[Caderno II ] terra fértil

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terra fĂŠrtil 1


Capa: Mata das araucĂĄrias no terreno da casa de Toninho. KarĂş, 2015.

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Isso era tudo mato 4. Caminhar 10. Voltar a pisar a terra 16. Barro, terra e argila 28. Hortas e sementeiras 30. Uma viagem entre pinheiros 34. O eucalipto do Vanderi 42. O humo dos pântanos 44. Rua Florianópolis 48.


isso era tudo “No começo havia um morador aqui, outro ali, nesses matos. Isso era tudo mato, taquaral. Os dois primeiros moradores (...) eram donos de tudo isso. O pessoal chegava, entrava no mato...


mato .... construía o rancho e começava uma roça. Terra no começo ninguém comprava nada. Chegava e ia morando. Depois requeria-se a terra”.

Fotografia:Vista das matas do Karú do chalé onde mora atualmente de Seu Hermar. [Na ponta direita vemos o açude onde Hermar cria seus peixes de rio] Karú,novembro de 2015.

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“Terra é sobrevivência. Quem não tem um pedaço de terra não tem segurança de nada. Hoje tá aqui, amanhã tá lá. Terra não é da gente. A gente morre e a terra fica. Tendo terra, tem um lugar pra morar, senão vive no ar. Se adquire terra pra viver e criar os filhos. Quando se compra terra é pra deixar pros filhos”.

“O terreno comum é um terreno que tem bastante donos, várias famílias usavam o mesmo pedaço de terra. Cada canto tinha um dono, uns numa ponta outros noutra. Tudo em aberto, sem fechar. Não era medido, cada um ‘redimunhava’na sua área. Era livre.

“A terra é garantia de vida. Na terra se passa fome se houver contratempo da natureza. A terra dá de comer. É sobrevivência, moradia. É independência. Eu larguei mão de ser empregado por ser mandado. Aqui a gente se governa. O trabalho é sacrificoso, mas a gente tem liberdade. Se não quiser ir não se vai. A gente tem relógio, mas se guia pelo interesse da gente”. “A terra é tudo. Da terra sai a água, o alimento, a madeira, a beleza, o ferro; terra é vida; é das melhores coisas do mundo”.

“A terra era barata, às vezes era comprada em troca de mel.”

“Poucos proprietários tinham poder sobre a terra, há 120 anos atrás. Não que não houvesse outros moradores; eram posseiros sem documentos...

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Fotografia: Ponte do acúde de criação de peixes de Seu Hermar. “Ali planta todo tipo de plantas: goiabas, flores variadas, araças, etc. Deu-me algumas dessas frutinhas, as outras não estavam na época. Fez demonstrações de pesca com alguns peixes, ligou chafariz nos açudes.


Os animais, como o cavalo, a mula, o gado, a vaca de leite, o porco solto ou no chiqueiro, andavam por todos os cantos da terra comum. Usava-se o cincerro para localizar os animais. Só o rocio [roça] era fechado com cerca de varão, com a sobra da madeira queimada, cerca de raxa ou rachão; cada família fazia o seu rocio dentro da terra comum.”

“A terra é a nossa mãe. Ela está sendo maltrada pelo trator, a queima, o veneno...”. “A terra? Eu tenho dois alqueires e meio.Precisaria mais uns três alqueires. Eu deveria chamar a terra de mãe. É donde eu tiro nosso sustento. Terra é tudo. Temos pouca terra, mas eu páro e penso, quantas vezes eu não teria que me mudar, se não tivesse esse pedacinho de terra! Agora ela tá se recuperando. Esteve acabada. O brasileiro é livre na terra. Não é mandado. Não vê salário, mas tem os produtos”. “A terra é o conforto para nós. Se não tiver a terra, não temos nada. Da terra nós tiramos tudo. Não gosto de trabalhar para outros, mas para mim. Com meu trabalho não vejo muito dinheiro na hora, mas depois é o dobro. Trabalhando para outros o dinheiro some. Eu sou agarrado na planta e em árvores. Minha mão é boa. Abaixo de Deus, a terra é nosso chefe. É como o chefe de família que vive para os da casa. A gente planta nela e dá o resultado. Tiramos tudo da terra”. Moradores falam sobre as suas concepções de “terra”, as primeiras ocupações e divisões de terrenos. Fragmentos presentes em subcapítulo da dissertação de LOCKS, Geraldo. Identidade dos Agricultores Familiares Brasileiros de São José do Cerrito-SC, Antropologia Social na UFSC, 1998.

Como demonstrei possível interesse em comprar um sítio, me informou que tem outros alqueires para venda, um alqueire custa em média 30 mil.” Trecho do diário de Elaine Lima da Silva,2015.

“As terras eram posse do governo. Eram requeridas.”

... se houvesse capoeira era respeitada, se houvesse mato se apropriava; não se pagava a terra; se fosse pago era muito pouco. Havia um agrimensor, vindo de Florianópolis, a mando do governo, para medição das terras.”

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Fotografia: Portão de entrada e cerca característicos da região.[Registro de Orival Lopes] Karú,novembro de 2015.

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Caminhar ou sobre ver por outras janelas

Esta é a terra onde meu avô nasceu, morou e construiu grande parte de sua trajetória de vida; onde meu pai também nasceu e se “criou” até a sua juventude, antes de ir para “cidade”; Enquanto que meu tio, aqui permaneceu até a sua velhice, amplamente reconhecido por suas atitudes e participações decisivas na vida pública desta localidade. Único irmão de meu pai, construiu aqui no Cerrito uma casa com a minha tia. Desta casa, escrevo agora. Aqui encontro o repouso e o acolhimento necessário nas idas e vindas cada vez mais frequentes. Tia Rosa, a poucos anos viúva, é por muitos reconhecida por seus afazeres, hospitalidade e generosidade àqueles que por aqui tem passagem. “A mãe de todo mundo” nas palavras de Seu Orlando, que fora seu vizinho de porta, fotógrafo, taxista e jornaleiro, que guiou as estradas do dia de hoje. Rosa é uma mulher de 72 anos que ainda costura para fora e gerencia todas as atividades desta casa. Nas últimas décadas a casa é pousada para muitas estudantes e mulheres que aqui trabalham. [Sim, os quartos são alugados especificamente para mulheres, diz que assim se previne de eventuais problemas relacionados a namoros]. Logo na rua em frente temos outras duas casas, uma bastante recente, onde vivem minhas primas e um primo segundo que vivencia sua adolescência. Meu primo, como muitos jovens, absorvem influências de ambientes distintos, da ruralidade característica às possibilidades de estar conectado ao mundo-da-rede, dos jogos e comunidades virtuais. Aqui também há disto. Vive-se a terra e vive-se o asfalto. Pelas janelas, o horizonte dos campos e montanhas, pelas mãos, as janelas do mundo virtual. Pensando com as palavras de Milton Santos: “[...] não mais se trataria de ‘regiões rurais’, e de cidades. Hoje, as regiões agrícolas [e não rurais] contêm cidades; as regiões urbanas contêm atividades rurais”. Qualquer romantismo de quem chega na busca de uma paisagem rural, bucólica ou de uma imagem figurativa do que é a vida no campo, poderá se decepcionar. O asfalto, porém, ainda é recente. E por aqui muito se esperou do asfalto. A conclusão da estrada principal, nos fins da primeira 10


“Quando eu começo um projeto, preciso sempre criar um mundo. Então eu quero entrar neste mundo, e minha caminhada por este mundo é a obra/trabalho.” Este trecho do artista francês Pierre Huyghe (1962 -) em entrevista , nos permite visualizar em muitos aspectos de como se modela o processo criativo que pretendemos tocar. Como sintetiza em sua fala , o primeiro passo - e mais decisivo - é “criar um mundo”. A “obra” passa ser a nossa caminhada neste mundo. Podemos aproximar um entendimento da caminhada como um traçado que não basta habitar uma realidade dada, temos que jogar com ela, reinventar nossas relações a partir do lugar onde estamos e com que temos disponível no momento (leia-se tempo e recursos, mas principalmente ao que estamos dispostos a vivenciar) . (trad. livre) Disponível em: http://www. art21.org/videos/segmentpierre-huyghe-in-romance. Acessado em 22 de março de 2015.

década de 2000 [Seu Orlando nos contou de “boca cheia” ter “encabeçado” os processos político-burocráticos de sua implantação]. Estrada que representou um “marco” para os que aqui vivem. Por ser a via que liga as cidades vizinhas [Lages à Campos Novos], sua planificação melhorou muitos aspectos da vida de seus moradores.

O asfalto é uma mistura quente com propriedades isolantes e adesivas utilizado há muito tempo, desde a Antiga Babilônia e também o Império Romano, com a diferença que o asfalto, então, era produzido a partir de piche retirado de lagos pastosos. A partir de 1909, com a expansão da indústria petrolífera, o petróleo foi incorporado na produção do asfalto, tornando-se o principal meio de pavimentação de estradas." p.28 Terra Rara

Descubro assim, existir outras ruas, lugares, pessoas, histórias, sabedorias, amizades e pessoas que revelam uma infinidade de modos de ser, viver e compartilhar a vida. Fazem desta terra o seu lar, e deste lar, as suas casas, que não são só materiais, são edificadas por relações de vizinhança e por saberes distintos e únicos. Caminhar por estradas até então desconhecidas, compartilhar as horas na casa de pessoas que tive maior contato, já me traz uma espécie de consolação. Pois somos condicionados a aceitar rupturas nas relações com os espaços e sobretudo, com os outros. Ruptura que nos abre faltas. “Naturalmente” aceitamos a distância, pois temos que marchar no tempo de nossas obrigrações imediatas..

Sem dúvida agora é facilitado o acesso aos serviços públicos, comércio, escolas que antes encontravam, literalmente, muitas pedras na antiga estrada. [lembro da trepidação e poeira laranjada lançada ao ar quando passávamos na déc. de 90]. O outro lado da moeda é conhecido para quem vive em “cidade grande”. A diferença talvez resida em presenciar um processo de urbanização que ainda é parcial e que passa por todas as particularidades daqui. A sensação é de caminharmos em uma margem frágil nos modos de vida e saberes com a terra, e para a terra, que não foram ainda soterrados por processos de “modernização”. Uma localidade que percebo agora não ser tão pequena quanto parecia. A maioria de sua população, reduzida significativamente nos últimos anos (hoje conta com pouco mais de 8 mil habitantes) se encontra sobretudo, como lemos, no “interiorzão”, nas outras 35 localidades além do centro. Localidade que podem chegar a uma distância de 50 Km, e uma destas, está prestes a desaparecer com as obras de uma barragem, conforme nos conta Padre Nivaldo, [com quem conseguimos a lista das localidades].

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De forma que agimos à nossa própria sujeição, desencorajados a aproximarmos de nossa “origem”. Uma origem que possivelmente não possa ser mapeada e definida, pois é plural e polissêmica, no entanto aproximamos para que ela nos aproxime. Andar aqui é revisitar histórias dos tempos de meu avô e descobrir laços em comum que vão além das relações de parentesco, é também presenciar realidades emergentes, de um horizonte que constrasta violências e cuidados, com os rios, com a terra, com as pessoas que aqui vivem. O que muda é que antes a referência e conhecimento sobre esta localidade, eram centralizados até então, na rua principal onde fica esta casa, que frequentei, mesmo que pouco, ainda na infância. No convívio, ainda que breve, com tantas pessoas que nos acolheram, me aproximo da compreensão “lugar de terra fértil” tão falada por aqui. Terra das paisagens de araucárias, não tão abundantes quanto relatam os mais velhos, mas que ainda predominam o quadro do horizonte. Horizonte que descobri ser o sítio de uma das maiores concentrações já registradas de casas subterrâneas indígenas e para maior surpresa, somente na última década adquiriu maior atenção por meio de pesquisas e estudos, sobretudo no campo da arqueologia. Para Francis Alys [1959-], artista Belga que reside no México, “a caminhada é um dos nossos derradeiros espaços de intimidade”. No entanto, compreendemos que caminhar também é ir de encontro. Quando nos permite sair do conhecido para cruzar outras percepções que nos tocam e atravessam. Ao mesmo tempo em que desenha nossa percepção, íntima, é uma forma de desenhar no espaço-tempo trajetos e conexões . Mesmo que a caminhada seja a fuga de qualquer contato, este não demora esbarrar. Ainda que a experiência de Alys muito nos diz sobre caminhar na cidade , na densidade de uma cidade como a Cidade do México onde vive, não nos iludamos: há momentos que encontramos o deserto na cidade e outros a cidade no deserto. Assim, caminhar tem sido um dos verbos chaves desta pesquisa. Foi caminhando por ruas e estradas no Karú, que encontramos Pedro Hiago, a caminho do seu local de trabalho, uma casa verde que funciona como a sede do Sindicato Rural do Cerrito. Um encontro que semeou outros encontros. Caminhar parece ter esse ato de semear. Mesmo no traço caminhante de uma linha somos chamados para os atalhos, que são magnéticos a tudo que buscamos.

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Quando demonstrei interesse sobre como era o cultivo de orgânicos na região e do uso de plantas medicinais nos disse Hiago: “Tem um senhor que atende ali na Pastoral, umas quadras acima daqui, é homeopata e lida bastante com planta.” Seu Toninho, que conheceríamos ainda naquele dia. Ainda nesta conversa - que também é uma espécie de caminhada, mesmo que descontínua, aos saltos – surgiu o nome do Professor Diego quando comentamos sobre a Horta Vertical [ver p.30 deste caderno]. Nos disse que Diego era um professor de geografia, dava cursos ali no Sindicato e que experimentava muitas técnicas de permacultura e bioconstrução, pesquisa de materiais, geração e formas de energia sustentáveis. Segundo Pedro Hiago, há um bom tempo mantinha-se com energia elétrica que ele próprio produzia: “Ele só não cancela a conta de energia pra ter o comprovante de residência”. [Visitaríamos Diego meses depois em companhia de Pedro Hiago como guia.] Se por um lado reconhecemos a necessidade de uma aventurança, de uma caminhada errante que permite “sair de si”, da ordem do conhecido para confrontar a si mesmo em outro espaço-tempo, ordem do desconhecido, ressaltamos que durante esta pesquisa as caminhadas sempre partiam de um ponto em comum, um roteiro, nem que este, no decorrer do caminho fosse também redesenhado. Assim quando subíamos a serra, a maioria delas na companhia de meu Pai, já tomávamos nota dias antes: “Quarta-feira ir no Toninho”, “ir na Dona Zena e Seu Leonel logo depois do almoço”, “Quinta ir à prefeitura, fim de tarde no Pedro Hiago”. Essa distribuição começou a ser seguida como um hábito para que melhor aproveitássemos o dia nas estradas e paisagens do Karú. Vanderi, Seu Maurício e Dona Beth, que moram antes de chegar à cidade, se tornaram os primeiros pontos de parada.

São José do Cerrito, que tem como principal atividade a agricultura, já foi conhecida como a capital do feijão. Além do feijão, suas terras já viveram as décadas de cultivo intensificado do milho e da soja. Atualmente, a soja voltou a ser a principal atividade de agricultura, porém, com enfoque na monocultura intensificada, com poucos e grandes produtores . Ainda sobre o que a terra oferece, o horizonte desta localidade ainda mantém a forte presença das araucárias, simbolo da região. Em meados das décadas de 50 até 70 do século passado, a cidade [emancipada em 1961] experimentou um ciclo intensivo de exploração desta madeira. Grande parte exportadas para outras localidades do Brasil. Segundo muitos atestam, grande parte destes caminhões cobertos de madeira tinham como destino final, o campo de obras da futura capital do Brasil, Brasília. [Texto com base nas conversas com os moradores].

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Voltar a pisar a terra Em ocasiões que apresentava esta pesquisa algumas vezes descrevi, e outras foram interpretadas, como uma “volta às origens”. Lemos que esta pesquisa se faz entre percursos na localidade de nascimento de parte de minha família, o Karú. Nasci no entorno, na cidade vizinha de Lages também em Santa Catarina. Com pouco mais de um ano de idade fui para o litoral sul do estado. Assim, nestes dois últimos anos voltamos para o Karú. Onde minha irmã, Elaine, concomitante a estes escritos, desenvolve uma pesquisa* sobre envelhecimento em sociologia política nesta localidade. Os contornos desta aproximação com este lugar e pelas relações de sangue, sem dúvida foram algumas das coordenadas que moveram grande parte destas caminhadas (tanto estas quanto de minha irmã).Os percursos realizados nesta localidade muitas vezes se davam por meio destas relações, ser filho, irmão, sobrinho, neto, primo, parente de Florianópolis etc. Isto tanto nos abria algumas portas quanto fechava outras. Embora tais relações tenham exercido papel fundamental, seja em contribuições diretas e indiretas, não pretendemos apresentar os laços familiares como uma condição homogeneizadora. Se por estas relações entramos, outras tantas foram apresentadas e geradas no percurso. Às quais ampliaram e inclusive realocaram a noção de familiaridade. Compreendemos familiariedade como algo a ser construído, não fixo a uma convenção, idealizada ou mesmo apaziguadora. São relações construídas como relações de amizade e estas pressupõem, ou não, laços consanguíneos. Neste sentido, o aspecto familiar contribui assim como dificulta, ou torna mais complexo, o processo de aproximação de um contexto e de suas realidades distintas - como apresentamos anteriormente no primeiro caderno - águas de um grande rio. “Voltar às origens” ou “retorno à terra” é também por onde muitos dos gestos em arte tem encontrado fertilidade. Seja a partir dos aspectos biográficos; o “retorno” do “artista” às suas “raízes”, por vezes a uma cidade/estado/país “natal” ou mesmo a falta deste [lugar] e da impossibilidade [de retorno]; estéticos, nas formas de documentação [fotografias, registros, ações e proposições com ae a partir do lugar]; políticos, ao trazer à superfície os contornos [de saber-poder] socio-históricos e geográfico-culturais locais. Questões estas atravesssam um 16


* “A peleia dos velhos do/no Karú”: discursos/percursos sobre envelhecimento em São José do Cerrito SC, Dissertação a ser apresentadan o Programa de Pós- Graduação em Sociologia Política, (UFSC), sob a orientação da Profª. Drª. Elizabeth Farias da Silva.

Sinalizamos que esta questão, de “retorno à terra”, tem gerado muitas discussões no âmbito da filosofia (entre outras) principalmente quando os discursos entorno são por vezes interpretados como base aos “nacionalismos” ou mesmo aos regimes fascistas). Lemos aspectos desse “retorno”, com Kant, Rousseau, Nietzsche, Heiddeger. Este último, trazemos uma passagem: “Heidegger recorda que a palavra “cura” tem em grego o sentido original etimológico de “regressar ao lar” (...) O problema crucial de nosso tempo, assim pois, seria este: “Se o antigo modo de enraizarse do homem perdeu-se, poderia encontrar-se então um novo fundamento, um novo terreno no qual enraizar-se?” Daí a tentativa heideggeriana de situar as raízes não no passado, senão em nosso futuro, no qual a origem coincide com o destino. “O início está agora” (...) “Não trata-se, naturalmente, de um retorno aos tempos pretéritos em uma tentativa de restaurá-los de maneira artificial.” (...) Ler em: http://legio-victrix. blogspot.com.br/2011/08/ heidegger-e-o-retorno-asorigens.html - Acessado em agosto de 2016.

“saber pisar” ético-social, do ir e vir com estes “lugares”, das trocas e convívios com as pessoas, em relações que podem vir à superfície ou não, Assim, voltar à terra, no sentido amplo de uma prática em arte compreende mapear transversalmente, contornar, borrar, para assim vivenciar contextos e produzir sentido com as pessoas, os lugares e seus possíveis espaços. E se hoje falamos de um “retorno à terra” não restringimos somente aos artistas e seus projetos, mas ao que somos tocados nos aspectos da vida comum, de nosso presente histórico. De “como”, “com quem” e “para quem” produzimos, e se o que é produzido é capaz de gerar algo. Em outras palavras, “retornar” pode sugerir uma profunda revisão e reinvenção de nossos hábitos [alimentação, moradia, uso de energia, espaços de trocas, valorizar e gerar saberes etc[ e quem sabe assim, apontar para uma outra maneira de vivenciarmos o nosso presente sem os trilhos dos modos de vida alinhados ao “sacríficio” [de nosso tempo em função de um padrão de vida etc.]. Por outro, a medida em que são absorvidas as nossas tentarivas e devolvidas ao consumo [tanto substancial quanto informaciona] aos poucos nos condicionamos seguidores isolados de certas“filosofias de vida” à certas fórmulas de um “viver bem”. Ao que nos toca aqui, das práticas e gestos do campo da arte, estamos profundamente inseridos neste horizonte. No exercício de uma “prática social”, tais gestos, artisticamente concebidos, ao produzir e circular “imagens reconciliadoras” ou mesmo desvelando práticas de violência [ao outro e aos ambinentes] corremos o risco de ter a potência de certas experiências, vivenciadas em determinados contextos, convertidas a uma forma de espetáculo. Podemos seguir alguns apontamentos com [Lippard, 2009] quando diz que “a separação da arte do contexto, do lugar, do público e do chão comum dos significados compartilhados dominou todo o século XX” e que agora, se vê ela mesmo (a arte) “sem contexto na “sociedade” e talvez por isso estaria indo ao encontro a outros contextos, mesmo que o resultado seja mais um exercício “retórico” do que pragmático”. O questionamento é até que ponto a “arte”, de fato, pode habitar um contexto sem convertê-lo, (como já vimos) à critérios estritamente artísticos, exercendo sua autonomia para reafirmá-la? Ou, sintetizando suas experiências a serviço de uma política de subjetividade apaziguadora? 17


Claire Bishop diz que esse movimento, de uma (co)medida inserção da “arte para fins sociais”, “participativa” atua “como uma maneira de providenciar soluções homeopáticas para problemas que são sistêmicos”(nota ao lado). O que tais autoras nos colocam é este ponto frágil e oportuno onde as práticas artísticas encontram fronteiras com as formas de atuação “ativistas”. E se assim caminham, quais os intercâmbios, possíveis transformações? Se uma vez assumirmos tais práticas como uma forma de ativismo estaremos assim facilitando tais “transformações”? Neste caminho o que Paul Ardene nos coloca é que o artista [ao longo da segunda metade do séc. XX] ao iniciar diálogos e processos interessados na “produção” de um contexto do que da “representação”, passa a ser compreendido como um “protagonista social” - mesmo que não se identifique ou mesmo renegue esta posição. Para alguns artistas o que parece importar é que “algo aconteça”, o que muda é a maneira ou grau que compreende a “sua” ação e suas ressonâncias, desde uma pretensão utópica (ortodoxo-humanista, moderna) para as microutopias do cotidiano, assim compreendidas nas últimas décadas. O reconhecimento do gesto como arte parece pouco importar, como lemos em um trecho citado por Ardene de um artista, em meados de 1972 : “La cuestión de si los trabajos que expuse son de arte me concierne poco. Estaría contento si finalmente no lo fueran” - no entanto, ainda acreditou importante apresentálos. Neste sentido Ardene sintetiza aspectos do pensamento compartilhado por artistas daqueke período: “el arte vive como fórmula del momento, y no como procedimiento de sedimentación de los afectos del pensamiento estético o la forma”- e continua: La cuestión de la evaluación del arte contextual es obviamente crucial. ¿Pero en nombre de qué, precisamente, se podría evaluar? ¿En nombre de estética —la forma de la obra? ¿De la didáctica — la obra como discurso? ¿De la política —la capacidad de la obra por constituirse como motor de los cambios de la vida social? [...]

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Dusan Barok: Recentemente, muitos artistas tem se apropriado em menor ou maior grau das funções de agentes sociais, urbanistas ou ouvidores (provedores de justiça) para questionar e criticar a cultura dominante através da canalização de vozes e atividades dos que estão subrepresentados, reprimidos ou deixados de fora do processo político. Em seu ensaio “A virada para o social: Colaboração e seus descontentamentos” cuja versão atualizada também foi publicada em Checo, você de maneira muito interessante declarou que a arte socialmente engajada pode facilmente cair na armadilha de superestimar o juízo ético sobre o estético. A estética é uma questão bastante complexa. Colocando com brevidade, o que exatamente está errado com o uso do sistema de arte para “fins sociais”?

Entrevista com Claire Bishop, professora e crítica de arte com atenção às atividades artísticas “engajadas socialmente”em colaborações com comunidades e indivíduos específicos, Após o workshop “Monumento para Transformação”, organizado pela iniciativaTranzit, Praga, Julho de 2009. [Trad. livre]

Entrevista com Paul Ardene ler em: http://studylib.es/ doc/596532/artecontempor%C3%A1neoy-pol%C3%ADtica--unarelaci%C3%B3n-tensa-y acessado em agosto de 2016.


Claire Bishop: Boa pergunta. Instrumentalização não é em si errado; muitos bons artistas instrumentalizam com êxito os seus papéis para gradativos fins sociais. O problema é que os governos neoliberais também instrumentalizam a arte para fins sociais, privilegiando a arte participativa como uma maneira de providenciar soluções homeopáticas para problemas que são sistêmicos. Arte socialmente participativa muitas vezes serve para preencher essas agendas do governo para “inclusão social”; (ou seja, participação compulsória em uma sociedade de consumo), apesar de sua retórica ser ostensivamente oposicionista. Ambos os lados tendem rejeitar uma moldura para a contabilização desses gestos como arte: os artistas, porque eles tendem a ver as questões artísticas como elitista e sinônimo de privilégio; governos (ou seja, os formuladores de políticas culturais), porque é mais fácil lidar com a arte quantitativa (ou seja, como uma questão de estatísticas; quem participa, quantos etc.) do que qualitativamente.

Entrevista com Bruce Nauman, artista norte-americano Ler em: http://www.aaa. si.edu/collections/interviews/oral-history-interview-bruce-nauman-12538 acessado em julho de 2016.

No horizonte de práticas que, como vimos, são também gestos políticos ao compartilharem de um leque de questões que tocam a esfera pública em sua amplitude de contextos. Mesmo compreendendo o vasto terreno a ser sedimentado com estas discussões, não arriscaremos apontamentos sobre o que poderia ou pode ser a solução, se traduzimos esse “engajamento” como arte ativista [ou não]. Sinalizamos para melhor acompanhar alguns aspectos do exercício de tais práticas artísticas para assim, sabermos pisar melhor o nosso presente “chão comum”. Assim colocado, trazemos algumas falas, sobretudo de artistas, também sujeitos de seu presente histórico, os quais compartilham algumas das questões que hoje podemos melhor compreender [na arte e na vida] para com elas caminharemos ao menos melhor sobreavisados, a exemplo desta fala de Bruce Nauman [1941-]: Eu gostava de pintar, mas simplesmente não pude pensar em mais nada para pintar [...] Quando voce está sozinho, não importa como você lide com isso, você tem que examinar e reexaminar o que você está fazendo...eu andava pra lá e pra cá , bebia muito café - daí vem as fotos que fiz de café derramando e das documentações (em vídeo) no atelier, andando sobre um quadrado [...] estava tentando encontrar uma maneira que isso funcionasse como um trabalho [de arte][...] claro que não é simples assim, você não pode documentar algo [ação, gesto cotidiano] e apresentar, porque as pessoas fazem isso toda hora. Pode vir a ser algo entediante a às vezes, pode ser interessante, é como você estrutura a experiência para apresentá-la.” [Pontua também que no seu contexto [Nova Iorque/EUA)] [...] na escola de artes (que frequentava e lecionava) percebia uma “fortíssima atmosfera moral sobre ser artista” [...] era importante ser artista, trabalhar e trabalhar a noite inteira e ter um atelier [...] Certamente eu lidava com esse contexto de arte toda hora. Mas realmente desconfiava que arte era apenas sobre arte [...] É uma apreensão cultural muito estreita do trabalho (de arte). [trad.livre]

Uma outra passagem, escrita por Hélio Oiticica em 1967 encontra ressonância com a anterior. Oiticica nos escreve sobre o momento em que começa a compreender parte de seus gestos como uma forma de “fazer o homem voltar pisar a terra”. De um “estar” no mundo, no cotidiano, para daí tomar “corpo” o que tiver de tomar.

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O que ainda parece estar em jogo, das práticas em arte nos mais diversos contextos da vida cotidiana, Oiticica bem sublinhava em seus escritos. A participação, por ele assinalada, através do “contato direto” com os ambientes e materiais [terra, areia, água] proposta no contexto da arte, embora certamente produzisse uma experiência subjetiva, sensorial, de relações com o “corpo [físico, mental] dos “participantes” não deveria ser isolada, como diz, “o componente estético”, tanto do gesto [como forma] e do participante (como vivência), e sim integrá-los em um movimento ampliado que ele coloca como “comportamento de ordem ético-social que traria ao indivíduo um novo sentido às coisas”. Lembro de uma amiga comentar sobre recente passagem do professor e filósofo espanhol Jorge Larrosa Bóndia à Ilha, de quem emprestamos entendimento sobre “experiência. Durante uma banca que participara levou um cartaz para a sala e disse que a “experiência” sobre a qual tanto escreveu, havia se perdido em uso “panfletário” e que agora circulava desraizadamente como aquele cartaz. Neste sentido, isolar algo de um contexto ou condição amplificada, nos limita e talvez nos deixe somente com o invólucro “esteticista” apontado por Oiticica ou mesmo, a sinalização “panfletária” advertida por Larrosa. 120


Fragmento de texto escrito por Hélio Oiticica (1937 - 1980) em 1967. Ler em: www. itaucultural. org.br/ aplicexternas/ enciclopedia/ ho/home/index. cfm acessado em abril de 2016.

E se hoje caminhamos por áreas fronteiriças que não se definem por - ou mesmo escorregam - entre as esferas do saber, que trazemos aqui com as práticas artísticas, [mas são tantas outras, de ordem agroecológicas, urbanistas, sociológicas, filosóficas etc.] é porque estas, como sinalizamos, são essencialmente políticas, no sentido tomarem parte “de um estar e fazer junto social” segundo [MAFFESOLI, 2005, p.35]. É possível que nestas áreas de intenso diálogo e trocas transdisciplinares, esteja o devir da experiência e dos saberes tanto éticos quanto estéticos, essencias para qualquer formação cultural e educacional. Se falamos de transformações sociais, estas são sobretudo tudo processos de subjetivação individuais e coletivos, os quais operam diferentemente em cada contexto, exercitando -se por diferenças e semelhanças. Assim, nos perguntamos, como um processo de aprendizagem mútua pode gerar formas temporárias de estar no mundo mais próximas do cuidado do que do controle? Que escapam à homogeneização de nosso tempo-espaço e de nossas subjetividades?

Ainda nos diz LIPPARD: “Onde o artista se encaixa neste processo?” [...]”quando a história” (que vem de fora e de cima) falha com uma comunidade” [...] “a memória assume essa tarefa [...] as estórias são contadas de dentro do próprio chão.” [...] e como as pessoas de diferentes culturas que formaram este lugar, e que ainda moram no entorno, podem trazer de volta para a superfície as suas histórias, sem atrair o tipo errado de atenção - dos olheiros do turismo e do comércio?” [acima] LIPPARD, Lucy. Notas de uma recém-chegada. Tradução da versão publicada no livro Situation, Claire Doherty (org), London, 2009. In: ?Hay en portugués?, 2015 ver: http://hayenportugues.blogspot. com.br/

[ao lado] LIPPARD, Lucy. Minar. Tradução da versão publicada no livro Undermining - A wild Ride Through Land Use, Politics and Art in the Chanching Westde, New York; The New Press, 2014. 2009. In: ?Hay en portugués?, 2015.

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Antes de nos encaminharmos às terras férteis do Karú, caminharemos por outras. Enquanto estudante, pude participar bem como acessar, ler, certas iniciativas, algumas destas, em comum, partem do campo da arte e foram essenciais para uma melhor compreensão das questões até aqui abordadas. Especialmente daquelas tecidas com saberes de outros campos e que ajudaram aproximar-nos de um entendimento sobre o gesto artístico em nosso presente histórico. São gestos que se lançam como catalisadores na produção de subjetividades, enquanto costuram relações com ambientes, contextos, pessoas e saberes. Uma dessas iniciativas trazemos neste parágrafo com Harrel Fletcher: Minha esposa cresceu em uma reserva do Povo Crow no Centro-Sul de Montana. Quando ela me levou até lá para conhecer sua família, eu percebi que ocorria uma dinâmica muito interessante na reserva. É comum fritar comida em óleo de cozinha e as pessoas têm costume de dirigir grandes caminhões a diesel. Depois de conversarmos sobre isso, eu e Wendy (sua esposa) tivemos a ideia de fazer um projeto que combina os dois aspectos da vida na reserva. O plano é criar uma estação de biodiesel na reserva que colha e processe o óleo de cozinha e que o transforme em biodiesel para que possa ser utilizado como um combustível mais limpo para os caminhões do local. Nossa esperança é de que um combustível gratuito ou mais barato seja a atração para pessoas irem até a estação e que essa também sirva como um centro comunitário onde ocorram vivências educacionais e culturais projetadas especialmente para tratar sobre questões e preocupações da reserva, e que talvez possa funcionar também como creche. O veículo Wusado para coletar o óleo de cozinha também operaria como um centro móvel de aprendizagem, atravessando a comunidade e oferecendo serviços como o ensino dos costumes e da língua tradicional dos Crow, juntamente com informações atualizadas sobre saúde e meio ambiente.Neste exato momento estamos na fase de pesquisa e desenvolvimento.

