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Liberalismo versus conservadorismo Pedro Àlvares de Carvalho
from 52 Edição
Pedro Álvares de Carvalho
LIBERALISMO VERSUS CONSERVADORISMO.
A convergência entre dois polos e maior operacionalidade dos mesmo, em relação ao tradicional binómio “esquerda”/”direita”, na análise da Ordem Internacional Liberal
CONTINUAÇÃO.....
A natureza meta-humana, acéptica, amoral, da O.L.I. teve, sobretudo, origens bem mais pragmáticas.
A ideia de livre comércio mundial, apenas sujeito a regras de índole económica e/ou financeira e a uma regulação privada via, sobretudo, Tribunais Arbitrais, gerou-se nas mentes dos que viam aí uma oportunidade única de enriquecer sem os limites de um simples Estado-Nação. A possibilidade de movimentar capitais financeiros a seu bel-prazer; de fazer engenharia fiscal agressiva; de “deslocalizar” as cadeias de valor por forma a colocar nos cantos mais pobres do mundo as menores-valias (em regra a produção em massa) e fazer retornar as mais-valias aos centros financeiros globais.
Tudo isto é puro capitalismo desregulado, a adopção da Lei da Natureza, isto é, a lei darwiniana do mais forte.
Como desculpa, sim, apenas isso, como desculpa, porque nós sabemos que eles sabiam que era inviável, os “poderes que são” afirmaram que o acolhimento, no seio da O.L.I., de países de matiz claramente autoritária e antiliberal ou iliberal, como a China, os iria enriquecer, fazer crescer a respectiva classe média e, como no Ocidente sucedeu, a mesma iria acabar por ser tão forte e reivindicativa que o regime Comunista Chinês acabaria por
ceder e permitir o nascer, na China, de uma sociedade com valores liberais ocidentais. Por razões que melhor se explicarão abaixo, tal não sucedeu, nem sucederia nunca.
Por estes motivos, os defensores da O.L.I., tal qual ela foi desenhada, esventrada de conteúdo ético ou axiológico, não podem ser considerados como “liberais” em qualquer sentido, político, que eu conheça. Enquadrar-se-ão, porventura, na destemperada ideia do Neoliberalismo, que não é, na verdade, um Liberalismo, pois que ignora, espezinha, despreza, a individualidade, a nobreza do ser indivíduo, reconduzindo-o a mero alvo para o consumo imediato. E, se uma coisa isso não é, é, precisamente, Liberalismo.
Na verdade, quem leu e aprendeu, em Portugal, com Castanheira Neves ou quem conhece a obra de Hans-Georg Gadamer, que Castanheira Neves transmitia para quem quisesse de facto aprender, saberá que qualquer abordagem do social, em sentido lato (cultural, político, jurisdicional, direito, económico, etc), implica uma forma de compreensão ou experiência de sentido que desenvolve uma capacidade natural do ser humano, qual seja, a capacidade de orientação e eleição num mundo vivido em mediação ou comunidade e que a relação dentro e entre a(s) comunidade(s), aquela forma de compreensão ou experiência, constituem meios de formação e recordação do que na humanidade do homem é imutável (Maria Luísa Portocarrero F. Silva, “Problemas da Hermenêutica prática”, Revista Filosófica de Coimbra, nº 8, 1995), apesar da pressão social da estandardização ou repetição e da vivência contemporânea do primado do consumo, da solidão e da alienação,.
É por essa razão que, mesmo dentro de um país pequeno e culturalmente bastante coeso, como é o caso de Portugal, a aplicação de uma norma tão simples como a que prevê, no Código Penal, o crime de injúria, deverá ser feita mediante um percurso interpretativo que tenha em atenção a realidade social em que o funcionamento da mesma é, abstractamente, despoletado, o mesmo sucedendo, sendo caso de aplicação ao caso concreto, na determinação da natureza e medida da pena.
Transpondo o exemplo para outras circunstâncias de leitura, opções, e constructos políticos e sociais, o que se exige será, então, essa relação dialogante, de via dupla, entre conceituação e realidade e vice-versa.
Oakeshott, Scruton, Hayek e Popper igualmente defenderam o demoliberalismo tendo por referência o racionalismo evolucionista/tradicionalista, sendo classificados, Scruton e Oakeshott, como conservadores.
Na essência, entre todos eles (conservadores e liberais9, verifica-se que não dispensam aquela humanidade imutável do homem social, como critério e medida de todas as coisas.
Ora, para a instauração da Ordem Liberal Internacional, a presente, sem qualquer substrato axiológico concreto, que vem conhecendo um processo de desagregação, ou uma outra qualquer, tal como foi desenhada e implementada desde meados do século passado, será sempre necessária uma dose de autoritarismo, ou mesmo, um total autoritarismo. Esse autoritarismo mostra-se
Liberalismo versus conservadorismo
Pedro Álvares de Carvalho
necessário na medida, precisamente, da ausência, propositada, de qualquer referência ou âncora ética e axiológica.
