A Saga de Dudu do Banjo - Um precursor do jazz e do rock no Brasil

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A saga de Dudu do Banjo Um precursor do jazz e do rock do Brasil Leo L. Laps


A saga de Dudu do Banjo Um precursor do jazz e do rock do Brasil

Leo L. Laps

Trabalho de Conclus茫o do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Florian贸polis, 2004


Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Comunicação e Expressão Departamento de Jornalismo Curso de Jornalismo A saga de Dudu do Banjo – Um precursor do jazz e do rock do Brasil Categoria: Grande Reportagem Suporte: Texto Semestre: 2003/2 COPYRIGHT Leonardo L. Laps Trabalho apresentado no Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para a conclusão do Curso de Jornalismo, sob a orientação do Professor Ms. H. Ricardo Barreto Florianópolis, fevereiro de 2004


RELATÓRIO Foi apenas em dezembro de 2002, após quase dois semestres completos matriculado na derradeira disciplina “Projetos Experimentais” do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, que encontrei um bom tema para o meu Trabalho de Conclusão de Curso, objetivo único da disciplina que conclui a graduação. Já havia passeado por uma série de idéias e todas elas, por motivos variados, não foram adiante, a ponto da pergunta-piadinha recorrente de alguns professores para com a minha pessoa ser: “E aí, Laps, já mudou de tema? De novo?”. Seguindo sem tema, sabia que havia outros quatro semestres antes de ser jubilado. Tempo eu tinha então, porém o plano era ter meu diploma bem antes desse limite. Então eu encontrei Dudu. Graças ao caderno cultural de um jornal comunitário em que trabalhava na época, e à minha própria vontade também, fui entrevistar o comentado Rei do Banjo, que a essa altura já tinha impressionado alguns amigos meus em shows da Papadu, a banda que mantém com seus três filhos mais novos. Também já havia estrelado reportagens no jornal Diário Catarinense e no programa Patrola, da RBS-TV. Fui entrevistá-lo e, pergunta após pergunta, percebi que o homem tinha mesmo muita história para contar. Não havia mudado a história da música, de maneira alguma, mas havia mudado sua história, havia vivido o que havia para viver, como músico, nos anos 50, 60, adiante, tocando jazz, rock e música brasileira nos mais diferentes lugares, desde boates do subúrbio paulistano, glamurosos shows no Copacabana Palace, ruas de Montparnasse e barezinhos de ilha gregas. Passara dez anos sem tocar, de 1978 até o início dos anos 90, quando voltou a empunhar a guitarra e o banjo – instrumento raro nos dias de hoje – ao lado dos filhos. Aquilo tinha interesse, havia muita vida naquelas histórias. E Dudu, aos 67 anos, era ainda uma personagem exótica, com seu vasto cabelo e bigode a la Dom Pedro, as calças de enormes bolsos (onde carrega uma papelada sem fim), a fama de mestre-cuca, o jeito inconfundível de falar, pensar e tocar,. Ícaro, o mais novo dos seus filhos, ainda me deu a dica: “O pai vive contando um monte de histórias pra gente, daria pra escrever um livro!”. Uma semana depois encontrei Dudu no campus da UFSC e já emendei em nosso papo se ele toparia ser o “tema” do meu TCC. Gostaria de escrever seu perfil biográfico, ano por ano, até os dias de hoje desde os anos 50, quando era um adolescente ingressando na Paulistânia Jazz Band, sua primeira banda. Ele topou, “sem problemas”, como ele mesmo respondeu. Iniciei então uma série de entrevistas. Uma ou duas vezes por mês, visitava-o no Rio Vermelho, onde acabara de construir uma casa pequena e aconchegante. A freqüência não era maior porque eu estava duro, acostumando-me ao que a profissão normalmente nos reserva. Ficava 15 dias em Florianópolis para fazer o jornal comunitário. Os outros 15 do mês eu passava em Blumenau, na casa de meus pais. Isso atrasou bastante o processo. A cada entrevista, as histórias eram lembradas e entrelaçadas. Histórias pitorescas, filosofias de vida. Escolhi o professor Ricardo Barreto como orientador pela amizade que fizemos no meu 4º semestre, quando participei do jornal-laboratório Zero, e principalmente pelos seus conhecimentos na área de música. Analisando as entrevistas, ele foi me dando toques do que mais deveria ser perguntado e escrito, e alguns livros para inspirar. Li apenas um, a autobiografia de Miles Davis, e foi de fato inspirador. Em março, terminando as últimas disciplinas que exigiam presença, larguei o subemprego e me mudei para Blumenau, voltando à casa de meus pais. Até agosto, mantive a freqüência de entrevistas, ao mesmo tempo em que tirava cópias do vasto material iconográfico e documental (fotografias, jornais e revistas, cartazes, discos) que Dudu havia guardado nesses quase 50 anos. Com alguns frilas consegui dinheiro para comprar um computador (a falta de um em casa dificulta sobremaneira qualquer trabalhador acostumado. Escrevia os frilas e editava as entrevistas em computadores alheios, ou como penetra no Laboratório de Informática da universidade de


Blumenau. Até tentei a velha máquina de escrever do meu pai, mas não havia interação homemmáquina). Agora sim, poderia começar a escrever. Houve então uma greve, e o fim do semestre foi chutado de dezembro de 2003 para fevereiro de 2004. Mais tempo para escrever com calma. Não pude deixar de gostar do lado pessoalmente positivo da paralisação. Em dezembro já havia terminado quase todo o trabalho, e daí até o início de fevereiro foi questão de acertar detalhes e corrigir erros, caneteando com Dudu e o orientador. O telefone e o Sedex foram bastante acionados. Trata-se da parte que mais deixa ansioso, essa do acabamento. O trabalho já está pronto, mas precisa sempre de algum polimento, ele pode melhorar. Mas nunca estará perfeito. No final de janeiro, faltando menos de um mês para apresentar o trabalho, iniciei o processo de transformar o texto com mais de 50 mil toques em uma revista, conforme o orientador já havia sugerido tempos atrás, agregando valor ao texto com o material iconográfico já citado. Até poucos dias antes de entregar o trabalho para a banca, ainda trabalhava na editoração eletrônica da revista. É outra ansiosa fase de acabamento. Tive algumas dificuldades por não contar com um expert no software como poderia contar estando em Florianópolis. Em apenas uma tarde, o orientador mais o professor Clóvis Geyer deram as dicas de diagramação essenciais para a estética correta da revista, que de fato ficou com uma cara de livro-revista. Após toda correria, da qual nunca consigo escapar, o trabalho foi finalizado no prazo. Dudu gostou. Isso era o que me importava, em primeiro lugar. Os créditos das fotografias ficaram no final do trabalho, juntos à hemerografia, a fim de não atrapalhar a diagramação. Muitas, retiradas de jornais e revistas, não estavam creditadas, como era comum acontecer na época. Para finalizar preciso agradecer, por toda ajuda que sempre encontrei, aos meus pais, irmãos, amigos, professores e funcionários da Universidade Federal de Santa Catarina, especialmente ao monitor do Zero Wendell Martins e ao professor Clóvis Geyer pelas valiosas dicas de editoração eletrônica, ao professor, Mestre e orientador H. Ricardo Barreto pela dedicação e ao grande Dudu e sua família pela hospitalidade, amizade, boa vontade e paciência com que me auxiliaram na feitura deste trabalho. Leo L. Laps Florianópolis, SC 11 de fevereiro de 2004.

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eu Orlando não contrariava, ficava na dele: seus filhos mais novos, Paulinho e Dudu, não eram grandes fãs da escola. Gostavam mesmo era de música, pensavam e sonhavam com música e o que ela poderia, com alguma sorte, proporcionar ao seu futuro. Ainda guris, já eram conhecidos em quase todos os bares do bairro da Liberdade, na região central de São Paulo, onde moravam com os pais mais um irmão e duas irmãs. Nessas incursões pela boêmia paulista, avalizadas pela mãe, Dona Stella, buscavam aprender um pouco mais sobre a mágica observando quem estava nos palcos e nas rodas de chorinho e samba dos botequins. Dudu nasceu Francisco Eduardo de Souza Pereira no dia 4 de junho de 1935, e é a sua história que será aqui contada. Neto pelo lado materno de Dalila Barroso de Souza, professora de pintura e figura da alta sociedade paulistana, ele e seus irmãos foram criados numa família que valorizava a cultura e a arte, mas não pregava o que Dudu chama de “a realização do sonho burguês”. “Era muito tranqüilo, não tinha de ficar rico”, relembra. Hermílio, o marido de Dalila, tocava piano muito bem e morreu em 1900, após cinco anos de casamento, deixando para Dalila algum patrimônio e a tarefa de criar as duas filhas, Stella e Judith, o que realizou quase sozinha, não fosse a assistência do cunhado, o bispo Dom Benedito de Souza. O funeral de Dalila, que deixou aos filhos terras e imóveis, foi um verdadeiro acontecimento na cidade de São Paulo. Fazendo parte da elite paulistana da época, Stella e seu marido, Orlando Pereira, dono de uma fábrica de chapéus, tinham acesso às melhores festas e eventos da alta sociedade. Avessos a formalidades, Dudu e Paulinho gostavam mais de freqüentar os botecos do Liberdade, do Bexiga, da Rua Augusta e do Centro da cidade, onde ouviam baião, samba, chorinho, a música do Brasil. Nas festas dos grã-finos ouviam fox-trot e orquestras internacionais, dessas que tocavam Glenn Miller e afins. Já notavam naquela cidade um ar provinciano, com seus clubes de chás e a separação geográfica das classes. Nas festinhas dos amigos Dudu tocava violão e principalmente cavaquinho, repetindo à exaustão a melodia do momento, Brasileirinho, de Waldir Azevedo, primeiro ídolo musical do garoto. Na escola, ele já havia sido reprovado quase dez vezes, principalmente nos primeiros anos – por perseguição de alguns professores, confessa -, e conclui o colegial só aos 21 anos. Parecia estar aguardando sua “chance”, sem saber como ia acontecer, fiel desde cedo à filosofia simples que repete até hoje, tranqüilo, na dele: “é a vida que leva a gente, e não a gente que leva vida”.

