Tecnica e pratica 36

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Técnica & Prática #36


Bonde nas ruas de Lisboa, em Portugal: fotos de Mascaro são referência em arquitetura

Escola

do olhar

Ter referências é muito importante na fotografia. Grandes profissionais, de diferentes áreas, contam quais foram as suas no início de carreira 6

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uito antes de existirem escolas de fotografia, grandes repórteres fotográficos aprendiam tudo na prática, no dia a dia da redação, com os profissionais que tinham anos de experiência no ofício. Assim aconteceu com o gaúcho Ricardo Chaves, o Kadão. Ele começou a trabalhar no jornal Zero Hora em 1969. Assis Hoffmann, editor de fotografia do periódico gaúcho na época, tornou-se uma referência para ele. “Era meu exemplo de comportamento ético”, diz Kadão. Para alargar o repertório, jovens fotógrafos como Kadão procuravam conhecer as imagens feitas por gente mundialmente renomada, como dois dos fundadores da legendária agência Magnum:

Henri Cartier-Bresson e Robert Capa. Para o mestre Cristiano Mascaro, buscar referências é fundamental. “Quem quer ser músico tem de ouvir Mozart, escritores precisam estudar os mestres da literatura e quem deseja trabalhar com fotografia deve conhecer os grandes fotógrafos”, ensina Mascaro, que escolheu a profissão ao folhear o livro Images à la Sauvette, do francês Cartier-Bresson. Quando viu a primeira imagem – de uma noiva em pé em um balanço enquanto o noivo a movimentava, ambos sorrindo –, ficou tão encantado que decidiu ser fotógrafo naquele momento. “Que interessante poder ver a vida desse jeito”, pensou. O passo seguinte foi trocar a arquitetura pela fotografia.

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Cristiano Mascaro

POR KARINA SÉRGIO GOMES

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Fotos: Ricardo Chaves

iMagEns didáTicas

Dois momentos da carreira de Kadão: ao lado, retrato do fazendeiro Tião Maia, feito em 1987, para a capa da revista Istoé; acima, foto feita na Rússia para o jornal Zero Hora

Kadão e Mascaro hoje são referências para muitos jovens fotógrafos. Mas, como todos os mestres, antes de se tornarem exemplos, foram aprendizes. Técnica & Prática ouviu, além de ambos, outros profissionais de destaque em várias áreas para saber quais eram suas referências quando começaram. E pediu para que apontassem prováveis destaques no futuro, algo que alguns fizeram e outros não.

Alegre com uma câmera emprestada de um tio, descobriu o ofício. Com 18 anos, precisando trabalhar, foi pedir emprego no jornal Zero Hora. O editor Hoffmann disse que não havia vagas, mas que podia ficar por ali observando o trabalho. Um dia, quem sabe, poderia aparecer alguma pauta para ele fazer. Assim, passou a ir todas as tardes para o jornal. Depois de emplacar algumas pautas, foi contratado. Além de ser um professor de técnica, Hoffmann também ensinou muito em termos

DIRETO DA REDAÇÃO Kadão queria trabalhar como mecânico de carros de corrida. Depois de fotografar uma prova de rua em Porto

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O fotojornalista Ricardo Chaves, o Kadão


Evandro Teixeira

fotos nas redações – Weegee inspirou o filme A Testemunha Ocular (1992), com Joe Pesci, que viveu o fotógrafo. No Brasil, Kadão cita Sebastião Salgado, Walter Firmo e Evandro Teixeira. Depois da Zero Hora, Kadão passou pelas revistas Veja e Istoé e pelo jornal O Estado de S.Paulo, como editor de fotografia. Voltou à Zero Hora também como editor e, atualmente, edita a coluna de memória do jornal gaúcho. Já o baiano Evandro Teixeira, 78 anos, citado por Kadão, hoje está afastado das redações. Ele começou na profissão depois de fazer um curso de fotografia por correspondência de José Medeiros, badalado fotógrafo da revista O Cruzeiro – respeitada publicação que circulou entre as décadas de 1920 e 1970 e tinha como diferencial grandes reportagens fotográficas. “Nasci com a arte na cabeça. Comecei a me interessar por