Uma outra, participamos na construção [material e simbólica] de uma casa. A Casa Redonda.Um projeto de vida alimentado enquanto prática artística pelo amigo e professor Paulo Renato Damé em uma propriedade de sua família no contexto rural do estado do Rio Grande do Sul. Há um ano tivemos a oportunidade de escrever juntos:

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Em 2011 era realizado o primeiro encontro envolvendo estudantes das universidades UFPel, UDESC e UFSC e comunidade local. Este evento seguia proposta: Em Busca do Interior: Sete dias sem imagens. Na época foi criado um blog para compartilhamento entre os grupos envolvidos http:// embuscadointerior.wordpress. com/ - acessando (depois de anos) encontramos este texto que por lá compartilhava: “A educação do olhar: aprender a ver a arte que fugiu dos museus e se abre para a vida, com ela se confundindo. O olhar, corrompido pela pressa, deseducou-se perdeu o gume com que feria e possuía as coisas: hoje ele passeia pela superfície, sem apreender a luz das coisas que purifica o mundo e que é tempo e vida. A pressa do olhar compactuou-se com o escuro, com a planura e a aridez que anestesiam o homem e embaçam o mundo, e desfazem as constelações de objetos, corpos, gestos, trabalhos que formam o cotidiano e o enriquecem.” (Por Marcio Sampaio.)


... CEARTEAU sugere: “O espaço é um lugar praticado”, portanto, não é só físico, é também simbólico, determinado por práticas e discursos, atribuições e valores, [estéticos, morais], dispositivos de conduta [“regras”, “leis” da vida social]. Por essas linhas, o lugar seria o estado de cristalização destas determinadas ordens e disposições. Ainda segundo o autor, lugares são “histórias fragmentárias” e se estruturam (como tijolos) em “espaçostempos empilhados”. Já a noção de espaço, enquanto “pratica o lugar”, ativa um estado de fluxo que confere porosidade e movimento ao lugar, (re)inventando e (re)combinando assim a disposição desses “tijolos”. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

Fotografia: Casa Redonda, colocando o telhado verde, Encruzilhada do sul (RS), 2014. Por Tatiana Pureza

A Casa Redonda é uma proposição artística de Paulo Damé, que se lança a construir uma casa, projeto iniciado em 2009 que teve como start a desconfortável sensação de calor pelo aumento da temperatura no final do ano de 2008. A partir de uma lembrança da infância, quando em um verão muito quente teve a sensação de conforto térmico na casa feita com terra de um tio. A casa era construída em uma técnica antes usada naquela região, subia em paredes de leiva e terminava em telhado de capim santa-fé. Nesta época veio a decisão de construir uma casa com as próprias mãos, levando em conta a recuperação de tradições eficientes de construção, o reuso de materiais, a economia de energia, a sustentabilidade radical, tratamento de esgoto, captação de água da chuva e estar aberto a toda idéia que viesse somar-se a este pensamento do viver bem.

Lembramos que neste primeiro encontro “em busca do interior” só foi possível por uma série de práticas cotidianas compartilhadas em um coletivo [musicais, culinárias, audiovisuais] que culminaram em um evento cultural para arrecadação de recursos para a viagem. Formávamos naquela época um grupo de cerca de mais de 20 pessoas, a maioria estudades de arte que frequentavam a disciplina ministrada pelo Prof. Kinceler. O que de certa maneira nos movia para esta viagem e para o encontro, brevemente falando, era se ver livre de todos os aparatos eletrônicos e facilidades de nosso cotidiano, na condição de estudantes que moram e vivem em cidades.Naquela ocasião, lá, não tinha luz elétrica. Se a Casa Redonda onde hoje o Prof. Damé literamente habita sua construção, em 2011 era um tronco de uma árvore no meio de um imenso pasto verde. Deste tronco se construiu a estrutura da casa no decorrer de seis, sete anos, como Damé nos diz em semelhantes palavras. “A intenção nunca foi ter a casa de imediato, e sim construí-la aos poucos a partir das relações que com ela se construíam”. Era dilatado o tempo e espaço da construção da Casa para construir outras relações com aquele contexto e pessoas. Mais do que os sacos de adobe [da técnica de construção] nós é que éramos preenchidos. Preenchidos na lacuna de experiências, por vezes banais, mas que tanto nos falta: estar na companhia de amigos, cantar e fazer poesias ao redor do fogo, fazer uma tocata com instrumentos de cozinha, andar de trator em meio aos

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campos à noite [até onde pegava sinal para dar noticias], contemplar as . estrelas, ter a oportunidade de aprender a cozinhar com outras pessoas, trançar pães coloridos [de cenora, espinafre, beterraba], comer melancia resfriada na correnteza de rio, tomar banho no rio, fazer um banheiro seco, cortar lenha, - além de ajudar a construir uma casa de barro com as própria mãos. Algumas destas e tantas outras atividades, como a própria Casa, também foram pensadas no seu instante como partes integradas de um processo criativo, as quais, durante ou depois, geravam as suas cristalizações (fotografias, esculturas, vídeos, pelas musicais, teatro, performances, poesias, escritos) isso se dava “naturalmente” à medida em que dialogavam com o contexto, leituras e saberes de cada um. Saberes que inclusive transbordavam o campo da arte. Lembramos estes encontros não somente como uma “residência” ou “encontro de artistas”. O que queremos tocar é que estas vivências exemplificadas aqui com a Casa Redonda, algumas delas bastante sutis, são complexas enquanto se nutrem de um cotidiano reinventado por processos criativos com e no convívio, entre pessoas que se dispunham a entrar em consonância e dissonância com o outro e consigo. Foram estes instantes compartilhados no viver que nos deram “fôlego”, ao redimensionar e potencializar processos criativos compreendidos ético-estéticamente. Tais vivências nos lembram que qualquer coisa que desejarmos fazer deve ser ampliada de nossas “cascas”. De valorizarmos o instante do que a sua cristalização e fragmentação. Compreendemos assim, no convívio proporcionados, entre outros, com a Casa Redonda e agora nos percursos do Karú, que o “retorno à terra” mais do que uma fórmula, ou simplesmente retornar a um lugar de origem, escolher um modo de vida, é principalmente uma maneira de educar o nosso olhar diante das coisas do mundo [como lemos em nota da página anterior e no texto de Oiticica]. Encontramos por lá momentos de respiro, de abertura, para si e para o outro, com aquilo que mesmo perto mas pode estar perdidamente longe. E ao cultivarmos tais instantes é ampliado nosso entedimento sobre o que fazemos também. Como estudantes e/ou artistas, isso se processa enquanto processos criativos, de como podemos envolver outras situações, pessoas, saberes, na reinvenção de nosso cotidiano, pra tomar emprestado as linhas de [CEARTEAU, 1996]. Algo bastante similar ressoa nas palavras de Harrel Fletcher quando diz, [a partir de Beuys] que “todos têm o potencial para ser artista [...] um artista é aquele que

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consegue fazer tudo o que quiser (dentro de seus próprios limites – financeiros, legais, éticos, psicológicos).” Diz ainda que toda “prática social” em síntese, no contexto das artes, é a que escapa de um estrito “desenvolvimento pessoal, sob forma de pintura, objetos, fotos, vídeos ou algo a que se possa facilmente atribuir valor comercial através da forma”. Com estas linhas procuramos compreender a amplitude de relações geradas em projetos como a Casa Redonda, nos caminhos de uma reterritorialização ético-estética, “un orden de transformaciones no sólo formales, sino relativas al uso público de esas formas, a su relación contextual con el tejido social, a su condición de prácticas comunicativas, significantes, realizadas por sujetos de praxis y experiencia.” como bem sugere (BREA 1996, p.15) Ao voltar a pisar a terra caminhamos com passos de quem quer não apenas conhecer onde pisa ou onde chegar, mas saber pisar juntos. E pisando juntos facilitamos aproximações. Isso se dá em consistência pela convivência à longo prazo ou em situações que propõem durações de intensidade num dado espaço-tempo [com os ambientes e com pessoas]. Fazer perdurar esta duração nos faz tecer relações que cumprem mais do que nossas expectativas iniciais ou ideais, tampouco estáveis, giram com e pelas diferenças. É também um caminho de encontro às camadas duras, de um chão, e principalmente, das nossas. Camadas que acreditamos desfazer aos poucos, no abrir condições para outras, no cultivo de relações, com o nosso entorno, com o cotidiano, com o outro e assim encontrar fertilidade, seja em processos criativos irrigados no campo da arte ou em modos de vida que podem ser vivenciados criativamente. FLECTHER, Harrel. Algumas idéias sobre Arte Educação in: Arte para a educação / educação para a arte (org) Luis Camnitzer, Gabriel Pérez-Barreiro ; tradução de Gabriela Petit ... [et al.]. - Porto Alegre : Fundação Bienal do Mercosul, 2009.

Fotografia: Casa Redonda, Queima de vasos na fogueira. Encruzilhada do sul/ RS, 2011. Por Lucas Kinceler

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Fotografia: Ăšltimo dia do encontro Em Busca do Interior: Sete dias sem imagens. Encruzilhada do Sul/RS Abril de 2011.



Barro, Terra e Argila Enquanto caminhávamos à margem dos açudes de Seu Hermar, nos disse que tinha ali 3 tipos de barro, um amarelo, um negro e outro azulado e que sua vizinha, amiga e professora da universidade em Lages, Dona Sueli, havia estudado e todos eles tinham propriedades medicinais.Assim, foram nas conversas com Toninho, Zena e Leonel, Maurício e Beth e com Hermar, que a terra surge como uma forma de cura. Todos eles conheciam ou haviam utilizado o “emplasto de barro” para curar inúmeras doenças. Há alguns anos Maurício se curou de um carcinoma no pâncreas,Beth disse que muito deve ao barro que lhe aplicava, Leonel, se não me engano, teve um problema de próstata e também pelos emplastos de barro, que Zena aplicava todos os dias se viu curado. Toninho, nos disse em mais de uma ocasião que quando os médicos “desacreditaram” e deram ao seu pai alguns meses de vida, aos seus cuidados e sobretudo pelo barro, seu pai teve uma sobrevida de quase dez anos.

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Hortas e Sementeiras Já fazia alguns anos com os desdobramentos da pesquisa com as Hortas Verticais que em conversa com o Prof. Kinceler, nos colocou as seguintes palavras: “A questão agora, mais do que encontrar um modelo, uma forma mais sustentável e adaptável para as hortas, é fazer a própria terra, isso parece ser o mais importante, afinal, tudo começa da terra.” No instante em que o professor soletrou “fazer a própria terra” traduzi internamente em algo que até então nunca havia perguntado “é possível fazer a própria terra?” E para que estas palavras saíssem assim tão “naturais” pelo nosso professor certamente estavam marcadas, entre outras, pela experiência de nossas idas semanais à Revolução dos Baldinhos* a quase dois anos. Lá , enquanto andávamos por entre as leiras cobertas por palha pudemos conhecer um exemplo em potencial de como as sobras de nossa alimentação poderiam se transformar em “matéria prima” – um composto orgânico pronto para compor (novamente) a terra ao invés de tomar o caminho do lixo - do aterro. Foi também nestes encontros quando ficamos a par de que, diferente de outro tipo de escultura ou instalação em espaço público, a Horta Vertical enquanto escultura viva, necessita acima de tudo de “cuidado”, e como toda horta, um cuidado constante que dispomos com a vida que está encontrando condições para se desenvolver. Sabedoria cotidiana para os que vivem da terra, mas que para nós, que não “plantamos o próprio alimento” despertou aos poucos nos meses em que tivemos contato com esse projeto tão singular. E foi pesquisando estes registro ,nas pastas que relatam os encontros e atividades com os Baldinhos, que encontrei este texto de 2012. Um relato que escrevi naquela ocasião a partir das recentes experiências a partir do encontro, enquanto aborgagem primeira de nossas práticas naquela e em outras vizinhanças.