DO SAMBA E DO JAZZ

Aos 20 anos, Dudu não sabia nada sobre jazz. Mas já achava besteira toda a discussão que permeava a década de 1950, do samba contra o jazz, como contou ao repórter Carlos Acuio, Do diário Folha de São Paulo, já no inicio dos anos 70, quando era então reconhecido, inclusive na França e na Grécia, como Dudu do Banjo ou ainda o Rei do Banjo: - Acho que o papo furado do que é melhor, se música brasileira, música de raiz, jazz, etc. e tal, já era. Já era mesmo. Cada um tem que estar na sua. O bom é música boa mesmo. Sendo boa, estamos aí. Paulinho era três anos mais velho que Dudu e trabalhava no Tribunal de Contas de São Paulo. Aprendia a tocar bateria. No inverno do ano de 1955 um colega de trabalho, o clarinetista Luis Fernando Mendes, ficou muito interessado quando soube que o irmão de Paulinho tinha um banjo estacionado no armário de casa. Era um velho banjo de um tio que tocara, ainda nos anos 20, em uma jazz band, que recebia esse nome na época não pelo estilo, mas pela formação instrumental, semelhante à de uma banda de jazz de New Orleans, com trombone, clarineta, saxofone, trompete, bateria, banjo e violino. Tocavam, de fato, músicas folclóricas européias, canções populares e algumas marchinhas, e eram encontradas em quase todo o Brasil. Dudu recorda: 9


- Eu usava só o tambor do banjo como se fosse um pandeiro, para acompanhar uns sambas. Mesmo assim aceitei o convite do Luis Fernando, que estava montando uma banda de jazz e andava atrás de um banjoísta, e fui fazer um teste, mesmo sem nunca ter tocado aquilo.

DO SAMBA CONTRA O JAZZ

Muitos conflitos ideológicos permearam a cena musical brasileira a partir dos anos 50. Num canto do ringue estavam os que pregavam a pureza do samba e de outros ritmos nacionais, associando aos Cadillacs, à calça jeans, aos óculos Ray-Ban e à Coca-Cola a música que começava a vir dos Estados Unidos maciçamente via Hollywood, rádio e vinil principalmente depois da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial. O jazz, para estes, era só mais um produto comercializado, o que não era uma total inverdade. Mas havia quem argumentava que o som comercializado no Brasil, ao qual era dada a alcunha de jazz, resumia-se às orquestras de Frank Sinatra, Bing Crosby, Gleen Miller e Benny Goodman, enquanto que o “verdadeiro” jazz, aquele das grandes improvisações, permanecia ainda raro de se ouvir no país, mesmo com a consagração do estilo pelos fraseados do trompetista Louis Armstrong, um dos mais famosos jazzistas de todos os tempos. Havia muito que se aproveitar do estilo, cuja história era comparada pelos seus defensores à do próprio samba: escravos vindos da África expressando seus sentimentos pela musicalidade inerente. Nas rádios do país ainda dava-se preferência ao “vozeirão de ouro” de Francisco Alves e Nelson Gonçalves. Mas já se estruturava a “modernização” da música brasileira, com o surgimento do jazz e de João Gilberto e Tom Jobim. Um assunto também muito discutido a partir dos anos 50, essa tal “modernização”. Ainda no final da mesma década, o rock’n’ roll chegaria ao país para apimentar o debate.

TIRANDO DE PRIMEIRA

Os ensaios da banda de Luís Fernando eram realizados em um local da Rua 7 de Abril que inspirava de muitas maneiras, pois ficava no último andar do edifício dos Diários Associados, que na época abrigava o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Museu de Arte Moderna (MAM), aquele fundado pelo jornalista e empresário Assis Chateaubriand em 1947, o outro pelo também empresário e industrial Francisco Matarazzo Sobrinho um ano depois. Junto ao MAM ainda funcionava o badalado Neurosi´s Bar e a Cinemateca, recém fundada por Paulo Emílio Salles Gomes. Era o epicentro artístico da cidade na época. Naquele ensaio estavam presentes, além de Luis Fernando no clarinete, o jornalista italiano Edoardo Vidossich no piano, os holandeses Kurt Van Elgg no cornet e Henk Warckiwitz na bateria, o francês Roberto Oauckil com outro clarinete, o futuro produtor e crítico musical Zuza Homem de Mello no contrabaixo e outros músicos. Eram todos amadores, mas alguns tinham noções, estudos e alguma prática e experiência em jazz. A maioria desses estrangeiros estava no Brasil há apenas alguns anos, e trazia na bagagem alguma experiência jazzística do além-mar. Dudu aprendera tudo o que sabia – alguns acordes, a tônica, uma ou outra escala – de olho, ouvido e toques. Não sabia nada de jazz. Mas notara que aquilo que ouvia naquela sala era diferente daquele jazz das rádios e do cinema de Hollywood. Aquilo

parecia mais vivo e solto. - Mas eu não sabia se tocava marcado, se dedilhava, então fiquei só olhando, na minha. O Kurt me deu uns toques e, sem brincadeira, peguei o jeito do troço na hora... O jazz é uma coisa de dentro para fora, você meio que nasce com a capacidade de trazer esse sentimento à tona. Não tem muita explicação. A gente tocava no estilo New Orleans, do início do século 20, que é improvisado assim como o middle-jazz e o boogie, que surgiram depois. O bebop veio então, e os caras [Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, John Coltrane] quebraram tudo, improvisando também. Mas é um estilo que exige muita técnica, o bebop. Eu toco mais instintivamente, nunca tive aulas. Por isso me identifiquei com o New Orleans e, posteriormente, com o rock. 10

Em dois ou três temas, Dudu já se entrosara com os outros integrantes da banda. E quando isso acontece assim, de primeira - quem é músico sabe -, praticamente se estabelece um contrato informal automático: Eu estou na banda, quando é o próximo ensaio? Tomando alguns discos de jazz emprestados dos gringos, raridades no Brasil, passou a pegar as manhas de Duke Ellington, Louis Armstrong, Jelly Roll Morton e Roy Eldridge. E aprendeu muito rápido. Passaram a ensaiar uma vez por semana, normalmente nas segundas-feiras. O nome da banda, a princípio, era Paulistânia Jazz Band, pioneira no país do jazz no estilo New Orleans. Alguns anos depois o nome mudaria para São Paulo Dixielanders, por motivos que Dudu nunca entendeu, ele que sempre preferiu o nome anterior. Antes disso Luís Fernando Mendes já havia saído da banda, e Zuza, que tornou-se um dos melhores amigos de Dudu, seguia firme na carreira de jornalista e produtor musical, mesmo tendo ido aos EUA aprender contrabaixo. Dudu passou a ser o único brasileiro integrante da banda de jazz dos gringos da capital paulista.

NEW SAMPA ORLEANS

Em meados dos anos 50, quase todo jornal de São Paulo tinha a sua coluna de jazz. O diário Última Hora e algumas revistas como O Cruzeiro e Aconteceu relatavam jamsessions publicavam biografias, fatos históricos e outras curiosidades do mundo do jazz. O jornalista Nelson Motta, em seu livro Noites tropicais, tratando mais precisamente da bossa-nova de alguns anos depois, diz que o editor Samuel Wainer, então “casado com Danuza, cunhado de Nara Leão, dava generosa cobertura [do jazz e da bossa-nova] na sua vibrante Última Hora, na sua linha de entusiasmo pelos jovens e audazes”. Havia também os recém formados clubes de jazz, que se dividiam conforme o estilo entre tradicionais e modernos. Nos finais de semana estes clubes organizavam reuniões semelhantes àquelas que, mais tarde, reuniriam a turma da bossa-nova no Rio de Janeiro. - A gente fazia um strogonoff e então tocava a noite inteira. Durante anos fizemos isso, o que acabou sendo um belo aprendizado para mim. Foram noites de música como aquela documentada em um exemplar da revista Aconteceu, de meados de 1956, relatando um duelo entre a Paulistânia Jazz Band, fiel ao tradicional New Orleans, e um conjunto de músicos cariocas, mais adeptos ao cool jazz que já na época influenciava grande parte dos pensamentos musicais do Rio de Janeiro. Realizada em “terreno neutro”, no Itatiaia Country Club, cidade de Itatiaia [então Estado do Rio de Nas duas fotos, Dudu toca nos ensaios (muitas vezes festivos) da Paulistânia Jazz Band

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JAZZ, JAM, NEW ORLEANS

Assim como a palavra jazz, a expressão jam session também tem muitas origens supostas. Uma das mais divulgadas é a de que jam é sigla de Jazz After Midnight, literalmente “jazz depois da meia-noite”, porque designava os informais encontros de músicos que aconteciam em bares ou boates após as apresentações oficiais dos conjuntos, madrugada afora. Outra, com a qual Dudu mais concorda, é que a palavra jam vem do francês jamboree, que por si só tem vários significados, entre eles “reunião de escoteiros”, mas no caso, provavelmente, significa as reuniões festivas ao ar livre realizadas pelos negros de New Orleans no Congo Square. Festividades que contribuíram substancialmente na fusão que daria origem ao jazz entre elementos africanos e a dialética dos crioulos, mestiços abastados que sabiam tocar instrumentos europeus como o piano e o violino. [Muitos fatores, incluindo até a invasão americana ao México, contribuiram para o surgimento do jazz, e é aconselhado a quem quer se aprofundar no assunto ler algum livro mais especifico. Na bibliografia deste trabalho há algumas sugestões]. A jam session em si é uma reunião de músicos – hoje em dia não somente de jazz - duelando divertidamente uns contra o outro em improvisações livres, com longos solos e variações, o que normalmente é negado nas rotineiras apresentações oficiais. A competição existe, mas naturalmente num clima de brincadeira. Até hoje é normal um músico de jazz em excursão procurar na cidade onde tocou algum bar com bons músicos para participar de uma jam session. O new orleans, que figura junto ao ragtime como um dos primeiros estilos daquilo que passou a ser considerado como música jazz no limiar dos séculos 19 e 20, é baseado na improvisação coletiva, com múltiplos instrumentos fazendo variações livres ao mesmo tempo. A estrutura simples da música e a imensa liberdade melódica leva muitos amadores ao new orleans, ao contrário das grandes orquestras, onde todos devem se adaptar à partitura, e do bebop, que exige, ao improvisar, muita rapidez e técnica.

