Ensaio te贸rico Autor: Bruno Ganem Coutinho Orientadora: Profa. Raquel Blumenschein
UNIVERSIDADE DE BRÁSLIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
SUSTENTÁVEL por opção SIMPLES por consequência
Autor: Bruno Ganem Coutinho Orientadora: Profa. Raquel Naves Blumenschein
Brasília, 2015
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Fonte imagem da capa: http://www.srsalme.com/
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Este documento apresenta o Trabalho Final da disciplina Ensaio Teórico da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília, em cumprimento com os parâmetros estabelecidos para o mesmo pelo Plano de Curso da disciplina. Bruno Ganem Coutinho Matricula: 10/0008534 Orientadora: Profa. Raquel Naves Blumenschein
__________________________________________________________ Profa. Raquel Naves Blumenschein (orientadora)
_________________________________________________________ Bruno Ganem Coutinho (autor)
Data:
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RESUMO A sociedade moderna foi construída sobre uma fé na razão e na ciência. Diante de uma crise ecológica profunda, é natural que nossas mentes se voltem para o desenvolvimento de novas tecnologias e técnicas capazes de reverter a situação atual. No entanto, a construção de um futuro sustentável passa também por uma mudança de mentalidade e uma revisão daquilo que definimos como progresso. Nesse sentido, a sustentabilidade talvez nos conduza a adotar uma vida mais simples. Ser sustentável por opção, é ser simples por consequência.
Palavras Chave: Sustentabilidade, Razão, Ciência, Progresso, Ser Simples
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SUMÁRIO 1. Introdução
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2. Sustentabilidade em risco
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3. A racionalidade instalada
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4. Ser sustentável
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Bibliografia
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1. INTRODUÇÃO O começo do século XX foi marcado por uma revolução no mundo da física. A luz de novos experimentos e mentes brilhantes como de Albert Eistein, abriu-se diante dos homens um novo mundo, tão pequeno que sua existência depende de uma capacidade incrível de abstração, tão absurdo que sua compreensão desafia paradigmas da física clássica, mas tão real que inevitavelmente determina uma nova visão de mundo. Até então, a Física entendia o mundo através de um modelo rigidamente definido por leis universais, de modo que qualquer fenômeno, em tese, poderia ser compreendido pela extensão de princípios determinados a priori. O exercício da mente tinha nos sentidos uma base sólida de apoio. O universo se encerrava em um modelo linear de causa e efeito, funcionando como uma grande máquina, extremamente complexa, mas ainda assim necessariamente definida por leis mecânicas. (CAPRA, 1986) Essa visão de mundo sofreu um abalo quando se tornou possível a exploração do mundo numa escala incrivelmente pequena. A mecânica quântica é um ramo da física que se ocupa do estudo dos sistemas físicos cujas dimensões são próximas ou abaixo da escala atômica. Essa exploração do mundo atômico e subatômico revelou fenômenos inteiramente novos e estranhos, inexplicáveis pela Física Clássica, e exigiram profundas mudanças nos conceitos de espaço, tempo, matéria, causa e efeito. Exemplo dessa mudança é o fato de que os cientistas se depararam com uma dualidade partícula/onda, até então inconcebível. Perceberam que a luz, em determinados experimentos, se comportava como partícula, em outros como onda. Essa natureza dual, não apenas restrita à luz, mas também observada na matéria, na acepção clássica, seria inconcebível. Parecia absurdo admitir que algo poderia ser ao mesmo tempo, uma partícula, restrita a
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um volume bem definido com massa, e uma onda, que se espalha numa vasta região. Na realidade, ninguém deveria ter dito que a luz é uma onda, ou é uma partícula. Tudo que podemos dizer é que, sob certas circunstâncias, a luz se comporta como uma onda ou como uma partícula. No entanto "não há paradoxo ou conflito. As limitações recaem sobre nossos modelos e nossa imaginação humana, porque estamos tentando descrever algo que, em sua essência, é diferente de qualquer coisa que já experimentamos através de nossos sentidos, um reflexo de um incontrolável, mas vão desejo de entender tudo com base em termos familiares" (GRIBBIN, 2008, p.5). Nenhuma única imagem mental da vida cotidiana será satisfatória em nos dar uma ideia do mundo subatômico. Um aparente conflito surge apenas quando tentamos explicar o mundo subatômico com base em termos da Física Clássica. É importante perceber que quando um cientista diz que sabe algo, quer dizer que possui um modelo. Mas modelos científicos são representações da realidade, não a realidade em si. A Física anterior ao século XX, que entendia o universo como uma máquina, com suas engrenagens e peças individuais, numa lógica racional linear de causa e consequência, para todos os efeitos nos dava uma explicação coerente da realidade e nos permitia entender o mundo. O que a Mecânica Quântica demonstra é que nossa visão de mundo, aquilo que tomamos como verdade, na realidade varia de época em época e depende de conceitos e raciocínios não absolutos. Antes da estranheza do mundo, a Mecânica Quântica nos revela primeiro as limitações da Física Clássica. As leis de Newton não são verdades definitivas, tampouco mentiras. Serviram-nos para entender o mundo, e de fato ainda nos servem (não é necessário Einstein se quisermos calcular a trajetória de um planeta, as leis de Newton nos bastam). Mas frente a novos desafios, a nossa disposição para questionar nossas próprias
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verdades é fundamental e é nessa capacidade de reflexão e criatividade que reside a resiliência humana. O raciocínio mecanicista faz parte de um pensamento que surgiu a partir do século XVI baseado na razão e no método cientifico que impulsionou o homem à era industrial e tecnológica. Prolongamento da vida, redução da mortalidade infantil, melhoria na qualidade de vida, aumento da produção, crescimento material, satisfação de necessidades básicas, são conquistas inegáveis desse pensamento. Assim como a Física Clássica encontrou na mecânica quântica suas limitações, essa visão de mundo mecanicista, que surgiu impulsionada por mentes brilhantes como Galileu, Descartes e Newton, diante de uma crise ecológica profunda nos dias atuais se mostra obsoleta. O pensamento racional e o método científico se tornaram forças tão bem sucedidas, que amarraram o homem a crenças e o impossibilitaram de ver suas limitações. O nosso conceito de progresso, a maneira como vivemos, uma cultura materialista, estão intimamente ligadas a essa visão de mundo e ao mesmo tempo na raiz de nossa crise ambiental. No entanto, não se trata de uma questão de superioridade, que uma maneira de enxergar o mundo seja superior a outra. É uma questão de se adaptar e buscar abordagens complementares na resolução de problemas. A história da humanidade é repleta de sociedades distintas, com valores distintos, que existiram, atingiram seu auge e, por um motivo ou outro, pereceram. Todas deixaram sua marca na História, seja por monumentos erguidos, pela passagem de conhecimentos ou pela difusão de princípios e valores. O sucesso ou fracasso dessas civilizações depende de inúmeros fatores, sendo que muitas têm suas ruinas atribuídas, em última instância, a distúrbios ambientais. Uma crise ecológica, portanto, não é exclusividade da civilização industrial. Mas a ruina de outras civilizações por causas ecológicas nos aponta que devemos estar atentos quanto ao nosso próprio futuro.