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Antes de se “civilizar” em “obras da cultura” (música, pintura, arquitetura) a cultura é o húmus, mais ou menos fértil, a partir do qual crescerão os costumes e as maneiras de ser. MAFFESOLI, Michel, A Transfiguração do Político. Porto Alegre, 2005. Sobre o dispositivo Hortas Verticais KINCELER, Lucas. Relatos de Experiências Colaborativas, 2012. p.94-97 Ler em: https://issuu.com/lucaskinceler/docs/relatos_de_experi__ ncias_colaborati A Horta Vertical como uma plataforma de saberes e desejos compartilhados em arte colaborativa, in: Outro Ponto de Vista: práticas Colaborativas na arte contemporânea CIRILO, José; KINCELER, José Luiz; Oliveira, Luis Sérgio [org], 2014. p.115-133. Ler em: https://issuu.com/lso_rj/ docs/livro_anpap_-_primeira_vers__o__fin

Fotografia: Confecção de Horta Verticais e máscara de ratos, utilizadas nas atividade com os Baldinhos, casa de Paulo Vilalva, Ilha, 2013


* “O projeto Revolução dos Baldinhos surgiu em outubro de 2008 por uma epidemia de ratos na localidade de Chico Mendes/Fpolis. Inúmeros casos apareceram no Posto de Saúde local: Crianças foram mordidas até mortes por doenças transmitidas. Além de fazer uma “desratização”, retirar a comida dos ratos, o lixo exposto das ruas.[..]a ideia foi oferecer um baldinho para cada família e nesse baldinho colocar os resíduos orgânicos e levá-los para uma composteira comunitária.(...) Construímos uma metodologia, um modelo de gestão comunitária. Para você iniciar na sua comunidade você precisa ter um local para instalar o pátio de compostagem, precisa ter alguém que conhece da tecnologia de compostagem, precisa implantar os PEVs, (Posto de Entrega Voluntária), periodicidade de coleta dos resíduos e principalmente, precisa constituir um grupo comunitário que vai nas famílias fazer a sensibilização, explicar como separar, onde depositar, decidir junto com as famílias os locais dos PEVs.” (texto compartilhado conosco pelo engenheiro agrônomo responsável pelo projeto, Marcos José de Abreu, Ilha, 2012.)

Estávamos retornando de mais uma visita ao projeto Revolução dos Baldinhos, quando nos indagamos sobre qual seriam nossas expectativas em relação ao processo de convívio que cerca de um ano estamos construindo, que entre encontros e desencontros, passou a ser um trajeto periódico já conhecido entre nós nas manhãs de segundafeira. Temos nosso ponto de encontro que antecede o próprio encontro pretendido. Abaixo de um viaduto, localizado no centro da cidade, esperamos por todos para sairmos num só veiculo, cruzarmos a ponte rumo à comunidade de Chico Mendes- Monte Cristo/Fpolis. Antes de estacionarmos, em frente ao salão sede da Revolução dos Baldinhos, algumas vezes antecipamos uma breve e significativa parada. O pátio onde se encontram as leiras da Revolução. “Visíveis amontoados de palha” que resguardam em seu interior, os resíduos orgânicos dos quase 200 [iniciou com 10] colaboradores desta vizinhança que, misturados à serragem e esterco, iniciam o processo de decomposição no interior da camada de palha. Não há roedores nem outros animais, nem maucheiro, que é quase nulo, devido a cobertura e temperatura interior elevada – pode chegar a 75 graus. Logo na segunda vez que estivemos no pátio pela manhã, no entanto, vimos sob fumaça, uma situação de conflito com os moradores próximos ao pátio, que haviam incinerado as leiras durante a madrugada, o que mobilizou as “mulheres da revolução”, tão logo souberam, irem até o local para ver o que havia acontecido e calcular os danos – era o todo o composto, do trabalho de meses que retornaria com a venda destes em saquinhos. Ocasião que foi para justiça e se discutiu a implementação de uma lei que previsse o usso de terrenos ociosos para práticas comunitárias como esta. [...] Nas primeiras semanas, nos deslocamos até a rua da comunidade em frente ao PEV (ponto de entrega voluntária), no dia em que sabíamos ser o dia da coleta, e, munidos com argila e câmeras de vídeo, ao ar livre na calçada, começávamos a modelar algumas sementeiras. Chegávamos pouco antes das 09h, algumas horas após, víamos as mulheres de revolução aparecerem para realizar suas atividades, houveram dias que nem nos encontrávamos. Nossa presença era uma descontinuidade para os que ali viviam ou mesmo passavam e pouco entendiam e compreendiam qual era nossa intenção. Em uma dessas ocasiões, um menino cruzava a rua se interessou pelo que estávamos fazendo e minutos depois, após demonstrarmos o que eram aquelas formas em argila e como eram feitas, se juntou conosco na modelagem. Neste mesmo dia, encontramos as “mulheres da Revolução” e passamos da rua para a sede do projeto, um salão de dimensão considerável – que conseguiram pelo projeto e que serve de posto de coleta de resíduos, onde são abrigados os baldinhos, que já não são tão pequenos e comportam cerca de 50kg cada um, além de todas as ferramentas da revolução.

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Na grande maioria dos dias chegávamos lá perto das 09h e saímos perto do 12h. Teve dias que ficávamos modelando na rua por uma meia hora e resolvíamos voltar pra casa; Àqueles que logo nos primeiros 15 minutos já estávamos reunidos em grupo conversando, tomando café, modelando vasos, filmando, escrevendo roteiros, projetos, tudo simultaneamente; outros chegávamos com sol e começava a chover forte e não tinha ninguém para abrir o salão. (depois de um tempo deixavam uma chave conosco); O fato é que em muitos destes encontros deixávamos nosso propósito [a príncípio, introduzir a linguagem do barro, à cerâmica] de lado para ajudar em outra atividade – por semanas nos concentramos a limpar o entulho detrás da sede para abrigar um forno de cerâmica; dias que levávamos máquinas fotográficas para filmar e nada era filmado; outros que tudo acontecia e não registrávamos nada; dias de calor insuportável que comprávamos picolé e ficávamos conversando; Dias que saímos pelas ruas conversar com as pessoas, acompanhar as mulheres da Revolução Leni, Carol, Cynthia nas palastras com escolas etc...Então foi a partir destes encontros, nas manhãs de segundas e quinta-feiras, junto com a Revolução dos Baldinhos que pensamos o quanto o encontro, gera em nós, uma situação de deslocamento, geográfica, mas principalmente “mental”, de articulação pragmática (quando ir? com quem? Com que carro o que levar?) e das nossas expectativas, daquilo que esperamos que aconteça. No entanto, quando somos subtraídos, ou seja algo irrompe ao planejado, temos essa situação de vazio e geralmente somos levados a pensar que fracassamos, pois geralmente supervalorizamos as expectativas em relação ao encontro. Compreender que somente durante a situação presente de encontro é possível gerar alguma expectativa, e todas as outras, que antecipam, são apenas especulações centradas segundo nossos próprios interesses é algo que nos conduz a constante resituar “de quê” e “de como” fazemos algo. Assim, a situação de encontro encontra seu potencial quando se produz uma diferença a partir das expectativas, em jogo de ambas as partes e nesta diferença, recíproca e dialógica, criam-se atalhos onde desejos se confluem e produzem seus próprios interesses e deslocamentos, impossíveis a cada parte isolada, de outro modo, estamos fadados ao encontro com o espelhamento de nós mesmos.

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Fotografia: (à esq) Leiras no antigo pátio [onde foram encineradas hoje o projeto usa o espaço de uma escola local] e salão do PEV; (acima) espaço atrás do PEV; Modelando o barro na Sala do PEV (mulheres da Revolução, Pedro Freiberger, José Luiz Kinceler, Paula Bittencourt. (abaixo) Sementeiras coletivoescultóricas na escadaria do PEV e modelagem de vasos nas mãos de Zé e Cynthia.

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A BR-282 em Santa Catarina acaba de ser pavimentada. O Governo Federal investiu R$ 202 milhões nos 133 quilômetros de pista nova. São dois trechos: o primeiro, entre Lages e Campos Novos, incluiu um segmento executado em parceria com o Governo de Santa Catarina, que investiu R$ 5 milhões entre Lages e São José do Cerrito. O outro trecho de pavimentação tem aproximadamente 30 quilômetros de extensão e vai de São Miguel do Oeste até Paraíso, na fronteira com a Argentina. A BR-282 é a rodovia de integração catarinense. É por meio dela que escoa a produção das maiores agroindústrias do país. Além disso, a produção de milho, cebola, alho e da indústria de leite também passa por ali. O turismo é outra atividade econômica beneficiada com a obra: a estrada é o acesso para as cidades do Circuito das Águas Termais e Turismo Rural, como Lages, São Joaquim, Urubici e Rancho Queimado.nota de 30/11/2010, ASSESSORIA DE IMPRENSA/DNIT, (fonte atualmente não disponível).

Desobediencia Civil, Thoureau, p.60,6132

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Uma viagem entre pinheiros

João Maria Agostinho, peregrino, que em suas pregações religiosas aos católicos da região, hoje localidade de Capela São José, fez insinuações Caboclo: somente INSTANTE 1. (RESTAURANTE). - MANHÃ anunciando que, enquanto VIAGEM não trocassem o nome do RioBrasil Caveiras que ali sucessos Ouvimos com este CD de cançõesvítimas. “típicas” passa por outro qualquer, o mesmo não deixaria de fazer frequentes Viemos dessa vez eu e meu pai. Saímos pela manhã e almoçamos num restaurante beira de estrada com comida caseira. Havia neste restaurante lugares reservados para um grupo de terceira idade que chegaram logo depois de nós bastante dispostos e com “camisetas padrão”. Pelo que li da situação, estavam indo visitar hotéis fazenda na serra. INSTANTE 2. (CASA DO MEL). ESTRADA - TARDE Continuando com a estrada, nossa próxima parada foi num pequeno estabelecimento de madeira chamado “Casa do Mel”. Como se espera, levamos um pote de mel para a Tia Rosa [guardou durante meses, por não ter hábito de consumir e por achar que era para mim] e uma erva de chimarrão para tomar nas manhãs, mesmo em novembro, são frias [hábito que adquiri com a Tati Rosa no período que ficamos em Cali, pretendia assim diminuir o café]. A menina que nos atendeu, tinha esse semblante bastante familiar quando se começa a subir a serra:entre o traço “caboblo”, “indígena” e “branco”. Falou que o vidro que empunha nas minhas mãos, era mel de uma florada de “uva japão”, mais suave e doce, perfeito para adoçar. O outro, presente na bancada de madeira envernizada, era de florada silvestre e escuro. Disse ser mais forte.Quando me explicava, um senhor entrou apressado e pediu um vidro de mel, pouco interessado pela explicação, deu às costas para a atendente. Escolhi o primeiro, da florada de uvas. Nos passos para o caixa, passei os olhos por uma bancada com cd´s. Me chamou atenção uma capa chamada“Brasil Caboclo: somente sucessos”, com a bandeira do Brasil na capa, mesmo sem muitas expectativas me levei pelo título. 36

da região centro-oeste e sudeste do Brasil e como diria Seu Mauricio, que com o seu violão antigo nas mãos me explicou, “o meu tipo de música são as que contam histórias, histórias bonitas, não qualquer coisa que hoje se canta por aí”. Karú, abril de w2015.

