dano que esmaga esta vida já existe desde a concepção dela e não pode ser imputada a quenquer que seja? E se, por outro lado, o direito à vida está protegido, de uma forma absoluta, quer na Constituição da República Portuguesa quer nas Convenções Internacionais que a enformam, a começar na Declaração Universal dos Direitos do Homem?
É assim – art.24º, nº1 da Constituição: a vida humana é inviolável abrangendo essa inviolabilidade « não apenas a vida das pessoas, mas também a vida prénatal, ainda não investida numa pessoa, a vida intra-uterina ( independentemente do momento em que se entenda que esta tem início ) e a vida do embrião fertilizado » - Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, pág.449.
Mas atenção – escrevem também os mesmos autores na mesma obra e local: « a protecção da vida intra-uterina não tem que ser a mesma em todas as fases do seu desenvolvimento … |sendo que| relativamente à interrupção voluntária da gravidez, não existindo uma proibição absoluta do aborto, parece todavia não existir também o reconhecimento constitucional de um direito ao aborto … compet|indo| à lei … estabelecer os limites ( nomeadamente os de natureza temporal ) da faculdade de interrupção voluntária de gravidez, ou pelo menos, da não punição penal ». O que tem também a ver com – art.67º da Constituição – a protecção da família, incluindo a obrigação por parte do Estado ( al.c ) do nº2 ) de garantir, no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento familiar, promovendo a informação e o acesso aos métodos e meios que o assegurem, e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes.
É dentro do indeclinável respeito da liberdade individual, constitucionalmente garantido, que a mesma Constituição permite que a lei coloque nas mãos do Homem a faculdade – o direito, mas não o dever – de deixar ou não deixar correr uma vida pré-natal até ao seu “investimento como pessoa”, até ao nascimento – a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida ( art.66º, nº1 do CCivil ).
Foi exactamente com este enquadramento que, no Supremo Tribunal de Justiça, no recurso de revista no processo nº9434/06.6TBMTS.P1.S1, de 17 de Janeiro de 2013, expressei o meu voto de vencido no sentido de, em tese, admitir um direito à não existência « desde que a lei portuguesa reconheceu, nos termos previstos no art.142º do CPenal, a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, colocando a vida, nesses precisos casos, nas mãos dos homens, mais especificamente da mulher/ mãe ».
Há um tempo e uma condição, estritamente definidos na lei, em que o direito de ser ou de não ser, de existir ou não existir, está nas mãos do Homem, está nas mãos da mulher/mãe onde repousa o indestrutível direito de decidir se sim ou não quer fazer caminhar até ao nascimento o nascituro que é ainda isso mesmo, um nascituro, que faz ainda parte de si própria, e que só virá a autonomizar-se como pessoa se essa for a vontade da mulher grávida.
Este é um direito da mulher grávida, um direito que é uma faculdade – não um dever – que tem necessariamente duas faces, com igual peso: ela, a mulher grávida, e só ela, porque só dela é o consentimento sem o qual nenhuma intervenção é lícita, decidirá da existência ou não existência, do caminho para a existência ou do fechamento desse caminho.
Nesse(s) tempo(s) e nessa(s) circunstância(s), o direito à não existência é a outra face, tem o mesmo valor, do direito à existência, e estão ambos colocados com igual juridicidade, nas mãos dela, da mulher grávida.
Esse é um direito que é património seu, de si própria como um todo – não como uma simples mulher mas como uma mulher pejada, direito que só ela pode exercitar e à qual se garantem todos os poderes que lhe permitam esse exercício.
Quando ela se decide pela não existência é ainda o seu direito que ela exercita ( ainda que umbilicalmente ligado à via pré-natal que em si mesma transporta ), sem prejuízo de se pensar que um direito do feto, passe a expressão, se há-de autonomizar um dia e incorporar no seu exclusivo património, se ele vier a nascer porque – nº2 do art.66º do CCivil – os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.
O direito de existir – ou de não existir - será, pois, ainda e sempre, direito da mãe enquanto o nascituro não nascer ( ou se não nascer )!
O nascituro – o embrião ou o feto – é ainda mãe enquanto se não autonomizar como pessoa pelo nascimento. Persistir ou não persistir no caminho da existência – nos tempos e nas circunstâncias em que a lei coloca essa decisão nas mãos da mãe – é ainda direito desta.
Quando a mãe procura um médico ou uma clínica especializada ou um outro estabelecimento de saúde ( estes últimos responsáveis nos termos em que o art.800º do CCivil responsabiliza o devedor pelos actos dos seus representantes legais ou auxiliares ) com ele contratualiza a prestação de serviços médicos, definidos em protocolo da Direcção Geral de Saúde como os adequados à determinação e informação de eventuais distúrbios ou malformações do feto que transporta, é ainda por si mesma e para protecção de si própria que a mãe celebra o contrato. Pois ela não é pessoa diferente do que é, e ela é uma mulher pejada já se disse – é esta concreta mulher que celebra o contrato para interesse seu e o seu feto é ainda ela própria, o feto faz ainda parte da sua própria pessoa ( sem prejuízo de a sua personalidade em formação se poder autonomizar mais tarde e com ela se autonomizar o direito que antes era – por força da própria concepção legal do nascimento da personalidade, do art.66º, nº1 do CCivil – ainda … mãe! ).
Não pode assim, nem é preciso, se bem entendo, falar-se de um contrato em benefício de terceiro porque o contrato é ainda em benefício do próprio contratante e a contraparte – o médico ou a clínica – sabe bem quem é a contratante/mãe – sabe bem que é por estar grávida ou se pensar grávida que a mulher contratualiza consigo os exames destinados a permitir-lhe o exercício livre e consciente do seu direito ao planeamento familiar ou a uma maternidade consciente.
Pouco importa que mais tarde, por hipótese, esse direito se venha a automizar e se radique numa novo ser, numa nova pessoa. O que importa é que naquele momento o direito é ainda de uma pessoa única e depois renasce, multiplicando-se, numa outra pessoa.
Nem isto é uma realidade longe do direito ou que perturbe o direito.
Pelo contrário, é uma realidade que acompanha e com a qual o direito convive; é assim em todos os processos de divisão onde o que era inicialmente o direito de apenas uma entidade se diversifica posteriormente em diferentes direitos radicados nos diferentes patrimónios nascidos dessa divisão/multiplicação.