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DR. TIRA TIRA”, O DONO DO TROVÃO: NUNES PEREIRA recortes & memória LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ
from MARANHAY, Revista Lazeirenta 65 - AGOSTO 2021 - EDIÇÃO ESPECIAL: SEMANA LUDOVICENSE DE LITERATURA
“DR. TIRA-TIRA”, O DONO DO TROVÃO: NUNES PEREIRA - recortes & memória
Eu sou um grande pornógrafo! Prefiro ser antropófago do que antropólogo Manuel Nunes Pereira56
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LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ Academia Ludovicense de Letras Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão Professor de Educação Física. Mestre em Ciência da Informação
Aos poucos, vai-se desvendando a vida de Nunes Pereira, envolta em mistérios... ou sobras, conforme refere Zemaria Pinto57, um seu biógrafo. Quase todas as fontes o dão como nascido no Maranhão, sem, contudo identificar o local, nem a data, nem a filiação58: Manoel Nunes Pereira, também conhecido como Nunes Pereira (1892 — 1985), nascido no Estado do Maranhão, foi um antropólogo e ictiólogo que viveu grande parte de sua vida em Manaus, e, posteriormente, na cidade do Rio de Janeiro, tendo viajado seguidamente ao interior da Amazônia. Foi, ao lado de escritores como José Chevalier, Péricles de Moraes e Benjamin Lima, um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras59. Foi casado com a Sra. Maria Nunes Pereira, de quem enviuvou quando estava com mais de 80 anos de idade, tendo o casal deixado numerosa prole, entre filhos, netos e bisnetos. O seu falecimento a 26 de fevereiro de 1985 teve como causa câncer intestinal.
56 Biblioteca Nacional/ Coleção Nunes Pereira (BN/CNP). O Pasquim, n° 756, 22 dez. 1983, p.2. 57 Zemaria Pinto – Nascido em Santarém, no Pará, em 1957, desde tenra idade vive em Manaus, capital do Amazonas. Publicou os seguintes livros de poemas: Corpoenigma (1994), Fragmentos de Silêncio (1996) e Música Para Surdos (2001). Professor de
Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, tem, em parceria com Marcos-Frederico Krüger, dois livros de ensaios sobre obras indicadas para o vestibular da Universidade Federal do Amazonas (2000 e 2001). Escreve também para o teatro, tendo sido primeiro colocado no Concurso de Textos Teatrais Inéditos, promovido pela Secretaria de Cultura do Amazonas, em 2002, com a peça Nós, Medeia, a ser publicada em 2003, pela Editora Valer. Encenou a comédia Papai Cumpriu Sua Missão, em 2000/2001, e no momento ensaia Diante da Justiça, baseado em Kafka. http://www.jornaldepoesia.jor.br/zpinto.html#bio 58 https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Nunes_Pereira 59 https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Nunes_Pereira
Gerlaine Martini na revisão de pioneiros no campo religioso afro-brasileiro, com enfoque em seu nível de participação nos rituais e em como isso interferiu em seus estudos e obra, refere-se a Nunes Pereira como um dos pioneiros nesse campo de estudo60 [...] em relação aos primeiros escritos de religiosos, o autor maranhense Manoel Nunes Pereira (1892-1985) redigiu, ainda em 1942, A Casa das Minas. [...] esta obra: (...) constitui o primeiro testemunho de observador que pertença à cultura do objeto de estudo.
Darlisangela Maria Monteiro (2009)61 em sua Dissertação serve-se da obra de Nunes Pereira através da análise do livro “Estórias e experiências de Baíra - o grande burlão”, lançado em 1944, e seu aproveitamento no ensino de Ciências naturais. Tomam-se, como objeto, os saberes tradicionais presentes nas narrativas da obra acima referida. Nela, esse antropólogo organizou uma série de narrativas dos índios Cauaiua-Parintintim, do rio Madeira, cujo protagonista é Baíra, um misto de herói e anti-herói ou, em linguagem científica mitológica, de herói civilizador e burlão. Ao escrever sobre o autor, traça a seguinte biobibliografia: . Conhecendo o autor Manoel Nunes Pereira (São Luís do Maranhão, 1893 ou 1895 – Rio de Janeiro, 1985) foi um antropólogo de reconhecimento internacional. Cursou Veterinária (1915) na Escola de Zootecnia-RJ, se graduou em veterinária (1917) na Universidade Livre de Manaus. Chefiou a Seção da Agricultura e Industria Pastoril do Amazonas e do Rio Grande do Norte, a prática lhe serviu de base para escrever sobre A Industria Pastoril do Amazonas (1922), A Industria Pastoril no Rio Grande do Norte (1928), A Pesca no Rio Grande do Norte (1934) A Pesca no Rio Purus (1941), O Peixe-Boi da Amazônia (1944). Estudou biologia geral, botânica e geologia. Foi membro da Academia Maranhense de Letras (1976), como poeta publica seu primeiro livro O Tempo (1913). Dentre as suas obras mais relevante estão: A casa das Minas (1947). Sua participação é evidenciada em pesquisas de campo na região amazônica, cujo propósito era coletar dados que permitissem registrar com precisão a cultura indígena62 . A obra que estudamos neste trabalho foi publicada pela primeira vez em 1940, em francês sob o título de Le Sage Bahira Et Son Fils (1979). Depois, em 1980, foi inserida no Moronguêtá – um decameron indígena, sua obra maior. Dentre as reedições a mais recente é esta: Experiências e estórias de Baíra – o grande Burlão (2007), organizada pela Editora Valer, nessa versão, foi publicada com algumas alterações irrelevantes, que não chegaram a 2 Costa, (1997) em sua tese fala que Nunes Pereira em uma de suas viagens pelos rios da Amazônia sofreu um naufrágio e nesse perdeu-se todos os seus documentos, muitos desses são foram recuperados devido a sua vida de andarilho. E quanto ao título de antropólogo o que se sabe é que por ter vasta produção sobre a cultura indígena, Nunes foi homenageado pela imprensa e prestigiado por antropólogos como Claude Lévi-Strauss, Emílio Delboy pelos excelentes trabalhos etnológicos e etnográficos sobre os povos indígenas Maués, Parintintim, entre outros. 17 comprometer o texto original. A linguagem foi adequada para facilitar a compreensão pelo leitor e obedecer às normas gramaticais vigentes.