Fotografia:Milho crioulo vermelho, presente de Toninho. Karú, 2015


INSTANTE 3. (OS CAMPOS). VIAGEM - TARDE

“(...) A origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto.” AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p.69.

Com este disco fazendo a trilha da viagem me incentivei a puxar alguns assuntos com meu pai, que como sempre, se faz um grande parceiro de viagem, algo que se acentua agora que aposentado resolveu se dedicar à fotografia. Em nossas idas ao Karú, minha irmã, primeiramente, com sua pesquisa em sociologia política, passei a acompanhar e fazer daqui também o meu “campo”, meu pai foi o próximo, além de nos acompanhar em auxílio, o interesse pela fotografia lhe trouxe, após muitos anos morando fora, à sua terra de origem. Antes, as visitas suas e por consequente, as nossas, eram espaçadas e pontuais. Principalmente depois que meu avô faleceu em 2010, quando já morava conosco há 5 anos em Florianópolis, e 3 anos depois, com o falecimento de meu Tio Lorival, seu único irmão, era cada vez mais raro subirmos a Serra para visitar os demais parentes. Ainda sobre as fotografias de meu pai, foi por elas que pude conhecer Seu Vanderi de quem logo falaremos. É interessante ver que nessa situação, conversamos sobre coisas que no convívio do “dia comum” parece não ter espaço. A conversa toma outros rumos quando a paisagem é outra. INSTANTE 4. (CONDIÇÃO HUMANA). VIAGEM - TARDE Trazia em mãos o livro “Condição Humana” da Hannah Arendt e quando seguia leitura no banco da frente resolvi ler em voz alta algumas passagens. Meu pai, que sempre foi mais voltado para números, parecia ouvir atento e pelos gestos com o rosto parecia se identificar, comentou algo que agora não recordo. Em seguida, aproveitando as noções sobre a “vida ativa” que Arendt discorre, comentei sobre a decisão de chamar a dissertação com o título “Karú, terra-fértil, homem -forte.” Em uma dessas curvas travamos um diálogo justamente sobre o termo “caboclo”, algo recorrente na região, meu pai comentou que pelo que sabia e ouvia, era quem levava “um tipo de vida do campo”, mas que tinha esse lado pejorativo do “jeca”, “ignorante” ou “ingênuo”, por vezes, ao termo “bugre”, como se chama àqueles que vivem no mato, associado aos povos indígenas. [ver caderno: convite para cavar um buraco]

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INSTANTE 5. (DAR NOME). VIAGEM - TARDE As primeiras opções de título soavam ao tom “acadêmico”. Foi a partir de leituras, como esta de Hannah Arendt, que este título começou a ganhar ainda mais força e sentido para o que estava procurando apresentar com a pesquisa. Era mais do que um título. Uma noção que eu estava disposto a ir atrás. Meu pai quando me ouviu soletrar no movimento do carro, prontamente se manifestou com gosto. Surpreendeuse quando disse que Karú fora inicialmente o nome dado ao Rio Caveiras para depois ser o nome a ser utilizado para a localidade, que na época ainda fazia parte de Lages. INSTANTE 6. (LARES DA INFÂNCIA). VIAGEM - TARDE Seguimos a conversa. Meu pai seguiu contando detalhes de sua infância no Karú, onde viveu até os 14 anos. Naquele tempo, seguindo os passos de meus avós, se mudou de casa duas vezes. A primeira, de uma casa na localidade de Itararé, onde lembra meu avô dizer que a lavoura não “vingava” e assim, tomou a decisão de vender a casa e a terra e se mudar para outra localidade que pertencera ao meu bisavô paterno, Pedro Pereira, recém falecido em 1958.“ Nesta casa ”aí sim, era um lugar de terra fértil”, contou meu pai fazendo graça com o título, “além de maior, tinha pinheiros”. Neste novo lar, construíram a casa aproveitando os pilares de uma antiga serraria que já estava desativada. Na época coexistiam mais de 30 serrarias que depois condensaram e passaram a servir uma ou duas que se destacaram, pois tinham conseguido uma “clientela influente”. [Muitos desses pinheiros aos caminhões cortariam as recentes rodovias federais da época rumo à construção de Brasília. Um processo que muitas serrarias fecharam e outras passaram a servir as maiores, que já investiam em “maquinário pesado”, contam os antigos].

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Foi após a primeira apresentação do projeto junto com a Profa. Nara e com os demais orientandos que me foi sugerido pensar em um título mais conciso. Sem muitos “rodeios”. De fato Karú, terra-fértil, homem-forte já estava presente nos esboços desta apresentação e foi a amiga, Bruna Maresch que chamou atenção “terrafértil, homem-forte” como possível título.


INSTANTE 7. (CICLO DA MADEIRA). VIAGEM - TARDE

Meu pai lembrou com nitidez, de sua infância nos passos entre os pinheiros cortados, os troncos, disse, passavam sua altura na época. “Da raíz até o corte, contava mais de um metro e meio”. Lembrou também que da araucária era aproveitado somente o cerne, a parte mais espessa,“as que davam largas tábuas”e que toda a parte de nós, cerca da metade da madeira, era deixada ali mesmo ao solo, pois não tinha valor comercial na época.

Lembrou meu pai que os três rios, Canoas, Caveiras e Pelotas nascem próximos ao alto da serra geral e tomam rumos diferentes para depois se encontrar. O Caveiras junta-se ao Canoas perto de Abdon Baptista/SC e na altura da divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, Canoas e Pelotas formam o Rio Uruguai. Com a construção, em meados de 1957, da hidroelétrica do Salto do Caveiras, que por décadas teria abastecido a região de Lages e onde meu avô fora cortar, juntamente com outros tantos homens do Karú, os pinheiros araucárias de raiz nas áreas que seriam submersas pelas águas desviadas com a barragem. Este período coincide com o “ciclo da madeira” que ocorreu de forma intensa entre 1950 até 1960, continuando ainda nas décadas seguintes, embora em menor intensidade. Sobre a “paisagem dos pinheiros” na década de 50: milhões de pinheiros, agrupando-se em floresta, que distante denota um colorido verde-escuro, imprimem à paisagem um aspecto monótono e sombrio. É entretanto, uma riqueza: o “pinhão”, semente em que se desfaz o seu fruto, a “pinha”, constitui um petisco saboreado pelo homem e um alimento que garante criação natural de suínos em todo o planalto; o tronco fácil de ser trabalhado e serrado, dá a madeira mais empregada nas construções da região; os seus “nós” duros e cônicos, um combustível que desprende uma grande quantidade de calorias; isto sem falar da celulose e das resinas, que uma indústria bem organizada poderia aproveitar integralmente, e que só agora, após a Segunda Guerra Mundial, é que começaram a ser exploradas em pequena escala. [AUJOR, 1999. p.33]“

INSTANTE 8. (OUTRO LAR). VIAGEM - TARDE Segunda mudança. Meu avós se mudaram para Lages em 1966 para que meu pai pudesse continuar os estudos (a escola local na época só tinha as séries iniciais e meu pai andava quilômetros à pé para ir a aula, como lembra Dona Beth, sua professora na época e Seu Maurício, que substituía sua esposa nas aulas quando ela estava grávida. Sempre que visitamos, Maurício conta com entusiasmo a facilidade de meu pai em lidar com os números. Meu pai só teve um irmão, o Tio Lorival, que em 1966 já era casado.

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INSTANTE 9. (ARMÁRIO NA CHUVA) . VIAGEM . TARDE Chegamos com chuva no Vanderi. Esta é a primeira vez que o sol não nos acompanha até a Serra. Estacionamos em frente o portão e abrimos como quem é de casa. Tobi, o cachorro do Vanderi, vem nos receber querendo brincar. Vanderi estava na chuva. aproveitando a água da chuva para lavar um jogo de armário antigo de cozinha no gramado em frente ao seu galpão/marcenaria. “Antes ia lavar na mangueira, veio a chuva e aproveitei pra limpar e não gastar água “(disse enquanto olhávamos para o armário) “Tá judiado, mas depois vou desmontar, lixar e montar de novo, tu vai ver como vai ficar.” Entoava com a disposição que lhe é característica. INSTANTE 10. (HORTA DO VANDERI) . VIAGEM . TARDE Andando por sua casa vi uma “horta vertical” muito parecida como as que desenvolvíamos, comentei com Vanderi que a única diferença era que as nossas os pneus eram “virados”. Ao perguntar se tinha visto em algum lugar, Vanderi disse que pelo que lembra, não,: “a gente vai adaptando conforme a necessidade e com o que tem, esse pneu tavam ali no canto, viraram horta!”. Lembrei na hora do que em outra ocasião nos disse o amigo e músico Polo Cabrera, que isso é algo “do grande sopão do inconsciente coletivo” - é bem possível que seja por aí, pensei.


humo humus homem humanidade 41


O eucalipto É, foi uma árvore que eu mesmo plantei, você veja, plantei era bem pequenininha, uma mudinha de eucalipto. Então eu plantei ela ali e criei a vida dela, eu tive a vida inteira como se fosse uma criança né. podando, molhando, adubando e ela cresceu! tinha ... já tava acho que uns 25 anos acompanhando a vida dela totalmente desde o começo, ela e outras árvores que eu planto, essa é uma delas, é história. Então daí com a evolução, veio o asfalto aí,ela ficou muito perto do asfalto, daí o DNIT já não tava gostando muito, porque caía galho, às vezes até correndo o risco né, de cair em cima de um carro ou machucar as pessoas e a gente fez um acordo, vamos derrubar essa árvore, porque se tá correndo o risco de vida ... a vida é em primeiro lugar, as pessoas em primeiro lugar. Então nós temos que tirar essa árvore. 42


do Vanderi Daí imediatamente eu já pensei... vamos tirar, mas eu não vou perder ela ainda, vou acompanhar o resto da vida dela ainda. Então a gente tirou e eu pensei numa criatividade, digo, vou plantar ela na frente da casa virada de cabeça pra cima, daí fica uma lembrança né e eu achei interessante, porque geralmente quase todo mundo conhece as árvores na parte de cima, a parte de baixo não conhece. Então a minha ideia foi essa de mostrar para as pessoas como é a parte que tá embaixo da terra, as raízes das árvores. Meu pensamento foi esse, queria mostrar e também preservar ali, pra mim ficar acompanhando ela ainda, vendo muitos anos ainda e até to pensando em fazer alguma coisa nela, uma área em cima da raiz, alguma coisa também pra gente poder subir lá, ver ela bem de pertinho, sentir ... uma pessoa vir, olhar tudo de perto, conhecer a raíz de perto pra ver como é que é a natureza que tá escondida. Que nós temos muita coisa boa escondida na natureza que poucos sabem também existe. 43


O humo dos pântanos Desobediencia Civil,selvagem Thoureau, p.60,6132 A mata cobre o

humo virgem, e o mesmo solo é bom para os homens e para as árvores. Do mesmo modo que a saúde de um homem requer certa extensão de campinas à sua vista, sua fazenda precisa de uma grande quantidade de adubo natural. É aí que reside o alimento que o nutre e fortifica. Uma cidade é salva tanto por seus homens íntegros como pelas matas e pântanos que a cercam. Um município em que uma floresta primitiva floresce por sobre outra floresta primitiva em decomposição — uma cidade assim tem condições de produzir não apenas milho e batatas, mas também poetas e filósofos para as eras vindouras.