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A sociedade moderna difere de povos antigos em duas características fundamentais: possuímos uma superpopulação e poderosa tecnologia. Essas duas características por si só não são determinantes, são potencialidades. Nossa crise ecológica surge do fato de nossa civilização industrial ter sido construída sobre valores profundamente antiecológicos, o que revela o potencial de destruição dessas duas características. Antes de 1500, as sociedades humanas experimentavam a natureza com base em relações orgânicas. Isso não significa que o homem se identificasse e se encaixasse plenamente dentro de uma ordem natural, como qualquer outro animal ou planta. De fato, a dicotomia Homem x Natureza talvez tenha sempre existido. O homem tem algo de diferente dos outros seres vivos, se diferencia, quem sabe, por um profundo senso de autoconsciência e tautologia, e essas características talvez expliquem porque desde muito já se considerava apartado da natureza. Uma relação orgânica provinha não de um entendimento e profundo respeito em relação ao meio ambiente, mas pelo fato de que existia uma clara diferença de força entre o homem e a natureza. Nesse sentido, era uma relação orgânica não consciente, fruto de um contato próximo e uma dependência. Não possuíamos população suficientemente grande nem técnicas suficientemente avançadas que nos possibilitassem causar um distúrbio ou uma modificação catastrófica do qual a natureza como sistema global não pudesse se recuperar. Nosso conhecimento sobre o colapso de antigas civilizações por fatores ambientais nos permite evitar um maniqueísmo primário. Os povos do passado não eram bons administradores ou entendiam a importância do meio ambiente, nada mais eram do que pessoas como nós, enfrentando problemas como os nossos. Infligiam modificações na paisagem assim como nós, mas uma população reduzida e técnicas rudimentares os tornavam consideravelmente mais submissos aos ciclos naturais. Ainda
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assim, muitos desses povos foram capazes de causar distúrbios significativos numa escala regional, a ponto de virem a ser extintos. De fato, modificar o meio parece ser uma característica inerente não só ao homem, mas à própria vida. Como um castor que constrói uma barragem, ou um joão de barro que constrói um ninho são manifestações de ordem impostas por seres vivos. A modificação em si, portanto, não é negativa. A espécie humana sempre buscou a adaptação através da modificação do meio natural, e existe valor no construído pelo homem. É provável que os homens jamais tenham estado em equilíbrio real com seus ambientes. Contudo, talvez seja o caso que homem e natureza possam coexistir de maneira harmônica, mas não estática, num equilíbrio dinâmico. Alcançar essa harmonia é um dos grandes desafios da nossa civilização. Esse texto busca entender os valores que moldam nosso comportamento em relação à natureza e discutir a tese de que vencer tal desafio depende de profunda mudança do comportamento humano, no sentido de reduzir o consumo a níveis compatíveis com a capacidade de suporte dos ecossistemas. Não se trata de cercear a liberdade individual, mas de conduzir nossas vidas com responsabilidade intra e intergeracional, reduzir nossa pegada ecológica de modo a tornar compatível a viagem da Humanidade rumo ao futuro nos limites da nossa única espaçonave – a Terra. Nesse sentido, o ensaio proposto se divide em três partes principais: apresentar a urgência da questão ambiental; entender as razões históricas que nos colocaram em uma realidade insustentável do ponto de vista ambiental; e propor meios para a construção de um futuro sustentável através de uma vida mais simples.
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Campos de Irrigação, Arábia Saudita Fonte: http://www.boredpanda.com/daily-overview-satelliteaerial-photography-earth/
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2. SUSTENTABILIDADE EM RISCO O Relatório Brundtland, publicado em 1987, definiu sustentabilidade como o “desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades.” Sustentabilidade, portanto, é mais que um conceito; é um compromisso com o futuro, em contraste com uma política de crescimento desenvolvimentista que se preocupa apenas com o aqui e agora. Como bem define uma frase de efeito, “não herdamos a terra dos nossos ancestrais, apenas a pegamos emprestado dos nossos filhos”. A base de sobrevivência de toda e qualquer espécie se encontra nos recursos naturais gerados pelo Planeta. A Terra possui uma lógica de produção e renovação de recursos que sustenta a vida em todas as suas manifestações. Nesse sentido, pode ser considerado um sistema fechado que se baseia num equilíbrio dinâmico de consumo e absorção. A espécie humana, contudo, rompe com essa lógica no momento em que nosso modelo de desenvolvimento passa a consumir mais do que a capacidade de reposição do sistema e lança resíduos e poluentes acima do que esse sistema consegue absorver. O tempo do homem sobrepuja o tempo da natureza. Nosso ritmo de exploração transforma numa linha reta o que a Terra nos oferece como um ciclo. É necessário perceber que o desenvolvimento da civilização humana foi possível graças à resiliência do sistema natural. A resiliência se define pela capacidade do sistema de se recuperar de perturbações ou de atingir um novo estado de equilíbrio depois de distúrbios (SCHWINGEL, 2012) .A sobrevivência da vida humana depende da manutenção dessa resiliência de forma que o ecossistema se mantenha dentro dos parâmetros que sustentem a vida como ela é hoje.