Janeiro, cuja capital era Niterói, e não o Rio, numa complicação semântica da geografia nacional]. Aconteceu registra que “o prélio musical (e ardente) durou duas noites consecutivas, com os alligators [fãs de jazz] dançando até o amanhecer”. Um júri escolheu a Paulistânia como melhor conjunto, enquanto que o prêmio de melhor instrumentista foi para Ed Lincoln, o contrabaixista do conjunto carioca. O aprendizado seguiu seu curso sem maiores surpresas. Dudu tocava todas semanas nas boates Cave, Moulin Rouge, no Iate Clube Bandeirante, no Clube Inglês, nas reuniões dos clubes de jazz, bailes e até em peças teatrais, como Rosa tatuada, encenada por Maria Della Costa. A história se passava na New Orleans do inicio do século 20, e Dudu mais Kurt e Henk tocavam a trilha sonora no estilo da cidade sulista. Não ganhavam dinheiro para tocar. O esquema era totalmente amador, feito por diversão. Então Dudu passou a trabalhar ainda em 1955 como estagiário da Procuradoria Fiscal do Estado de São Paulo, indicado por um tio influente, como já era

A Paulistânia Jazz Band vinha para o confronto formada por Dudu no banjo, Luis Fernando Mendes na clarineta, o francês Roberto Ouackil no sax, os italianos Luigi Donzelli no sax-alto e Edoardo Vidossich no piano, e os holandeses Kurt Werdmueller Van Elgg no trompete e Henk Warckiwitz na bateria. Na formação do grupo do Rio de Janeiroestavam Marcos Spillman no sax-alto, Dinarte Rodrigues no violão eletrificado, Nelson Amorim no piano, Ed Lincoln no contrabaixo, Mauricio César Monte na bateria e Alfredo de Paula no trompete. Todos brasileiros. As fotos mostram alguns dos músicos da Paulistânia Jazz Band. Na foto acima, Dudu aparece com seu banjo ao fundo.

comum na época. Sua função era sair com mandados atrás de quem devia ao Estado. Não era mal, ganhava bem e até gostava do serviço, mas a hora de tocar raramente conciliava com a hora de acordar para o trabalho. O tempo foi passando, entre uma apresentação e um reunião nos clubes de jazz, até que, perto do Natal de 1956, o músico e cantor americano Booker Pittman ressurgiu da

BOOKER: VIDA, MORTE A E HISTÓRIA RESSURREIÇÃO VIDA, MORTE E RESSURREIÇÃO: DE BOOKER Booker Pittman tavernas clandestinas”. nasceu em Maryland, A saída de emerAlabama, nos Estados gência estava em um navio Unidos, em 1909. Neto para a Europa. Acompade Booker T. Washinnhando a orquestra de gton, fundador do Lucky Miller, desemTuskegee Institute, barcou em Paris e por primeira universidade ali mesmo ficou. Foram para negros no país, os anos de ouro de sua preferiu, assim como carreira. Muitos shows Dudu, o futuro incerto, e aplausos. Booker foi porém interessante, incluído no Dicionário de que a música poderia Jazz criado por Hughes oferecer. Suas primeiras Panassiè, um de seus tentativas musicais maiores admiradores, ocorreram em Dallas, como um dos dez maiores Texas, com uma sax-altos do mundo, clarineta de três dólares. comparável a Johnny Mas ele se especializaria Hodges. O crítico de também nos sax-alto, música conterrâneo de soprano e no canto. Foi o Panassiè, André Hozeir, O clarinetista, saxofonista e cantor Booker Pittman pioneiro bluesmen Blind faz uma descrição de seu Lemmon Jefferson (1897estilo, citada por Pacote: 1929) quem lhe ensinou a “A atonalidade inentoar o blues e os spirituals com estilo, troduzida por Charlie Parker e que se pode numa voz rouca que às vezes lembrava a julgar decisiva na música de jazz parece de Louis Armstrong. já haver sido pressentida mais partiAté 1933, Booker tocou com muitos cularmente pelos sax-altos, pois o jogo de músicos, entre eles Count Basie, Chick Booker Pittman, em 1933, de uma fantasia Webb, Tommy Ladnier, Zutty Singleton, inimitável, já nessa época desconcertava Sidney Béchet, Hot Lips Page e William pela atonalidade constante de suas frase The Lion Smith. Mas nesse ano foi melódicas”. instaurada a Lei Seca nos EUA. Veio então Durante sua estadia na França, a segregação dos porões e casas de shows Booker conheceu o saxofonista carioca freqüentados pela boêmia dos grandes Romeu Silva, fundador do Jazz Band Sul centros do país. Novos tempos. “Era difícil Americano, e excursionou pela Europa conseguir emprego”, contou Booker ao com sua orquestra, formada basicamente repórter Edwaldo Pacote, de O Cruzeiro, por músicos americanos. Em 1939 a “e a gente tinha de pagar uma ‘taxa de Segunda Guerra explodiu na Europa e proteção’ aos gangsters que controlavam quem pode fugir, como Booker, fugiu. l


esembarcou do navio Siqueira Campos na Bahia. Adorou o Brasil, e foi morar no Rio de Janeiro, onde fez amizade com o milionário aficionado por jazz Jorge Guinle e o maestro e músico Pixinguinha (1898-1974). Foi contratado como crooner pelo Cassino Atlântico, em Copacabana, bairro que nos anos 40 firmou-se como o mais chique do Rio. A badalação noturna era dividida entre o Atlântico e o cassino do Copacabana Palace Hotel, que hospedava marajás indianos, reis, presidentes, artistas e cientistas de fama mundial. Mas outro obstáculo surgiu na carreira de Booker alguns anos depois. Logo ao ser empossado, o presidente Eurico Gaspar Dutra, em 30 de abril de 1946, aconselhado pela mulher Carmela Dutra, proibiu os jogos de azar e cassinos em todo o território nacional. A edição do Jornal do Brasil do dia seguinte publicou um trecho do texto presidencial: “Considerando que a tradição moral, jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à exploração dos jogos de azar, fica decretado o fechamento dos cassinos em todo o território nacional”. O Atlântico fechou suas portas, virou sede da TV-Rio alguns anos depois e hoje é o endereço do Sofitel Rio Palace Hotel. O Copacabana Palace, por já ser um hotel, manteve-se e transformou a área do cassino em casa de shows, mas seus artistas já estavam contratados com exclusividade. Booker passou a se apresentar em cabarés de segunda e terceira categoria no Rio e em São Paulo. Até seguir para Buenos Aires, onde então teve mais oportunidades. Só que os legisladores pareciam perseguir Booker em qualquer país que estivesse: uma nova lei exigindo proteção da música nacional limitou a execução de músicas estrangeiras na Argentina. Booker não conhecia o tango, não agüentando o novo golpe. Parou de tocar e se dedicou a beber muito. Até sumir, depois de uma última apresentação em Buenos Aires. 14

E misteriosamente reaparecer em Santo Antônio da Platina, cidade ao norte do Paraná. “Lá”, confessou a Pacote, “fui trabalhador braçal, plantador de café, carregador de feira, faz-de-tudo”. Mas não pôde evitar a música por muito tempo, e logo voltou a tocar pelos cabarés da região. També m p art ic ip ava c om s u a clarineta das celebrações religiosas da paróquia, deixando o vigário da cidade “desesperado em dia de procissão”. É que Booker improvisava o cântico Queremos Deus, conforme relatou ao jornalista, com “os acordes irreverentes e alucinantes da música de New Orleans. As beatas dardejavam olhares capazes de petrificar qualquer mortal e resmungavam: - É aquele baiano diferente!” Seu sumiço gerou algo inusitado. Com destaque noticiaram a morte de Booker em todo o mundo, morte chorada inclusive pelo amigo Louis Armstrong. “O único a não chorar foi Pittman. Quando leu a notícia de sua morte, reuniu os amigos e tratou de comemorá-la. Com o auxílio de quatro velas, improvisou uma câmaraardente, tirou a clarineta do estojo e tocou até alta madrugada”, relata Pacote. O vigário agradeceu o dia em que o francês Philippe Corcodell, que além de vendedor ambulante de perfumes era trombonista da São Paulo Dixielanders, ao entrar num boteco assoviando um clássico de Louis Armstrong, o St. James’ Infirmary, perde o fôlego ao dar de cara com o lendário e supostamente morto Booker respondendo o tema com seu já descrito estilo ao sax-alto. Corcodell convenceu Booker a voltar para São Paulo. Mas, desta vez, ele preferiu ser amador, e integrou-se à São Paulo Dixielanders, recusando propostas de boates elegantes e contratos de exclusividade com a TV-Tupi. Booker não queria mais tocar “música comercial”. E acabou tornando-se, segundo Zuza Homem de Mello, “o mais forte símbolo do jazz americano no Brasil” até sua morte verídica, em 1969.

morte. Uma personagem que merece, nomínimo, um capítulo à parte.

SUCESSO E “SEQÜESTRO”

Com Booker entrando na banda, Dudu e seus amigos gringos ganharam mais divulgação. O esquema ainda era muito amador, mais alguns cachês já começavam a surgir. Um, mais polpudo, veio com a apresentação da banda no Concerto Brasileiro de Jazz, em novembro de 1956, no Golden Room do Copacabana Palace Hotel, organizado por Jorge Guinle. Dudu e Zuza tornaram-se muito amigos de Booker. Gostavam de ouvir suas histórias sobre os músicos andarilhos de Louisiana e aprendiam mais sobre jazz com suas manhas e seu estilo. Dudu lembra de alguns episódios, inclusive do último: - Ficamos em Catanduva, lembro que era na Quaresma, tocando por uns 20 dias na cidade. Ganhamos alguma grana e bebemos tudo, até sobrar só pra voltar pra São Paulo. Também tocávamos em matinês e boates, algumas vezes perto do aeroporto de Congonhas, onde havia a favela Buraco Quente. O Booker freqüentava os botecos dali, ficava lá bebendo sua cachacinha, até que um dia ele foi praticamente raptado. Isso foi no início de 1958. Um empresário cresceu o olho pra cima dele e o convenceu a tocar com outros músicos, mas daí era aquele som comercial que no começo ele não queria tocar. O cara ofereceu um banho de loja e uma boa grana, o Booker andava meio sem e resolveu que já era hora de encher um pouco os bolsos. Foi na dele. Foi nessa época que ele casou com Ofélia Leite e adotou sua filha, Eliana. Antes desse desfecho, em novembro de 1957, quando ainda faziam shows e mais shows juntos, Louis Armstrong veio tocar em São Paulo na sua turnê sul-americana. E ouvindo falar das qualidades do banjoísta da banda de Booker, convidou Dudu para dar uma palhinha em seu show: - Só que no dia da apresentação eu fiquei doente, mal conseguia levantar da cama. Mas só o fato de ter sido convidado já me realizou, é como se eu tivesse realmente tocado com ele.

