Especial Um céu aqui dentro

Page 1

66

Jornal Ibiá Montenegro - Sábado e Domingo, 12 e 13 de Setembro de 2009

especial

Superação / CRER São Francisco é sinônimo de esperança para dependentes

Outro céu aqui dentro Leonardo Meira Rodrigo Nascimento redacao17@jornalibia.com.br

“Agora, só depende de mim” O almoxarifado está sob os cuidados de William Rodrigues nesta semana. “É uma função que exige bastante responsabilidade”, salienta, orgulhoso. O jovem recém ingressou no segundo mês na Fazenda, mas já foram quatro as tentativas de fuga. “Depois do primeiro mês, parei com isso. Eu tenho que criar consciência de que o tratamento me faz bem. Já vi muitas pessoas entrarem e saírem, mas é aqui que sou realmente livre”, explica. Com apenas 19 anos, William fala com propriedade sobre a escravidão gerada pelo vício. Ele tinha 14 anos quando experimentou cocaína. Depois veio a maconha e, por último, o crack. “A droga foi a expressão da minha vontade de liberdade, de mudar. De uma hora para a outra, tua vida perde o sentido e gira em função de uma coisinha que cabe na palma da tua mão”, desabafa. Com o tempo, roupas, dinheiro emprestado e até um salário inteiro foram usados para sustentar o vício. O

convite para conhecer a Fazenda provocou uma reviravolta. “Tu sempre quer dar o último ‘pega’. Chega uma hora em que tu precisa deixar uma força maior te levar”, afirma. O trampolim para as mudanças que William já percebe no dia a dia é a espiritualidade, relegada ao segundo plano desde que as drogas tomaram conta de sua vida. Com todas as forças, ele se apega à fé como alicerce para

construir um novo futuro. O jovem participava de uma banda, ia à casa espírita e também frequentava a Igreja. A droga levou tudo isso para longe, mas cada novo dia representa uma etapa vencida rumo à graduação, quando o tratamento terapêutico chega ao fim. “Não quero retornar a uma vida desregrada. Eu tenho tudo pra dar certo. Nada, nem ninguém, pode atrapalhar. Ser feliz só depende de mim”, sublinha.

Às margens da estrada que leva a Passo da Amora, a poucos quilômetros do centro de Montenegro, proliferam campos, lagos e cercas. Em meio a esse cenário, ficam as construções da Fazenda CRER. Não é à toa que a sigla do Centro de Recuperação e Reabilitação para dependentes químicos lembra devoção. A comunidade terapêutica, consagrada a São Francisco, funciona como apoio fundamental para o tratamento de 20 homens. Com idades variadas, todos têm o mesmo objetivo: transformar a vida e dar chance para a esperança. A instituição começou as atividades no ano passado. O idealizador e diretor da Fazenda, Anderson da Silva, é ex-dependente químico e fez seu primeiro tratamento há dez anos. Além de deixar clara a proteção do santo, o nome Francisco também presta outra homenagem. O dono do terreno de dois hectares em que fica a CRER tinha um filho com o mesmo nome. O jovem morreu devido às drogas. “Ao saber que as terras serviriam à recuperação de dependentes, as lágrimas escorreram pelo rosto do pai”, lembra Anderson. Três monitores e cinco estagiários são responsáveis por gerenciar as tarefas dos residentes, como são chamados os que participam do tratamento. As atividades começam cedo, às 7 horas, e vão noite adentro, até perto das 22 horas. O processo de recuperação é baseado em quatro princípios: oração, trabalho, disciplina e terapia de apoio. “Todas as etapas são um desafio. A condição fundamental para o residente é querer se recuperar. O tratamento oferece os meios, mas é preciso ter esse desejo”, lembra o coordenador administrativo da CRER, Hélio Gonçalves.

# A laborterapia - Campo: Desintoxicação por meio do trabalho e da sudorese. Também busca melhorar a psicomotricidade; - Jardim: As plantas ajudam a recuperar a sensibilidade dos residentes; - Pomar: As tarefas no setor ressaltam a importância de produzir alimentos para o próprio consumo; - Pocilga: A responsabilidade necessária para o cuidado dos animais reflete no zelo consigo mesmo; - Horta: Aqui se trabalha o interesse, a iniciativa e a paciência. “Os recuperandos germinam junto com as verduras”, explica Anderson. - Cozinha: Na lida doméstica, se exercita a responsabilidade, a higiene e o cuidado com o grupo; - Limpeza: O objetivo dessa etapa é equilibrar a vaidade e a autoestima, seja através da conservação dos espaços de uso coletivo ou do bemestar pessoal.