Acima, tomada do Forte de Copacabana pelos militares em 1964 – momento histórico registrado por Evandro Teixeira (abaixo)

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comportamentais. “Aprendi com ele a brigar por uma foto na edição do jornal. Assis Hoffmann era implacável na defesa do trabalho dos profissionais da equipe”, diz. Além da aprendizagem na prática, Kadão também procurava por referências fora do Brasil. Ao folhear um livro de Henri Cartier-Bresson, aprendeu que, mesmo no fotojornalismo, em que se é pautado para cobrir áreas diferentes todos dias, o fotógrafo pode impor uma marca. “Percebi que era possível ser também um autor, que a fotografia poderia carregar minha identidade e ter um estilo autoral”, lembra. Outro fotojornalista que serviu de modelo para Kadão foi o norte-americano Arthur Feling, o Weegee. Famoso nos anos de 1950, ele ficava na escuta da faixa de rádio da polícia para fotografar cenas de crimes antes mesmo de os jornalistas ficarem sabendo e, logo em seguida, ia vender as

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Evandro Teixeira

REfERências foTogRáficas

É importante conhecer a biografia dos fotógrafos. Quando você entende a vida da pessoa, você passa a entender um pouco da técnica e de onde vem a inspiração Luiz Garrido

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fotografia ao ver as fotos a faculdade de Economia O sertanejo João de Medeiros em O Cruzeiro”, para virar fotógrafo, Garrido Reis, então com 90 lembra. Decidido a ser avaliou que, caso não anos, personagem de um ensaio de fotógrafo, foi para o Rio de tivesse talento para compor Evandro sobre os Janeiro (RJ), onde integrou a imagens, deveria pelo 100 anos da equipe do jornal Diário da menos dominar bem a Guerra de Canudos Noite e, depois, do Jornal do técnica. Por isso, fez um curso Brasil, no qual permaneceu por na Escola Nacional de quase 50 anos. No começou da Fotografia Francesa, onde aprendeu carreira, Teixeira gostava de ver as fotos até sobre a construção das lentes. Garrido conseguiu os primeiros de Nestor Rocha e Walter Firmo. trabalhos no jornalismo por intermédio Quando já estabelecido como do fotógrafo Alécio de Andrade, que já fotógrafo, passou a admirar o trabalho trabalhava em Paris para a Manchete. do norte-americano Eugene Smith, que Alécio se tornou uma referência para o fez carreira de sucesso na revista Life e na agência Magnum. O que Evandro jovem pela sua sensibilidade em captar imagens. Quem também lhe ajudou Teixeira mais admira nas imagens de nesse período de formação foi o artista Smith é o enquadramento e o cuidado plástico Frans Krajcberg. “Ele me na composição da cena. mandava ir a museus e visitar ESTAMPADO NA CARA exposições. Aprendi muito sobre luz, O carioca Luiz Garrido, de 68 anos, por exemplo, observando pinturas do período iluminista”, conta. antes de se tornar uma referência em O profissional ensina que não basta retratos, trabalhou com o fotojornalista ver apenas as imagens, pesquisar sobre na sucursal da revista Manchete, em a vida dos fotógrafos também é Paris, no ano de 1968. Assim que largou


Fotos: Luiz Garrido

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importante. “Quando você entende a vida da pessoa, você passa a entender um pouco da técnica e de onde vem a inspiração”, explica. Alguns profissionais que chamaram a atenção de Garrido foram a norte-americana Annie Leibovitz e o francês Guy Bourdin. “Um fotógrafo tem que olhar a

O fotógrafo Luiz Garrido

Acima, poucos elementos foram necessários para o retrato de Tom Jobim; ao lado, a tristeza captada nos olhos do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho

fotografia dos outros”, diz. Para ele, o repertório é importante para o profissional ter a sua assinatura e, quando já tiver um estilo consolidado, conseguir criar algo novo. “É preciso quebrar o equilíbrio e arriscar-se”, conta. Garrido acredita que seu ex-assistente Daniel Klajmic, hoje renomado, possa ser uma referência no futuro. O também carioca Daryan Dornelles, de 42 anos, por exemplo, pesquisou muito para chegar ao estilo que exprime hoje em seus retratos – artistas e músicos são os mais retratados pelo profissional. Na juventude, muito antes de pensar em ser fotógrafo, encantou-se pelas capas de discos feitas por Rui

