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VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE OUTUBRO DE 2011
www.agazeta.com.br
Entrelinhas
LIVRO MOSTRA COMO PROUST E OUTROS ARTISTAS PIONEIROS ANTECIPARAM A CIÊNCIA. Página 3
Música
TENOR JON VICKERS SE DESTACA NA MONTAGEM DE OTELLO, LANÇADA EM DVD. Página 5
Letras
ENSAIO RESGATA A RICA TRADIÇÃO DA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS. Págs. 10 e 11
Poesia
UM ESTUDO SOBRE O CLÁSSICO “AS FLORES DO MAL”, DE BAUDELAIRE. Página 12
O artista da alma CURADOR DA MOSTRA DE MODIGLIANI ANALISA A OBRA E A VIDA TRÁGICA DO GÊNIO. Páginas 6, 7 e 8
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE OUTUBRO DE 2011
quem pensa
Wilson Coelho é Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris. wilsoncoelho@gmail.com
Ana Cristina Costa Siqueira é professora de Língua Portuguesa, poeta e cronista. c.siqueirahr@gmail.com
Erico de Almeida Mangaravite é servidor público e frequentador de concertos e óperas. ericoalm@gmail.com
marque na agenda prateleira Artes plásticas A “Arte Sacra” de Gilbert Chaudanne
O escritor e pintor expõe obras ligadas à iconografia cristã, como Madonas e Cristos, e também representações da Justiça, de 17 de outubro a 19 de dezembro, no Tribunal de Justiça do Espírito Santo, em Vitória. Visitação das 12h às 17h.
Música na rede Um espaço para quem ama a MPB
Desde julho deste ano, o blog Clube da MPB, coordenado por Wallace Surce, traz textos, fotos e vídeos de artistas novos e consagrados. O endereço é http://euamompb.blogspot.com/
Gil Maulin é poeta e doutorando em Educação (Ufes). www.gilmaulin71.blogspot.com
Solange Castro Medina é jornalista e poeta.
344 páginas. Companhia das Letras. R$ 41
Com ampla experiência na área de educação, a autora propõe uma revisão de conceitos no ensino e faz um exercício de futurologia do papel da escola, que terá de se adaptar à influência das redes sociais sobre os alunos.
André Andrès é colunista de vinho e gastronomia da Revista. AG. andreandres@redegazeta.com.br
ww.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com
Em sua estreia na literatura de ficção, a autora norte-americana de origem uruguaia faz um exame atual de temas consagrados na literatura moderna: o casamento, o adultério, a responsabilidade individual. Em foco, a vida de um casal de meia-idade que entra em crise ao trocar Londres por uma ilha paradisíaca.
Inteligência se Aprende Patrícia Konder Lins e Silva
Olívio Guedes é curador da exposição “Modigliani: Imagens de uma Vida”. olivioguedes@terra.com.br
Nayara Lima é escritora e graduanda em Psicologia pela Ufes.
Apego Isabel Fonseca
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208 páginas. Casa da Palavra. R$ 29,90
de outubro
Conexão Vivo traz Ch
ico Pinheiro O compositor e violonista paulista (foto), um dos destaques da nova geração da MP B, se apresenta no Teatro do Sesi, em Vitória, com participa ção de Edivan Freitas e Sérgio Santos. Informações sob re ingresso: (27) 3334-73 07.
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www.cantopoeticodasolange.blogspot.com
Francisco Aurelio Ribeiro é professor e escritor. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras. faribe@gmail.com
de outubro
Roda de leitura na Biblioteca
Na próxima quarta-feira, às 17h, a escritora Andréia Delmaschio comanda a leitura de “Manuelzão e Miguilim”, de Guimarães Rosa, na Biblioteca Pública Estadual.
Renata Bomfim é escritora, mestre e doutoranda em Letras pela Ufes. www.letraefel.com
Ângela Popular Brasileira Ângela Maria Esta coletânea dupla com gravações produzidas para a Copacabana, de 1956 a 1973, mostra o lado mais sofisticado da Sapoti, a partir de uma seleção que inclui canções de compositores como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Noel Rosa e Custódio Mesquita. 28 faixas. Microservice/Copacabana. R$ 34,90
O Suburbano Almir Guineto Lançado em 1981, o primeiro álbum solo do sambista registra a crônica musical do subúrbio com humor e crítica social. Partideiro nato, Guineto deita e rola em “Saco Cheio” (Dona Fia/Marcos Antônio). 12 faixas. Microservice/Copacabana. R$ 17,90
ARTE MOVIDA A PAIXÃO
José Roberto Santos Neves
Um artista intenso, apaixonado pela vida, frágil fisicamente, marcado por extremos, obcecado pela alma feminina, e que fez das telas um prolongamento do seu corpo, e a razão do seu viver. Muitos são os adjetivos usados para definir a genialidade de Amedeo Modigliani (1884-1920), mas a melhor forma de tentar entender o seu universo é deixar que suas obras falem por si. A partir da próxima terça, o público capixaba terá essa rara oportunidade com a abertura da exposição inédita “Modigliani – Imagens de uma Vida”, que ocupará o Salão Afonso Brás, do Palácio Anchieta, até o dia
Pensar na web
18 de dezembro. Nas páginas 6, 7 e 8, o curador da mostra e diretor da Casa Modigliani da América Latina, Olívio Guedes, interpreta o furor artístico do mestre italiano, a quem define como o “artista que transborda a lágrima do sentir”. Complementando esta edição, o crítico de vinho e gastronomia André Andrès analisa os excessos de Modigliani – incluindo o uso de álcool e as drogas –, que o acompanharam até os últimos dias. No Pensar de hoje, o leitor confere ainda resenhas literárias, crônicas, poesias, ópera, cinema, ensaios. Ideias superinteressantes para ler hoje, amanhã, depois...
é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.
jrneves@redegazeta.com.br
Confira galeria de fotos da mostra “Modigliani - Imagens de uma Vida”, trecho da ópera “Otello”, poemas de Charles Baudelaire, trailers de filmes e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br
Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, CEP: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493
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entrelinhas
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por WILSON COELHO
A EXISTÊNCIA ENTRE MATÉRIA E SONHOS
C
onforme Jonah Lehrer em seu “Proust foi um neurocientista – como a arte antecipa a ciência”, somos feitos de ciência e arte, considerando que temos a mesma constituição dos sonhos e também somos apenas matéria. Jonah Lehrer trabalhava como técnico num laboratório de neurociência e, ao mesmo tempo, lia “Em busca do tempo perdido – no caminho de Swann”, de Marcel Proust. No laboratório, a tentativa de descobrir como a mente recorda e, como um conjunto de células, pode encapsular o passado. A leitura de Proust não passava de um pouco de entretenimento ou mera curiosidade em aprender a arte da construção de frases. No que diz respeito à memória de um homem, um paradoxo. Por um lado, o fato histórico dos cientistas querendo separar os pensamentos em partes anatômicas; pelo outro, a obra de ficção dos artistas se dedicando à consciência a partir de dentro. No século XIX, a ciência declarou a alma imortal como mortal e, no lugar do homem como um anjo caído do céu, surgiu o macaco. Neste momento, a arte, na busca de novas expressões, propõe ao homem olhar-se no espelho. Apesar de achar irônico, Lehrer acredita ser verdadeiro o fato de que a única realidade que a ciência não consegue reduzir é a única realidade que podemos conhecer. Por isso, afirma que é por essa razão que necessitamos da arte. Dentre os artistas que anteciparam as descobertas sobre a neurociência, foram eleitos Walt Whitman, George Eliot, Auguste Escoffier, Marcel Proust, Paul Cézanne, Igor Stravinsky, Gertrude Stein e Virginia Woolf.
