6 minute read

Infância Perdida Isabel Malheiro Almeida

Isabel Malheiro Almeida

A INFÂNCIA PERDIDA

Quase diariamente, e bem, somos alertados pelos meios de comunicação social para o flagelo da violência doméstica, maioritariamente perpetrado sobre mulheres.

E de facto, a mediatização desde crime tem tido impacto na sociedade e naturalmente na própria justiça, cada vez mais atenta e eficaz na punição destes crimes, como reflexo da relevância dos valores sociais.

Mas a violência doméstica não se esgota, infelizmente, na violência sobre as mulheres, ou na violência conjugal.

Veja-se o aumento dos casos de violência contra idosos, que resulta não só dos maustratos de que por vezes são vítimas, mas também do abandono a que muitas vezes são votados, e veja-se, principalmente, o caso das crianças que são também vítimas dessa violência conjugal, enquanto testemunhas da mesma.

Segundo um relatório da ONU, um bilião de crianças com idades compreendidas entre os 2 e os 17 anos experienciaram violência física, sexual ou emocional, ou negligência no último ano.

Experienciar violência na infância tem impactos no desenvolvimento das crianças, e tal como é lema do programa contra a violência da UNICEF, nenhuma violência contra as crianças é justificável e toda a violência contra as crianças pode ser prevenida.

Apesar de Portugal ter sido um dos primeiros países a ratificar a Convenção de Istambul com vista à eliminação de quaisquer práticas discriminatórias, protegendo os seus cidadãos de qualquer forma de violência, e considerando a violência doméstica uma violação de direitos humanos, tipificando já o crime de violência doméstica contra crianças testemunhas de violência doméstica, o que é certo é que desde 2013, ano da ratificação da convenção, ainda pouco mudou no que respeita às crianças. É que não basta ao Estado ratificar tratados ou convenções, introduzir normas de igualdade de género nos procedimentos da administração pública ou proceder a alterações legislativas, tal como recentemente sucedeu com a Lei 57/2021, de 16 de agosto. É necessário enraizar essa necessidade de proteção das crianças enquanto vítimas de violência doméstica e, principalmente, tomar as medidas necessárias para que a coordenação entre os DIAP regionais, nomeadamente as SEIVD, e os Tribunais de Família na verdade se concretize, e ocorra em tempo útil.

Mas, e principalmente, no que respeita ao estatuto de vítima que estas crianças vão tendo já nos processos-crime de violência doméstica atenta a exposição a tal crime, quantos pedidos de indemnização civil foram deduzidos em nome da criança contra o agente da violência doméstica?

E nos que foram deduzidos que investigação é feita sobre os reais impactos no desenvolvimento daquela criança submetida a violência?

Não podemos olvidar que o que é vivido na infância, molda as características da personalidade do adulto e não basta arbitrar às crianças que são vítimas uma quantia monetária normalmente irrisória, diga-se, a título de indemnização para que se pense estar assim tutelado o seu melhor interesse.

É premente que estas crianças tenham uma voz ativa também nestes processos e que, os tribunais sejam dotados de meios

que possam tutelar efetivamente os seus interesses da mesma forma que as vítimas diretas destes crimes.

Quem, e como se protege, especialmente, a criança para que possa desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, quando testemunha um crime destes?

Tem sido enorme a evolução do Direito das Crianças nas últimas décadas, no entanto é necessário continuar a percorrer este caminho de modo a tornar o atual sistema de administração da justiça para crianças eficaz e capaz de responder através de mudanças conceituais aos direitos de tantas crianças e jovens que são vítimas especialmente vulneráveis pela sua condição, e que, continuam a ser vistas como um objeto sem voz que, sobre a superintendência do adulto “protetor”, vêem muitas vezes o seu futuro hipotecado pela violência que vivenciaram.

A Estratégia do Conselho da Europa sobre os Direitos da Criança (2016-2021), referia que os sistemas judiciais europeus não estão ainda suficientemente adaptados às necessidades específicas das crianças e que a investigação demonstra que os direitos da criança a ser, entre outros, protegida e a não ser discriminada, nem sempre são cumpridos na prática, uma vez que as crianças envolvidas em conflitos e em contacto com a lei têm direitos específicos aos quais o sistema de justiça muitas vezes não responde de forma adequada.

E o sistema judicial português, não obstante os avanços verificados, continua a não estar adaptado a tais necessidades, o que é ainda mais visível nos processos de violência doméstica.

A maioria dos tribunais portugueses nem sequer tem uma sala adequada a ouvir crianças e apesar de já começar a ser comum nos tribunais de família haver um técnico, normalmente um psicólogo, para explicar à criança o que ali se vai passar, na verdade isso acontece cinco minutos antes de se realizar a diligência, o que por si só evidencia logo que não passa de um mero formalismo para que se possa afirmar ter um sistema adequado às crianças.

Particularmente no que aos processos de violência doméstica respeita, não é efetuada qualquer avaliação sobre o impacto que tal violência tem na criança e, não existe em todo o sistema uma qualquer coordenação com uma equipa multidisciplinar, tanto para a avaliação dos danos causados pelo agressor àquela criança e que deveriam objetivamente

Isabel Malheiro Almeida

A Infância Perdida

ser tutelados, como para uma proposta terapêutica que é necessária a maioria das vezes e que deveria ser atendida em sede processual, nomeadamente, ser tida em consideração na condenação do agressor.

A própria jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Comité Europeu dos Direitos Sociais tem vindo a ilustrar as diversas situações nas quais os direitos da criança estão em causa, identificando uma série de violações da Convenção Europeia dos Direitos Humanos em relação às crianças e, o Comité Europeu dos Direitos Sociais identificou também vários Estados em infração à Carta Social Europeia, nomeadamente por não terem proibido os castigos corporais de forma suficientemente rigorosa e vinculativa.

Não acautelar devidamente os interesses das crianças quando são vítimas de violência doméstica é submetê-las ao castigo eterno de perda da infância/juventude.

Um sistema judiciário amigo da criança foi uma das prioridades da estratégia do Conselho da Europa para os direitos da criança 2016-2021 e as crianças e os jovens têm direito a uma justiça amiga da criança.

Os princípios da justiça amiga da criança incluem a participação, o bem-estar da criança, a dignidade, a proteção contra a discriminação e o Estado de direito, e as crianças, enquanto vítimas de violência doméstica por a presenciarem, continuam a ser discriminadas pelo nosso sistema judiciário que não as consegue ver como as maiores vítimas do crime que em regra é diretamente perpetrado contra o adulto “protetor” que foi incapaz de as proteger e, a que a criança assiste, na maioria das vezes com a frustração de nada poder fazer para o impedir. E isso, tem de ser ponderado na medida da pena a aplicar ao agressor e no pedido cível que haja sido deduzido em nome da criança.

É tempo de as crianças deixarem de ser tratadas como seres inferiores e marionetas de um sistema que, na verdade, não as coloca no centro como há muito já se impõe que o faça.

Impõe-se um sistema que permita que todas as crianças possam vivenciar a sua infância não se tornando adultos agressivos e agressores, e isso passará por dotarmos o sistema judiciário de meios para que tal suceda, mas também por uma maior consciencialização de todos os atores judiciários do papel central que estas crianças devem ter nos processos de violência doméstica e na necessidade da sua proteção.

Urge construir uma cultura e um sistema responsável pela infância que é retirada a estas crianças criando meios alternativos para as compensar devidamente pela violência a que foram sujeitas.

This article is from: