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O Mar Logo Ali Ana Gomes

INFELICIDADE INFELICIDADE

Carla aguardava por entrar no consultório. Era a 25.ª vez. Apesar de anotar tudo – e daí saber que estava prestes a completar meio ano de tratamento - não estava ali por alguma obsessão.

Eram quatro e meia. Carla não parecia aborrecida com a espera. Na verdade, fazia tudo para chegar mais cedo e levava um livro. Só assim conseguia ler algo diferente de processos, códigos, teses de doutoramento, artigos científicos, acórdãos de outros Tribunais ou os projetos dos seus próprios acórdãos ou de colegas.

Ao longo dos meses anteriores, a consulta nunca se tinha atrasado e terminava exatamente uma hora depois. O psiquiatra não trazia relógio de pulso ou de bolso, nem havia um alarme. Era mesmo um relógio de parede, redondo e enorme cujos ponteiros anunciavam as seis horas, a hora de sair. A conversa terminava onde estivesse, sem final aberto ou fechado. Haviam de retomar o fio da meada na semana seguinte.

Das sessões havidas já tinha tido conhecimento do diagnóstico: burnout seguido de depressão. Parece que anda meio mundo, ou mais, exausto e Carla pediu ajuda quando já quase não comia e após ter ido ao supermercado e colocado no tabuleiro rolante vinte latas de bebidas energéticas. O psiquiatra aconselhou-a a ficar um tempo sem trabalhar porque apesar de ela dizer que era o que mais gostava de fazer, os processos não estavam a fazê-la feliz e a forma de organização do trabalho tinha-a levado ao colapso. Como se não bastasse, sentia que naquele estado ainda carregava todas as desgraças do mundo, fosse a guerra, a pobreza ou a anunciada falta de água, essencial à vida. Depois da consulta, Carla lembrou-se da frase de Digo Santiago, o remédio para a minha depressão (…) a depressão era chamada de infelicidade. Ficou a pensar naquilo, foi para casa, acordou pelo meio dia porque os remédios faziam-na dormir à força. Tomou o pequeno-almoço. Saiu para dar um passeio. Os colegas repetiam-lhe que era bom andar ao ar livre. Num repente, virou para a estação de Entrecampos. Pediu um bilhete. Entrou no Intercidades às 14H10 e, no caminho, reservou o hotel mais perto da praia,

À tarde e ao sul, as gaivotas ocupam o areal, ocupam o mar, mantêm-se estranhamente sem emitir qualquer som, como num filme mudo. O silêncio das aves é entrecortado pelo mar feito ondas a fechar contra a areia e, no intervalo, a respiração controlada de um nadador experiente. Carla entra no mar. A temperatura está poucos graus abaixo da que se sente cá fora, o suficiente para sentir uma frescura que lhe percorre o corpo e que a faz sentir-se viva e feliz (?)

A chuva há-de vir …

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