Walt Whitman
Os cientistas acreditavam que os sentimentos vinham do cérebro e que o corpo não passava de um pedaço de matéria inerte. A alma era vista como a fonte da razão, da ciência e de tudo o que fosse positivo, ao passo que o corpo era visto “como um relógio”, ou seja, nada mais que “uma máquina que sangra”. Antecipando-se aos cientistas, Whitman, em “Folhas de Relva”, tinha elaborado a fusão de corpo e alma, acreditando que nossa mente depende da carne.
George Eliot
Pseudônimo de Mary Ann Evans, que era influenciada pelo positivismo que prometia uma espécie de utopia da
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PROUST FOI UM NEUROCIENTISTA Jonah Lehrer. Tradução: Fátima Santos. Best Seller. 368 páginas. Quanto: R$ 54,90, em média
Paul Cézanne
A ciência via o olho apenas como uma câmera coletando pixels de luz e os mandando direta e passivamente para o cérebro. Cézanne inverte o ponto de vista da visão através da subjetividade e da ilusão das superfícies. Para ele, o olho não é suficiente para se enxergar, pois, para dizer de nossas impressões, se faz necessário interpretar, ou seja, enxergar é criar o que se vê. Cézanne não estava interessado em pintar retratos fiéis da paisagem e a ciência não tinha como explicar por que as pinturas pareciam menos vazias do que realmente estavam.
Igor Stravinsky
A autora britânica Virginia Woolf: a escrita seguindo o fluxo da consciência
Para Stravinsky, nada é sagrado e a natureza é ruído. Assim, a música não passa de um fragmento de som que aprendemos a ouvir. Admirador de Schoenberg, sentia a necessidade de criar uma espécie de dinamite musical; inclusive, em “A Sagração da Primavera”, passou por gênio e louco. Stravinsky intuiu o que hoje a própria ciência confirma: o desejo da mente por padrões de linguagem. Mas estes são difíceis e, conforme Lehrer, “a música somente nos excita quando obriga o córtex auditivo a se esforçar para descobrir sua ordem. Se for óbvia demais, se os padrões estiverem sempre presentes, será enfadonha.”
Gertrude Stein razão, onde os princípios científicos aperfeiçoavam a existência humana. Via em Darwin o começo de uma nova “era”, onde – conforme em suas obras – a vida “evoluía” por causa da desordem e na dependência de acontecimentos sem causa compreensível, considerando que a ciência, em virtude de seu “mensurador rígido”, se rendia a uma “unidade de medida fictícia”.
tendões e o rabo do boi, as copas do aipo, as extremidades das cebolas e os cantos irregulares das cenouras. Durante os últimos estágios do positivismo, época em que cozinhar era como uma alquimia, ignorou a ciência e inventou o pêssego Melba e fritou tudo o que quis levando em conta muito mais os prazeres da língua que as abstrações da teoria.
Auguste Escoffier
Marcel Proust
Os cientistas criavam “uma nouvelle cuisine presunçosa, baseada em suas noções bizarras e totalmente incorretas do que era saudável”. Escoffier inventou o caldo de carne de vitela, aproveitando o que os outros chefs jogavam fora, ou seja, os restos de
A obra de Proust é uma ficção que não é ficção, explorando o tempo para modificar a memória como a mentira do ontem, considerando que nossa inteligência refaz a experiência, na medida em que distorcemos os fatos para que estes se ajustem à nossa história.
Inventora da escrita automática e com textos cheios de repetições intencionais, “como uma espécie de gagueira mental”, Stein antecipou em 50 anos a pesquisa de Noam Chomsky sobre a estrutura linguística que antecede o sentido das palavras. Para ela, tudo o que dizemos está envolto por “uma organização dentro de um sistema”.
Virginia Woolf
Profundamente enraizada em suas próprias experiências com o cérebro, desenvolve a escrita seguindo o fluxo da consciência. Assim, as histórias pessoais se cruzam. É uma espécie de experiência em que o essencial de sua herança criativa é somada ao domínio de sua bagagem científica, cuja conclusão é a de que cada um de nós “é um cérebro consciente de si mesmo”.
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ideias por ANA CRISTINA COSTA SIQUEIRA
“É PROIBIDO PROIBIR?” AS DIFERENTES FACES DA CENSURA Especialista usa o cinema para refletir sobre a ambiguidade da natureza humana e abordar um fantasma que deixa a todos vulneráveis quanto à própria condição de existência
A
censura é, sem dúvida, um fantasma que nos ronda, seja nos sonhos (se nos permitem ou se nos permitimos sonhar), ou na própria consciência do existir na condição de ser diverso. Não raro nos deparamos com arbitrariedades em quaisquer ambientes que frequentamos – difícil é ter a consciência de si mesmo, assumir-se, reconhecer que a ambiguidade de uma lei é arbitrária, e, igualmente, reconhecer que é ambígua a natureza humana (esta é uma incógnita). Não há, culturalmente, a possibilidade de ignorá-lo – a natureza de cada homem ou indivíduo lhe é própria. O episódio com Sakineh, a iraniana condenada à morte por apedrejamento, mobilizou a opinião pública de vários países – porque sabido é que a lei dos homens pode punir com severidade, de acordo com cada doutrina; porém, algumas vezes, em desacordo com os princípios humanitários. Mas esses princípios sempre hão de clamar, em nós, por piedade e por justiça. A mutilação de uma mulher, subjugada a quaisquer forças repressoras, é uma mutilação do espírito, a negação de seu desejo, de seu direito de ser. Em “Kadosh, Laços Sagrados”, de Amos Gitai (Israel, 1999), Rivka, obrigada a separar-se do marido porque não podiam ter filhos, vive uma vida abnegada e solitária (a contemplação do corpo, mesmo na intimidade, é condenável pelos preceitos religiosos de sua comunidade). Numa das mais belas e raríssimas atuações cinematográficas, o erotismo se exprime com pinceladas de extrema sutileza. A esta altura, talvez o leitor se pergunte sobre o caráter deste discurso. Posso afirmar-lhe que ainda é a censura – e suas diferentes faces. Não faz muito tempo, assisti a “O último tango em Paris”. Certamente, não esperava algo ainda polêmico ou constrangedor. Mas reconheci a força poética em sua linguagem – aparentemente seca, ou crua demais, sobretudo para o contexto da época. Uma linguagem crua demais para quem ama, e, no entanto, em conformidade com as razões de quem ama. Pode-se dizer que é um filme nostálgico e arrebatador. Abordar possíveis dimensões do amor, leva-nos, em contraponto, a considerar as dimensões do ódio. E, afinal, a lei do
Cenas de “Kadosh, Laços Sagrados” e “Caro Diário”: intolerância religiosa e crítica à cultura de violência em Hollywood
silêncio serve para isso: para limitar-nos a quatro paredes; limitar-nos o acesso à rua sem horários estabelecidos, e certamente privar-nos do direito a ser diferentes. Toda essa parafernália tecnológica, ao mesmo tempo em que mascara, valida a violência moral e psicológica, e sabemos disso porque vivemos sob a tensão de um controle que desconhecemos. O grau de insanidade social, nem sempre perceptível por trás dos silêncios interiores, se exprime nas mais variadas formas de violência, e parecemos presos, sim, a um medievalismo, que se perpetua no preconceito, nas torturas morais e físicas protagonizadas em nosso cotidiano. Faz parte de nossa cultura e entretenimento. Nestes dias, pensei em rever “Assassinos por natureza”, de Oliver Stone. Toda a lógica de se premiar um filme como esse está no olhar por detrás da câmera, que expõe os apelos, a sedução, a criação de estereótipos, a ausência de limites e, principalmente, a manipulação da mídia. Em circunstâncias diferentes, me vem à lembrança um cult de Nanni Moretti (italiano), “Caro Diário”, cujo protagonista (que estava em viagem, se bem me lembro), vivido pelo próprio Nanni, usando a metalin-
guagem, faz uma crítica à cultura de filmes que exibem puramente a crueldade, e que são aclamados por isso. Provavelmente não se cogitava a defesa da censura como instrumento repressor, mas sim o direito de não se deixar manipular. A censura, qualquer que seja ela, nos deixa vulneráveis, mesmo em sua mais inocente face. Entretanto, estabelece limites para o que pode romper com a vulnerabilidade humana.