As nações civilizadas — Grécia, Roma, Inglaterra — eram sustentadas pelas florestas primitivas que se tinham decomposto no solo onde elas se elevaram. Elas sobrevivem enquanto o solo não se exaure. Pobre cultura humana! Pouco se pode esperar de uma nação quando o humo está esgotado e ela é compelida a usar como adubo os ossos dos ancestrais. Nela o poeta se alimenta meramente de sua própria gordura supérflua, e o filósofo míngua até os ossos.

Em: Desobediencia Civil, THOUREAU, Henry p.60,61 Ler em: http://lelivros.download/book/baixar-livro-a-desobediencia-civil-henry-thoreau-empdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/ 45 43


- [Smithsom] não se preocupe com o foco, apenas se mova... continue em frente, o tanto que puder... [1:50, trad.livre]

Trazemos aqui outro possível exemplo com a representação de um pântano, para que possamos melhor entender como cada época gera suas formas de representar o mundo [e com o mundo]. Lembramos Benjamin no seu texto bastante conhecido no meio da arte “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” já nos dizia que o fazer em arte é íntima do seu espaço-tempo histórico, do que dispõe enquanto aparato técnico e do que faz desabrochar enquanto pensamento. Assim, qualquer possível comparação deve tomar conta essa relativização, dos dispositivos à luz de um presente histórico que incide na produção e distribuição do que se entende como arte, seus possíveis gestos, objetos e relações.

ver em: https://www.youtube.com/watch?v=RYPWcdty7DE Sobre esta perfectibilidade Benjamin nos dá um exemplo de um filme de Chaplin que filmara 125 mil metros de filme sendo que somente 3 mil metros viria ser apresentado em montagem/edição final.

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Segundo exemplo de Benjamin os gregos buscavam atingir em suas esculturas a noção de eternindade, “marcar um ponto de vista“ a partir do que lhes era possível (enquanto técnica) e conhecido [enquanto circunscrição histórico-cultural etc.] Ao passo que hoje [Benjamin escreve meados do séc. XX o que ainda perdura] outras técnicas possibilitam o que provavelmente os gregos não considerariam em seu contexto, uma “perfectibilidade”, que podemos entender como uma maleabilidade. Já não se faz [ou pelo menos, não é o que nos difere] algo monolítico, e sim por montagens, redisposições, escolhas que brincam com espaço-tempo. Dessa maneira, a era da “arte montável”, se faria por essa junção de fragmentos do que daquele bloco maçiço dos “valores eternos” ainda que estes ainda possam nos interessar/ensinar de alguma maneira. Voltamos ao pântano. Abaixo temos um desenho de Van Gogh [1853-1890], de 1881, a percepção de Van Gogh com o pântano se faz nas linhas de tinta no papel. Esta é a síntese do seu encontro (também confronto) com a paisagem do pântano. Do outro lado, pouco mais de um século depois, temos uma imagem, um frame de um video, também em um pântano. Neste vídeo Robert Smithson [1938-1973] e Nancy Holt [1938-2014], com uma câmera em mãos, somos convidados a um “ponto de vista”, em primeira pessoa, atravessando este pântano como se ali estivéssemos.

No vídeo temos simultaneamente outra camada - de som - ouvimos nesta camada os comentários e “instruções” de Smithsom.Muito provavelmente ambos, Van Gogh, Smithsom e Holt ,partilharam da experiência de estar em um pântano, do caminhar no instante presente com esta paisagem e desta “trazer” uma imagem posterior- uma forma. A diferença em parte é definida pelo aparato, o meio de representação de cada época - como apontou Benjamin. Neste sentido o Prof. Kinceler pontuava em suas aulas que esta era uma diferença de articulação de um processo artístico, que ao longo do séc XX se faz cada vez mais próximo do “referente” - da coisa em si, (do real lacaniano) de como ele te afeta e de como lhe afetamos - ao mirar o pântano ele também lança de volta sua mirada (nos coloca juntos em sua circunscrição geográfica, histórica) Apesar do vídeo, do nosso ponto de vista [no youtube], estar cristalizado na representação, tal como o desenho de Van Gogh, o ato de caminhar no pântano (algo que Gogh certamente tambem experimentara) proposto por Smithsom e Nancy articula um experiência mais próxima do“corpo” do que da “íris”, da brevidade do que da eternidade.

Texto de Walter Benjamin publicado em 1955. http://www. mariosantiago.net/textos%20em%20pdf/a%20obra%20 de%20arte%20na%20era%20da%20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf acessado em Julho de 2016

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Rua Florianópolis Foi no retorno de Karú para Florianópolis em junho de 2015, guiado pela conversa que tivemos com Seu Toninho na escadaria na Festa de São Pedro, fui reler algumas das páginas do livro escrito pela Nélia Machado [2004] sobre o Cerrito. Entre as páginas descobrimos nos anexos, além de documentos históricos, um mapa da cidade. Em um dos cantos deste mapa vimos uma vizinhança no centro do Cerrito, com nomes de ruas de outras cidades. Entre estas estava a Rua Florianópolis. E desde então, alimentei uma curiosidade de conheçer esta rua. E no encontro que realizamos em Abril deste ano, ao visitarmos um dos “buracos dos bugres”, na Boa Parada, trouxemos para Florianópolis um montante de terra deste buraco, a antiga habitação indígena. como anteriormente falamos, a “casa subterrânea” para os arqueólogos e que preferimos chamar como “lares da mata”. [ver caderno convite para cavar um buraco].

Já na Ilha, algumas semanas depois, Pedro Hiago, que nos recebeu em sua casa em abril, veio nos visitar com sua namorada, Vanessa, que não conhecia Florianópolis. Enquanto visitavamos as praias e as dunas percebi o quanto elementos tão “comuns” à nossa paisagem, como o mar e a areia, podem assumir outros significados para pessoas que moram na Serra. Entre outras, foi pelas impressões de Vanessa ao ver a areia e as conchas que coletamos foi despertada a proposta: Levar para o Karú e para à Rua Florianópolis, um montante de areia e uma gravação com o som do mar. Levar um pouco da Ilha para a Florianópolis da Serra. 48


Com àquela terra que coletamos, realizamos alguns encontros na Ilha que chamamos de “em torno da fogueira”, como uma forma de dar continuidade ao encontro realizado no Karú em abril de 2016. Onde queimamos algumas peças em cerâmica com a terra colhida do “buraco”. Em testes com a terra do Karúm quando esta saiu do forno de cerâmica, refletiu a coloração marromavermelhada escura, indicando o que muitos me falaram, que era rica em minerais, sobretudo, ferro.

Em torno da fogueira, no aterro da Baía Sul e Praia da Armação em junho e julho. Ilha, 2016.

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Em 1901 a estrada que partia de Florianópolis só chegava até Taquaras; daí pra frente só se podia viajar a cavalo, gastando mais quatro dias para chegar à cidade de Lages. Mesmo depois de toda ela concluída, em 1906, ainda a viagem continuou a ser demorada porque era feita de carroça ou de carro de cavalos. Foi somente ao findar a primeira grande guerra, em 1918, que os primeiros automóveis começaram a aventurar-se em estradas que não foram feitas para eles . (AUJOR, 1999 p.105)


INSTANTE 1. (CHIMARRÃO) . R.FPOLIS . TARDE Fim de tarde saí pelas ruas do Cerrito encontrar a tal Rua Florianópolis. Era uma terça feira e pretendia ir lá no dia seguinte, antes de ir para casa de Toninho em Santo Antônio do Pinhos. A príncipio pretendia levar a areia à pé, então, “Fomos colher melhor era saber antes, onde era. Estava sem o mapa em na Antologia da mãos e pensando não ser tão difícil assim achar uma rua, Alimentação no Brasil, Luís da Câmara saí pelas ruas do centro. A caminho, em direção à Gruta, um Cascudo, que inclui no senhor andava ao lado, perguntei sobre a rua. Falou que não livro nota de Roberto sabia. Continuamos caminhando e conversando. Papo vai Avé-Lallemontem, papo vem, disse que conhecera meu tio Vavá, eram amigos. 1858, da qual seguem Passávamos na frente de uma casa e na varanda dois senhores pequenas partes: “ O tomavam chimarrão, o senhor que caminhava comigo parou símbolo da paz, da concórdia, do completo e refez a minha pergunta e teve dos senhores a resposta: entendimento - o mate! - Eu não sei, mas é pro outro lado, um pouco antes da entrada [...] É o mate a saudação da chegada, o símbolo da cidade se não me engano...toma chimarrão? da hospitalidade, o Aceitei, tomamos uma “rodada” e me despedi. INSTANTE 1. (SER OUVIDO) . R.FPOLIS . TARDE A noite passada a temperatura havia caído para perto de 0. Passei em uma loja para comprar meias,quando fui pagar o senhor do caixa e demais funcionários me olharam curiosos. O senhor tomou palavra: - Você não é daqui né? - Não. Moro em Florianópolis mas minha família por parte de pai é daqui. - Então é você! esteve na rádio ontem! não é? - Sim, estive lá! - Assim que entrou reconhecemos pela voz! O rádio fica ligado toda tarde por aqui! - disse a atendente[rimos] Já com as meias saí e fui tomar um café na padaria logo em frente. O mesmo senhor [dono da loja] apareceu por lá minutos depois. Ele sentou do outro lado. Virei para sua direção e conversamos. Ao continuarmos o assunto, iniciado na loja, disse que conhecia meu tio. A sua casa, móveis e outros tantos imobiliários foram feitos pelo Tio Vavá e completou: - Até hoje tá lá, nunca precisei trocar, tá como novo! 52

sinal de reconciliação, Tudo que em nossa civilização se compreende como amor , amizade, estima e sacríficio; tudo o que é elevado e profundo é bom impulso da alma humana, do coração, tudo está entretecido e entrelaçado com o ato de preparar o mate, servi-lo e tomá-lo em comum. A veneração do café e o perfumado fetichismo o chá nada são, nem sequer dão uma idéia da profunda significação do mate na América do Sul...” SCHROEDER, Orlando. O Chá no Ocidente e no Oriente, Editora da UFSC, Florianópolis, 1995.