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Parâmetros de segurança da resiliência já vêm sendo discutidos desde 1994 dentro do conceito de guard rails planetários. Guard Rails foram definidos como “limites de perigo quantitativamente definíveis, cuja transgressão, hoje ou no futuro, teria tão intoleráveis consequências que mesmo benefícios de larga escala em outras áreas não poderiam compensá-las”. Uma vez que os guard rails sejam transgredidos, uma mudança ambiental global torna-se um risco socialmente intolerável para a civilização humana (WBGU, 2011 apud SCHWINGEL, 2012). Um modelo linear de desenvolvimento ameaça a vida e se mostra insustentável porque causa distúrbios profundos no sistema. Em 2009, um grupo de cientistas adotou o conceito de guard rails, sob o termo “limites planetários”, para apresentar nove fronteiras ambientais que deveriam ser respeitadas. Com demonstrações cientificamente embasadas, sete desses limites já foram quantificados, sendo que três dessas fronteiras, relacionadas a mudanças climáticas, distúrbios no ciclo de nitrogênio e redução da biodiversidade, já teriam sido ultrapassadas. A escassez de recursos hídricos, a degradação dos oceanos e a perda de solos agricultáveis, da mesma forma, figuram como problemas imediatos relacionados à exploração humana de forma desmedida. Atualmente, a humanidade necessita da capacidade regenerativa de mais de 1.5 planeta Terra para produzir os recursos consumidos anualmente (WWF, 2014). Isso significa que estamos cortando árvores mais rápido do que elas crescem, pescando mais peixes do que o oceano consegue produzir, emitindo mais carbono na atmosfera do que as árvores e oceanos conseguem absorver. A demanda humana ultrapassou a capacidade de renovação do sistema, e essa é a questão fundamental do problema. Como método de comparação, os pesquisadores trabalham com o conceito de Pegada Ecológica. Segundo a WWF (2014), essa
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“é uma metodologia de contabilidade ambiental que avalia a pressão do consumo das populações humanas sobre os recursos naturais”. Nada mais é, portanto, do que uma medida que avalia o impacto ecológico causado pelo homem. Analogamente, o conceito de biocapacidade (WWF, 2014) representa a capacidade dos ecossistemas em produzir recursos e absorver os resíduos gerados. Ambos os conceitos são expressos em hectares globais (GHA). Em 2010, a Pegada Ecológica Global era de 18.1 bilhões de GHA, ou 2.6 GHA per capita. A biocapacidade total da Terra era de 12 bilhões de GHA, ou 1.7 GHA per capita. A contribuição para a Pegada Ecológica Global, contudo, não é uniforme em relação a todos os países. A Pegada Ecológica de uma nação pode exceder sua biocapacidade através da exploração dos recursos nacionais mais rápido do que sua capacidade de regeneração; pela importação de produtos, dessa maneira se utilizando da biocapacidade de outros locais; e pelo uso desmedido de sistemas de absorção comuns a todas as nações, como o lançamento de gás carbônico na atmosfera. Se todas as pessoas tivessem uma pegada média dos habitantes do Katar, precisaríamos de 4.8 planetas. Se todos tivessem um modelo de vida equivalente aos habitantes dos Estados Unidos, seriam necessários 3.9 planetas Terra para suprir nossa demanda de recursos. E o número de nações cuja Pegada Ecológica supera sua biocapacidade vem aumentando. Além disso, 60% da biocapacidade global está localizada em apenas 10 países. (WWF, 2014) Na medida em que aumenta a escassez de recursos, eleva-se a competição, o que certamente tem implicações sociais, econômicas e politicas. A emissão de carbono tem sido o principal componente na Pegada Ecológica humana e tem suas causas primárias na queima de combustíveis fosseis – carvão, petróleo e gás natural. O efeito estufa é um fenômeno natural, que mantem a vida no Planeta. Parte da energia solar que incide sobre a Terra é absorvida como calor. Mas o calor é também irradiado pela
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superfície terrestre e, ao encontrar a barreira de Gases de Efeito Estufa (GEE) na atmosfera, retorna à superfície. Assim, apenas uma parte do calor irradiado pela Terra escapa para o espaço. É esse calor retido que mantem a temperatura do Planeta ideal para o desenvolvimento da Vida. Não fosse assim, seríamos um planeta gelado. O problema está no aumento da concentração de GEE na atmosfera devido às ações humanas. É fato que a concentração de CO2 aumentou de 280 ppm1 para 360 ppm, da era pré-industrial para 1995, e já chegou a 400 ppm em alguns pontos do Planeta, desde 2013 (AGNELO, 2015). O nível de CO2 atmosférico vem crescendo ano a ano, sendo que a marca de 450 ppm é considerada crítica pelos cientistas, porque implica um aumento de 2°C na atmosfera. Esse é o nível limite de aumento da temperatura, relativamente à segurança dos processos ecológicos. Acima dele, “a Humanidade entra em um território climático nunca antes explorado” (ANGELO, 2015). Acrescente-se que, além do gás carbônico, outros gases acarretam aumento da temperatura da atmosfera, principalmente o metano (CH 4) e o óxido nitroso (N2O). As mudanças climáticas decorrentes da elevação da temperatura implicam, entre outros impactos, aumento da frequência de eventos extremos e o risco de desastres relacionados a causas climáticas, elevação do nível do mar, perda de cobertura de gelo, alteração da disponibilidade de recursos hídricos, mudança nos padrões de distribuição de espécies da flora e da fauna e risco de extinção, desertificação, mudanças nos padrões de chuva que afetarão das culturas agrícolas e aumento de doenças relacionadas ao calor e a mosquitos e outros vetores tropicais (IPAM, 2015).
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Partes Por Milhão.
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Há pessoas que se colocam céticas em relação às interferências humanas no aquecimento global e nas mudanças climáticas. Afirmam que esse é um fenômeno cíclico natural do Planeta e não pode ser atribuído ao Homem. No entanto, o tema vem sendo estudado por milhares de cientistas de todo o mundo. O alerta dos cientistas motivou a Organização Meteorológica Mundial (OMM) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU), a criar, em 1988, o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, o famoso IPCC, que congrega mais de 2.500 pesquisadores em todo o mundo e é aberto a todos os países membros da ONU. O IPCC apresenta suas conclusões na forma de relatórios, os quais foram publicados em 1990, 1995, 2001, 2007 e – o quinto – entre os anos de 2013 e 2014 (JURAS, 2013). O 5°º Relatório do IPCC apresenta “o estado da arte” em relação às mudanças climáticas. Segundo esse documento, o aquecimento global é inequívoco: houve um aumento de 0,78ºC° na temperatura média da superfície terrestre, entre os períodos de 1850-1900 e 2003-2012. As três últimas décadas foram as mais quentes, desde 1850. Concentrações de GEE aumentaram e, com “elevadíssimo grau de certeza”, são responsáveis pelo aquecimento global. O 5°º Relatório do IPCC aponta alterações no ciclo global da água, com aumento do contraste entre regiões úmidas e secas e o recuo do gelo nas regiões frias (JURAS, 2013). Os oceanos, especialmente, sofrem graves efeitos pelo aumento da concentração de GEE na atmosfera. Segundo o IPCC, houve elevação dos oceanos em 19 cm, entre 1901 e 2010. A camada dos 75 m superiores das águas marinhas se aqueceu em 0,11°C por década, no período 1971–2010 (JURAS, 2013). Um dos maiores impactos das mudanças climáticas sobre os oceanos é sua acidificação, fenômeno que vem ocorrendo desde a primeira Revolução Industrial, em meados do século XVIII, com a emissão de poluentes a partir da Europa. No entanto, o processo
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se intensificou ao longo dos últimos 250 anos (PBMC, 2015). Os oceanos prestam grande serviço como sumidouros de GEE, pois absorvem parte do CO2 atmosférico. Estima-se que 30% do gás carbônico da atmosfera seja absorvido pelos mares. Ocorre que, na água, o CO2 transforma-se em ácido carbônico, o que aumenta a acidez dos oceanos, trazendo graves efeitos para a vida marinha. Os corais, especialmente, que são verdadeiros berçários naturais formados de carbonato de cálcio, são corroídos pela água acidificada (PBMC, 2015). Além disso, os estudos apontam que uma saturação de CO2 absorvido pelo ambiente marinho, somado ao aumento da temperatura das águas, fará com que menores quantidades desse gás sejam absorvidas, aumentando a concentração do CO2 na atmosfera. Por sua vez, esse aumento poderá contribuir para intensificar os efeitos do aquecimento global. Dessa forma, é criado um ciclo vicioso entre a acidificação dos oceanos e o aquecimento global (PBMC, 2015). Um dos efeitos mais perversos das mudanças climáticas é que elas afetam principalmente as nações mais pobres, que já sofrem com a fome, a carência de água e energia e falta de sistemas eficazes de saúde pública e estão despreparadas para enfrentar as consequências e se adaptar às novas condições do Planeta. Impactos sobre os sistemas agrícolas, doenças, eventos meteorológicos extremos e maior frequência de desastres são, sem dúvida, fatos que agravam ainda mais as condições de vida das populações que, hoje, já não contam com recursos para garantir uma vida digna e autoproteção. Portanto, as mudanças climáticas afetarão a todos, mas serão mais impactantes para os mais carentes. Outro grave problema que afeta nossa resiliência é a crise da biodiversidade. Além de ser fonte direta de recursos materiais, a natureza provê diversos serviços ecossistêmicos, fundamentais para a manutenção da vida humana, como a conservação da água e do solo, a regulação da temperatura e do clima, a fixação de
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carbono e a manutenção do teor de oxigênio na atmosfera, o controle de predadores, a polinização de plantas e a dispersão de sementes. A biodiversidade é ainda componente importante da identidade cultural de muitas populações locais e é a base do ecoturismo e do turismo rural, bem como da indústria farmacêutica, que utiliza componentes da biodiverdade para o desenvolvimento de seus produtos (GANEM, 2010). Embora a extinção de espécies seja normal no processo evolutivo, o atual declínio de espécies e o desaparecimento de ecossistemas inteiros não são decorrentes de fenômenos naturais e ocorrem em níveis dramáticos, em extensão e rapidez, o que compromete a sua capacidade de recuperação. O Panorama Global da Biodiversidade, publicado pelo Secretariado da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB, 2010), afirma que “existem múltiplas indicações de contínuo declínio da biodiversidade em todos os três dos seus principais componentes – genes, espécies e ecossistemas” (p. 9). Entre as indicações de perda de biodiversidade em nível global e regional, citam-se: declínio das populações e ameaça de extinção de espécies, especialmente de anfíbios, corais e plantas; queda na abundância de vertebrados, sobretudo nas regiões tropicais e entre as espécies de água doce; perda de hábitats, em extensão e integridade, principalmente florestas tropicais, manguezais, zonas úmidas de água doce, hábitats de gelo marinho, pântanos salgados, recifes de coral, bancos de algas marinhas e bancos recifais de moluscos; fragmentação de florestas; degradação de rios; e perda de diversidade genética de espécies agrícolas e pecuárias. A União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) realiza a análise do risco de extinção de espécies de plantas e animais em escala global e publica listas vermelhas de espécies ameaçadas de extinção. A Lista Vermelha de 2008 apresenta a avaliação do estado de conservação de 44.937 espécies, das quais pelo menos 38% foram classificadas como
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ameaçadas e 804 foram consideradas extintas. Tais números representam apenas a ponta do iceberg, tendo em vista que apenas uma parcela muito pequena das espécies existentes foi avaliada (VIÉ, 2008, apud Ganem, 2010). Considerando-se a escala de biomas, as perdas são mais perceptíveis. Dos 14 grandes biomas da Terra, os prados temperados, tropicais e inundados, as florestas mediterrâneas, as florestas latifoliadas temperadas e as florestas secas tropicais já perderam mais da metade de sua cobertura original. Nos ecossistemas temperados, o desmatamento ocorreu antes de 1950. Entretanto, os ambientes tropicais vêm sofrendo com a perda acelerada de hábitats nos últimos 60 anos. Entre as perdas mais rápidas, destacam-se as florestas tropicais do sudeste da Ásia, na região indo-malaia, nos últimos 20 anos do século XX, bem como os prados tropicais e os prados inundados (WWF, 2006, apud Ganem, 2010). No Brasil, país mais biodiverso do Planeta, é facilmente perceptível a degradação dos biomas decorrente do desmatamento. Levantamento do Ministério do Meio Ambiente aponta que permanecia como remanescente de cobertura vegetal nativa, em 2002: 85% da Floresta Amazônica, 87% do Pantanal, 60% do Cerrado, 62% da Caatinga, 22% da Mata Atlântica e 41% do Pampa (MMA, 2007). Outro grave problema que aumenta nossa Pegada Ecológica é degradação de um dos recursos mais preciosos: a água doce. De toda a água presente no planeta, 97.5% é salgada. Do restante de água doce, a maior parte encontra-se além do alcance em geleiras ou em lençóis freáticos longe da superfície. Apenas 1% da água encontra-se disponível, sendo que se distribui de maneira desigual pelo globo, o que significa que alguns países possuem abundância, enquanto outros sofrem com a falta desse recurso. (WWF, 2014)
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Mais de 200 bacias hidrográficas, lar de mais de 2.5 bilhões de pessoas, já passam por escassez significativa de água em pelo menos um mês todos os anos. (WWF, 2014) Mudanças climáticas e um aumento na demanda de água tendem a agravar esse cenário. O conceito de Pegada Ecológica direcionado à água é de fundamental importância na medida em que expõe a existência de dependências não evidentes em relação a esse recurso. É fácil perceber a importância de energia na produção de alimentos e processos de manufatura, mas a maioria dessas atividades se utiliza também de grandes quantidades de água. De fato, produtos deveriam ser apresentados em relação à quantidade de água utilizada na sua produção. Os índices aqui apresentados evidenciam claramente os limites ecológicos a que estamos expostos. Para recolocar o rumo da Humanidade nos trilhos da sustentabilidade, devemos compreender o processo histórico que nos trouxe até aqui, os modelos de pensamento que moldaram nosso comportamento atual frente à natureza.