ROCK’N’ROLL E MELODIAS DA CHINA

Com a saída de Booker da São Paulo Dixielanders, Dudu também resolveu abandonar o banjo e o jazz, trocando-os pela guitarra e o rock’n’roll, novidade daquele final de década. A enciclopédia Nosso Século, da Editora Abril Cultural, dá o tom da invasão do estilo na cidade de São Paulo: “A partir da metade dos anos 50, reverenciando a toda poderosa Hollywood, São Paulo começa a receber levas de artistas americanos em tournées pelo Brasil. O rock’n’roll ganha espaço em nossas rádios, com força ainda maior em São Paulo. Pouco a pouco, cantores como Nélson Gonçalves e Ângela Maria, grandes sucessos da época, cedem lugar à Elvis Presley, Brenda Lee e outras estrelas do rock. Representando os ‘ritmos de Tio Sam’, visitam-nos cantores como Johnnie Ray, e o conjunto The Platters, este na esteira dos estrondosos sucessos de Just walking in the rain e Only you. Logo foram seguidos por Johnny Mathis, Brenda Lee, Neil Stupid Cupid Sedaka”. Dudu tem a sua versão, relatada ao jornalista Fábio Bianchini, do Diário Catarinense, em agosto de 2002: - Fiquei deslumbrado [com o rock’n’roll]. Vocês não fazem idéia do que foi aquilo. Antes, o mundo era certinho. Mudou uma série de coisas, os costumes, as meninas, tudo ficou menos certinho. Em cidades provincianas como São Paulo – porque São Paulo é muito provinciana - o impacto foi enorme. Depois vieram os Beatles, todo mundo deixou o cabelo mais comprido, até que Hendrix arrombou com tudo. Dudu e seu irmão Paulinho, que então já mantinha bem o ritmo com as baquetas, formaram uma banda com o baixista Daniel Drácula Grizanti e o cantor Badico, um negro que dançava e cantava como Little Richard - outro sucesso popular da época. A guitarra de Dudu, na verdade um violão modificado, foi financiada por Roberto Mena Loureiro, 15


um grande amigo de Dudu. “Ele me emprestou dinheiro em muitas ocasiões, e a primeira foi nessa guitarra, que até hoje ainda não paguei. Mas fico eternamente grato ao Mena”, justifica. O violão foi transformado pelo pai de outro amigo, fanático por eletrônica. Ele instalou um captador muito antigo no corpo do instrumento, ligando-o a dois controles de volume mais um de timbre. Estava formada a banda Crazy Boys. Era aquela com a qual Dudu sempre sonhara. Porém os problemas com os cachês, que muitas vezes sumiam na hora do pagamento, a desmantelaram. Badico, morador dos cortiços do Liberdade, tinha muitas contas a pagar e precisou ir se virar de outra forma. Dudu formou então a banda The Avalons com seu irmão mais Daniel, além de um trio vocal formado por Chinês Bob, Passarinho e Solano Ribeiro, este que Sessão de fotos para a capa de mais tarde abandonaria um compacto da Young Records a execução artística para virar JOVENS ROCKS um renomado produtor musical. Vaccaro Neto era radialista do Ensaiavam no porão da casa de Dudu e realizaram diversas programa Disque Disco, sucesso entre apresentações nas rádios e bailes da capital paulista. a juventude da época. Constatando Tocavam também nos colégios de freiras da região, sendo que os discos importados, com os até com troféus paparicados pelas madres, que por razões mais recentes sucessos da parada inexplicáveis na época gostavam daqueles rapazes bem americana, dominada pelo rock’n’ roll, vestidos tocando a já apelidada por outros religiosos como chegavam no Brasil com meses de “música do diabo”. atraso, buscou saída para encurtar essa Em 1959 o disk-jóquei Miguel Vaccaro Neto, dono de defasagem. Gravava em 78 rotações uma das primeiras jogadas de marketing do rock’n’roll no os sucessos mais atuais dos Estados Brasil, a Young Records, conheceu a música do The Avalons. Unidos em São Paulo, com artistas Reconhecendo o potencial dos rapazes, Vaccaro contratou brasileiros cantando em inglês. o grupo para acompanhar os cantores da recém fundada O cast da gravadora era composto gravadora. Dudu finalmente se tornava músico profissional. por cantores como Demetrius, No final de 1959 a banda produziu seu primeiro disco, Zezinho, Regiane, Nick Savóia, um compacto com duas músicas: China rock, composição Marcos Roberto, e bandas como instrumental de Dudu, e Valentina my Valentina (gravada Beverly, Tennagers, The Rebels, The originalmente pela dupla americana Lee & Paul) com o trio Jordans, The Cupids, The Devils e vocal. Esse disco de 78 rotações alavancou o The Avalons e The Jesse Tigers, estes cinco últimos marcou sua presença como pioneiro do rock instrumental no com um estilo mais instrumental, surf Brasil. Antes deles, em 1958, os Bluejeans Rockers já haviam music a la Dick Dale. Os discos da gravado um disco com uma faixa instrumental, além do LP Young vinham sempre com o mote todo instrumental Viva a Brotolândia, do saxofonista Bolão “Discos para a juventude” e venderam e seus Rockettes, também de 1958. muito. E os contatos do experiente C o m Vaccaro ajudaram muito na hora de seu violão executar as músicas da gravadora nas modificado, Dudu rádios de São Paulo E rio de Janeiro. causou sensação e discussão entre quem ouvia a música China rock, um agitado Dudu e Kurt Van Elgg rockabilly com ensaiando no porão dos Pereira uma melodia que 16

mesclava escalas orientais ao ritmo da surf music. Ele utilizou a “técnica da palhetada”, aprendida e desenvolvida com o banjo e o jazz. Todos perguntavam quantas guitarras solavam alucinadamente naquela gravação, Dudu respondia: “só uma”, e a controvérsia estava feita. A técnica consistia em solar em acordes, tocando duas ou mais notas ao mesmo tempo, ao contrário do que faziam os guitarristas de rock no Brasil naquela época, que solavam nota por nota. O efeito da técnica de Dudu dava a impressão de haver mais de um guitarrista na execução. China rock foi bastante tocada nas rádios paulistas naquele ano, mas foi Valentina my Valentina que resultou no maior sucesso da banda. Dudu lembra, em entrevista ao fanzine Instrumental Newsletter, das dificuldades da gravação dessa composição, num estúdio alugado (a Young não tinha instalações próprias), no centro de São Paulo: - As gravações eram ao vivo, em apenas quatro canais. Se houvesse qualquer erro, por menor que fosse, tínhamos de regravar tudo novamente. Durante a gravação de Valentina my Valentina tivemos esse problema. O trio vocal era de jovens entre 19 e 22 anos, que nunca haviam entrado em um estúdio, e eu era um pouco mais velho. Estavam nervosos e não conseguiam alcançar o tom da música. Depois de não sei quantas regravações, eu já estava mei o estressado. Fui a um boteco ao lado do estúdio, comprei uma garrafa de uísque e dei para os rapazes tomarem uns goles. Por sinal, até então, eles nunca haviam colocado uma gota sequer de álcool na boca. Retornamos ao trabalho e gravamos Valentina my Valentina numa só passada. Sem qualquer erro. Em 1960 The Avalons gravou pela Young dois compactos simples (Rebel rouser e All the time; Here comes The Avalons – outra de autoria de Dudu - e Believe me) e um compacto duplo reunindo as já citadas Rebel rouser e Valentina my Valentina mais as inéditas Come softly to me e Baby talk. Também acompanharam a cantora Regiane no disco The beautiful tennager. Participaram também, na TV Record, do programa Crush and Hi-fi (patrocinado por Crush, marca de um refrigerante fabricado em São Paulo na época). Eram a banda de apoio dos irmãos Tony e Celly Campello, que comandaram o programa desde sua estréia, em 1959, até o último, quatro anos depois. A Record trazia atrações internacionais para seus programas, como Brenda Lee e Paul Anka, com The Avalons abrindo as apresentações. Era Zuza, recém contratado da emissora após voltar dos EUA, quem armava os esquemas e trazia os gringos. Outro programa em que se apresentavam junto ao conjunto The Jordans - discípulos do The Avalons, ainda na ativa - era a Discoteca do Chacrinha, primeiro programa do legendário “velho guerreiro”, onde Dudu conheceu pessoalmente Roberto Carlos e João Gilberto. Foi numa dessas apresentações que Dudu fez amizade com o guitarrista da também legendária banda, e hoje literalmente sexagenária, The Ink Spots, que lhe deu alguns toques sobre música, especialmente pegadas do rhythm’n’blues. Da TV, Dudu de terno listrado em gravação nos estúdios da TV Record - o Canal 7

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também traz em sua rara trilha sonora a música Rock da morte, do cantor Sérgio Murilo). Em 1961, The Avalons troca a Young pela RGE e grava mais um compacto simples com as músicas The eyes of Texas are upon you e No 13, outra de autoria de Dudu, que depois são relançadas junto à Because I love you e Tell me darling no compacto duplo Juventude!, com a participação do cantor Zezinho, agora alcunhado Galli Junior. Foi a última gravação do conjunto, que logo se desvinculou da gravadora. Dudu andava há mais de um ano estressado com o jogo de interesses envolvendo empresários e alguns conhecidos. O rock era um rentável filão comercial na época, e ele estava farto de ter de tocar algumas músicas que não considerava de muita qualidade, mas que vendiam muito. A apresentação que The Avalons fez no Teatro Nacional em outubro de 1961 já dava sinais de uma possível volta ao jazz tradicional: a banda contou a história do estilo, desde os spirituals dos escravos em Louisiana até o swing dos anos 30, mesclando teatro e música.

JAM SESSIONS E NAVIOS Além disso, já no começo de 1960, Dudu era, junto a Jorge Lacerda e Alexandre Djukitch, um dos principais coordenadores da I Jam-Session da Folha de São Paulo, que conforme texto do próprio jornal “vinha suprir uma lacuna desse setor da música [o jazz] no Brasil”. A função de Dudu? - Tinha que chavecar os músicos, levar repórter e fotógrafo, pois tinha os contatos... Todos queriam tocar, pois tinha a grande vantagem de sair na capa do jornal. E muita gente começou nessas jams, como o Sérgio Mendes, por exemplo. Foi, na verdade, uma grande jogada de marketing da Folha [de São Paulo] contra O Estado [de São Paulo], 18

Juventude!, lançado pela RGE no verão de 1961, tráz Galli Jr. na voz e a instrumental Number 13, de Dudu, uma clara prova de sua volta ao jazz, que acontecera oficialmente ainda em 1960, ao lado de Pittman, no auditório da Folha de São

que tinha na época um público muito maior. Foi a volta de Dudu ao jazz. Sem, no entanto, retornar ao banjo. The Avalons deixou o puro rock’n’roll de lado, incorporando-o sutilmente ao jazz. Dudu, Paulinho e Daniel mais Kurt Van Elgg, o japonês Massao Ukon e Edoardo Vidossich juntaram-se a Booker Pittman para apresentar clássicos do estilo New Orleans na I JamSession da Folha, numa noite quente, 5 de dezembro, com o auditório lotado. O pianista Dick Farney abriu a