OS NÚMEROS Ao todo, 63 dependentes químicos já passaram pela CRER. Desse total, pouco mais de 10% conseguiu concluir todo o tratamento. 36 desistentes 20 residentes Para William, estar na CRER é a verdadeira liberdade

7 graduados


especial

Jornal Ibiá Montenegro - Sábado e Domingo, 12 e 13 de Setembro de 2009

“Eu preciso desse lugar” A vida na CRER está na etapa final para o jovem Marcos Antônio Assoni Dal Molin, 20 anos. Residente há seis meses na Fazenda, ele está prestes a sair para sua primeira visita de socialização. Desde que iniciou o tratamento, as mudanças no seu dia a dia são evidentes. “Antes, nem minha cama eu arrumava em casa”, conta. Agora, além de lençóis, Marcos também dá conta das tarefas que envolvem todos os outros setores da Fazenda. Filho de uma família numerosa, que contabiliza outros cinco irmãos, a história do jovem se confunde com a de tan-

tas outras pessoas. Foi aos 15 anos de idade que as drogas entraram em cena, mais propriamente o crack. Segundo Marcos, a escolha por um dos vícios mais violentos que existe foi uma estratégia para fugir dos fantasmas do cotidiano, como as dificuldades no relacionamento familiar e os poucos recursos financeiros. Calma e paciência são apenas duas das virtudes que Marcos aprendeu a cultivar. Sem relógio ou calendário para acompanhar o passar dos dias, ele sabe que a hora de ficar junto da família e da mãe, que tanto ama, está próxima. A tranquilidade do residente mostra que

7

Marcos vislumbra um amanhã diferente. Uma vida nova prestes a começar

o tratamento da alma segue em ritmo acelerado. “Quero retribuir todo o amor da minha mãe através da minha cura”, planeja. No início, a situação era bem diferente. Logo que chegou à Fazenda, foram muitas as discussões com os “irmãos” de comunidade. Marcos pensou até mesmo em ir embora. “A ficha caiu quando recebi a quarta visita da minha família”, explica. De lá para cá, a rotina bem organizada da CRER fez que ele alimentasse o sonho de ajudar a quem precisa. “Quero terminar meu tratamento e recuperar quem está perdido”, conta.

Vida regrada e disciplina A cada semana, uma escala ordena as funções da laborterapia, etapa fundamental do tratamento. Assim que chegam à Fazenda, os residentes são apresentados a um amplo leque de tarefas, que buscam dar sustentação ao funcionamento da comunidade. Os trabalhos são divididos em sete fases, todas voltadas ao desenvolvimento de pontos que auxiliam na libertação do vício (confira, no box, as atividades desenvolvidas). Na lista de tarefas, existe uma que desafia Marcos: ser o cozinheiro do grupo. “É muita pressão e responsabilidade”, avalia. A cozinha da Fazenda é uma espécie de coração da comunidade. Os cozinheiros são responsáveis não apenas pela preparação das refeições, mas também por manter o bom andamento das atividades. É que o se-

tor deve marcar rigorosamente todos os múltiplos horários que orquestram a vida na CRER. Uma roda de carro e uma marreta fazem as vezes de “gongo”. Quando o sinal ecoa, todos prestam atenção ao próximo compromisso. “Se não bater no horário certo, há cobrança”, explica Marcos. A advertência não fica restrita à cozinha. As falhas que coloquem em risco a manutenção do programa são punidas com o “trabalho construtivo”. “É uma tarefa que busca corrigir as faltas que possam incitar novamente o consumo de drogas”, explica o diretor Anderson. Por ter furtado um cigarro de outro companheiro, Marcos teve de escrever 400 vezes: “A recaída é um processo que leva o indivíduo ao retorno do uso abusivo de drogas”.

# O tratamento 1º ao 3º mês: integração no programa e na vida da comunidade; 4º ao 6º mês: conscientização da problemática e aprofundamento espiritual; 7º ao 9º mês: reinserção social e prevenção à recaída; * O tempo da terapia lembra uma gestação. Na CRER, as desistências representam um aborto, lista bem mais extensa que a dos graduados. “É muito mais fácil tu voltar a usar droga do que parar”, conta William.

Ajude a manter as atividades da CRER

Exemplo de Francisco serve de inspiração para quem já deu o primeiro passo

A comunidade terapêutica depende quase que exclusivamente de doações. Como ainda não possui a estrutura necessária, monitores e estagiários não recebem salário fixo: “é boa vontade e o desejo de ajudar e ser ajudado”, salienta Hélio. A Previdência Social oferece auxílio-doença para os dependentes que já tiveram carteira assinada. Fora isso, é a Providência Divina que mantém as atividades da CRER. Para saber como ajudar, ligue para (51) 3632-3774.

SONHOS INTERROMPIDOS Colorado de carteirinha, Marcos sempre sonhou com o dia em que pudesse treinar nas categorias de base do Sport Clube Internacional, de Porto Alegre. “Eu tinha tudo para estar lá”, lamenta. No futebol, a posição preferida é a meia-direita, que prepara a jogada para o lance do gol. A habilidade com a bola talvez possa ser um auxílio ao longo do tratamento, também uma espécie de preparação para o lance que deve marcar o início de uma vida longe das drogas. Um dos companheiros mais próximos em meio aos desafios do cotidiano é Giuliano Silva, de 28 anos. “O Marcos é um amigão, dá força pra gente”, afirma. Esta já é a quarta tentativa de recuperação de Giuliano. Nessa semana, os dois são responsáveis pela limpeza do pátio da comunidade. “Morávamos na mesma cidade, mas não sabíamos um do outro”, lembra Marcos. As histórias desses grandes amigos se cruzaram de modo efetivo após a chegada na Fazenda. Depois que finalizarem o tratamento, Giuliano e Marcos têm dois compromissos: ficar longe das drogas e alimentar a amizade. “E também torcer pelo Marcos no Inter”, destaca Giuliano.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.