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Campos de Sal, Austrรกlia Fonte: http://www.boredpanda.com/daily-overviewsatellite-aerial-photography-earth/
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3. A RACIONALIDADE INSTALADA Entre os séculos XVI e XVIII, foram formulados o sistema de valores e a visão de mundo que estão na base de nossa cultura. Entre 1500 e 1700, a Revolução Cientifica, o Iluminismo e a Revolução Industrial foram eventos capazes de promover uma mudança drástica na maneira como as pessoas descrevem o mundo e em todo o seu modo de pensar. Avanços na Física e na Astronomia impulsionaram o desenvolvimento de uma nova percepção, permitindo que o mundo fosse entendido não mais como um organismo, mas como uma máquina. Essa nova compreensão mecanicista abriu caminho para um processo de dominação do meio ambiente. O papel da ciência é fundamental nesse processo, daí os historiadores definirem os séculos XVI e XVII como a Idade da Revolução Cientifica. (CAPRA, 1982) Esse período e a importância da ciência podem ser compreendidos através de grandes pensadores e suas contribuições, como as teorias de Galileu, Copérnico e Newton, apoiadas num novo método de investigação defendido por Francis Bacon, o qual envolvia o raciocínio inovador concebido por René Descartes. A Revolução Cientifica começou com Copérnico, que se opôs a uma concepção geocêntrica de mundo. Após Copérnico, a Terra deixou de ser o centro do universo para se tornar meramente um dos vários planetas que orbitam em torno do sol; e ao homem foi tirada sua posição de figura central da criação de Deus. É o inicio de um processo no qual o homem se desprende de determinações de ordem superior, o próprio homem se retira do centro de uma criação divina para conquistar o mundo através de uma razão fruto exclusivamente da mente humana. Exclui-se a metafísica, e pela lógica do homem, o homem se engrandece, "ao mesmo tempo o apoio e o triunfo, subindo pelas próprias costas, segundo uma regra que ele mesmo promulgou”. (CASSIER, 1997)
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A Galileu cabe a introdução da linguagem matemática no processo de experimentação científica. Galileu baseava-se numa abordagem empírica da natureza e numa descrição matemática dos fenômenos, dois raciocínios que se tornaram características fundamentais da ciência no século XVII, e permanecem como importantes critérios de teorias até hoje. Nesse sentido, a fim de possibilitar uma descrição matemática, as propriedades essenciais dos corpos materiais foram reduzidas àquelas que poderiam ser medidas e qualificadas. Outras propriedades seriam projeções mentais subjetivas e sem utilidade prática dentro do método científico. (CAPRA, 1982) Francis Bacon foi responsável pela descrição de um método empírico da ciência, baseada num processo indutivo - realizar experimentos e extrair deles conclusões gerais, a serem testados por novos experimentos. Para Bacon (xxxx), o objetivo da ciência seria a busca por um conhecimento que poderia ser usado para dominar e controlar a natureza. Um novo método de raciocínio é inaugurado com René Descartes e deu ao pensamento científico sua estrutura geral. É analítico, e consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes componentes e em dispô-los em sua ordem lógica. Em sua essência é um método reducionista, sendo que o todo nada mais é que a soma das partes. O ponto fundamental do raciocínio de Descartes é a duvida. Ao se questionar sobre o conhecimento, em busca de um alicerce que não pudesse duvidar e através desse método reducionista é que formula sua famosa afirmação "cogito ergo sum". A crença no conhecimento científico está na própria base da filosofia cartesiana, e dessa crença deriva uma visão de mundo presente até hoje em nossa cultura. Muitos ainda hoje estão convencidos de que o método científico é o único meio válido de compreensão do universo. Dessa decomposição do todo em suas partes, reafirma-se a imagem da natureza como máquina, e nada além de máquina, governada por leis naturais mecânicas
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exatas, e cria-se uma ruptura entre mente e matéria de forma que não há no universo material qualquer propósito ou espiritualidade. (CAPRA, 1982) De maneira alguma os pensadores até aqui citados desenvolveram seus raciocínios de maneira isolada. É evidente que a História está repleta de inúmeros outros nomes e figuras de grande importância. Como disse Isaac Newton, "se enxerguei mais longe, foi porque me apoiei nos ombros de gigantes". Copérnico, Galileu, Bacon e Descartes são alguns desses gigantes. A concepção mecanicista da natureza encontrou em Newton sua síntese matemática, porquanto até Descartes, a natureza como máquina perfeita governada por leis exatas permanecia como simples visão. Newton desenvolveu leis exatas do movimento dos corpos sob influência da gravidade, e a aplicação universal dessas leis parecia confirmar a visão cartesiana da natureza. Desse modo, as descobertas e resoluções alcançadas por esses grandes pensadores influenciaram a determinação de um paradigma que dominou nossa cultura durante centenas de anos, ao longo dos quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e influenciou significativamente o resto do mundo. Esse paradigma compreende os valores associados a essas descobertas e resoluções. Inclui a crença de que o método científico é a única abordagem válida de conhecimento; a concepção do universo como um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares; e a crença no progresso material ilimitado, a ser alcançado através do crescimento econômico e tecnológico. Uma descrição matemática da natureza e um método de investigação empírico aliados a um método de raciocínio cartesiano determinaram uma abordagem extremamente bem sucedida em desenvolver uma capacidade de modificação e exploração do mundo material, impulsionando o homem à civilização industrial. Esse desenvolvimento trouxe consigo