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noite, indo do swing pelo bebop ao progressive. O show de Booker com The Avalons foi elogiadíssimo pela revista Visão daquele mês, com Dudu, de cabelos raspados (num revolucionário tratamento capilar que, garante, lhe deu a juba preservada até hoje) sendo considerado um dos maiores jazzistas do Brasil. “Transformando a guitarra elétrica em banjo, ele várias vezes dialogou com Booker e com o inspirado pistão de Massao, exibindo uma sensibilidade rara, que mais se destacava durante os seus solos, curtos e expressivos”. Booker, segundo a matéria, “continua o mesmo intérprete magistral que a linha comercial das boates não conseguiu estragar. O sax-soprano é agora o seu instrumento predileto”. Com ele, Booker fechou a jam de três horas de duração com o hino When the saints go marchin´in. A RGE gravou um disco com os melhores momentos do concerto, hoje raro de encontrar, lançado em maio de 1961, junto à quarta Tocando com The Avalons e Booker edição da jam, que também contou com a estréia como cantora Pittman em jam sessions como a do daquela menina que Booker havia adotado logo após se separar da cartaz abaixo, Dudu foi considerado um São Paulo Dixielanders, em 1958, conhecida tempos depois como dos melhores guitarristas de jazz do BraEliana Pittman. sil, sendo inclusive garoto-propaganda Até 1965, sempre na primeira segunda-feira de cada mês, a da fabricante de instrumentos musicais Folha de São Paulo apresentava novas jam-sessions. The Avalons Giannini e teve cortada, no anúncio e Booker Pittman juntos a Dick Farney eram presença cativa. Dudu acima, sua cabeça, preterida em relação ao amplificador recém lançado. agenciava os músicos e tocava na noite e na TV. Já havia largado o funcionalismo público no final de 1960, não agüentando as diferenças de fuso horário entre o emprego e suas apresentações. Vivia da música, como sempre quis, mas já pensava em algo mais: - Quando tivemos o The Avalons, chegamos a ter certa expressão no show business da época. Meu nome era referência, eu era relativamente conhecido. Só que eu tinha que tomar uma decisão naquele início de anos 60. Eu estava no auge, e pensei na experiência de conhecer outros países, outros músicos, outros estilos, e ver o que acontecia. Os músicos com quem eu tocava tinham experiência em terras européias e me falavam da cena musical de Paris, de como eu poderia me dar bem tocando música brasileira, rock, jazz, o que quisesse, por aquelas bandas. A idéia tomou corpo um pouco depois: - No inverno de 1962 eu estava na televisão tocando, acompanhando um cantor, quando veio o clique. O negócio é relativamente fácil. Tinha idade pra pagar pra ver, então era só pagar a passagem, pegar o navio e pronto. Já havia protelado por muito tempo, então eu cansei de esperar. Tinha algum dinheiro, peguei o navio em Santos e me mandei. Dezoito dias de viagem. Fui pra França tocar música brasileira. 20

BATUCADA EM MONTPARNASSE

Dudu desembarcou no porto de Marselha, distante 900 quilômetros da capital francesa. Bagagem: pouca roupa, escova de dentes, guitarra e amplificador. Rumou para Paris e aprendeu na marra a falar francês. Trazia algumas indicações para começar a trabalhar mas nenhuma adiantou muito. O dinheiro que havia trazido se esgotava rapidamente: - Os cem contos tinham acabado e o jeito era tocar na rua para poder pagar o Hotel do Estudante, um albergue bem bonzinho. Os transeuntes atiravam algum trocado e fui me virando desse jeito por uns três meses. Pelas esquinas de Montparnasse Dudu notou o elevado número de músicos desempregados procurando oportunidades na cidade. Tocar na rua era uma forma de subsistência e, com alguma sorte, vitrine. Entre um e outro pão com sardinha, ele tocava samba, bossa-nova, baião, mas também o New Orleans e tocaria até rock, caso o rock tivesse pegado na França. Ao final desses primeiros meses como músico de rua, Dudu já havia feito algumas boas amizades. Tocava nas festas relâmpago, as surprise partè, de um pessoal “bem louco” que praticava caratê, e enquanto o pessoal tomava umas e outras e golpeava tábuas, tijolos e garrafas Dudu tirava um som. Mais glorioso foi entrar na boate Caveaux de La Huchette e, ao se deparar com o clarinetista Claude Luter do Hot Club de France no palco, conseguir uma palhinha com a lenda viva do jazz europeu e quebrar tudo. - Eu fui só cumprimentar o sujeito antes do show. Daí eu disse que era brasileiro, que tocava banjo, então ele respondeu: “joue-tu!”. Certa noite Dudu foi parar em uma festa na Universidade Sourbonne. Lá encontrou Heloísa Helena Buarque de Hollanda, conhecida no Brasil inteiro somente alguns anos mais tarde como a cantora Miúcha, irmã de Chico Buarque. Ela tinha ido cursar História da Arte, mas foi “mal-intencionada”: pois levou um violão em sua bagagem. Nessa noite, os dois realizaram a primeira de uma série de parcerias. Dudu logo teve a oportunidade de virar professor de violão e guitarra para onze francesinhas fãs de música brasileira. E foi tocando na rua que chamou a atenção do percussionista brasileiro Ney de Castro, que há um ano morava em Paris vivendo da execução de música brasileira. Ney era do Piauí e andava com uma turma de nordestinos, todos músicos, entre eles Sivuca e Nestor do Violão. Junto a um pernambucano no pandeiro, outro no reco-reco e agogô, mais um argentino no acordeão de oito baixos, Ney tocava música brasileira na banda Le Batucada, no badalado bar brasileiro do complexo Grand Severinè, que envolvia restaurantes e boates estilizadas (também havia ali o bar russo, o italiano, entre outros) que reunia a elite da capital francesa. Lá apareciam personalidades como o Barão de Rothschild, o ator Mel Ferrer, a atriz e celebridade Brigitte Bardot e até Ulysses Guimarães. “Eram sete mil cruzeiros só para sentar em

FACHADA DE EDITORA

O complexo Grand Severine foi, nas palavras do escritor Rick Russel, “um escandaloso bueiro para os decadentes e ricos”. Fundado em 1959 por Maurice Girodas, dono da Olympia Press (editora de livros também escandalosos como Sexus, de Henry Miller, O almoço nu, de William Burroughs, Lolita, de Vladimir Nabokov e quase toda a obra do Marquês de Sade), o Grand Severine servia como uma espécie de fachada para a editora, perseguida constantemente pelo então conservador governo francês, fechando suas portas em 1965. 21


uma mesa”, relatou Dudu por telefone ao repórter Franco Paulino, do paulista Diário da Noite, em janeiro de 1963. Dudu havia ingressado na banda alguns dias antes e logo já estava recebendo um salário inimaginado de quase um milhão de cruzeiros. Ganhava 50 francos por noite. Cada um dos músicos recebia isso, já Ney ganhava um pouco mais por ser o empresário. Cinco francos valem desde aquela época um A TERRA MEDITERRÂNEA DO JAZZ dólar. Se considerarmos O jazz encontrou terreno fértil na França, especialmente depois da que o dólar valia mais ou Primeira Guerra Mundial. Em 1917 algumas tropas aliadas desembarcavam menos oito vezes mais do na região da Cote D’Azur para lutar na Itália. Lá, com suas brass bands que vale atualmente, Dudu militares, uma variação das jazz bands, influenciaram os músicos locais, que faturava oitenta dólares foram desenvolvendo estilo próprio até criarem, em 1927, o Festival de Joanpor noite, e tocava quase Les-Pins. Entre esses músicos estavam os formadores da lendária banda Hot todos os dias. Já visitava a Club de France, mais importante precursora do jazz francês, liderada pelo concessionária da Citroën lendário guitarrista cigano Django Reinhardt (1910-1953). pensando no carro que ia Hoje existem mais de duas dezenas de grandes festivais anuais de jazz comprar. na França, especialmente na Cote D´Azur. Os franceses descobriram-se bons Dudu curtiu a noite e o músicos, críticos e ensaístas do gênero. Curiosamente o estado de Louisiana, dia da cidade mais poética onde fica New Orleans, nos EUA, foi possessão francesa até ser vendida aos do momento. De vez em americanos por Napoleão, em 1803, por cerca de US$ 15 milhões. quando, acompanhava o amigo Baden Powell nas cervejinhas em um bar em Montparnasse. Também tocava na RTF, a rádio e televisão francesa, onde os cachês eram gordos. Ouvia falar das proezas dos Beatles, mas o rock’n’roll não tinha penetração na França. Aprendia também a cozinhar, cansado dos sanduíches, e revelava-se bom com as panelas. Então veio o verão e, com ele, a capital francesa praticamente fechava naquele tempo. Dudu voltou com a banda inteira ao porto de Marselha, onde tocaram em cabarés, inclusive em um de strip-tease protegido pela máfia da Córsega. Isso durante um mês. Foi nesse mesmo verão que Dudu pode ver de perto alguns dos maiores nomes do jazz no famoso festival de Juan Lês Pins, a New Orleans francesa, na Cote D’Azur. Viu Miles Davis apresentando à França a revelação na bateria Tony Williams, com apenas 18 anos. A Le Batucada participou em seguida, representada só por Dudu e Ney de Castro, dando uma palhinha de samba no palco principal. Depois disso, Dudu ficou em Marselha “de bobeira”, curtindo o verão, até que resolveu escrever para Miúcha. Algumas semanas depois ela respondeu, só que de Florença, norte da Itália. Ela queria ir para a Grécia e pediu para Dudu lhe acompanhar, os dois tocando por aí. Seria como férias. O contrato com a Le Batucada já havia se dissolvido há algumas semanas e ele aceitou o convite. De Florença rumaram ao sul da Itália e em Bringizi pegaram um ferry-boat rumo à Atenas.

CINEMA EM ATENAS, MÚSICA EM MIKONOS

Dudu achou a Grécia um pouco diferente daquela da sua imaginação: - A maior parte da Grécia não é nada cosmopolita. Só havia o folclore e a arqueologia, muito prezados por sinal. Jazz, zero, nem mesmo em Atenas. A cidade não era parte da rota dos shows internacionais, somente na temporada de verão aconteciam alguns, a maior parte de segunda categoria. No interior os sujeitos eram meio broncos, não quiseram saber muito da música que eu e Miúcha tínhamos para mostrar. Então nossa viagem virou mesmo foi um belo passeio. Tocávamos de vez em quando, mas sem cobrar cachê. 22