Ao sair perguntei ao senhor - e ao atendente - que aquela altura já estava a par da conversa: - Uma pergunta, sabe onde fica a Rua Florianópolis? - Olha - diz o atendente da padaria - deve ficar no BelaVista! INSTANTE 1. (BELA VISTA). R.FOLIS - TARDE

Ainda sobre a Localidade de Bela Vista, “[...] quando estavam construíndo a Igreja o carro que trazia as telhas chegou perto da Igreja e atolou, o local foi cavado e surgiu um olho d´água que continua até hoje” Informações transcritos pelas professoras Marli Aparecida de Lima e Nilva Lima dos Anjos in: MACHADO, Nélia. São José do Cerrito: Sua gente sua história. 2004, p.68

“Na primeira visita de um frei, chamado Gustavo contam que ele desceu do cavalo e olhou para todos os lados e disse: “Que bela vista” e daquele momento em diante a comunidade passou a ter esse nome” (MACHADO, 2004). O sol aponta o meio-dia da quarta-feira.Volto da Mercearia do“Chispita” para almoçar na casa de minha prima. Seu marido, Agnaldo, sabendo dos planos de ir até a Rua Florianópolis, no Bela Vista, diz: “Vamos lá que eu te levo! Aceitei, assim que almoçamos saímos. No dia anterior quando comentei com algumas pessoas que iria lá, fui sobreavisado que poderia ser um lugar perigoso, para não levar câmera. Então, quando Agnaldo [companheiro de minha prima Eliete] se dispõs acompanhar, não hesitei. No entanto, ao menos naquela tarde ensolarada,a Bela Vista, ao menos a Florianópolis da Bela Vista, além da vista realmente privilegiada, nos pareceu bastante calma e tranquila. INSTANTE 1. (ESTRADA DE CHÃO) . R.FPOLIS - TARDE Chegamos na entrada da Rua, uma estrada de chão que segue um subida até o topo. Logo na esquina vimos um chalé de madeira. Havia fumaça saindo de uma chaminé, Agnaldo comentou que era a casa recém construída do Avadir, um dos radialistas da rádio “Coração da Serra”. e disse: Não quer filmar a placa da rua? Filmei e disse que ia ver se Avadir estaria em casa. Não estava. Pela fumaça, comentei com Agnaldo, “deve ter recém saído para a Rádio”. Continuamos pela rua, cercada de algumas árvores. As casas em sua maioria de madeira e sem ou com muros e pequenos cercados, algumas árvores sombreavam a estrada e os gramados de sua margem. Agnaldo avista um senhor com boné e o reconhece, “Ó seu Tadeu, fez umas reforma na casa da Dona Rosa”. Chegamos no alto do bairro, onde funciona uma creche, paramos para ver a “vista” e descemos novamente pela Florianópolis.

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Quando nós viemos embora do esquina lá, e a nossa casa que voltamos faz 6 anos... M vai tudo pra São Paulo.

...vamos plantar de tudo um pouco né...o dono não tá mais aí, daí as Mas é muito bom, nossa...Agora, já pronto pra colher, tem cenoura, que plantar de tudo um pouco, pimentão cebola, moranga... “Pai! você não esquece de trazer as arvorezinha [couve-flor] pra mim comer!

essa d


sítio pra cá, aqui no bairro mesmo só tinha a casa da mãe da comadre Márcia que é da era lá em cima...era só as duas casas que tinha pra cima aqui...ficamos dez anos fora..daí Meu marido desde que veio embora pra cá trabalha com produto orgânico, no sítio ali...a maioria o...esse ano nós vamos lidar com bastante hortaliça...

terras ficaram arrendadas pra nós pra continuar com as plantações... bem no forte do inverno fica difícil né, ja temos um bom tanto de repolho,e queremos daqui ó {aponta para sua filha, Emanuele] adora verdura quando era ainda menor dizia:



INSTANTE 1. (CONSTRUTOR) . R.FPOLIS - TARDE Enquanto descíamos paramos para conversar com um senhor em frente de sua casa. Cumprimentamos e ele responde [sua fala é calma e generosa]: - Boa tarde! - Tudo bem seu Tadeu, quase indo pro serviço? – diz Agnaldo. - Quase indo pra lida! - Ele é neto da Dona Rosa, tá fazendo um trabalho, mora em Florianópolis, daí acho essa rua com o mesmo nome. Completei a apresentação de Agnaldo: - Daí pensei... vou levar um pedacinho de Florianópolis com um pouco de areia... trazer aqui pra vocês conhecerem e eu conhecer a rua... - Aqui é um lugar bom do cara morar. - A Eliete que disse: “é la no chalé” (casa da esquina) nem sabia que existia essa rua aqui – diz Agnaldo - Pois é! o chalezinho ali do... - É, do radialista, o Avadir, - Fico bom ali!- diz Tadeu - E sempre foi rua Florianópolis aqui? - Aqui foi, desde quando foi mapeado o bairro, já é Rua Florianópolis! E a do lado é a Rua Lages que tá saindo o calçamento... - E aqui vai sair também o calçamento? - Por enquanto o projeto tá pra lá, pra rua Lages, mas nós torcemos que uma hora saia calçamento aqui também, mas qualquer uma que saia já é bom pra nós, é só atravessa e tá aqui na Florianópolis. - Aqui toda rua é nome de cidade? - É, aqui é tudo nome de cidade, Curitibanos, Rio do sul, Florianópolis, a Lages né...

- E o senhor mora aqui faz tempo - Eu faz 30 anos, quase um dos primeiros do bairro né...mas vamo chega... - A gente não quer demorar muito viemos conhecer a vizinhança, e não queremos atrapalhar... - Mas não atrapalha! [Comentou sobre sua “lida”] - O senhor trabalha com pintura ou constrói? - Eu construo, também lido com pintura, só que no momento mais parte de carpintaria, pedreiro... é muita profissão pra gente, o cara faz... eletricidade, vidro, de pintor... mas ultimamente mais com carpintaria e pedreiro né! - Tem bastante serviço por aqui - Ah! Sempre tem! - Todo mundo precisa morar né? - Ah é! Uma coisa que sempre tem, cada um que vai casar ou quer se colocar melhor já tem que construir! [Saí para pegar a areia e máquina fotográfica ao voltar lhe entrego um punhado de areia em suas mãos] - Pro senhor conhecer! É lá de perto da minha casa.. - Aham! -Diferente da daqui né? - Ah é! - Eu vi ali pra frente de uma casa... um areial, sabe da onde vem? - Acho que sei... vem do Canoas. - Será que essa daí dá pra usar na massa Seu Tadeu? - pergunta Agnaldo

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- Essa daqui... é do mar... salgada né, pra concreto daí já não dá! - Corrói se entra em contato com ferro é isso? - É, porque ela é salgada. -E sabe se tem algum processo pra tirar o sal? - Acho que deve ter né, um processo. - E esse areial que você falou vende pro Cerrito Seu Tadeu? - diz Agnaldo - Vende! Tem uns rapaz que tiram no Canoas, mas ali onde tu viu é revendedor! - E o senhor usa areia pra massa? como é que é? - Uso na massa. Pra concreto e pra assentar alvenaria. - A terra, em si, não? - Mais é areia... até que tem o “Zé Lagarto” [outro pedreiro da região, de mais idade] dizendo que gosta de trabalhar com terra, mas nós trabalhamos com areia mesmo. - É mais leve? - É mais leve! É que a terra tem que peneira, pra tirar um pouco de pedra e coisa assim... - Eu tenho um amigo, professor lá do Rio Grande que fez uma casa com aquela técnica que ensaca terra naqueles saco de, tipo de batata, faz tipo uma “minhoca” né... daí é socado e faz a casa com a parede de terra, com espessura... diz que é muito bom, protege a temperatura... - Protege, ela fica...térmica né! - Não sei se o senhor já viu aqui por perto uma assim? - Não...aqui... eu só vi na televisão, na verdade, assim, não vi. Mas é provável que fique muito bom, isola bem do calor, do frio...

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- Lá essa chamamos de Casa Redonda foi construída em volta de um tronco antigo de madeira e feito uma estrutura em madeira pra sustentar e fica muito bonito. Até colocamos uma grama, um teto verde... - Ah! vai da criatividade! - Aqui isso daria bem né? - Ah! com certeza! [...] - Vocês são em quantos? - Nós somos em sete irmãos, tem o José, é advogado, o Paulo também atua, daí o Jonas é diretor de colégio, no Rincão dos Albinos, daí a Rita, mora com a mãe perto da delegacia... - E o resto é professor né?- Agnaldo novamente pergunta. - É, essa, a Rita, ela é professora, dá aula no colégio... - Bastante professor na família! - É! Quatro são professor! E eu estudei pouco, daí fui trabalha de pedreiro... Mas hoje mesmo pedreiro depende de ter um conhecimentinho também... - Com certeza! É outro tipo de conhecimento não é? - É! E dá bastante matemática também...Mas obrigado da areia vou guardar lá dentro num saquinho... - De nada! A gente vai descer aqui conhecer um pouco a rua, a vizinhança.... - Mas entramos um pouco! - Outro dia a gente vem com mais tempo! - Mas então venha! Tomar um chimarrão com nós aqui!


INSTANTE 1. (CAIXA DE AREIA) . R.FPOLIS - TARDE Quando subimos a rua já tínhamos visto um grupo de crianças e duas mulheres em frente a uma casa. Então, logo depois de conversarmos com Seu Tadeu seguimos até lá. Uma das mães era sobrinha de Seu Tadeu e disse que seu avô, Adão, foi o primeiro morador da rua. Nos apresentamos e na primeira conversa perguntei às crianças [Emanuele, Bruno e Angelo]: - Vocês conhecem Florianópolis? já foram alguma vez pra lá? [Emanuele] Não, não fui nenhuma vez pra lá ainda... [Bruno] Meu pai mora lá! - Ah! Vocês já conhecem o mar então? - [Emanuele] Eu já! - [Mãe] A única que conhece o mar é essa pequena aí ó...teve esses dias lá pra praia de Itapema. Pegamos o saco com areia e a caixa de madeira. Disse que a areia que trazia era mais fina e branca, comentei que mesmo na Ilha tinha outras tantas diferentes, mais grossas, com conchinhas. Emanuele reconheceu a areia, era parecida com a que tinha visto. Sobre a caixa lhes disse: - Arrumei essa caixinha, ali com o Vanderi, conhecem? Artesão do Itararé? Ele tava apressado pra fazermos uma mas tinha essa gaveta de um armário que estava reformando e emprestou pra colocar a areia... me ajudam a colocar? perguntei às crianças [me olhavam sérias]. [Agnaldo] É o trabalho de aula dele...


INSTANTE 1. (CAIXA DE AREIA) . R.FPOLIS - TARDE Colocamos a caixa no chão sobre uma superfície de concreto e perguntei a eles [as crianças] se queriam ajudar colocando a areia na caixa. Bruno, Emanuele e Angelo, o menor, encheram e repetiram as maões de areia e logo a caixa estava cheia. No começo, enquanto filmava e conversava, perguntei se queriam ouvir o mar no fone, mas nesse ponto já estavam concentrados com a areia. [em 15 min. fizeram tudo que poderiam com a areia na caixa. Antes de saírmos, dividiram cada a areia entre os três] - [Bruno] Vamos desmanchar e fazer outra coisa? cuidado pra não derramar... vamos repartir assim, um pouco pra você, um pouco pra você, um pouco pra mim... Entre estes gestos perguntei se alguém queria ajudar a filmar. Bruno levantou e disse sim - lhe perguntei: - Você já usou uma câmera? - Não! - Então..vamos lá...primeiro coloca a alça...tá muito pesada? - [acenou que não] Com a câmera já nas mãos de Bruno a tenção de Bruno estava toda na tela da câmera, e aos pouco fui mostrando como funcionava: 60


- Aqui é o botão pra iniciar o vídeo, esse pra tirar a foto, esse outro você gira para focar, consegue ver a diferença? - Aham! - A câmera é como se fosse um olho... quando tem muita luz a gente fecha o olho não é? [Bruno acena que sim] então essa rodinha aqui é pra fechar o olho da câmera...

Fotografia: [página ao lado] primeira foto que tiramos com Bruno, Emanuele e Angelo. Todas as demais fotos foram tiradas por Bruno: [ao lado] vizinhos subindo a Rua Florianópolis [abaixo] Sua mãe e irmão menor; Agnaldo [e um caminhão de mudanças].

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Fotografia: [ao lado] Angelo e Agnaldo vizinhos [abaixo] Sua mãe e irmão menor. Registros de Bruno, Karú, agosto de 2016



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