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Fotos: Daryan Dornelles

REfERências foTogRáficas

Retratos de ídolos da música feitos por Daryan Dornelles: acima, à esquerda, Erasmo Carlos; e, à direita, Gilberto Gil

Mendes nos anos de 1980. Mas, na hora de escolher a profissão, foi cursar cinema. Trabalhou anos como foquista, responsável pelo ajuste do foco em filmagens, até se render pelas imagens estáticas. Quando se decidiu pela fotografia, estudou o trabalho do norte-americano Richard Avedon, de quem queria uma

luz parecida em retratos. Depois, passou a reparar no trabalho do francês Patrick Demarchelier, cuja simplicidade das imagens lhe encantava. “Sempre olho as fotos de fotógrafos que se destacam, mas minhas principais referências são Avedon e Demarchelier, porque temos afinidades fotográficas”, diz.

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FORMAS CONSTRUÍDAS

O retratista Daryan Dornelles

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A arte também influenciou Cristiano Mascaro, de 69 anos. “Brancusi dizia que a 'simplicidade é a complexidade resolvida'. E isso vale também para a fotografia”, diz. Nessa busca pelo “simples”, Mascaro descobriu o trabalho do retratista norte-americano Irving Penn, que é “um referencial de simplicidade e de sofisticação”, ressalta. Segundo ele, um fotógrafo precisa saber ver. “Ao contrário dos artistas que tem uma tela em branco, nós já temos uma imagem construída, um mundo em movimento, e precisamos extrair dele algo luminoso”, explica. Cássio Vasconcellos, conforme Mascaro, é um


Cristiano Mascaro

Acima, a escadaria do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, foto de Cristiano Mascaro (ao lado)

para as fotos e pensava como o fotógrafo tinha feito aquilo. Depois, tentava copiar as soluções”, recorda Kon. Um dos profissionais que Kon admira é o norte-americano G. E. Kidder Smith. “Vendo as fotos dele entendi a importância do

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dos profissionais que conseguem captar esse momento, imprimindo a sua marca e nunca se repetindo. Tuca Vieira, Leonardo Finotti e Nelson Kon são outros fotógrafos que Mascaro acredita que também são referências para fotografia de arquitetura e cidade. Para Nelson Kon, de 52 anos, Mascaro também foi uma referência. Observar as fotos de outros profissionais sempre foi uma forma de aprender. “Olhava

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momento para fotografar a arquitetura. Ele tinha muito esmero com a luz. E na fotografia isso é muito importante. É preciso esperar, às vezes, pela luz correta”, ensina o especialista. Outro profissional que faz parte do rol de referências de Kon

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é o japonês Yukio Futagawa. “Ele resolve muito bem questões de perspectivas. Consegue construir uma narrativa a partir da imagem das construções abarcando diversos pontos de vistas, como detalhes de fachadas”, explica. O português Fernando Guerra e

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Fotos: Nelson Kon

Acima, Centro de Artes e Educação dos Pimentas, em Guarulhos (SP); ao lado, o interior da Oca, em São Paulo; e, abaixo, Nelson Kon

o holandês Iwan Baan estão entre os novos fotógrafos de arquitetura que chamam a atenção de Kon. A maior razão, de acordo com o brasileiro, é que ambos têm um olhar muito original sobre a arquitetura, inserindo nela paisagens e pessoas.


Fotos: Luiz Claudio Marigo Arquivo Pessoal

Luiz Claudio Marigo (abaixo) registra momentos decisivos na natureza: ao lado, uma biguatinga seca as asas e, acima, uma iruna-grande bica uma capivara