Fascínio da arte
O verdadeiro fascínio da arte é revelar que, sobre todas as coisas, suas verdadeiras lentes somos nós, espectadores – capazes de visualizar o belo em suas diferentes concepções. A linguagem artística é um legado da incompletude humana, inerente à vontade do homem: tem voz própria, passível de ser compreendida ou não, apreciada ou não – passível de ser similar à nossa linguagem, ou de ser instigante apesar de. Assumo que meu interesse pelo cinema não tem grandes ambições – um paradoxo, provavelmente, se considerarmos que uma leitura associa-se a várias outras. Amante da telona, contraditoriamente,
muitos dos melhores filmes a que assisti busquei em estantes de locadoras. Mas este é um tempo que finda: a relação entre a busca e a devolução, as relações de troca. Tornamo-nos apenas devoradores consumistas e aprendemos a descartar com facilidade o que consumimos. A escola deveria ser um celeiro de discussões sobre o que se pensa e o que se produz – a diversidade, entretanto, ainda é agorafóbica, introvertida, interpelada. Transmuta-se, de uma estrutura (ou desestrutura) familiar para uma midiática, imediatista e modeladora: uma “rede social”. Certamente, o direito de expressão nos confere o direito inalienável do olhar sobre todas as coisas. Talvez porque a linguagem, como a arte (ou a vida), implique “renascer das cinzas”. Uma escritora me disse, em tom muito pessoal, que, para escrever o que escreve, precisou esquecer a opinião dos mais próximos, senão não o escreveria. Muitos de nós sobrevivem mimetizados. A arte é uma concepção da metamorfose, e exerce sobre nós essa possibilidade de mimetismo. Nem sempre são belas as asas – e nem sempre, ao contato com a luz, se sobrevive.
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falando de música
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por ERICO DE ALMEIDA MANGARAVITE
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OTELLO Ópera de Giuseppe Verdi. Selo The Metropolitan Opera. Com Jon Vickers, Renata Scotto, Cornell MacNeil, Metropolitan Opera, James Levine. Em DVD. Quanto: R$ 70, em média. Importado. Cantado em italiano. Legendas em inglês.
PROVA DE FOGO PARA TENORES
Q
uando a ópera “Otello” estreou no Scala de Milão, em 1887, a orquestra do teatro italiano contava com um jovem e entusiasmado violoncelista, que no ano anterior iniciara sua carreira paralela como regente. Ao fim da récita, o rapaz correu para casa e acordou a mãe aos berros, com as seguintes palavras: “É uma obra-prima! Ajoelhe-se e diga ‘Viva Verdi’!”. Ninguém deveria acordar a própria mãe desse jeito. Mas o fato é que o rapaz, chamado Arturo Toscanini, anos depois abandonaria a carreira de instrumentista para se tornar um dos mais aclamados regentes de toda a história. “Otello”, por sua vez, se tornaria uma das óperas mais encenadas em todo o mundo. Uma vez encenada, seu sucesso depende fundamentalmente da atuação do protagonista. O papel é considerado dificílimo: diversos tenores de renome evitaram interpretá-lo na íntegra. Caruso, Corelli e Björling morreram sem tê-lo feito. Bergonzi tentou a proeza em um concerto nada memorável, aos 76 (!) anos de idade. Carreras limitou-se a cantar alguns trechos em recitais. Pavarotti deixou-nos um registro irregular, gravado em estúdio. Dentre os mais bem-sucedidos, temos Placido Domingo, que geralmente optava por transpor certos trechos para tons mais graves, a fim de cantá-los com maior facilidade, e o mítico Mario Del Monaco, tenor não muito adepto de sutilezas interpretativas, que cantou o papel mais de 200 vezes (consta que teria sido sepultado, por vontade expressa, trajado como Otello). O DVD recém-lançado pelo selo The Metropolitan Opera (do teatro homônimo), gravado ao vivo em uma única récita no dia 25 de setembro de 1978, conta com o canadense Jon Vickers no papel principal. Gravações assim têm suas desvantagens: mesmo as pequenas falhas não podem ser corrigidas em estúdio sem que isso soe artificial e não há como se fazer uma montagem, selecionando os melhores trechos de diferentes apresentações (prática comum em DVDs de ópera). Porém, o resultado é um retrato mais fiel daquilo que se vê no teatro.
Limitações
Na presente gravação, são nítidas as limitações do grande tenor canadense. Seu domínio do idioma italiano deixa a desejar: nota-se o sotaque carregado,
Jon Vickers e Renata Scotto na montagem de “Otello”, em 1978, agora lançada em DVD: ator tem grande performance no papel principal
Giuseppe Verdi, compositor da ópera
certos erros de pronúncia e até frases incompreensíveis. Ademais, Vickers, que não possuía grande extensão na zona mais aguda da voz, grita ou falha em algumas passagens. Mas o artista supera tais limitações ao interpretar o papel com todas as nuances dramáticas necessárias: no 1º ato, o personagem é viril e ao mesmo tempo sereno em seu dueto de amor com a esposa, Desdemona; no 2º ato, ao ser
instigado pelo vilão Iago e passar a crer que é traído pela consorte, Otello torna-se um homem à beira da ruína. Nos dois últimos atos, o protagonista é um homem em frangalhos, a pálida sombra do grande comandante militar que um dia foi. Além de bom ator, Vickers se destaca vocalmente em diversos trechos. A frase “è il fazzoletto ch’io le diedi; pegno primo d’amor” (final do 2º ato) é cantada vagarosamente, em um sussurro, como se fosse a derradeira tentativa de retardar a inevitável tragédia que se abaterá sobre o protagonista. Em “Dio mi potevi scagliar” (início do 3º ato) nota-se o lirismo, o refinamento e a habilidade técnica do tenor, que observa fielmente a difícil dinâmica musical exigida pelo compositor. Na grande cena com coro do 3º ato, Vickers canta certas frases dirigidas a Desdemona sottovoce, exatamente como consta da partitura, alternando-as com frases cantadas em volume regular dirigidas aos demais presentes em cena: o efeito é impressionante. Som e imagem bastante razoáveis para os padrões da época, as mais que
satisfatórias atuações de Cornell MacNeil como Iago e Renata Scotto como Desdemona (além de um muito jovem James Morris no pequeno papel de Lodovico), a boa presença do coro e da orquestra e a excelente regência de James Levine tornam o DVD indispensável para quem aprecia essa obra-prima. Só não acorde ninguém após assisti-lo.