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melhorias significativas na condição humana no sentido de que livrou o homem de sofrimentos primitivos. Entretanto, o século XXI se inicia imerso em uma crise ecológica sem precedentes em escala e profundidade. Nossa crise difere de qualquer outra que povos de outrora tenham enfrentado por dois aspectos fundamentais. Uma explosão demográfica e o desenvolvimento de técnicas altamente avançadas forneceram ao homem uma capacidade de transformação profunda do meio em uma escala global. Mas uma capacidade representa os meios, e não os fins, o que significa que nossa crise ecológica na realidade é uma manifestação de nossos valores como sociedade. No momento em que assumimos a existência real de uma crise, ela se faz eficiente em nos apontar as falhas de nossa civilização industrial. Falhas na medida em que são pensamentos e comportamentos que foram determinantes em nos trazer até a situação atual. É possível que a dicotomia Homem X Natureza sempre tenha existido a partir do momento em que a raça humana se diferencia no seu próprio galho de evolução na árvore da vida e se distancia dos outros seres vivos. Ainda assim, a civilização industrial inaugura uma nova postura de dominação através de uma visão de mundo mecanicista e do desenvolvimento de técnicas avançadas. A natureza rebaixada a nível de máquina perde qualquer valor espiritual, se torna matéria apenas, e sugere que a compreensão plena do sistema natural se encontra dentro do alcance da racionalidade humana. Natural e artificial se tornam extensões dos mesmos processos, apenas em níveis diferentes de complexidade. “Os cientistas da Idade Média escutavam a natureza; doravante, eles a questionarão. Integração no seio da biosfera, liberação progressiva e enfim dominação – eis as etapas da história do homem” (DORST, 1981, p.77). Num contexto de frenesi cientifico, dentro de um entendimento de universo feito máquina, parece natural o
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surgimento de uma mentalidade que acredita no potencial de criação, através da mente humana, de soluções técnicas cada vez mais engenhosas. De fato, “muitos padrões culturais tem provavelmente sua origem no caso de que uma inclinação em atitudes, formas e técnicas iniciou um processo coletivo em certa direção. Com o tempo, essa inclinação se tornou progressivamente mais consciente e mais fortemente expressa e acabou por evoluir para padrões de crença, de comportamento e de gosto que ajudaram a definir filosofias e metas sociais” (DUBOS, 1972). É nesse sentido que se desenvolve um conceito de Progresso pautado numa constante linear aumentativa, de que mais é sempre melhor. Na natureza todos os processos são cíclicos. É dessa forma que o sistema se sustenta. Não obstante, nossa cultura, ou a mente humana em si, tende a enxergar o universo de forma linear. Algo sem começo nem fim, que retorna a si mesmo, parece escapar a nossa intuição humana. Seguimos em busca sempre do mais, mais complexo, maior, melhor. Esse conceito age dentro de uma esfera material quantitativa, de forma que afasta o ser de conceitos metafísicos, e foi determinante em produzir uma atitude face à vida que busca realização na procura obstinada de riqueza – em suma, o materialismo. Evidente que qualidade de vida envolve uma dimensão material. Alimento, água, matéria para produzir roupas e abrigos são necessidades básicas inegáveis do ser humano e nesse sentido “o interesse crescente dos homens pelos resultados práticos da ciência foi por si mesmo tanto natural quanto legítimo” (GILSON apud SHUMACHER, 1977, p.78). Entretanto, progressivamente, passa-se a avaliar o padrão de vida pela quantidade de consumo, supondo que aquele que consome mais está em melhor condição do que aquele que consome menos. Ainda na década de 1970, Schumacher coloca que a própria paz universal, na crença dominante, teria como mais sólida fundação a prosperidade universal. Essa proposição se
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baseia basicamente em três ideias: de que a prosperidade universal é possível; que sua obtenção é exequível baseado na filosofia materialista de “enriqueçam-se”; e que este é o caminho para paz (SCHUMACHER, 1977). Essa crença moderna torna-se especialmente atraente porque não exige qualquer renúncia ou sacrifício, temos a ciência e a técnica para nos ajudar a alcançar a abundância. Mas num mundo de recursos limitados, como saber se há bastante para todos? Mais importante, e é nesse ponto primordial que o materialismo se revela insustentável, o que é “bastante”? Uma vida pautada pelo material apenas, não se ajusta a esse mundo por não conter em si qualquer principio limitador, ou cíclico. O que era luxo para os nossos pais torna-se necessidade para nós. Ainda assim, uma paz que tem como pilar fundamental uma prosperidade material, por mais que seja possível, dificilmente tornar-se-ia permanente, porquanto uma vida devotada primordialmente à procura de fins materiais coloca o homem contra o homem e as nações contra as nações. Quando passamos a nos definir pelo que temos, e não pelo que somos, não floresce de fato um verdadeiro sentimento de fraternidade. Faz-se expressa nossa individualidade quando nosso progresso parece se medir pelo vertical. Até onde chegamos como humanidade parece ser determinado por até onde alguém já chegou. Mas na realidade existe um abismo. O espetacularmente avançado e o espantosamente primitivo coexistem em um mesmo planeta Terra. O homem já chegou à Lua, e ainda assim mais de 700 milhões de pessoas não têm acesso a água potável. Se o objetivo do progresso é melhorar a condição humana, a quem serve um modelo de progresso que se desenvolve a uma velocidade espantosa, mas negligencia continentes inteiros? De que vale a Lua para quem não tem o que beber? Se existe um abismo entre o mais e o menos avançado, aqueles à margem do desenvolvimento naturalmente buscam
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alcançar os mesmos padrões de vida tidos como superiores, e nesse percurso trazem consigo todas as mazelas associadas a esse padrão. Nesse cenário, quem dita o futuro é aquele para quem o futuro chega antes, e a consequência é a reprodução de um modelo único de vida, de consumo, de exploração. Quando buscamos soluções para a questão da sustentabilidade, o consumo, a produção, o progresso, são conceitos enraizados tão profundamente na nossa cultura, que às vezes custamos a enxergar parte essencial (talvez a mais importante) do problema. Nos Estados Unidos, embora alguns códigos de energia adotados por estados e municípios nos últimos anos tenham aumentado a economia de energia por metro quadrado em edificações, o tamanho da casa padrão norte americana parece estar aumentando mais rapidamente, anulando qualquer economia. Da mesma maneira, quando o assunto é sustentabilidade, algumas grandes empresas parecem já ter comprado essa ideia. E agir de maneira consciente se tornou uma estratégia de marketing. Numa empresa de refrigerantes, por exemplo, isso se traduz, talvez, na produção de latinhas que usem menos material e que agora são "verdes", apesar de continuarem tão vermelhas quanto antes. Mas o nível de produção, o numero de latinhas produzidas todos os anos se mantem o mesmo. No final das contas, latinhas mais ou menos leves tem praticamente o mesmo impacto sobre o planeta? Uma análise desse fato nos permite concluir que, em muitos casos, parte essencial do problema reside não no produto em si, mas na quantidade que se produz. O tamanho de nossas casas e a quantidade de latinhas produzidas são nada mais que o reflexo do nosso padrão de consumo. Por mais importantes que sejam, políticas e campanhas adiantam pouco ou quase nada, se não aliadas a uma revisão dos nossos valores e da maneira como vivemos.
