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O cineasta Eduardo Coutinho ao lado do diretor de fotografia Jacques Cheuiche durante a gravação do documentário As Canções (2010)
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Os OlhOs dE
Eduardo Coutinho O diretor de fotografia Jacques Cheuiche acompanhou o documentarista nos últimos 13 anos. E conta como era filmar com o diretor, que morreu recentemente Por Karina Sérgio Gomes
diretor Eduardo Coutinho tinha acabado de filmar a última entrevista de Edifício Master(2002) quando o cinegrafista Jacques Cheuiche resolveu gastar um pouco da fita que tinha sobrado, mas sem contar ao diretor. Ele filmou janelas em que pessoas apareciam como se estivessem engavetadas, jantando ou vendo televisão. Dois meses depois, Coutinho ligou para Cheuiche aos berros, mas de felicidade: “Você filmou o final e não me contou”. O documentarista estava montando o longa e não achava um final quando descobriu as imagens feitas na surdina. “Ele era um cara muito econômico. Só filmava o que sabia que ia usar”, conta o diretor de fotografia.
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Cheuiche explica que, se tivesse contado para Eduardo Coutinho que filmaria as janelas, o diretor diria que não seria preciso porque não iria usar no filme. Ele fala com a autoridade de quem foi os “olhos” de Coutinho
Quatro lições de Coutinho 1 Seja simples 2 Acredite na sua ideia 3 Não saia perdido por aí para filmar; saia com roteiro e ideia bem definidos 4 Domine o equipamento que você opera, pois o melhor equipamento é o que você tem em mãos e por isso deve saber tirar o máximo dele
Cheiuche diz que nos filmes de Coutinho a fotografia seguia as ideias do diretor
xou de filmar com Cheuiche, porque, de acordo com o documentarista, “o cinegrafista sabia ouvir e estava sempre com a câmera pronta”.
O estilo de Coutinho nos últimos 13 anos e fez com ele nove filmes. Tem nítido na memória a primeira vez que viu Coutinho, em 1982, chegando com uma bolsa de couro à tiracolo em um restaurante em Recife (PE), onde se encontraram casualmente. O diretor tinha acabado as filmagens de Cabra Marcado para Morrer (1984) e Cheuiche havia finalizado Parahyba, Mulher Macho (1983), de Tizuka Ya-
masaki. Depois desse encontro, vieram vários convites do documentarista para filmar com Cheuiche. Nenhum deu certo. O primeiro em que finalmente conseguiram firmar uma parceria foi um documentário sobre a igreja presbiteriana no Brasil, encomendado por presbiterianos norte-americanos. Depois dessa experiência, Coutinho nunca mais dei-
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Cheuiche não impunha a fotografia sobre as ideias do diretor. “Nos filmes de Coutinho a fotografia não vinha em primeiro lugar. Geralmente era consequência do que ele pensou em filmar”, lembra o cinegrafista. Quando foram rodar Edifício Master, Coutinho perguntou a Cheuiche: “Você consegue filmar sem ver as locações antes e sem alterar a ilumi-
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3 Jacques Cheuiche e Eduardo Coutinho firmaram uma parceria de 13 anos: o diretor de fotografia filmou os últimos nove documentários feitos pelo cineasta
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nação?”. O diretor de fotografia achou estranho, mas topou o desafio. O documentarista não queria que os apartamentos dos moradores fossem modificados. A ideia era mostrar exatamente como aquelas pessoas viviam. Segundo Cheuiche, o grande trunfo para a qualidade da imagem de Edifício Master foi o lançamento da camcorder Sony DSR 500, que tinha uma lente muito luminosa. Aliás, foi o diretor que deu a dica da câmera para o cinegrafista. “Coutinho era muito antenado, tanto com equipamentos quanto com o que se estava produzindo no cinema aqui