Miúcha voltou a Paris em algumas semanas. Lá iria conhecer seu futuro marido, João Gilberto. Dudu ficou. Na verdade, voltou rapidamente a Paris para buscar seu amplificador. No caminho, comprou na Itália a inquebrantável guitarra Eko que utiliza até hoje. “Já caiu até tijolo nela, e só as cordas arrebentaram” garante. É que ele havia encontrado, em pleno Partenon, uma garota grega que conhecera no Grand Severinè. Elene era guia turística e estava por dentro do que acontecia em Atenas e em outras cidades da Grécia, que a partir Dudu e sua novíssima guitarra italiana, de passagem por Paris rumo à noite ateniense. dessa época começava a deixar a incipiência para tornarAbaixo: Anúncio da boate grega Simbósiom se a nova coqueluche do turismo internacional. Ela confidenciou a Dudu: “Fique por aqui que eu te lanço na sociedade fechada de Atenas”. Dudu conseguiu um contrato na boate Simbósiom, no notívago bairro de Plaka. Lá chegou a ficar amigo do último rei da então conturbadíssima monarquia grega, Constantino II, freqüentador do bar. “Ele era príncipe ainda quando o conheci. Atleta da equipe olímpica de vela. Era um sujeito muito popular e inteligente, e que gostava muito de jazz”, conta. Elene também apresentou para Dudu a “turma do cinema”, composta por Michael Cacoyannis, que naquele ano dirigia as últimas cenas de Zorba, o grego - filme que fala do encontro de um estressado homem de negócios com um grego curtidor da vida. Dudu fez amizade com alguns atores e com o pessoal da produção, como Irene Papas, Lilá Kedrova e Yorgo Voiagis. Yorgo era jornalista e queria montar um jornal. Acabou montando o bar Nine Muses, na cidade litorânea de Stoa. Dudu foi para lá e virou artista da casa, apresentando-se sozinho. Aos poucos já conseguia falar algumas frases em grego. Tinha ouvido falar de uma ilha semi-habitada, com tradição em turismo classe A, mas que não tinha bares e boates, nem nada mais popular. Príncipes, reis, rainhas e marajás apenas ancoravam seus grandes iates por ali e curtiam o visual com champanhe. Hoje essa ilha é como a de Ibiza, na Espanha. Famosa por suas cultura hedonista, recheada de beldades bem à vontade. Mas até então praticamente desconhecida, secreta. O verão chegava e deu vontade de conhecer o lugar. Por lá Dudu arranjou quase sem querer um bar para tocar e acabou ficando para apresentar o jazz e a música brasileira à ilha de Mikonos. Tocava quase todas as noites. O resto era só curtição. De lá ficou sabendo que o rei Paulo I havia morrido. Seu filho, Constantino II, assumia o trono grego. Dudu acabou brigando por motivos que nem lembra mais com a proprietária do bar e parou de tocar. Começou a pintar uma saudade de Paris, então foi pegar o ferryboat para voltar para lá. No trapiche, dois donos de bar lhe puxaram e tentaram lhe convencer a ficar e tocar em seus estabelecimentos. Prometiam casa, comida e um bom cachê. Convenceram Dudu a adiar sua partida até o inicio do inverno, em novembro. Só então voltou a Paris e fez sua última temporada com Ney de Castro no Grand Severinè até maio de 1965, quando a casa foi obrigada a fechar por “problemas com a censura”, diz. Maurice Girodas, dono do estabelecimento, teve 23


cassada a sua permissão para editar livros na França. Nesse período, Dudu conheceu a Suíça graças a um cara-ou-coroa: - Eu queria conhecer outros lugares. Tinha a Inglaterra, com a onda do rock’n’roll rolando solta, e a Suíça, que eu sempre pensei em visitar. No cara-ou-coroa deu Suíça. Fiquei meio solitário por lá, e como eu não me cuido quando estou assim, fiquei comendo apenas amendoim no jantar e acabei tendo uma apendicite. Daí voltei pra Paris rapidinho. Dudu costumava enviar cartas para sua família com freqüência. Na volta da Suíça, em maio, recebeu uma dramática carta de sua irmã, contando que a mãe vinha sofrendo do coração: Le Batucada: Dudu no canto direito,Ney de Castro ao centro - Essas coisas me comovem sempre, minha família... Descobri depois que minha mãe tinha era pressão alta. Mas comprei na hora uma passagem no primeiro navio para o Brasil.

DOIS ANOS PASSAM VOANDO

Dudu chegou ao Brasil logo após o aniversário de um ano do golpe militar. Suas aventuras na Europa eram famosas em São Paulo, e em pouco tempo já tocava quase todas as noites, sozinho ou acompanhando a Traditional Jazz Band. Miúcha estava em São Paulo também, grávida de seu primeiro filho com João Gilberto. O aniversário de Sérgio Buarque de Hollanda, seu pai, se aproximava e, por telefone, ela convidou Dudu para ir à festa e se reencontrarem. Acompanhado do violão, é claro. Lá, Dudu deu de cara com alguns dos melhores compositores do Brasil: DIXIELAND NÃO É NEW ORLEANS Nelson Cavaquinho, Paulinho da A Traditional Jazz Band foi criada em 1964 pelo engenheiro Viola, Milton Nascimento e o irmão de e clarinetista Tito Martino. Ainda está ativa, com algum renome, Miúcha, Chico Buarque, que mostrava mas com uma formação muito diferente da original. seus novos sambas aos presentes. Em 1969, enquanto Dudu tocava na Europa, a banda lançou Sérgio dava de presente a cada músico seu primeiro disco. Dudu participou apenas do terceiro, em 1975, que desse uma palhinha na festa intitulado A era de ouro do Dixieland (na página ao lado, ilustração uma garrafa de uísque escocês. Dudu da capa). Mas não gostou muito do resultado. O estilo chamado tocou, fez amizade com ele e passou dixieland é o New Orleans burocrático, sem liberdade de criação a freqüentar a casa dos Buarque de e improviso, mais ligado à repetição e não à variação dos temas. Hollanda, participando de todos seus Em 1983, cinco anos após Dudu deixar a banda, Tito saiu do aniversários, quando era fisicamente Brasil com a esposa, pois ela havia conseguido um bom emprego possível, além das muitas outras festas em uma rádio na Suíça. Largou a carreira de engenheiro e o cargo que ali se repetiam. de líder da TJB. O ano de 1966 quase acabava A banda faz até hoje turnês pelo Brasil e também pelo exterior, quando Dudu começou a namorar e gravou 35 álbuns. Os únicos integrantes contemporâneos de Ivete, que conhecera depois de um Dudu e Tito (embora este considere que o nome foi roubado por show da Traditional Jazz Band em eles) são o baterista Alcides Lima e o banjoísta Eduardo Bugni, São Paulo. Em março do ano seguinte que sempre revezou-se com Dudu na formação da banda. a garota ficou grávida, e somando 24

isso à ditadura, que já vinha arranhando com desaparecimentos, prisões, torturas e dedos-duros, Dudu resolveu que melhor seria ele e Ivete voltarem à Grécia. - O Brasil naquela repressão, com os jornalistas sumindo, o povo totalmente alucinado... Aquilo me deixou muito triste, o país estava triste. E a cidade ainda era muito provinciana, ela iria sofrer por estar grávida e solteira. Então convenci ela e nos mandamos.

SE VIRANDO PELA EUROPA

Em maio desembarcaram em Nápoles, seguindo então para Mikonos. Constantino II, o rei, acabava de ser deposto por golpe militar. E havia um silêncio entre a Lançado em 1975, A era de ouro do população sobre o fato, um “ar de mistério”, como Dixieland traz músicas de Louis Armstrong e outros Dudu definiu. mestres do jazz tradicional tocadas pela TJB Na Grécia nasceu Datinho, o primogênito, que seria músico e surfista – o que se tornou uma espécie de tradição entre quase todos os seus oito filhos. Teve então de se casar, pois só assim Datinho poderia ser registrado. O local da cerimônia foi uma pequena capela numa encosta da ilha, ministrada por um padre católico ortodoxo. Moravam em uma casinha de pedra, com uma bela vista para o mar e muito sossego. Dudu tocava de vez em quando em algum barzinho da ilha, mas novamente queria conhecer outros lugares. E se mandou para a Alemanha, que não pode visitar na primeira viagem. Tomando o trem da Orient Express na Itália foi parar em Dusseldorf. Certa noite Datinho ficou doente e Dudu, conversando com o motorista do táxi a caminho da farmácia, conseguiu um emprego de disk-jóquei e músico no Bar Tarantella, em Essen, cidade carvoeira vizinha a Dusseldorf. - O bar pagava um apê e uma bela grana. Paguei as contas do hotel em Dusseldorf, comprei um Volkswagen zero e nos mudamos para Essen. Nessa época eu andava meio magrinho, mas engordei de tanto chope Eisen que tomei no bar. E fiz uns “puta” shows, tocando os sucessos da época, alguma coisa de jazz e também música brasileira. Em questão de semanas Dudu já tinha uma boa reserva de dinheiro. E, quando o inverno alemão foi chegando, Dudu achou melhor fugir do frio e voltar para a Itália. Ainda antes passou três meses na Cote D´Azur para “tocar para os turistas milionários” que Panfleto do bar durante o ano todo apareciam por lá. Nesse período chegou a tocar em até em Essen, na Aletrês cidades por dia. manha, onde Dudu tocou e discotecou - Eu tinha que me preparar e juntar um dinheirinho porque na Itália a em1967 concorrência é braba... Lá todo mundo é músico, brinca. Chegando em Nápoles, já em 1968, vendeu o Fusca, que se desmanchava. No final do ano Ivete resolveu voltar para o Brasil com Datinho. Foram de avião, mesmo ela grávida do segundo filho, Tadeu. Dudu ficou com o excesso de bagagem 25


e algum tempo depois foi embora em um navio de imigrantes, numa cabine lotada, acompanhado de oito padres católicos.

VOLTANDO E SAINDO DE CENA

- Ficamos poucas semanas em São Paulo, daí fomos para Campos de Jordão, durante o verão, e depois para Ubatuba. Lá haviam aberto um clube, onde começaram a juntar as pessoas lentamente. Resolvi ficar por lá mesmo. Naquela época Ubatuba ainda era um paraíso no litoral norte do estado, habitado quase que somente por pescadores, com acessos apenas por estradas de terra. Lá nasceu Tadeu, o terceiro filho, Tuca e a primeira menina, Patrícia, já em 1970. No segundo semestre do mesmo ano Dudu se separou de Ivete. As idéias de um e de outro não batiam mais. Ele voltou a morar na capital, ela ficou na praia com as crianças. Dudu no Bar e Galeria Othero Dudu visitava a família sempre que podia. Gonzalez, onde costumava tocar, sozinho ou Uma noite estava “de bobeira” em casa e resolveu ir a essa com a TJB, muitas vezes até o sol nascer festa para a qual havia ganhado um convite. Depois da festa, ele e mais alguns convidados foram comer bife com fritas em um bar, tradição entre os boêmios da cidade desde o final da década de 40. Lá encontrou Renato Teixeira, amigo da noite e colega de profissão. Renato indagou como andava a vida, Dudu contou histórias de suas viagens e também que estava parado, sem fazer shows. Renato então o apresentou para as irmãs Maria Ignez e Maria Carolina Whitaker, donas do local, que logo o contrataram como músico fixo do Bar e Galeria Othero Gonzalez, mais conhecido pelos freqüentadores do Bexiga como Bar da Carola – Maria Carolina. Tocava guitarra as sextas e sábados, além de apresentações extras em festas e exposições que a casa promovia regularmente. Também tocava de improviso com a Traditional Jazz Band, na qual atuava com seu antigo companheiro de Crazy Boys e The Avalons, Daniel Grizanti. Foi em uma de suas apresentações no Carola que Dudu, a essa altura com um cabelão nos ombros, conheceu Beth, já em 1973. Em pouco mais de um mês de namoro passaram a morar juntos, na cidadezinha de Pedra Bela, distante pouco mais de cem quilômetros de São Paulo, próxima de Bragança Dudu (no tablado) em um dos shows Paulista. Os dois adotaram a dieta macrobiótica, pois Dudu da TJB pelos Estados Unidos queria se desintoxicar das noitadas. Mas não durou muito: - Foi a nossa primeira briga. Eu vi que ele chegou todo feliz para me buscar no meu trabalho no posto de saúde – conta Beth – e logo descobri que havia feito uma bela refeição, nada macrobiótica. Em maio de 1974, enquanto nascia a primeira filha do casal, Fabíola, Dudu foi efetivado na Traditional 26