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Durante a maior parte da historia da humanidade, a energia disponível era, em grande parte, ainda produto de músculos de homens e animais. Em determinado ponto, o homem descobriu como dispor de uma energia externa a seu próprio corpo, através de forças elementares como o vento, as correntes fluviais e quedas d’água. No entanto, de súbito, a partir do século XVIII, o carvão e posteriormente a combustão do petróleo colocaram à disposição do homem uma energia sem paralelo com a de qualquer outro período. A energia disponível, doravante, animará máquinas poderosas, cujas forças ampliarão a capacidade de ação do ser humano. Os músculos encontraram-se, por sua vez, completamente exteriorizados do processo de produção, sendo a força das máquinas muito superior a força dos seres. A revolução industrial foi, de fato, uma revolução energética. Nas culturas pré-industriais cada individuo tomava da natureza o que lhe era necessário numa relação mais evidente de esforço e recompensa. Ainda assim, o trabalho humano, por si só, foi capaz de transformar paisagens de vastas superfícies. A Revolução Industrial foi responsável por modificar completamente essa relação num processo de substituição do homem pela máquina. Um novo potencial energético transformado em mecânica permitiu aos homens empreenderem trabalhos que outrora sequer podiam imaginar, o que se traduz numa mudança significativa na escala de produção, exploração e construção. Essa transferência do trabalho do homem para a máquina foi de extrema importância em determinar nosso atual padrão de consumo material e energético. Dorst (1979) coloca que “de repente, os investimentos em termos de energia passam a ser incomparavelmente mais elevados, pois o homem vai precisar acima de tudo de combustível para alimentar os monstros famélicos em que se vão transformando suas máquinas” (DORST, 1979, p. 62).
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Logo, a construção da civilização industrial se baseia num aumento notável de recursos utilizados por individuo. Do construído pelas mãos do homem ao construído pelas pás mecânicas, da oca ao arranha-céu, cresce nossa demanda por energia, e com ela nossa necessidade de exploração do mundo natural. A máquina, muito superior ao homem em força e eficiência, transforma-se num modelo centralizado de produção e exploração. Uma fábrica apenas é capaz de substituir uma comunidade inteira, sendo que o homem que fica, quando a comunidade se vai, como operário se transforma em mais uma peça mecânica dentro do sistema industrial. Essa lógica terceiriza os mais básicos itens de subsistência, e nos torna alheios à produção. Numa mudança de escala, perdemos a noção do processo, e consumir se tornou uma atividade livre de qualquer reflexão sobre de onde vem e para onde vai o que se consome. Através de um método reducionista, perde-se a noção do todo. Além disso, tornamo-nos reféns de nossa própria engenhosidade, porquanto a indústria centraliza e se configura como modelo rígido. Com sua complexidade de esteiras e engrenagens, foge à nossa compreensão mundana e caminha sem perguntar, ainda que, se o fizesse, poucos talvez se interessassem em responder. Somos viciados em energia e dependentes de um sistema que não compreendemos totalmente. Seguimos consumindo sem consciência do real impacto que causamos como indivíduos. Podemos acreditar que, num primeiro momento, nosso nível de produção e exploração industrial nada mais era que um reflexo da capacidade humana, o homem em frenesi com sua própria engenhosidade, entendendo o mundo e se descobrindo uma força transformadora. Esse ímpeto, no entanto, evolui para uma obsessão pelo crescimento material. Nossas necessidades passam a ser determinadas pela capacidade, de modo que os meios
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tornam-se os fins. Passamos a consumir e possuir não simplesmente o que se precisa, mas o que se consegue e o que se quer. Mais que isso, a crença na contínua necessidade de aumento da produção, apoiado em valores materialistas de autoafirmação e expansão, de forma consciente ou não, representa a instrumentalização do consumo. Nesse sentido, consumir se torna um instrumento de manutenção da lógica industrial. O investimento em tecnologias é de vital importância, e nessa escala o desenvolvimento sustentável escapa à nossa realidade cotidiana. Entretanto, sem nos darmos conta, nos acostumamos a pensar que a tecnologia é capaz de resolver todos os nossos problemas e deve avançar para compensar nossos erros de comportamento (erros numa perspectiva da sustentabilidade, dado que o homem possui um componente cultural subjetivo). Muitas vezes, tendemos a transferir a responsabilidade de criar uma realidade sustentável para instituições maiores do que nós. Mas, se assumimos que grande parte do problema está no consumo, entendemos que, como indivíduos, temos o poder para mudar o jogo, a responsabilidade é de todos nós. Assim, o caminho para uma real sustentabilidade passa também por uma mudança de mentalidade e uma revisão daquilo que chamamos de progresso.
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Porto de Los Angeles, Calif贸rnia, Estados Unidos Fonte: http://www.boredpanda.com/daily-overviewsatellite-aerial-photography-earth/
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4. SER SIMPLES Diversas filosofias orientais se baseiam numa relação de respeito em relação à vida em suas múltiplas formas, dado que todas são manifestações de um ser superior uno. Nesse sistema se inclui o homem como nada senão um dos muitos elementos que fazem parte de um todo indissociável. Não há hierarquia de seres, posto que Deus é imanente a todas as criaturas. Nesse sentido, são filosofias que interagem com a natureza dentro de uma postura de não violência; não cabe ao homem assumir uma posição de dominação, ele se integra a uma corrente dinâmica do universo e consome e retira do meio aquilo que é necessário a sua sobrevivência. “Deus está em tudo e tudo está em Deus. O homem deve respeitar o mundo vivo em virtude da unidade de todas as existências.” (DORST, 1979, p.86) Parece impossível, ou pelo menos altamente improvável, que uma comunidade que se dedicasse a qualquer filosofia que enxergasse o mundo dessa maneira viria a conhecer uma crise ecológica fruto da ação humana. Entretanto, não é necessário assumir Deus em todos os seres para respeitar a natureza. Quem sabe o espirito humano, por si só, diante de uma manifestação natural por demais bela, busque uma conexão. Desenvolver um respeito profundo pela natureza de modo que preservá-la não seja apenas uma questão de sobrevivência, seria talvez o caminho mais sustentável possível. Ainda assim, não é preciso se converter ao budismo, ou acreditar numa conexão espiritual para adotar uma postura mais ecológica. Sem abdicar da razão ou da eficiência do método cientifico, no ponto em que estamos, o que uma crise ambiental inevitavelmente exige de nós é mudança. Jared Diamond (2012) coloca que, dentre os fatores que influenciaram o colapso ou não de civilizações antigas, aquele que sempre se mostrou significativo envolve a maneira como uma
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sociedade responde aos seus problemas. Essa resposta depende de instituições políticas, econômicas e sociais e de valores culturais. Cada sociedade tem suas imagens do futuro. René Dubos (1975) nos apresenta uma versão curiosa desse fato: “Pouco antes de 1900, os redatores das revistas americanas se empenhavam em imaginar como seria o mundo no século seguinte. No final do século XIX, a máquina a vapor levava rapidamente ao desenvolvimento de luxuosos transatlânticos com duas ou três chaminés muito altas. Os profetas previram, em vista disso, imensos barcos a vapor de muitas chaminés capazes de atravessar o Atlântico em poucos dias, mas não fizeram menção de aviões a jato. Entre os criadores de plantas falava-se então de morangos do tamanho de maças, mas não de almoços congelados”. (página) Imaginar o futuro, acrescenta Dubos, é uma tarefa arriscada, não só porque novas tecnologias e descobertas científicas são em parte imprevisíveis, mas também porque homens não são robôs. O futuro que parece lógico na realidade difere do futuro determinado pela vontade humana. O que é tecnologicamente viável não é necessariamente o que os seres humanos querem ou tem que de fato fazer. A ciência nos apresenta um futuro grandioso, prédios cada vez maiores, exploração espacial, velocidades supersônicas, um mundo de distâncias cada vez menores, e vidas cada vez mais longas. Todos esses avanços são incríveis, e fazem revelar a genialidade humana. Mas, diante de uma crise ecológica, num mundo de recursos limitados, permitamo-nos também pensar simples e pequeno.