FORMAS NATURAIS A teoria do “momento decisivo”, de Cartier-Bresson, influenciou o fotógrafo de natureza Luiz Claudio Marigo, de 63 anos. Para ele, quem fotografa a flora e a fauna também tem de estar atento porque, em uma fração de segundo, a imagem pode aparecer e, se você não registrála, pode perder a oportunidade para sempre. Outra referência do fotojornalismo para Marigo é o austríaco Ernest Haas, que chegou a fazer algumas imagens de natureza. “Ele tinha uma visão

muito plástica da fotografia. As cores e as formas eram muito importantes para as imagens dele. Haas buscava trabalhar com os sentidos. E acredito nesse lado sensorial da fotografia”, explica. O britânico Eric Hosking, especialista em capitar imagens de pássaros, é uma das referências de Marigo em fotografia da natureza. Depois de ler An Eye for a Bird, de Hosking, há cerca de 30 anos, o brasileiro aprendeu a importância de ter um esconderijo para fotografar aves. E, ele mesmo, decidiu fazer um –

pintou uma cabana de criança de verde militar e fez um furo para colocar a lente. Outros fotógrafos que sempre chamam a atenção de Marigo são a belga Tui De Roy e o norte-americano Jin Branderburg. “Sempre estou olhando o trabalho dos outros. Acho que a fotografia é um todo. Você não precisa ser um único astro no céu. Você faz parte do conjunto, em que uma hora ilumina e, noutra, iluminam você”, resume. E entre os brasileiros que iluminam Marigo estão Luciano Candisani e

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Fotos: Fabio Colombini Arquivo Pessoal

Acima, o flagrante de um macaco bugio com o filhote; abaixo, o fotógrafo Fabio Colombini

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Perereca clicada no Parque Estadual de Intervales, interior de São Paulo

Fabio Colombini, que também diz receber a luz do veterano. O primeiro, entretanto, a chamar a atenção de Colombini para a fotografia de natureza foi Haroldo Palo Jr., nos anos de 1980. Folheando uma revista Veja, deparou-se com fotos de Palo Jr. e decidiu: “é isso o que quero fazer”. Nessa época havia poucos cursos de fotografia no Brasil, e seu repertório fotográfico vinha, principalmente, de revistas estrangeiras que lia, como Popular Photography e Author Photography. Por meio dessas revistas, conheceu o trabalho do norteamericano Eliot Porter. “O que me animava na fotografia dele era o grafismo e o interesse dele pelos

fragmentos e detalhes”, conta. E até o trabalho de quem não tem afinidade de estilo com ele lhe provoca curiosidade, caso do inglês Stephen Dalton. Colombini aprecia as fotos dele especialmente pela técnica de fotografar insetos em alta velocidade. “Não podemos nos limitar apenas ao que fazemos. Temos que buscar o que há de melhor, ver o que os outros estão fazendo. Ter humildade ajuda a melhorar”, resume ele, que nomeia Luciano Candisani também como uma referência para os mais jovens.

SEM TENDÊNCIAS Richard Avedon é uma referência também para o


Fotos: Gui Paganini

A modelo e hoje apresentadora Ana Hickmann posou para Gui Paganini no deserto de Moab, nos Estados Unidos

Arquivo Pessoal

fotógrafo de moda Gui Paganini, de 49 anos. O profissional ressalta que fotografar moda é “mudar o tempo todo”, pois o que é uma tendência hoje não é mais amanhã. Porém,

O fotógrafo de moda Gui Paganini

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iMagEns didáTicas Foto da série Last Day of Spring, feita na praia de Massambaba (RJ), em 1985

sempre tenho de colocar alguma coisa a mais, mas sem parecer apenas uma esquisitice. E a modelo tem de ter atitude”, explica o fotógrafo. Para Klaus Mitteldorf, de

60 anos, o referencial está nas artes visuais. Ele cita artistas plásticos como as verdadeiras referências: o irlandês Francis Bacon, o russo Kazimir Malevich e o alemão Gerhard Richter. “É importante ir além da fotografia. A literatura e o cinema enriquecem o repertório do fotógrafo. E, hoje, com a internet, é muito fácil buscar referências”, ressalta. Juan Esteves

Fotos: Klaus Mitteldorf

quando se trata de referências, estas não mudam. Além de Avedon, Paganini sempre volta ao trabalho do alemão Helmult Newton. “A foto de moda dele é ousada. Ele me ensinou que

Ao lado, Ana Paula Arósio posou para Klaus Mitteldorf (acima) para propaganda da Kodak na Alemanha, em 1989

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