Personalidade forte
Temperamental, Vickers era célebre por suas discussões com cantores, regentes e diretores. Tais entreveros deviam-se ao extremo profissionalismo do cantor, bastante exigente tanto com si mesmo quanto com os que o cercavam. Em outra produção de “Otello”, xingou em um ensaio o regente Zubin Mehta ao perceber que o regente indiano não estudara apropriadamente a partitura. Mehta alegou que estava com a agenda cheia e não pudera se dedicar integralmente à obra. Vickers foi embora do ensaio, não sem antes dizer: “Só me chame de volta quando tiver aprendido a partitura.”
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artes plásticas
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por OLÍVIO GUEDES
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Exposição que será aberta no dia 18 de outubro apresenta uma linha do tempo da curta vida deste vertiginoso artista, em 170 peças que contêm pinturas, esculturas, desenhos, fotos e papelaria
MODIGLIANI: A ARTE E A DOR DE UM GÊNIO VITÓRIA RECEBE MOSTRA INÉDITA DO PINTOR E ESCULTOR ITALIANO QUE TRANSBORDA A LÁGRIMA DO SENTIR “Arte, artista, transbordar... Arte, execução de uma ideia, utilização de um suporte natural que, com o manipular das mãos, do corpo, se cria um objeto. Artista, manipulador, mas, com influência de seu pretérito, de seu presente e seu devir. Um fluxo permanente, ininterrupto, atua como uma única lei do universo... Transformador, portanto: Transborda.” Olívio Guedes.
A
mostra: “Modigliani: Imagens de uma Vida”, que será realizada no Palácio Anchieta, a partir do dia 18 de outubro, tem a preocupação de apresentar uma linha do tempo da curta vida deste vertiginoso artista. Seus relacionamentos, família, amigos, colegas e amores estarão presentes nas 170 peças que contêm detalhes fotográficos e papelaria, além de desenhos, pinturas e esculturas do artista italiano. Modigliani era artista da alma, suas doenças da respiração lhe deram mais inspiração (palavra que em latim quer dizer fogo interior). É considerado por muitos um artista profeta, de vontades interiores expostas em suas obras, com
traçados de estados adquiridos de toda uma vida de 36 anos. Em seu legado, a família, os mestres, os colegas, os amigos e, principalmente, as paixões do artista fizeram de suas obras, recados para uma geração futura, um aprendizado de encontro com a essência humana. Apresentava, em toda sua essência, uma paixão pela vida, que será encontrada no observar das obras de ‘Modí’. A família judia de Amedeo chegou à cidade de Livorno, Itália, no século XVIII. Seu pai, Flamínio Modigliani, um homem envolvido pela materialidade de um mundo sociocapitalista, comerciante, compreendia a troca e vivia das necessidades básicas: comer, morar, viver. Já sua mãe, como toda mãe judia, não simplesmente cuidava de seu filho, mas, abrigava-o, anteparava seus movimentos, protegia o futuro artista. A família da mãe de Modigliani, Eugene Garsin, era de Marselha (França), e sua origem remonta ao filósofo Baruch Spinoza (1632-1677), pensador que buscava a compreensão do mundo e defendia que Deus e natureza eram a mesma realidade, propondo uma espécie de determinismo. Spinoza defendia a liberdade de dizer o “sim”, na busca eterna da “ideia da ideia”. Este filósofo deixou o seu gene
É considerado por muitos um artista profeta, de vontades interiores expostas em suas obras, com traçados de estados adquiridos de toda uma vida de 36 anos” —
OLÍVIO GUEDES Diretor do MuBE (Museu Brasileiro da Escultura) e curador da mostra “Modigliani: Imagens de uma Vida”
O artista em 1918: suas doenças lhe deram mais inspiração para criar
DIVULGAÇÃO
Óleo sobre tela “Grande figura nua deitada – Céline Howard”, de 1918. Esta obra produzida por Modí em Paris, aos 34 anos, representa a magnitude do artista. Suas inquietações foram preenchidas neste momento, suas descobertas estéticas se equilibraram, seu ser arrojado vive. Ao pintar esta tela, o marido enciumado, o escultor Cecil Howard, o observava!
no futuro artista Modigliani. Modigliani nasceu em 12 de julho de 1884. Enquanto pequeno contraiu pleurisia e febre tifóide. A doença o trancafiou na busca e compreensão para o mundo das ideias, o que formou em Amedeo um total desdém para o corpo físico. Suas doenças nos mostram que, quanto mais adoentado esteve seu corpo, sua alma tornava-se mais criativa. Nos anos seguintes de sua infância, passou por escolas, mas, devido às doenças, sua mãe preferiu ministrar o ensino em casa, porque para o pequeno Modí andar era doloroso. Assim, Amedeo aprendeu os estudos chamados normais em casa, e mais ainda: literaturas, poesias e ensaios. Enquanto seu pai não conseguia equilibrar as finanças, a mãe do artista criou, junto com a tia de Modigliani, uma escola de francês. O elo especial entre ele e sua mãe, um relacionamento feminino-amoroso-maternal, exibirá no futuro homem um admirador, e não um simples sedutor, mas um ser humano que através da compreensão das almas femininas viverá uma vida de verdadeira comoção e afeição para com o mundo. Na busca de preencher o vazio interior, encontrou a alma humana, e esta manifestação o fez apreender a alma
feminina, a alma criadora, o arquétipo da grande mãe que, por este encantamento e entusiasmo, a exibirá em seu passeio pela arte.
Aulas de pintura
Pela sensibilidade e relacionamento simbiótico que mantinha com sua mãe, a inclinação do jovem Modi para o mundo sensível foi percebida e motivada e, em 1898, sua mãe lhe dá o primeiro empurrão para a liberdade de sua criatividade e o leva para aulas de pintura com o professor Guglielmo Micheli e, depois, com Giovanni Fattori. Giovani foi o promotor do Movimento Macchiaioli, formado por uma geração de artistas conhecidos como tachistas, contestadores da tradição neoclássica e romântica. O grupo liderado por ele reunia-se no Café Michelangelo de Florença para reclamar do direito à realidade, à luz, resultando na percussão do Impressionismo, e Modigliani bebeu desta fonte. Em 1902, o artista tem uma recaída e ameaça de tuberculose, e mesmo debilitado viaja por Florença, Roma, Nápoles e Capri. Sua alma é fortalecida pelas fraquezas e dores em seu corpo e, para liberar a criatividade interna, ma-
tricula-se na Escola de Belas-Artes de Veneza, neste mesmo ano. Modigliani precisava de mais, sua criatividade o deixava sem fôlego; lembremos que suas doenças estavam ligadas à respiração. Sempre querendo encontrar a possibilidade de criar, em 1906, Modigliani foi para Paris, desempenhar seu dom divino no centro dos operários da arte, lugar para seres dotados de habilidades. No ano seguinte, inscreve-se na Sociedade dos Artistas Independentes e passa a viver no bairro boêmio de Paris, Montmartre, onde se reconhecia com seus vizinhos artistas de vanguarda: Picasso, Juan Gris, Van Dongem, Chaim Soutine; escritores Guillaume Apollinaire, Max Jacob, entre muitos outros. Em suas idas para sua cidade natal, Livorno, principalmente a de 1913, sentiu a diferença ou a indiferença de seus amigos e conhecidos. A cidade, seu círculo de amizades, não lhe oferecia o que desejava, o que tinha vontade. Voltou a Paris e aprofundou-se em suas atividades imanentes à sua vida: a Arte. Em 1914, conheceu Paul Guillaume, escritor que se encantou com suas pinturas e o motiva a pintar para comercializar suas obras. Com o início da Primeira Guerra Mundial na Europa,
Óleo sobre tela “Jovem sentada”, de 1905. Realizado no período que Modigliani estudava em Veneza, portanto, ainda na Itália, aos 21 anos, este trabalho nos mostra suas descobertas, uma linha já determinante, em que seu estilo cromático já se mostrava presente
Modigliani se muda para Montparnasse e mais uma vez passa por problemas de saúde. Quando se restabelece, no mês de dezembro de 1916, a vida lhe dá seu maior presente: Jeanne Hèbuterne, sua verdadeira transcendência, seu amor e a mulher que iria acompanhá-lo até sua morte.