E este autoritarismo, por sua vez, só é possível e viável garantida que esteja a existência de grandes massas inanes cujo sacrifício seja mero dano colateral e, por essa via, “aceitável”, baseandose na dominação permanente de todos os indivíduos em todas as esferas da vida, isolando o indivíduo e colocando-o em organizações de massa indiferenciadas, deixando-o isolado e mais facilmente manipulável, transformando a cultura em propaganda, ou seja, a transformação de valores culturais em produtos vendáveis, o que passa pela desvalorização propositada do “conhecimento científico” ou do simples conhecimento especializado, dos intelectuais, tudo transformando em cultura pop, não reflexiva e acrítica.
Ou seja, uma desumanização do homem, na sua essência.
Por essa razão a China comunista, autoritária, dirigida pelo respectivo P.C.C., não experienciou qualquer mudança de paradigma de organização social e de governação, no sentido de qualquer tipo de aproximação às democracias liberais, nem, sendo o produto de uma cultura milenar de subjugação e submissão, alguma vez tal aconteceria.
Por, como e em que sentido ir a partir deste ponto a que chegámos?
Não me parece possível ou, melhor dito, realista, voltar, sem mais, a um passado de total soberania nacional, de desvinculação global, de isolamento e nacionalismo.
Aqui talvez devamos fazer um parêntesis para abordar, com ligeira profundeza, o Conservadorismo.
Este é um conceito que vulgarmente se mostra como oposto ao Liberalismo.
Sucede que a polissemia que existe na conceituação do Liberalismo sucede igualmente no Conservadorismo, ou, conforme melhor descreve Edmund Fawcett (“Conservadorismo –
A luta por uma tradição”, Edições 70, 2021), «[t]al como o liberalismo, o conservadorismo não tem um Decálogo, não tem um Código para a Propagação da Fé, não tem uma Declaração de Independência fundadora, tampouco um compêndio doutrinário à altura da Edição Standard de Marx e Engels».
Na verdade, penso, podemos, precisamente com a mesma origem histórica da bifurcação da semântica liberalista, vislumbrar dois conservadorismos.
Na sequência, lá está, da mesma já mencionada Revolução Francesa, dois escritos seminais foram produzidos. Por uma banda temos o por demais conhecido Edmund Burke, com o seu “Reflections on the Revolution in France - and on the Proceedings in Certain Societies in London Relative to that Event in a Letter Intended to have been sent to a Gentleman in Paris”, (Penguin Books). Por outra banda surgenos o menos divulgado, mas igualmente importante, Josephe de Maistre, que escreveu o “Considerations on France” (Cambridge Texts in the History of Political Thought).
Ambos se apresentam, e justamente, a meu ver, como fortemente críticos da Revolução Francesa ou, melhor dito, dos seus desenvolvimentos que, no entanto, mais não foram do que consequências naturais das suas – da Revolução – origens ideológicas.
No entanto, ao passo que Burke se debruçava sobre questões como a importância da tradição, criticando os políticos/intelectuais franceses que, ignorando-a, ignoraram também a organicidade vulnerável da sociedade, não pretendendo um “regresso ao passado” ‘tout court’, já De Maistre via a Revolução Francesa como um mero interlúdio, defendendo o retorno a um passado que via como idílico e totalmente virtuoso.
Não espanta, por isso, que, apesar de um e outro
não acreditarem, verdadeiramente, na capacidade de autogoverno do “povo”, Burke, pelo seu lado, tenha dado origem a um conservadorismo sustentado em puro bom senso esclarecido e competência prática, ao passo que De Maistre, por sua vez, tenha sido o gérmen dos autoritarismos não comunistas e fascismos do século XX. Apesar do pessimismo antropológico de ambos (que confessadamente partilho), Burke (com o qual partilho o entendimento) distancia-se de De Maistre num ponto fundamental – é que o primeiro entendia que as pessoas reconheciam as regras do bom viver e confiavam que as outras as seguiriam, reconhecendo-as, ao passo que o segundo não admitia que, em liberdade, as pessoas disso fossem capazes. Para o primeiro era o costume, a tradição, a fonte das regras sociais, ao passo que, para o segundo, essa fonte apenas podia ser Deus.
Burke, apesar de arauto conservador, aproxima-se do conservadorismo moderno de Oakeshott e Scruton, os quais, por sua vez, se mostram perfeitamente compatíveis com um liberalismo não construtivista de autores liberais como Isaiah Berlin, na medida em que a ortodoxia, se quisermos, conservadora daqueles é baseada, no essencial, no costume, que, lá está, Isaiah Berlin não renega, bem ao contrário, no âmbito do liberalismo.
Nesta medida, o conservadorismo de Burke e seus sucedâneos, não sendo construtivista, de todo e obviamente, mas sendo reformista na medida certa, aproxima-se daquilo que José Adelino Maltez designa, aqui se parafraseando, como o “liberalismo do que deve ser”, um conservadorismo que admite a reforma, no momento, no modo e na medida certos, sem disrupções.
Ao invés, o conservadorismo sucedâneo de De Maistre é reaccionário, no sentido em que está sempre com o pensamento num passado que desenha como idílico, perfeito, ao qual quer retornar.
Temos, deste modo, quatro conceitos operativos para análise político-sociológica – Liberalismo Progressista, Liberalismo, Conservadorismo e Conservadorismo reacionário – bem mais úteis, aqui se defende, do que os simplistas “esquerda” e “direita”..