8 minute read
Flores na Abíssinia Carla Coelho
from 52 Edição
FLORES NA ABISSÍNIA
Carla Coelho
UMA PERSONAGEM E A SUA HISTÓRIA
Era uma vez uma personagem que deu por si na inusitada situação de não ter história onde se integrar. Esse seu estado não lhe foi de imediato evidente. Apercebeu-se de que existia numa manhã de janeiro em que deu por si a caminhar pela Avenida da Liberdade, embrulhada em alguma confissão. Não sabia se tinha sido abandonada ou se, maravilhada com o sol de janeiro e a limpidez da manhã, se tinha perdido de quem a imaginara. Ficou ali por uns momentos até perceber que não tinha para onde ir, com quem se encontrar ou para onde regressar.
Observou um homem parado num passeio, de costas para uma sapataria. Nem gordo, nem magro. Não demasiado alto, mas também não poderia ser definido como baixo. Não trazia estampado um sorriso na cara, não se querendo com isto dizer que estava carrancudo. De repente, uma loura de faces rubicundas, com gabardina e botas brancas aproximou-se do homem. Todo ele se iluminou quando a viu, deu-lhe um beijo na face e de braço dado afastaramse a conversar. A atenção da personagem sem história (ainda) concentrou-se depois em duas mulheres idosas que se cruzavam nesse momento do outro lado da rua. Saudaram-se, uma vinha já da praça (concluiu a personagem surpreendendo-se com a sua rapidez de pensamento, de onde lhe vem este conhecimento?), outra a julgar pelo trolley vazio que a segue deverá ir para lá. À personagem ocorre-lhe então que a verdade: todos os que ele via eram personagens, certamente de outras histórias, que tinham vindo ao seu encontro. O homem e a mulher que se tinham afastado, as duas mulheres à conversa, o rapaz que ao seu lado passava com o seu cão em passo lento. Bastava-lhe, pois, ficar ali à espera que a sua história viesse
ao seu encontro. Atravessou a rua e sentouse num dos bancos de pedra da praça. Aguardou.
O dia passou lento. Ainda de manhã, apenas lhe pareceu que ia ser abordada por uns rapazes que lhe pareceram ter um certo mau aspecto. Eram três, com ar de quem não estava de boas relações com água e sabão, trajando calças justas (excepto o do meio que envergava, não, arrastava-se num fato de treino encardido) e bonés a conduzir. Falavam alto entre si. A nossa personagem fingiu olhar para o horizonte, fazendo de conta que não os via. Não queria fazer parte de qualquer história em que aquelas figuras entrassem, nem como figurantes. Pegou num velho jornal que alguém tinha deixado esquecido no banco onde estava sentado mantendo o olhar nas notícias sobre a Ucrânia até os rapazes desaparecerem.
Manteve-se firmemente sentada no banco durante todo o dia. Ao entardecer, porém, teve de admitir para si (a mais ninguém o assunto parecia interessar) que o seu método não estava a ter sucesso. Uma menina de uns cinco anos aproximouse dele a correr, mas percebeu que queria apenas recuperar a bola que um pontapé mais enérgico tinha atirado para debaixo do seu banco. Dois cães dobermane vieram cheirá-la antes da dona lhe puxar a trela. Observando as tantas pessoas que passavam à sua frente sem que nenhuma a interpelasse percebeu que não tinha encontrado a sua história. Consolou-se a si próprio. Talvez a sua história estivesse retida algures numa estação ou apeadeiro ou num cais mais para o norte da cidade. Quem sabe a história estava confusa, sem ter ainda percebido que lhe faltava uma personagem. Ou talvez o autor ou autora tivesse adormecido. Ou mesmo desmaiado. Poderia o seu criador ter levado com um tijolo na cabeça, ter sido atropelado, estar em coma? Respirou fundo. Era preciso ter calma. Não tinha, disse a si própria, qualquer indício que lhe permitisse concluir que quem a tinha imaginado estava fora de jogo. Mais, com tantas personagens, tantos enredos à sua volta, era preciso ter muito azar para logo a sua história terminar antes mesmo de ter começado. Iria à procura. Da sua história, de quem o tinha imaginado. Em último caso, se não os encontrasse entraria numa outra história que lhe parecesse interessante.
Tinha de recompor forças. Caminhou pelas ruas da cidade à medida que entardecia, não se deixando contagiar pela aparente pressa com que quase todos circulava. Pareciam estar a viver histórias frenéticas.
Entrou numa pastelaria e sentou-se à
Uma personagem e a sua história
Flores na abissínia
mesa. Antes de ter tempo de dizer o que queria, o empregado colocou-lhe à frente um pastel de feijão e uma bica. Levou o bolo á boca e soube-lhe como sempre (que estranho, pensou e pensamos nós, claro). Olhou à sua volta. Apreciou os azulejos com motivos azuis em fundo branco, o balcão já com poucos produtos (um ou outro folhado e uns pastéis de nata). Nada lhe parecia familiar, excepto o sabor do pastel que se lhe ia dissolvendo na boca.