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SAIBA + “MODIGLIANI – IMAGENS DE UMA VIDA” Período: 18 de outubro a 18 de dezembro Local: Salão Afonso Brás, no Palácio Anchieta – Centro de Vitória Horário: de terça a sexta-feira, das 9 às 17h Sábado: das 10 às 17h Domingo: das 10 às 16h Telefones para agendamento para grupos: (27) 3636-1032/3636-1048 E-mail: agendamento@palacioanchieta.es. gov.br Entrada gratuita
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE OUTUBRO DE 2011
+ artigo de capa por OLÍVIO GUEDES
ATO CRIADOR DE PURO SENTIMENTO A partir de 1917, Modigliani vive o esplendor de sua obra, provoca polêmica com a exposição do nu feminino e transforma as telas em um prolongamento do seu corpo
E
m 1917, Modí é convidado a concepções que concebem em sentirealizar sua primeira expomento, assim, apresentam momentos sição individual, na galeria de paixão, que em grego – Phatos – Berthe Weill, mas sua mostra expressa dor e vida. é fechada quase que imeSuas pedras, suas esculturas, nos pasdiatamente após a abertura. sam uma tridimensionalidade simples, poO motivo: nu feminino. Que, para Morém, estas simples pedras adquirem sendigliani, apresentava o Ser sem véu. timentos e nos mostram níveis de consNeste período se dedica a uma consciência que nos transformam, nos levam e tituição de seus trabalhos, onde sua nos elevam ao encontro da essência do ser energia se manifesta em um ato criador que já foi, que é, e que virá a ser. que produz puro sentimento, e sua Este seu encontro, dentro do obsersensibilidade habita no prolongamento vador de suas obras, nos faz interpretar a de seu corpo: suas telas. A tinta é seu nós mesmos, e com isto também o transsangue, seu suporte de tela é seu corpo, bordar, junto com o próprio artista. o todo vibra sua alma. Em 1918, com a agravação dos problemas de saúde, viaja para Nice, mas, para sua felicidade, nasce sua filha Amedeo Modigliani tem três irmãos, Jeanne. Em 1919, retorna a Paris, a entre eles o advogado Giuseppe Emacidade que representava momentos de nuele Modigliani (1872-1947). Ligado luz na alma do artista, e onde iria ao movimento socialista, em 1894 foi produzir como uma lâmpada incanum dos fundadores da Seção Partido descente no final de sua existência seus Socialista Italiano de Livorno. últimos brilhos exuberantes. Seguiu carreira política, tornando-se Nos dois anos seguintes, sua saúde já é no ano seguinte vereador de sua cidade, finda e em 24 de janeiro de 1920 falece. As esculturas do artista levam o e promoveu a criação das Câmaras do No dia seguinte, Jeanne Hèbuterne, sua observador de suas obras a refletir e a Trabalho e da propagação do Movimento amada musa, comete suicídio, grávida de interpretar seus níveis de consciência Socialista em Pisa, Siena e da Marem9 meses do segundo filho do artista. Sua arte foi reconhecida no país que o acolheu, a França, e somente após sua morte teve o título de filho da terra honrado em duas edições da Bienal de Veneza – em 1922 e 1930. OS EXCESSOS DE MODIGLIANI, POR ANDRÉ ANDRÈS
Imigração italiana
Das obras
Suas concepções nas obras objetivaram e objetivam os estados anímicos. Sua arte tem uma elaboração no caminho do espírito. Reducionista, compreende a complexidade, vive em um mundo de relações, sua rede de relacionamento, seus verdadeiros amigos e colegas de vida são pessoas de uma busca profunda pelo anseio do viver. Com isto adquiriu uma aptidão deste saber, realizando em suas obras o simples, advindo do complexo: arte do sentir. Seus desenhos, suas representações mais básicas, nos transmitem toques de utensílios que usava para se expressar – crayon, carvão, pena e uma simples caneta –, de uma maneira que traduzem seus signos e símbolos que, de forma única, nos são reconhecidos como sentimentos. Já suas cores criam um conjunto de
Um artista marcado por extremos Segundo alguns biógrafos, ao concluir suas primeiras esculturas, Amedeo Modigliani chamou alguns amigos do mundo das artes para fazer uma avaliação de seu trabalho. Aspeçasforam reprovadascomveemência. O artista conteve seu ímpeto de contestar fortemente as críticas e, depois, deu um jeito de jogar as esculturas num dos canais de
Livorno, onde morava. O episódio resume uma das facetas de Modigliani: era uma figura extremada. Atirava-se às suas paixões de forma definitiva, radical. Infelizmente, entre essas paixões estavam o álcool e as drogas, algo nada incomum para os artistas da época, mas especialmente grave para quem tinha a saúde tão abalada. O filme “Modigliani - Paixão Pela Vida” (de 2004, dirigido por Mick Davis) narra a parte final dessa existência extremada. O artista italiano, interpretado por Andy Garcia, é retratado como uma figura obcecada por sua arte, por seu grande amor, Jeanne Hébuterne, e pela competição com o espanhol Pablo Picasso. No filme, Picasso é uma figura quase pérfida, um homem de modos afetados, beirando a amoralidade. Para alguns historiadores, ao contrário do demonstrado por Mick Davis, Picasso foi fun-
ma. Também foi secretário do Partido Socialista na Toscana. Por ter assumido essas diretrizes foi preso em Piacenza e sentenciado por seis meses. Relacionava-se com Filippo Turati, com quem compartilhou a visão reformista, e representava também a ala esquerda, tornando-se próximo a Gaetano Salvemini. Emanuele Modigliani foi membro do Parlamento desde 1913 e por sua dedicação teve o reconhecimento de sua qualidade dialética. Quanto à questão política italiana vivenciada nos anos 20, os socialistas tentaram, sem sucesso, evitar a divisão. Esses movimentos consolidaram o poder do fascismo. Emanuele e sua esposa, Vera, foram exilados; ele continuou seu trabalho como antifascista e tornou-se o representante italiano na Internacional Socialista. Essas informações refletem a partir da unificação da Itália, em 1870, o que ocasionou a vinda de italianos para o Brasil, e ligando para sempre a família do virtuoso Amedeo Modigliani com a imigração italiana. A mostra “Modigliani: Imagens de uma Vida” está inserida nas celebrações do Ano da Itália no Brasil.
damental para o desenvolvimento da obra de Modigliani. Segundo esses historiadores, os desafios e as competições impostas pelo pintor espanhol eram a maneira por ele encontrada para fazer Modigliani crescer artisticamente. Marcada por uma existência turbulenta sob todos os aspectos, a vida de Modigliani foi extremada até mesmo após ter se encerrado: é terrível o episódiodosuicídiodesuaamadaJeanne,grávida de nove meses, poucas horas após a morte do artista. Uma figura genial, capaz de produzir belos quadros e frases fortes. “A vida é um dom. De poucos para muitos. Dos que sabem e possuem aos que nem sabem e nem possuem”, escreveu ele, certa vez. Em muitos momentos, Modigliani soube e possuiu. Em outros, esteve do outro lado, sem saber como viver, sem ter posse alguma. Um homem de extremos, enfim.
poesias
crônicas
EMBRIAGUEZ PEQUENO TEXTO DA ALMA NA PRIMAVERA SOLANGE CASTRO MEDINA No cristal dessa taça de vinho, estou à flor da pele... À flor da pele eu não estaria, se a flor não me revestisse, se eu não tivesse pele... O que seria da flor se não fosse flor a minha pele? Ah, sonho, não me arraste, não me deixe lassa! Brindo à vida que passa, ao suspiro que me resta e ao tempo que me enlaça... Se mal tenho pernas nesse torpor, tropeço nas brumas esbranquiçadas que me abraçam de mansinho: ora nuvens ora ninhos. Não recuo nem me detenho, se tudo que avisto nessa taça de vinho ou é o sono que me vence ou é o cansaço, só cansaço o que tenho...