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A maneira como vivemos é resultado de uma capacidade técnica incrivelmente avançada, mas orientada de maneira profundamente antiecológica, incompatível com os sistemas naturais. Desenvolvemos tecnologias altamente eficientes em produção e exploração, mas que afastam o homem de um cultivo de suas reais necessidades e o tornam amarrado a um sistema centralizado. “Cada vez maiores máquinas, impondo concentrações ainda maiores de poderio econômico e exercendo violência sempre maior ao meio ambiente não constituem progresso: elas são uma negação da sabedoria. A sabedoria exige uma nova orientação da ciência e da tecnologia para o orgânico, o suave, o elegante, o não-violento, o belo” (SCHUMACHER, 1973, p.28). Precisamos então, de uma orientação que nos dê invenções e máquinas que sejam capazes de inverterem as tendências destrutivas que nos ameaçam. Pensar simples e pequeno, portanto, seria valorizar aquilo que é feito tendo como referencia de fato o ser, de forma a construir um futuro pautado nas reais necessidades do homem e não manipulado por valores de expansão e lucro. Essa nova orientação seria direcionada a uma escala humana. Aquilo que pode ser feito numa escala não industrial, que seja capaz de conectar o homem as suas reais necessidades e que trabalha dentro de um principio de descentralização. Investir numa escala humana significa empoderar o indivíduo e as comunidades de forma que qualquer um possa construir o futuro. É uma questão de resiliência, na medida em que promove autonomia, diversidade de pensamentos e maneiras de viver, da mesma forma que um ecossistema biodiverso possui flexibilidade e é capaz de se adaptar a novas situações.
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É numa escala não-industrial que se torna possível enxergar o trabalho não como sacrifício, mas como tendo uma função positiva no mínimo tríplice: dar ao homem a oportunidade de utilizar e desenvolver suas capacidades; possibilitá-lo a superar seu egocentrismo unindo-se a outras pessoas em uma tarefa comum; e gerar os produtos e serviços necessários a uma existência digna. Nesse sentido, Schumacher (1973) introduz o conceito de produção pelas massas em contraste com o sistema de produção em massa. A tecnologia de produção em massa, diz ele, “......é intrinsecamente violenta, ecologicamente nociva, motivadora de frustrações em termos de recursos não-renováveis, e embrutecedora para a pessoa humana. A produção pelas massas, ao fazer uso do melhor do conhecimento e da experiência atuais, é propicia à descentralização, compatível com as leis da ecologia, sensível no uso dos recursos escassos e planejada para servir à pessoa humana, em vez de torna-la escrava da máquina” (SCHUMACHER, 1973, p.136). E dessa forma direcionar a energia humana ao que realmente nos tem importância, reintroduzindo os músculos na construção de uma realidade sustentável. Trabalhar dentro de uma escala humana significa fortalecer comunidades em detrimento do individual, numa celebração da nossa capacidade, não pelo que podemos fazer em série, não como indivíduos-máquina, mas como indivíduos criativos num ambiente que promova o compartilhamento de informação e conexões imateriais, valorizando pessoas, ambientes, momentos, experiências. De uma mentalidade construída sobre a valorização do ser pode surgir um conceito de progresso que se baseia na pluralidade, na diversidade, e que tenha o desenvolvimento da
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tecnologia não como os fins, mas como os meios, uma ferramenta de empoderamento e resiliência que capacite as pessoas a construir o futuro. Um conceito de progresso que surge da descentralização, que permita a expressão do potencial criativo humano num sistema onde o homem não representa uma peça mecânica, mas é o próprio criador; que, dentro de uma comunidade, compartilhe informação; e que estimule a cooperação em detrimento da competição. Dessa maneira, podemos caminhar rumo ao futuro não em fila indiana, mas lado a lado. Tendo em mente civilizações que surgiram e pereceram vitimas do próprio sucesso, Dorst (1979) nos coloca uma questão fundamental: “.....a civilização industrial, de que tanto nos orgulhamos, não terá chegado ao mesmo estágio fatal, o da irreversibilidade? Seus êxitos tecnológicos e industriais não a fizeram ir muito longe, sonhar demais e estender pelo mundo inteiro os processos elaborados dentro de condições muito especificas e um gênero de vida que talvez não seja o melhor para todos?” (DORST, 1979, p.61) Nesse todos, inclui-se nossa própria sociedade moderna. Uma mudança de direção rumo a um futuro mais sustentável é certamente um processo, podendo ser algo não exequível num curto período de tempo. Exige uma reorientação dos nossos esforços e uma mudança de mentalidade sobre o que é realmente importante. Mas esse processo deve ter inicio hoje, sendo que uma reorientação começa na esfera do individual através de uma reflexão sobre a maneira como vivemos e consumimos. No momento em que assumimos que há urgência na questão ambiental, optar pela sustentabilidade exige de nós como indivíduos uma atitude simples em relação à vida. Sem negar as
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conquistas da modernidade, simples no sentido de valorizar uma vida menos materialista, repensar nossas necessidades e consumir de maneira responsável, consumir e possuir o que se precisa, não simplesmente o que se consegue ou o que se quer; simples no sentido de valorizar aquilo que pode ser produzido numa escala humana de produção; de fortalecer comunidades em detrimento do individual; de promover a diversidade, livrar-se de preconceitos; de compartilhar conhecimentos e informações. E assim tem que ser, porque talvez só assim será. Sustentável por opção, simples por consequência.
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