Levantou-se da mesa e saiu. A noite quase cobria a cidade. Aproximou-se do rio, procurando sinais de alguma familiaridade. Nada. Absolutamente nada. Rien de rien (estranhou, sabia idiomas estrageiros? Ao menos dedilhava o francês).
Olhou para o lado e viu uma bola verde. Não, não era uma bola, era um cão verde, com o nariz rosa choque. Também ele lhe devolvia o olhar com estranheza. Ou parecia, pelo menos. Procurou disfarçar a surpresa perante o inusitado da situação. Durante o dia tinha visto diversos cães pela cidade (para além dos dobermane, um irritante caniche branco e um outro, simpático, de pelo curto cor de mel), mas aquele era inusitado. Verde, com pelo médio, olhos vivos e um nariz cor de rosa choque.
Quando se afastava o cachorro falou-lhe:
- Também te deixaram?
A nossa personagem ficou de boca aberta. Um cão que falava?! Isso era inesperado.
Indiferente (ou inconsciente da surpresa) o canídeo continuou:
- Sou o Bob, um cão marciano. - Como?! - Sim, sou um cão vindo de Marte, o planeta, sabes?
A personagem acreditava-se sofisticada. Por isso, perguntou com no tom mais natural que conseguiu:
- E como chegaste aqui? - Olha, fui imaginado por um miúdo de cinco anos, o André. Estava ele muito bem a pensar em mim, a criar-me, quando teve a infeliz ideia de, na viagem de carro com os pais, falar de mim … - Falar de ti? - Sim, pôs-se a dizer aos pais que tinha imaginado um cão verde vindo de outro planeta , Marte, que falava e que tinha aventuras. Para meu azar, o pai disse-lhe logo que isso era uma estupidez, que cães verdes não existem, muito menos em Marte. - E o miúdo? - Começou a chorar, a teimar que existia, que era dele, que era o Bob … Um chinfrim, a mãe a tentar acalmá-lo e o pai a gritar por cima, a dizer que por estas e por outras é que ele tinha de ir ao psicólogo …Enfim, quando chegámos ali à esquina da Avenida 5 de Outubro com a Av. Da República, estás a ver?, o miúdo deitou-me fora. - Deitou-te fora? - Sim, de repente, dei por mim fora do carro. Largou-me ali. Fiquei por minha conta. - Talvez te recupere ou lhe voltes à ideia …
Bob franziu o sobrolho dubitativo. Concedeu:
- Não sei … Quem sabe, daqui a uns dias ou quando for adulto, se for daqueles miúdos que gosta de ficção científica e histórias de dragões e tal. – Suspirou – E até, quem te deitou fora?
A personagem sorriu: - Não fui deitado fora. - Ah não? Então o que estás aqui a fazer? - Olha, tenho estado a matutar nisso o dia todo. Pensava que também estava perdido. Mas quando te ouvi a contar a tua história, lembrei-me do que se passou. - Então, conta lá … - Evadi-me. - Evadiste-te? Como assim?
- Fugi, pus-me a andar, dei às de vila-diogo, debandei … - OK, já percebi. Mas porque fizeste isso? - Bom, ia no carro com a minha criadora. Tudo certo, começou a criar-me, a dar-me vida, a pensar nas minhas características físicas. Altura, largura, peso, cor do cabelo, olhos, tudo muito bem. Imagina-me numa praia das Caraíbas, com roupinha de época, toda rota, como alguém foragido, tripulante de um barco de piratas ou assim… Já vejo uma história maravilhosa, com lutas, aventuras, uma história para a qual valia a pena ter saído do reino da imaginação. Mas, de repente, tudo muda. - Sem mais? Do nada? - Pareceu-me isso mesmo. Do nada. – Para dar ênfase à sua fala, a personagem estalou os dedos e atirou as mãos pelo ar – Pensando bem, começou a tocar uma musiquinha bem deprimente. Deixa ver, qualquer coisa como “(…) and that you’d be reminded that for me, it isn’t over/ Never mind, I’ll find someone like you”. O que se passou não sei. Sei que do nada desapareceu a roupa de época, a praia nas Caraíbas, todo o cenário e estou metido num T2 com alguém a chorar e a gritar para mim “porquê, porquê, porque me deixas”?, à volta copos e pratos partidos e a uns sacos de plástico cheios de roupa à porta. Pensei: não, não eu, Isto não é uma história para uma personagem como eu. E, vai daí, quando começou o noticiário das 8h00 saí do carro.
Houve um longo silêncio. Depois, Bob, o cão verde que veio de Marte, arriscou perguntar:
- Então e agora? O que vais fazer?
Abriu os braços num gesto largo (a personagem é um pouco teatral, conceda-se) e respondeu:
-Não é óbvio? Vou escrever a minha própria história.