1 2 Cenas do documentário Cabra Marcado para Morrer filmado em 1964 e 1984
Filmes dirigidos por Eduardo Coutinho 1966 O Pacto (episódio do longa ABC do Amor) 1968 O Homem que Comprou o Mundo 1970 Faustão 1976 O Pistoleiro de Serra Talhada (média-metragem) 1976 Seis Dias em Ouricuri (média-metragem) 1978 Teodorico, o Imperador do Sertão (média-metragem) 1979 Exu, uma Tragédia Sangrenta (curta-metragem)
1980 Portinari, o Menino de Brodósqui (média-metragem) 1984 Cabra Marcado para Morrer 1987 Santa Marta — Duas semanas no Morro (média-metragem) 1989 Volta Redonda, o Memorial da Greve (média-metragem) 1989 O Jogo da Dívida (média-metragem) 1991 O Fio da Memória 1992 A Lei e a Vida
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1993 Boca de Lixo (média-metragem) 1994 Os Romeiros de Padre Cícero (média-metragem) 1999 Santo Forte 2000 Babilônia 2000 2002 Edifício Master 2004 Peões 2005 O Fim e o Princípio 2007 Jogo de Cena 2009 Moscou 2011 As Canções
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Cineasta morto foi lembrado no Oscar
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a tarde de domingo, no dia 2 de fevereiro de 2014, Eduardo Coutinho foi encontrado morto a facadas em seu apartamento na zona sul do Rio de Janeiro. O crime foi cometido pelo filho Daniel Coutinho, de 41 anos, que sofre de esquizofrenia. Após matar o pai, ele esfaqueou a mãe, Maria das Dores, e, em seguida, tentou o suicídio (ambos sobreviveram). Um mês depois, dia 2 de março, Coutinho foi homenageado na cerimônia da 86a edição de entrega do Oscar em um vídeo que lembra personalidades importantes para o cinema que morreram em 2013. No ano passado, o diretor foi convidado pela Academia de Hollywood e aceitou fazer parte da comissão executiva que avalia os candidatos ao Oscar na categoria de Melhor Documentário.
e no exterior”, observa. Com a chegada das MiniDVs, cujas fitas tinham cerca de 40 minutos de duração, o documentarista ganhou mais fôlego para as entrevistas. Trocar fitas ou lentes no meio da entrevista era algo que desagradava a Coutinho. Cheuiche tinha um código para avisar quando precisaria trocar a fita ou a bateria: “última pergunta, Coutinho”. Assim, ele sabia que não poderia se estender mais no assunto e logo teria de fazer uma pausa. E como fazer interrupções era ruim para o processo do documentarista, Cheuiche tinha de usar uma câmera em que pudesse ter uma lente zoom que servisse de grande angular e tele ao mesmo tempo. O
diretor de fotografia também preferia contar com um equipamento mais fácil de apoiar no ombro para ter mais estabilidade. Por isso, nos últimos anos, utilizar uma câmera HDSLR era difícil. “Coutinho não gostava de que fizesse cortes. Se o personagem fosse até a estante, eu deveria acompanhar o movimento dele. O importante era a palavra. A história contada pelas pessoas”, explica Cheuiche. Coutinho também não gostava de especialistas, e este seria o motivo pelo qual o diretor não quis entrevistar o ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva em Peões (2004). Para esse filme, que contava a história dos metalúrgicos do ABC, Lula seria a
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voz de um especialista se tivesse gravado. Cheuiche ainda insistiu para Coutinho ter pelo menos a imagem como um arquivo. “Se filmar, vou ter de usar”, dizia o diretor na época. “Para ele, o assunto deveria encerrar em si e ser autoexplicativo. Antigos grevistas do ABC, por exemplo, são os próprios falando sobre isso. Moradores do Edifício Master a mesma coisa”, explica o diretor de fotografia.