INTEGRADA Sumo sumiços que assumo repasso os passos tropeçados retorno em atos que retomo refaço laços desatados adorno o beijo reatado entoo o canto que me abriga espalmo mãos entrelaçadas volteio em abraços acolhidos
por NAYARA LIMA Ao senhor que conheci no leito. Termino o café, afasto a xícara, procuro estas palavras, lembro que estamos na primavera. A nova trilogia carioca do nosso mestre Antunes Filho floresce os palcos do Rio Janeiro em peças de tirar o fôlego, os palcos de Vitória também florescem neste festival de teatro sempre tão bonito. Olho a xícara mais uma vez, lembro que ela está vazia, lembro da finitude das coisas e de nós, lembro até do amor, posto que é chama. Penso na chama, vem-me à mente Vinicius de Moraes. Penso no Vinicius, e me vem a flor caída sobre o asfalto enfeitando o século corrido dos carros sem cor. A vida se inquieta no ventre do tempo, agora me lê uma mulher que está grávida. Retorno a ver a xícara vazia em frente, a xícara que não tem ventre, nem voz. Mas a xícara é quem
toca minha boca e descobre o segredo e até dita essas palavras no sabor que experimento, meio doce e meio amargo, que é isto de existir. Fugiu-me a ideia anterior, fico prestes a encontrá-la. Encontro-a na fotografia e não devo dizer seu nome. Tenho o luxo de guardar um segredo. (Ter um segredo na fotografia é nunca revelar o que já foi revelado). Velo a tristeza da despedida, deixo em luto a memória que aos poucos se apaga. Alegria não tem razão que exclua esta: a de quando em meio à multidão, encontramo-nos, salvos. É assim. Gosto desta primavera, em especial. Tenho nela recordado com curiosa frequência este poema de Adélia Prado:
Alvará de demolição O que precisa nascer
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tem sua raiz em chão de casa velha. À sua necessidade o piso cede, estalam rachaduras nas paredes, os caixões de janela se desprendem. O que precisa nascer aparece no sonho buscando frinchas no teto, réstias de luz e ar. Sei muito bem do que este sonho fala e a quem pode dar peço coragem. Para esta estação, Adélia faz raiz em chão de casa velha. O que tem de nascer, teima na tarefa, em força inexorável. Sabemos que se há verdade, é essa. E há que se ter coragem. Nenhuma salvação é gratuita. Retorno à xícara. Caro leitor, ela é branca, em porcelana. Ela, se cair, nunca mais existirá. “Passado e futuro não existem”, me disse um dia um senhor prestes a morrer no leito. Acreditei. No clichê da frase “o presente é a única coisa que temos”, ele concluiu a conversa. Impossível duvidar. Se há outra verdade, também é essa.
PARALELEPÍPEDO por GIL MAULIN
AMPARO Sonhar é meu refúgio nos versos onde me enredo, o canto que não murmuro faz parte do meu segredo. A porta que me convida, só entro quando me abriga. Eu pouso quando sou leve, no amparo da mão amiga...
RIMA TEIMOSA Dizem que sou teimosa, porque faço rimas. Que nada! Apenas sou poeta. Teimosa é a minha poesia...
Descia de elevador até o térreo. Toma o rumo da padaria. Pão e café. O cigarro entre os dedos. O gosto da manhã e jornal. A catedral como teto da cidade presépio. Os pombos perfilados no parapeito dos prédios. Os santos em cores e vidro. A rua inundada de gente. A velha cidade amanhecera como sempre. Asfáltica. Rápida. Temporal. A velha província em várias cenas. Instantâneas rotinas. A padaria e o pão. O sonambulismo daquele homem que sempre se repetia. Olhava para o mesmo espelho do envelhecido apartamento. Mergulhava pra dentro do chuveiro. O porteiro sonolento. O café da esquina diante de uma manhã sem improviso. O ritmo do voo dos pombos o fascinava. “Os pombos são ratos alados”, afirmava. Sentava no banco da praça. Observava o jogo de dominó e dama com certa antipatia que beirava o preconceito. Não admitia um bando de
velhos cruzando pequenas peças de plástico, se fazendo gargalhadas e zombarias. Mascava a língua enquanto pensava. Mas logo se levantava daquele retrato conhecido. Continuava. Ruas. Meio-fios. Letreiros. Semáforos. “Tudo são sinais”, dizia. O relógio de mesa. A sopeira intocada da bisavó. Os retratos colados na parede. Os pelos antigos dos cachorros já mortos. Sua mente é uma roda viva cheia de sombras. Por isso, caminha. Reduz o peso de tanta gente que ali lhe habita. Perambula pelos cafés e praças daquela cidade sem nome, numa vizinhança conhecida. Ali, rotinizava sua vida. Bebia do aguardente. Só pra descarrego. Logo mais haveria de subir até o andar de seu apartamento. Tomar do banho. Deitar do almoço. Falar novas rezas. Por via das dúvidas rezava, pois de repente poderia haver alguém que ali o escutasse. Fazia prece de leigo.
Amenizava seu ateísmo. Amanhecia. Antiga praça. Antigo dominó. Antigo tudo. Encontrava os pretéritos dias. Assombrados. Aos poucos desaprendeu a assoviar. Desaprendeu a ver passarinhos. Agora, só os ratos-pombos. Na sala se projetavam velhos diálogos. Insultos. Acarinhamentos. Antigos natais. Aniversários. Finais de ano. A sala lhe falava. Na verdade, um monólogo. A mesa. O baú de ossos. As taças de cristais. O legítimo champagne nunca aberto. Ecoavam os tios, irmãos, sobrinhos e primos. Ele, o anfitrião, quem abrira a porta. Quem sorria. Comia o pão do dia. Todos ali pra lembrar o que havia. Era um contar de tempo. E num rompante primaveril, decidiu vender o apartamento. Decidiu não mais entender os pombos. Encerrou a conta da padaria. Sentou na praça. Bebeu do champagne safra 1962 entre gargalhadas e dominó.
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por FRANCISCO AURELIO RIBEIRO
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ÓLEO SOBRE TELA DE J. U. CAMPOS
UMA VIAGEM PELA LITERATURA FEITA PARA CRIANÇAS E JOVENS Nascida no século XVII, produção literária infantojuvenil logo deixou o tom didático e moralizante para emancipar-se por meio de clássicos que atravessam gerações
Quando escrevo para crianças sou compreendida, mas quando escrevo para adultos fico "difícil"? Deveria eu escrever para os adultos com as palavras e os sentimentos adequados a uma criança? Não posso falar de “igual para igual”? (Clarice Lispector)
U
ma das grandes dificuldades para quem se propõe escrever para crianças, ou trabalhar com elas, utilizando textos da literatura, é justamente essa apontada por Clarice Lispector: encontrar “palavras e sentimentos” que tornem o texto literário um diálogo de “igual para igual” entre adultos e crianças. Como conseguir isso sem reduzir os valores que devem ter uma obra literária? O desafio é ainda maior quando se sabe que, muitas vezes, os textos literários, principalmente os dirigidos ao leitor jovem ou à criança, têm servido de pretexto para lições Em 1835, Hans C. Andersen publica de moral e de didatismo, em que o seus primeiros “Contos” para crianças adulto tenta capturar a suposta inocência da criança para transmitir-lhe valores e comportamentos culturais ou ideológicos.