Jazz Band, que havia excursionado em janeiro pelos EUA, tocando em Nova York, Nova Jersey, Tucson, Miami, Washington e Nova Orleans – nessa última fazendo, pelo French Quarter, o funeral do contrabaixo quebrado de Daniel Grisanti, enterrado nas águas do rio Mississippi apinhado de guirlandas de flores. Ao voltar, a banda foi consagrada pela imprensa. Tito resolveu investir e juntou-se em sociedade aos donos do bar Opus 2004, Cartão postal enviado para tornando-o especializado em jazz, com bandas se Beth de Jackson, Mississippi, EUA apresentando todas as noites. O Opus 2004 fez história na noite paulistana com incursões de músicos da estirpe de Dave Brubeck, Art Blakey, Johnny Mince e Earl Hines. A Traditional era a banda da casa. No início de 1975, Tito conseguiu um bom patrocínio do americano Royal Stokes, que comandava um programa de jazz em cadeia nacional de rádio nos EUA, e Dudu foi com a banda para outra excursão na terra do jazz, substituindo Eduardo Bugni, o banjoísta que acompanhara a banda na primeira viagem. Dessa vez, tocaram em Chicago, Toledo, Akron, Saint Louis, New York, Washington, Boston, Worcester. Mas a primeira parada foi em New Orleans, onde participaram do New Orleans Jazz and Heritage Festival, sendo considerada na ocasião como a melhor banda estrangeira do evento. Dudu gostou de conhecer todas aquelas cidades, e mandava para Beth cartões postais personalizados da Traditional e alguns das cidades, mas achou a experiência “meio esquisita”: - Sete caras excursionando numa kombi com chulé e saudades da mãe. A gente ficou tão de saco cheio um da cara do outro que cancelamos o último show em Miami. E o som não era lá muito criativo, mas meio burocrático, O Opus 2004 firmou o jazz na com poucos momentos de curtição e improviso. Era mais uma noite paulistana, trazendo grandes nomes pantomima. para jam sessions memoráveis Dudu passou a integrar, além da Traditional, a São Paulo Dixieland Band, herdeira do legado e de alguns integrantes da São Paulo Dixielanders, e também a Brazillian Jazz Stomp, fazendo shows em todo o estado de São Paulo e Rio de Janeiro, além de Belo Horizonte e Curitiba. Montou também o Dudu Trio, onde tocava guitarra junto a Walter Kandrachoff, também na guitarra, banjo e gaita, e Pinduca na bateria, sem contrabaixo nem instrumentos de sopro. Tocavam jazz, blues e rock. Aos poucos, lá pelo ano de 1977, Dudu começava a mover mais uma mudança em sua vida. Havia comprado, com o dinheiro dos cachês, relógios, brinquedos, fogos de artifício e outras bugigangas que revendia em Bragança Paulista, São Paulo e Ubatuba. Fazia isso de segunda à quarta, e no resto da semana ainda tocava com os conjuntos. Um verdadeiro mascate. Notava que o dinheiro começava a aparecer: - Então comecei a estabelecer praça em Ubatuba, porque lá já conhecia mais gente, era amigo de todo mundo. E tocando, abria algumas portas, o que sempre aconteceu comigo, como você deve ter notado. Eu sempre tive muitas portas abertas em minha vida e em 27


Ubatuba achei mais uma. No final do ano de 1978, já com Francisca, segunda filha do casal, no colo, Dudu encerrou sua carreira de músico profissional: - Aos poucos fui parando de tocar e fiquei só com o comércio. Não tocava mais nem em casa, só ouvia música. Cheguei a tocar nas festinhas de Natal no Fórum de Ubatuba e na delegacia da cidade, onde tinha boa clientela entre os policiais. Havia também um juiz que adorava uma festa e costumava tocar comigo. Eu dei alguns toques do jazz pra ele. Mas era só isso. E de repente não era mais Dudu do Banjo. Era só Dudu. Uma pessoa que sempre gostou de, do nada, fazer alguma coisa acontecer, recomeçar. E fazia mais uma vez. Desta vez, sem instrumentos. A vida de músico não batia mais com a vida em família. O banjo e a guitarra foram descansar no armário.

UMA DÉCADA E, AOS 57, A VOLTA

Em 1981 conseguiu abrir em Ubatuba o Bazar Luna. Ambulante nunca mais. Roberto Mena, o mesmo que havia emprestado dinheiro para a compra da primeira guitarra de Dudu, lá em 1958, financiou a compra da loja. Dessa vez Dudu lhe pagou direitinho. Mas não era um comerciante exemplar. Se alguém lhe pedia, por exemplo, um filme fotográfico, ele só apontava o indicador: “tá ali, ó, pega”, e continuava comendo tranqüilamente sua jaca. Morar em Ubatuba proporcionou a Dudu acompanhar o crescimento dos filhos do primeiro casamento, pois Ivete continuava morando lá. Por essa época, Datinho e Tadeu já se iniciavam no surf. Acabariam disputando mundiais em breve. Tuca já dava pinta de ser mais filosófico, Fabíola uma menina estudiosa. Em 1978 Dudu largava a música Em 1982 nasceu Emmanuel e no ano seguinte para se dedicar a família, cada vez maior Ícaro, o caçula. Estes fariam a maior bagunça no bazar, sem qualquer protesto de Dudu. Logo também estariam surfando, assim como Francisca, que hoje aos 24 anos também disputa campeonatos pelo Brasil. Anos passando apenas curtindo as crianças crescendo. No início da década de 90, Dudu já foi matriculando-as nas aulas de piano da professora Marisa. Em casa elas criavam bandas imaginárias com vassouras e panelas desde muito pequenas. Marisa era também dona de um bar em Ubatuba chamado Sala Azul Marinho, no final da Avenida Iperoig. Foi nesse lugar que Dudu, aos 57 anos, na temporada de 1992, voltou a tocar o banjo, novamente só por diversão, novamente um amador. O que ganhava era gasto em comida no bar, e ele e Beth levavam um vinho escondido na bolsa para acompanhar. Levavam também Francisca, Ícaro e Emmanuel, que dormiam ali mesmo. Sentia aos poucos os dedos retornando a velha agilidade. No inverno, um grande baque: Datinho, com apenas 24 anos, morre no dia seguinte a um campeonato mundial de surf no Havaí. Acidente vascular cerebral. Uma grande tristeza na vida de Dudu, que nem gosta de falar muito sobre o assunto. Tadeu, que estava junto com Datinho, foi o que ficou mais abalado. Mas continuou competindo, sendo hoje o 7º melhor surfista do Brasil (segundo o ranking de dezembro de 2003 da Associação Brasileira de Surfistas Profissionais). 28

O interesse dos mais novos pelas aulas de piano diminuiu quando tinham treze e doze anos, mesmo vendo o pai tocar no Sala Azul Marinho. Até que, três anos depois, em 1997, dois amigos de Francisca, quatro anos mais velha, apareceram na casa de Dudu com instrumentos e amplificadores. Fizeram uma verdadeira jam-session com ele, quebrando tudo. Aquilo despertou o lado musical nos guris. Eles gostavam de Nirvana, Joe Satriani, Deep Purple, Jimi Hendrix e Eric Clapton, e Dudu ia explicando para eles a diferença e semelhança disso tudo com o jazz. Tão feliz ficou vendo os filhos assim interessados que comprou baixo, bateria e guitarra, respectivamente assumidos por Francisca, Ícaro e Emmanuel. Dois anos se passaram e Dudu viu os três desenvolvendo técnicas e habilidades instrumentais em pouco tempo. Coisas da genética. Ensaiavam juntos e misturavam suas influências. “Eles entraram na minha onda e eu entrei na deles”, explica Dudu. “Quem nos ensinou foi o nosso pai, é claro que ele é nossa maior influência”, atesta Ícaro. Nos ensaios, o que se via era uma fusão de blues, funk, jazz e rock, tudo com muito improviso. Um tema era dado e a banda seguia, sempre de maneiras diferentes. Dudu dava umas séries de sinais – terminar, solar, aumentar ou diminuir a intensidade, entre outros - e o entrosamento era total. Em 1999 Dudu resolveu que era hora de botar os moleques no palco. Ele havia dito ao repórter de um jornal comunitário de Ubatuba, na época em que voltava a tocar, que seguiria tocando sozinho. Pelo menos até aparecer alguém para acompanhá-lo. Nada melhor então do que ser acompanhado pelos próprios filhos: - Achei que os meninos já conseguiam encarar. Daí marquei um show no hotel Recanto das Toninhas, em Ubatuba, onde costumava tocar sozinho há algum tempo. E eles tocaram com a maior naturalidade. Fiquei muito orgulhoso. O nome da banda-família ficou Papadu, “uma mistura de papai com Dudu”, segundo Emmanuel. Na casa da família, quase todos os dias, rolavam jam-sessions, e Tadeu, que não toca nada, levava os amigos surfistas para curtir o som. A casa ficou famosa. Papadu tocou por Ubatuba e região, inclusive durante a bateria especial de uma das etapas do Supersurf 2000, disputada pelos campeões dos campeonatos anteriores. Na mesma etapa Tadeu sagrou-se campeão e Francisca subiu ao pódio em segundo lugar. Os Pereira tomaram conta do Supersurf. Em 2001, gravaram o primeiro cd da banda, Papadu Em Improviso, com temas criados por Emmanuel e que vão do blues ao funk à surf music e ao jazz. O cd foi gravado no estúdio Tartaruga, em Ubatuba. Dudu acompanhou fazendo as bases na guitarra. Logicamente com muito improviso.

