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Chá de Poejo Raquel Véstia

RAQUEL VÉSTIA CHÁ DE POEJO

As coisas mais nobres da nossa vida, ficam por vezes sepultadas no passado, e nem o tempo consegue desvendar a memória, dos dias em que fomos felizes. Na verdade, um gesto pueril e efémero, pode revelar a mais gloriosa e eterna verdade, que se espelha nas recordações dos cheiros, sabores e da vida, que nos parece inconcebivelmente bela, eternizada em breves memórias. Vem-me à lembrança, o tempo em que se celebrou a vida e a humanidade, vertida numa grande caneca de barro, com chá de poejo, sorvida em tragos de esperança. Nos dias frios, a avó reunia todos em volta da lareira. Eu, o Jaime, o Manel e o gato Zacarias, que ficava a admirar-nos, não que fosse dado a contemplações, mas era o seu destino. Havia uma hora sagrada, a do chá! Uma oração, que durava uma meia hora. A avó era dada a poucas falas. Contida nas palavras, mas imensa nos gestos. Trazia, um enorme cesto de pão torrado e compota de cereja, que espalhava pela mesa, em jeito de banquete. Recordo-me dos dias, em que a via arqueada, debruçada sobre o fogão, onde se sobrelevava um fumeiro rico de enchidos. A avó junto à panela, com a água fervida em ebulição, preparava o nosso chá, mexia o caldeirão, como o bálsamo dos deuses. Olha-a tão pequena, tão franzina, num esforço sempre sereno, a juntar água à panela, limão e mel, mais ervas de perlimpimpim. Esta era a poção dos deuses, contra gripes e maleitas. Aquele chá dava para tudo!! Diziam que a dona Chica, amiga da vizinha, não tinha sobrevivido à pneumónica, se não fosse aquele elixir sagrado. A receita era passada de geração em geração, servia para curar febres altas, cefaleias, dores da separação, e divórcio, males de amor, inveja e arrumação. Hoje teria o mesmo efeito que o Mestre Xacroculto, que cura a inveja e é especialista em trabalhos espirituais, bruxaria, bruxedo, mauolhado e magia negra. O vidente trazia o amor de volta, ajudava a livrar-nos do “ maus-hábitos”. A minha avó trazia-nos

de volta, à mesa, quiçá magia branca, e unia-nos no hábito da comunhão da vida. Ficávamos horas no silêncio do chá.

Uma hora de silêncio, preenchia uma imensidão de fantasias e coagitações

Todos esperavam atentamente que fosse servido, com a máxima religiosidade, horas ocas, a sorver cada trago do presente e a embriagar-nos com cada hausto do futuro. Fagulhas da lareira, centelhas de fogo. O Manel atirava uns pequenos gravetos e pinhas, remexia, e ficava a olhá-las em combustão. As fagulhas às vezes soltavamse e davam o seu aparato ao festim. A avó repreendia-o, só de abrir os olhos e serrar o lábio inferior. Eu via-o, e traduzia em palavras. -C`os diabos Maneelllll, está quieto!! Vê lá se não arranjas lenha para te queimar. Ele ouvia e logo se resguardava. O endiabrado do Jaime, era de todos o mais dado a brigas e arrufos. Às vezes ria-se, atirava umas larachas e frases em tom de gabarolice, a contar as suas epopeias. - Sabem que há um terreno para os lados do Soajo?....daqui a uns anos é meu... -Vais comprar? - retorquiu o Manuel. -Não…. achas?- replicou em jeito ufanosochego lá como um forasteiro, e invado tudo. Sabes que há povos, que fizeram o mesmo?

A avó tinha ficado mais de dez anos, sem beber chá. Certo dia, um vizinho bateu-lhe à porta, em tom de sobressalto. -Dona Lina, não sei como dizer-lhe, mas o Jaime morreu, encontrámos a bicicleta perdida, junto à estrada, num terreno perto do Soajo, lamento muito.

A avó, fechou as portadas do seu casarão, nunca mais, pelas redondezas, alguém a viu sair de casa. Há quem achasse que tivesse morrido. Todos receavam o seu futuro. Sabe-se que o corpo, fora encontrado mais tarde, num campo verdejante e deserto, junto a um rio selvagem, onde jaziam roseiras. A avó ia visitar o campo toda as tardes, para que as rosas não perecessem. Plantou uma árvore de copa robusta, e prontamente nasceram gramíneas perenes, com grandes limbos, que presenteavam a planície. Cultivou, mais tarde, várias plantas aromáticas, como o poejo, de todas a mais tolerante às intempéries, que resistiu e celebrou a vida. A avó só retomou o ritual, anos mais tarde. Essa hora do chá, transformou-se num silêncio sepulcral. O terreno ficava perto de um vale, que dava para uma rua, pouco plana e sinuosa, onde se cruzava uma planície de cedros. Numa outra encruzilhada, esmorecia um campo abandonado, pela tarde em silêncio, onde no Verão se colhiam cerejas.

A AVÓ ENCONTRAVA NAQUELE MOMENTO DO CHÁ, A SUA FORMA DE SE REUNIR CONNOSCO, DE COMUNHÃO COM A VIDA, ERA A SUA FORMA DE ENCONTRAR A PAZ, O SEU PRÓPRIO DEUS!!

Ainda relembro a sua voz, como um chamamento:

-Meninos... venham. Hoje preparei chá! -dizia rejubilando.

Foi nesse momento, que vi, que se tinha conciliado com o mundo. Não há bálsamo, como aquele da minha avó Lina. Uns toques de perlimpimpim, pó do aroma eterno da saudade e ervas de quem sorveu num trago, toda a Humanidade!

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