Literatura
A literatura, por ser um produto cultural do homem, criada por seu "imaginário", é fruto de sua necessidade de transformar em símbolos e representações suas descobertas, angústias, ansiedades, desejos e frustrações. Por isso, não se pode desvincular literatura de literatura infantojuvenil. Esta, embora tenha uma linguagem própria, e um sentimento adequado, deve estabelecer uma comunicação de troca entre o adulto-emissor e a criança ou jovem, leitor-receptor. Para quem se propõe estudar ou trabalhar com a literatura feita para crianças e jovens, é imprescindível saber que: a) A literatura infantojuvenil é um fenômeno cultural-artístico, que deve ser construído em linguagem predominantemente poética, com função estética. b) Toda arte é simbólica. A literatura
Uma das grandes dificuldades para quem se propõe escrever para crianças é encontrar “palavras e sentimentos” que tornem o texto literário um diálogo de “igual para igual” entre adultos e crianças
enquanto "arte da palavra", poderá perder seu valor de dialogar mais profunda e abrangente com maior número de receptores, não despertando a reflexão e a criação que se devem esperar de um texto artístico, se pretender privilegiar o caráter educativo ou informativo em detrimento do estético. c) Os textos literários são importantes pontos de partida para a leitura do mundo, da vida social e do mundo individual. Sob a rubrica da literatura infantojuvenil, muito se tem escrito e publicado para crianças e jovens. No entanto, a escola não tem conseguido criar o gosto pela leitura entre eles, como se desejaria. O educador deve descobrir, para poder transmitir, que a leitura é o estabelecimento de diálogos entre os homens, no tempo e no espaço, e uma forma simbólica de registrar a realidade pela palavra escrita. Ler é ver o mundo e, mais do que isso, uma forma de reescrevê-lo, segundo o mestre Paulo Freire.
Origens e História
As origens da literatura estão no estágio oral do mito e suas primeiras modalidades são as lendas, fábulas, apólogos e contos de moralidade; não havia uma literatura específica para crianças ou jovens. A literatura infantojuvenil nasce com a modernidade, com os contos folclóricos de Perrault, publicados em 1697. Esses não eram destinados especialmente às crianças, mas elas se apoderaram desse material, uma versão popular de mitos e lendas, para “defender-se dos adultos”, segundo Paul Hazard. A literatura destinada à criança e ao jovem, com fins educativos, nasceu com a invenção da escola para o público burguês, no século XVII. Comenius (1592-1670), além de escrever a primeira obra de Didática, também fez a primeira enciclopédia para crianças, o Mundo Ilustrado. Durante o século XVIII, a literatura para crianças e jovens desenvolveu-se muito, marcada pelo tom didático-moralizante que consagrou as obras de Mme. de Beaumont, Mme. De Genlis e Arnold Berquin. Levada para a Inglaterra, lá foi criada a primeira livraria e editora para crianças por John Newber-
ry, em 1750. Sua preparação das Nursery Rhymes (Cantigas de Ninar), publicadas depois de sua morte, em 1791, com o título de Mother Goose Melody, é uma evidente influência dos Contes de Ma Mère l’Oie, de Perrault. No entanto, as crianças se apropriaram de autores e obras que não lhes estavam destinadas originalmente. Isso aconteceu com Miguel de Cervantes e seu clássico “El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha”, publicado em 1605/1615; Daniel Defoe e seu “Robinson Crusoe”, de 1719; este, segundo Rousseau, era o único livro recomendado para seu Emílio, e se tornou um dos livros mais lidos e reescritos no mundo, como o “Robinson alemão”, de Campe, em 1779 e o “Robinson suíço”, de J. R. Wyss, em 1813; Jonathan Swift, com “As Viagens de Gulliver”, em 1726; August G. Büerger com “As Aventuras do Barão de Münchhausen”, em 1787, o Quixote alemão. O século XIX é o século de ouro do gênero, com a publicação dos clássicos universais lidos até hoje. Esses livros nascem como reação à literatura com finalidade exclusivamente educativa dos séculos anteriores e priorizam a fantasia, o fantástico, a imaginação. Em 1812, os irmãos Grimm publicam os “Contos da infância e do lugar”, frutos de anos de pesquisa folclórica e linguística; em 1835, Hans C. Andersen publica seus primeiros “Contos” para crianças, que iriam granjear-lhe o reconhecimento do mundo todo. Nos Estados Unidos, James F. Cooper escreve uma extensa obra novelística de aventuras, tendo “O último dos moicanos” como seu clássico por excelência; Louisa May Alcott inaugura com sua obra-mestra, “Mulherzinhas”, em 1868, a literatura de e para mulheres, a partir de suas próprias experiências; Mark Twain, pseudônimo de Samuel L. Clemens, é a figura mais espetacular das letras norte-americanas de seu tempo, e seus clássicos “As Aventuras de Tom Sawyer”, 1876, e “Huckleberry Finn”, 1884, influenciam quase toda a literatura infantojuvenil posterior, inclusive a brasileira, assim como Jack London e sua vida cheia de aventuras refletida em seus livros, sobretudo a partir de “O chamado da selva”, em 1903, na França. Na segunda metade do século XIX, teve lugar um notável flo-
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No alto, à esquerda, Lewis Carroll, autor de “Alice no país das maravilhas”, e Alice Liddell, que o inspirou a escrever o clássico infantil. No centro, Monteiro Lobato, o criador da moderna literatura infantojuvenil brasileira, na década de 1920. Acima, Ana Maria Machado, que dá continuidade ao projeto estético e ideológico do escritor
rescimento de escritores e de obras para crianças e jovens. Há que se destacar Jules Hetzel com a fundação, em 1864, juntamente com Jean Macé, de “Le Magasin d’Education e de Récréation”, jornal quinzenal que durou mais de 50 anos, educando e recreando jovens de várias gerações, e Jules Verne, iniciador da ficção científica, que, a partir de “Cinco semanas num balão”, publicado em 1862, inicia a publicação de 160 novelas de aventuras imaginárias que antecipam o mundo moderno.