Uma nova fase Em Jogo de Cena (2007), Cheuiche precisou, pela primeira vez, “iluminar de verdade”. Foi o primeiro filme de Coutinho feito em um cenário preparado para as entrevistas. O diretor de fotografia teve de pen-
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4 O cineasta com a atriz Fernanda Torres no documentário Jogo de Cena 5 O diretor durante as gravações de Edifício Master...
6 ... e nos bastidores do longa-metragem Jogo de Cena
sar em um esquema de luz para iluminar atores e personagens, que se revezavam em uma cadeira preta para contar a sua história ou a de outro. Para que as cadeiras ao fundo aparecessem, Cheuiche direcionou a elas spots de luz. “A boca de cena era muito pequena. Então, alguém deu a ideia de filmar com as cadeiras aparecendo. E foi aceito imediatamente porque combinava com a proposta”, conta ele.
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Esse primeiro filme de Coutinho gravado em um locação, revela Cheuiche, foi mais para facilitar a locomoção dele por conta da idade avançada (o diretor
tinha 74 anos na época). Em As Canções (2011), Coutinho tinha pensado em filmar em um fundo todo preto. O diretor de fotografia teve a ideia de colo-
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car uma luz de fundo para dar a impressão de profundidade no tecido escuro e o documentarista topou. Nos filmes mais recentes, Coutinho trabalhava
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Cinema Eduardo Coutinho era paulistano
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paulistano Eduardo de Oliveira Coutinho nasceu em 1933. Estudou Direito, mas não terminou. Foi estudar Cinema em Paris depois de ganhar um prêmio em dinheiro respondendo a perguntas sobre Charles Chaplin em um programa de televisão. De volta ao Brasil em 1960, foi trabalhar no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Em 1964, começou a rodar Cabra Marcado para Morrer, sobre o assassinato de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas. Mas, por conta do golpe militar, as gravações foram interrompidas e retomadas as apenas 20 anos depois, em 1984. Em 1975, passou a integrar a equipe do Globo Repórter, da TV Globo, onde permaneceu durante nove anos. Nesse período descobriu a vocação para documentarista. Entre seus principais filmes estão Edifício Master, Peões e Jogo de Cena.
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7 Coutinho e o metalúrgico Alveti Neto durante a gravação do documentário Peões 8 O diretor no cenário de seu último documentário, Palavra, rodado no fim de 2013
com uma equipe maior, de cerca de 20 pessoas – contando eletricista, motorista e maquiador. Nos demais, mais antigos, a equipe era bem enxuta, com cerca de cinco pessoas. Em Edifício Master, por exemplo, eram Coutinho, Cheuiche, o operador de áudio, o assistente de direção e o assistente de câmera. “O importante era ser funcional. Ele passava a ideia do que queria e as coisas fluíam. O set era muito
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divertido. De manhã, Coutinho costumava ser muito mal-humorado. Dava pena dos primeiros entrevistados, que provavam do seu sarcasmo. Mas, com o passar do dia, o humor dele ia melhorando. Ele também era um grande contador de histórias”, lembra Cheuiche. Aos 80 anos, Coutinho se preparava para montar mais um filme, Palavra. Era o primeiro dele rodado em um cenário montado
para as gravações. Um cenógrafo reproduziu uma sala de aula dentro de um estúdio, onde o diretor entrevistou cerca de 30 estudantes do ensino médio de escolas públicas cariocas. Gravado entre novembro e dezembro de 2013, Coutinho se propôs a fazer perguntas simples aos adolescentes, como para que serve o dinheiro ou por que eles estudam. Ao fim de cada filma-
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gem, Jacques Cheuiche confessa que pensava se aquele seria o último trabalho com Coutinho, pois, além da idade avançada, ele fumava cinco maços de cigarro por dia. O que o diretor de fotografia não imaginava era que a morte do diretor seria de uma forma tão trágica (veja box na página 64). “O melhor momento do ano era filmar com Coutinho. Ele vai fazer falta”, lamenta Cheuiche.