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Pano para mangas Margarida Vargues
A FOLHA EM BRANCO
Margarida Vargues PANO PARA MANGAS O exercício é simples: uma folha em branco, virgem, imaculada, acabada de sair da resma, a qual O têm de amarrotar o mais possível, fazê-la num oito, torná-la irreconhecível. Levam as minhas palavras a sério, chegando a pisá-la. Observo num silêncio que acontece ao som de Hans zimmer. Depois, apenas têm de a desembrulhar, de a endireitar e de reverter o processo de forma a ficar com a folha que entreguei no início. O exercício começa a não parecer assim tão simples...Na tentativa de endireitar o papel há quem o rasgue, há quem desista, há quem o torne tão fino que se pode ver através dele. É impossível, pr’ssora!, A minha rasgou-se. Tem outra?, E agora, o que fazemos? Não há outra folha. Esta é única e vai ser o suporte do que vamos escrever hoje. A indignação paira no ar, pois levo o ano inteiro a martelar na importância de um trabalho limpo e aprumado, que uma folha rasgada, arrancada do caderno, amarrotada ou suja é uma falta de respeito para com os professores e para com eles próprios que não têm brio naquilo que executam. Acredito
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que mesmo sem efeitos imediatos, algum dia, as minhas palavras hão-de ressoar nas suas, ainda pequenas, cabecinhas.
Depois de passada a ferro, explico-lhes que aquela folha amarrotada é uma metáfora para o nosso coração magoado pelas palavras e pelos gestos dos outros. Magoaram a folha sem dó nem piedade, sem pensarem no que viria a seguir e o mesmo acontece quando despejamos a nossa amargura sobre o colega, o amigo, o irmão, o familiar, o desconhecido. Acontece aos outros. Acontece-nos a nós. E não pensamos no que estamos a provocar. Por muito que se converse, se perdoe, se seja perdoado, fica sempre uma marca. Marca atrás de marca o coração vai ficando com feridas que se podem, ou não, transformar em cicatrizes mais ou menos abertas. Há as que não têm cura.
Oh pr’ssora, então este este exercício é sobre bullying?
Não necessariamente, não é somente a violência continuada que deixa marcas. Por vezes basta uma palavra ou uma atitude num momento menos feliz para que fique algo permanente em nós. Explico-lhes que cabe a cada um evitar que o mal aconteça, sobretudo não fazendo aos outros o que não queremos que nos façam a nós.
Aproveito o silêncio que se ouve para explicar o exercício: Quero que escrevam sobre o que sentem quando alguém vos magoa. Ficam alarmados, perante a hipótese de, no final, terem de partilhar os textos com a turma, como é hábito. É aqui que assumo o compromisso
- cabe-lhes confiar, ou não - que cada um dos textos ficará somente entre mim e cada um
deles. Depois das minhas palavras oiço uma espécie de suspiro colectivo que transborda uma sensação de alívio.
Têm dificuldade em escrever sobre o papel amarrotado. Reclamam. Pr’ssora, não se percebe nada! Experimentam-me para ver se
lhes dou uma folha nova. Não cedo. Quero que sintam o exercício e reflitam sobre o que sentem e sobre o que fazem sentir. Uns minutos bastam para que estejam todos curvados sobre a mesa e se oiça o riscar dos lápis ou das canetas.
No que é que te estás a meter? - penso. Afinal, o que sabes da vida destes miúdos para teres de carregar o que aí vem? Na realidade pouco ou nada sei das suas dores. São dores de crianças e adolescentes, mas não deixam de o ser. Têm o peso proporcional ao seu tamanho, porém merecem o mesmo respeito que os males dos adultos. Agora já está. Não posso voltar atrás. Assumi um compromisso, dei-lhes a minha palavra e vou cumprir. Perante o que dali vier, tomarei a decisão de ter, ou não, de quebrar o meu voto de silêncio.
No fim dos quarenta e cinco minutos de aula, num registo quase religioso, dirigemse a mim, um a um, para me entregar os seus textos. Algumas folhas vêm tão dobradas que cabem numa mão fechada, talvez na tentativa
de guardar algum precioso segredo. Fazemme repetir a promessa de que não partilharei o conteúdo do que lhes saiu da alma. E eu prometo. Há quem se abrace a mim a chorar. Há quem me agradeça pelo momento e por ter conseguido desabafar. Há quem olhe com desconfiança. Ninguém entrega folhas em branco, o que não deixa de ser curioso…
Levo muito tempo até ler o que escreveram. Confesso que tenho algum receio, mas assim que começo, faço-o de uma vez só. Dou por
mim em lágrimas. Visto-lhes a pele e sintolhes as mágoas. Aos olhos de um adulto podem parecer ridículas, aos olhos de uma criança não são assim tão leves.
Em cada texto deixo um comentário pessoal e, cuidadosamente, colo-os em envelopes coloridos. Por fora, o nome de cada um e um mimo. Antes de os entregar coloco o My favourite things da Julie Andrews a sair da coluna e peço-lhes que oiçam com atenção. Terminamos a aula com uma lista das suas coisas favoritas escritas no quadro – as quais podem lembrar sempre que se sentirem tristes, com “os problemas são sempre maiores na nossa cabeça, do que na realidade”, com um abraço coletivo e a promessa de que todos seremos melhores para os outros todos os dias.