Lewis Carrol
Na Inglaterra, Charles Dickens publica seu “Oliver Twist” e “David Copperfield”, melodramas que denunciam a miséria social provocada pela industrialização; Lewis Carrol, pseudônimo de Charles L. Dogson, torna-se um dos mais famosos autores para crianças com seu “Alice no país das maravilhas”, em 1864, e “Alice através do espelho”, 1871. Robert L. Stevenson apaixona os jovens com “A ilha do tesouro”, em 1882. James Barrie cria o Peter Pan e Wendy, em 1904, que transpassam os limites da língua e do país. Rudyard
A maior seguidora de Monteiro Lobato, no Espírito Santo, foi Haydée Nicolussi (1905-1970) que, infelizmente, não teve seus contos infantojuvenis publicados
Kipling transcende o esquema tradicional das fábulas com seu “Livro da selva”, em 1894. Na Itália, Carlo Collodi, pseudônimo de Carlo Lorenzini, escreve seu “Pinóquio”, em 1881-3; Edmundo de Amicis escreve “Coração, o diário de uma criança”, em 1886; Emilio Salgari é o verdadeiro mestre das aventuras com “Sandokan” e tantos outros. Na Rússia, Alexander Pushkin recorre às fontes populares para escrever “O czar Saltán”, dentre outros. Na Suécia, Selma Lagerlöff inicia-se nas letras com “A lenda de Gösta Berling”, em 1891, mas se consagra com “A viagem maravilhosa de Nills Holgersen”, em 1907, que lhe dá o prêmio Nobel de Literatura, em 1909. No século XX, a Literatura Infantil e Juvenil é produzida em muitos outros países que não os tradicionais. Tanto as fábulas do folclore africano, recolhidas por Leo Fobenius (1873-1938) e publicadas com o nome de “Decameron negro” quanto a história de “Bambi”, do austríaco Felix Salten (1860-1945), tornam-se mundialmente conhecidas. No Brasil, Monteiro Lobato cria e difunde o gênero, a partir de “A me-
nina do narizinho arrebitado”, 1921, obra revolucionária e que iria iniciar a moderna literatura infantojuvenil brasileira, rompendo com uma tradição moralizante, educativo-pedagógica da literatura de língua portuguesa escrita para o público leitor jovem, que era mais um "pastiche" da literatura reescrita em Portugal e vinda de outros países europeus. No entanto, durante cerca de 50 anos, Lobato não teve sucessor à altura. Apenas, na década de 1970, surgem, na literatura infantojuvenil brasileira, os nomes de Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Ziraldo e, principalmente, Lygia Bojunga Nunes, que retomam o projeto estético e ideológico de Monteiro Lobato, emancipando a literatura para crianças e jovens e não a utilizando como instrumento de subjugação e de alienação. A maior seguidora de Monteiro Lobato, no Espírito Santo, foi Haydée Nicolussi (1905-1970) que, infelizmente, não teve seus contos infantojuvenis publicados por terem sido queimados pela polícia política de Getúlio Vargas, em 1935, quando já estavam ilustrados e prontos para publicação com recomendação do próprio Lobato.
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE OUTUBRO DE 2011
estudos literários por RENATA BOMFIM
O HERÓI TRÁGICO EM “AS FLORES DO MAL” Publicada há quase 150 anos, obra de Charles Baudelaire trouxe para o primeiro plano da escrita poética as classes marginalizadas socialmente, como mendigos, trapeiros e criminosos
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esmo depois de cerca de 150 anos de sua publicação, a obra “As flores do mal”, do poeta francês Charles Baudelaire (1821- 1867), continua instigando leitores e estudiosos e suscitando reflexões sobre a modernidade e sobre o sujeito moderno. O caráter absurdo e suicida de protesto sobre a qual se apoia a poética baudelaireana, assim como a loucura revolucionária do poeta, são elementos reveladores da passagem do herói clássico, cujo heroísmo pode ser admirado por qualquer um, para o herói moderno “problemático, ridicules et sublimes a uma só vez, e sublime na medida exata de sua ridicularidade, de sua precocidade revolucionária que os condena ao fracasso”, como descreveu o crítico Dolf Oehler. Baudelaire dedicou suas “flores doentias” ao amigo Theóphile Gautier, a quem considerava “mestre”, “amigo” e “mágico perfeito em Letras francesa”. O poema de abertura do livro denuncia o seu destinatário, ele intitula-se “Ao leitor”. Nesse poema Baudelaire apresenta o teor da obra, advertindo: “Vamos errar por sentinas cruéis”, e finaliza irmanando-se com aquele que escolher enveredar com ele por estes sombrios caminhos: “Ó falso,/ Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”. Mas, se a violência a qual é exposto o leitor no poema de abertura d’”As flores do mal”, objetiva provocar resistência, de forma que, atingido pelo texto, este busque retrucar e refletir por si próprio e não mendigar de mãos vazias o sentido ao autor, no poema de fechamento do livro, o tom é diferente. No poema “Epígrafe para um livro condenado”, o eu poético baudelaireano parece apaziguado na sua relação com o leitor que é descrito como “pacífico e bucólico,/ Homem de bem e crente no destino”. O livro é descrito no poema como “saturnino”, “orgíaco e melancólico”, e só será amado por aquele que não busca o “paraíso” e que acreditar que deve “descer aos abismos”. A tragédia tem alcançado variadas concepções desde o seu nascimento, o que fez com que surgissem novas estruturas trágicas, ou seja, novas possibilidades de leitura e abordagem. O
DIVULGAÇÃO
vocábulo “tragédia” vem do grego tragoidía, e deriva das palavras tragos que significa “bode” e oide, que significa “canto”. Ela foi assim denominada porque no início das festas de Dionísio se sacrificava ao deus, um bode considerado sagrado. O vínculo entre a poética de Baudelaire e a tragédia parece apontar, como afirmou o pensador Raymond Williams, que: “o sofrimento é uma parte vital e energizante da ordem natural”, e que no centro desta ação “ritual”, afinal, está o herói trágico, cujo conflito interno é toda ação trágica, e cuja crise e destruição podem ser vistas como o dilaceramento e o sacrifício pela vida. Dessa forma, o mito é reeditado e alcança um sentido moderno, e a figura ritual se transforma na figura do herói moderno: aquele herói que na tragédia liberal é também vítima, como se pode observar no fragmento do poema “O heautontimorumenos”: “Eu sou a chaga e o punhal!/ Eu sou o rosto e a bofetada!/ A roda e a carne macerada,/ Carrasco e Vítima afinal.
Horror e catástrofe Poeta francês usou a retórica satânica para desmascarar a comédia burguesa
Um poema de Baudelaire OS CEGOS Contemplai-os, minha alma, eis que são pavorosos! São como os manequins, ridículos noctâmbulos, E de sinistro horror como os sonâmbulos; E quem sabe aonde vão seus globos tenebrosos?
Inclinar vagamente a fronte sucumbida.
Seus olhos, donde a chama eternal é partida, Como se olhassem longe estão no firmamento; E não se os vê jamais, por sobre o pavimento,
Que é tão atroz que chega a perder-se no orgasmo, Vê que eu erro também e mais do que eles pasmo, Digo: "O que pelos céus eles procuram tanto?"
Atravessam assim a infinda escuridade, Esta irmã do silêncio imutável, cidade! Enquanto em torno a nós é um lamento o teu canto
Para Walter Benjamin, o eu poético baudelaireano se aproxima da imagem do herói, pois, assim como Sísifo e Caim, ele é marcado, destinado ao horror e à catástrofe, e é também um blasfemo: “Zombo de tudo, de Deus/ De Satanáz, da Santa Ceia”. Baudelaire é um herói irônico e seus personagens são constituídos da subjetividade literária e política moderna. Na ânsia de desmascarar a comédia burguesa, por meio da retórica satânica, Baudelaire se tornou vítima de seu próprio estratagema e depois de 1857, passou a ser considerado um autor burguês escandaloso e pornógrafo. O critico Octávio Paz afirmou que “a uma sociedade cindida corresponde uma poesia em rebelião”. Dessa forma, Charles Baudelaire, para quem a poesia deveria ter como objetivo “apenas ela mesma”, foi epígono de uma sociedade nascente e de valores laicizados. Ele conseguiu captar o phatos de seu tempo a partir da observação crítica e maliciosa da vida “heróica” da burguesia, trazendo para o primeiro plano da escrita poética, os mendigos, os trapeiros e os criminosos, classes desprivilegiadas socialmente, pelas quais nutria muita simpatia.