OS PEREIRA EM FLORIPA

No final de 2001 Francisca, Emmanuel e Ícaro tentaram o vestibular para a Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Francisca para Geografia, Emmanuel para Ciências Sociais e Ícaro para Biologia. Os três foram aprovados e os pais resolveram acompanhá-los para Floripa, um bom lugar para curtir a aposentadoria que Dudu conquistara quatro anos antes, comprovando sua longa carreira de músico com uma pilha de recibos de cachês e anuidades pagas à Ordem dos Músicos do Brasil. Vieram para a ilha e alugaram uma casinha numa rua tranqüila do bairro Rio Tavares, há menos de um quilômetro da praia. Isso até comprarem um terreno no Rio Vermelho, mais ao norte, mas com a mesma distancia da praia – um pré-requisito. Os filhos foram morar em um apartamento mais próximo da universidade. Dudu e Beth construíram uma pequena e aconchegante casa. Agora é Francisca quem constrói sua casa nos fundos do terreno. 29


Antes disso tudo, apresentando-se no Café Matisse e na Universidade Federal de Santa Catarina, conseguiram destaque nos jornais locais e também em alguns programas da RBSTV. Hoje são conhecidos do pessoal curtidor da boa música na ilha (que o conhece por Rei do Banjo), passando a se apresentar com mais freqüência. Dudu prefere se apresentar à tarde, porque acha menos cansativo. “Não dá pra entrar no palco às quatro da manhã, quando estava marcado para meia-noite, e não receber quase nada. Músico é muito explorado”, costuma reclamar. Então tocam nas praças da Lagoa da Conceição, no Parque do Córrego Grande, em feirinhas de artesanato e até em inauguração de floricultura, de tarde, na tranqüilidade. Em 2003 Dudu participou ainda da gravação do EP Hot milk, da banda florianopolitana Superbug, solando com o banjo na música Anorak country farm. De fato, ele acredita que muitas bandas da cidade tem um potencial muito grande, formadas por músicos muito criativos, mas não vê espaço algum para que eles mostrem seu trabalho. Na cidade, é sempre reconhecido facilmente, às vezes pela música, às vezes pelo surf dos filhos. Faz amizades com facilidade, sem barreiras de idade. Está por dentro de tudo, e tem adorado sua vida em Florianópolis. “Uma cidade muito bonita, muito poética, apesar do que a prefeitura vem tentando fazer para acabar com isso e transformar todo mundo em formigas”, frisa. Teve problemas com gerentes de alguns bares que, julgando a aparência desleixada de Dudu, com seu cabelão e vasto moustache, calça desbotada e camiseta, não deram atenção quando propôs uma data para se apresentar. Mal sabiam que falavam com o Rei do Banjo. Mas tudo bem. Dudu simplesmente fica lá pelo Rio Vermelho, tocando de vez em quando – os ensaios são ali mesmo – e cuidando da sua horta, da sua casa, do seu jeito como sempre. Costuma ir ao centro em passeios que transitam por cybercafés, cafeterias e mercados. Caminha todo dia pela praia Moçambique e cuida muito de sua alimentação. Toma uma cervejinhaa de vez em quando e ainda mantém o hábito de fumar tabaco, que ele mesmo planta e seca, mas diz que está largando. Vai vivendo numa boa, com tranqüilidade e certeza de que fez tudo o que queria. Quando há algum show, sai de casa empolgado. “É melhor do que ficar no sofá a semana inteira”, atesta. Aos 68 anos, possui a fórmula: - Esse mundo é muito mentiroso. E todo mundo, o que mais quer, é se expressar, se auto-afirmar perante a vida, e com a música a gente pode chegar nisso. Ela é uma verdade no meio de tanta mentira. Ainda hoje me arrepio em todas as apresentações da Papadu. Não tenho mais planos. Apenas aproveita a vida, ao lado da família, tranquilamente em paz.

Banda Papadu: Dudu e seus filhos Francisca, Ícaro e Emanuel em fina sintonia sonora

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DISCOGRAFIA Compactos Simples: The Avalons – China rock (Dudu) e Valentina my Valentina (versão), Young Y-45-100, (Ed. Fermata), 1959. The Avalons – Rebel rouser e All the time (versões), Young Y-45-104 (Ed. Fermata), 1959. The Avalons – Here comes The Avalons (Dudu) e Believe me (versões), Young Y-45-112, 1960. The Avalons – The eyes of Texas are upon you (versão) e Number 13 (Dudu), RGE, 1961. Compactos Duplos: The Avalons – Baby talk, Young Y-EP 1, 1960. Regiane – The beautiful teenager , Young Y-EP 2, 1960. The Avalons – Juventude!, RGE EP 90089, 1961. Álbuns: Traditional Jazz Band – A era de ouro do Dixieland, Fontana 6470 553, 1975. Papadu – Em improviso, PAP001 (independente), 2001.

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HEMEROGRAFIA & INTERNET Livros MUGGIATI, Roberto. O que é jazz. São Paulo: Brasiliense, 1983, 116 p. FRANCIS, André. Jazz. Tradução de Antonio de Pádua Danesi – 2ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 2000. 332 p. TROUPE, Quincy; DAVIS, Miles. Miles Davis: a autobiografia. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro, Campus, 1991. 382 p. Jornais Diário Catarinense, 18 de agosto de 2002. Música feita em família. Reportagem de Fábio Bianchini. Folha de São Paulo, 7 de maio de 1961. B. Pittman, Dick Farney e Dudu lançarão LP da I Jam Session amanhã, no auditório da FSP. Não creditada. Folha de São Paulo, 3 de outubro de 1961. Êxito na X Jam Session; 6 conjuntos ganharam consagradores aplausos. Não creditada. Folha de São Paulo, 22 de novembro de 1961, 2ª edição. Primeiras inscrições para o Festival Brasileiro de Jazz. Não creditada. Folha de São Paulo, 5 de dezembro de 1960. Hoje a Jam Session da Folha de S. Paulo. Não creditada. Folha de São Paulo, 7 de dezembro de 1960. Inicia a Jam-Session na Folha novo ciclo de jazz no país. Não creditada. Diário da Noite, sem data, provavelmente de 1963. Brasileiro conquista paris com uma guitarra e solidão. Reportagem de Franco Paulino. Jornal de Ubatuba, provavelmente de 1994. A volta do rei do banjo. Não creditada. Diário da Noite, 17 de outubro de 1961. Inovação no teatro nacional: Avalons lançam apresentação de jazz de arena. Reportagem de Edmundo Sacannapieco. Folha de São Paulo, 4 de agosto de 1962. Dudu se despede na jam-session. Não creditada. Última Hora, 9 de outubro de 1957. Samba versus jazz no front musical. Reportagem de Edoardo Vidossich. Folha de São Paulo, sem data, provavelmente de 1971. Dudu, do banjo à guitarra. Reportagem de Carlos Acuio.

Internet www.uol.com.br/supersurf, julho de 2000. Os grandes Pereira. Texto de Tiago Brant. www.thejazzgazette.be/february 2002issue.htm#tito. Playing tradicional jazz in Brazil. Texto de Tito Martino. www.iz.com.br/clientes/tradjazzband/ingles/biografia.htm Sítio oficial do grupo Traditional Jazz Band. www.abrasp.com.br. Sítio oficial da Associação Brasileira de Surfistas Profissionais.

CRÉDITO DAS FOTOS E REPRODUÇÕES Página 10 - A. Moura/Diário da Noite Página 11 - A. Moura/Diário da Noite Página 12 - Não creditadas/Aconteceu Página 13 - Não creditada/Folha de São Paulo Página 16 - Em cima:arquivo pessoal; abaixo: A. Moura/Diário da Noite Página 17 - Arquivo pessoal Página 18 - Reprodução Página 19 - Arquivo pessoal Página 20 - Em cima: arquivo pessoal, abaixo: reprodução Página 21 - Eduardo Yanzi Página 23 - Acima: Eduardo Yanzy, abaixo: reprodução Página 24 - Eduardo Yanzi Página 25 - Reprodução Página 26 - Foto menor: Juca Martins/Quatro Rodas, foto maior: arquivo pessoal Página 27 - Carols Acuio/Folha de São Paulo Página 30 - Fernanda Pereira Página 33 - Fernanda Pereira

Outras publicações Visão, 23 de dezembro de 1960. Folha agora dá jazz. Não creditada. Instrumental Newsletter, volume 8, número 28, julho de 2002. A história das bandas brasileiras de rock instrumental: The Avalons. Reportagem de Sérgio Nascimento e Manoel Bolonha. O Cruzeiro, sem data, provavelmente de 1956. Baiano diferente. Reportagem de Edvaldo Pacote. Aconteceu, sem data, provavelmente de 1955. Aconteceu vai a uma jam session. Não creditada. Quatro Rodas, dezembro de 1970. A noite bem curtida, em quatro dicas. Reportagem de Marilda Varejão.

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ANOTAÇÕES

Printed in Brasil Verão, 2004.


Música, cara-ou-coroa, ilhas gregas, bazares e família: a história do Rei do Banjo “Naquele ensaio estavam presentes, além de Luis Fernando no clarinete, o jornalista italiano Edoardo Vidossich no piano, os holandeses Kurt Van Elgg na corneta e Henk Warckiwitz na bateria, o francês Roberto Oauckil com outro clarinete, o futuro produtor e crítico musical Zuza Homem de Mello no contrabaixo e outros músicos. Eram todos amadores, mas alguns tinham noções, estudos e alguma prática e experiência em jazz. A maioria desses estrangeiros estava no Brasil há apenas alguns anos, e trazia na bagagem alguma experiência jazzística do além-mar. Dudu aprendera tudo o que sabia – alguns acordes, a tônica, uma ou outra escala – de olho, ouvido e toques. Não sabia nada de jazz. Mas notara que aquilo que ouvia naquela sala era diferente daquele jazz das rádios e do cinema de Hollywood. Aquilo parecia mais vivo e solto. - Mas eu não sabia se tocava marcado, se dedilhava, então fiquei só olhando, na minha. O Kurt me deu uns toques e, sem brincadeira, peguei o jeito do troço na hora...” *** “Todos perguntavam quantas guitarras solavam alucinadamente naquela gravação, Dudu respondia: “só uma”, e a controvérsia estava feita. A técnica consistia em solar em acordes, tocando duas ou mais notas ao mesmo tempo, ao contrário do que faziam os guitarristas de rock no Brasil naquela época, que solavam nota por nota. O efeito da técnica de Dudu dava a impressão de haver mais de um guitarrista na execução.” *** “Então veio o verão e, com ele, a capital francesa praticamente fechava naquele tempo. Dudu voltou com a banda inteira ao porto de Marselha, onde tocaram em cabarés, inclusive em um de strip-tease protegido pela máfia da Córsega. Isso durante um mês. Foi nesse mesmo verão que Dudu pode ver de perto alguns dos maiores nomes do jazz no famoso festival de Juan Lês Pins, a New Orleans francesa, na Cote D’Azur. Viu Miles Davis apresentando à França a revelação na bateria Tony Williams, com apenas 18 anos. A Le Batucada participou em seguida, representada só por Dudu e Ney de Castro, dando uma palhinha de samba no palco principal.”


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