60 MARTINI, Gerlaine. APONTAMENTOS SOBRE O CAMPO DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E SEUS AUTORES
REVISITADOS. In REVISTA CALUNDU http://calundu.org/revista GIRA EPISTEMOLÓGICA Volume 1, Número 1, Jan-Jun 2017. Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília, integrante do Calundu (Grupo de Estudo sobre Religiões Afro-
Brasileiras). 61 MONTEIRO. Darlisângela M. Educação e Ciência: variante Baíra. 110 f. 2009. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de Ciências). Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, 2009. http://www.pos.uea.edu.br/data/area/titulado/download/101.pdf 62 Costa, (1997) em sua tese fala que Nunes Pereira em uma de suas viagens pelos rios da Amazônia sofreu um naufrágio e nesse perdeu-se todos os seus documentos, muitos desses são foram recuperados devido a sua vida de andarilho. E quanto ao título de antropólogo o que se sabe é que por ter vasta produção sobre a cultura indígena, Nunes foi homenageado pela imprensa e prestigiado por antropólogos como Claude Lévi-Strauss, Emílio Delboy pelos excelentes trabalhos etnológicos e etnográficos sobre os povos indígenas Maués, Parintintim, entre outros. COSTA, Selda Vale da. Labirintos do saber: Nunes Pereira e as culturas
Amazônicas: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP. 1997. (Tese de Doutorado em Ciências Sociais).
Dos autores pesquisados, e das notas em jornais, é a única que o dá como nascido em São Luís, e falecido no Rio de Janeiro: Manoel Nunes Pereira (São Luís do Maranhão, 1893 ou 1895 – Rio de Janeiro, 1985), porém sem precisar a data certa – é tido como nascido em 1892, por algumas biografias, como visto acima. Costa (1997) 63, em sua tese defendida junto à PUC-SP nos traz os seguintes dados: Esta pesquisa delineia o percurso intelectual do veterinário, etnólogo e naturalista Manuel NUNES PEREIRA, nascido em São Luís do Maranhão a 26 de junho de 1891 e falecido no Rio de Janeiro a 26 de fevereiro de 1985, ressaltando sua contribuição aos estudos das culturas amazônicas e à formação de um pensamento regional.
Telma de Verçosa Roessing e Elenise Faria Scherer (2016)64, em “A Amazônia na narrativa mítica na obra Moronguetá – Um Decameron indígena”, de Manuel Nunes Pereira afirmam que Manuel Nunes Pereira era maranhense, nasceu em São Luís do Maranhão em 26 de junho de 1893 e faleceu no Rio de Janeiro em 26 de fevereiro de 1985. Veio cedo para o Amazonas e foi um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras.
Durante mais de quarenta anos, desde o litoral atlântico às encostas guianenses, empreendemos numerosas e acidentadas viagens através da Amazônia Brasileira e países limítrofes, lidando quotidianamente com os habitantes das suas cidades, vilarejos, seringais, fazendas, centros de pesca e de extração de madeiras e minérios. (PEREIRA, 1967, v.1, p. 165).
Em jornal eletrônico editado em Santarém, O EstadoNet66, edição de 26 de agosto de 2019, em resenha do livro de Nunes Pereira, consta: Nunes Pereira nasceu em São Luís do Maranhão, a 26 de junho de 1893. Faleceu em 1985. Antropólogo e ictiólogo, viveu parte de sua vida em Manaus. Estudou em Niterói, Belém e Rio de Janeiro, mas se notabilizou pela curiosidade com que se lançou “rio-abaixo, rio-acima”, Amazônia a fora, no posto de veterinário a serviço do Ministério da Agricultura, enchendo os olhos de paisagens e os ouvidos de mitos, lendas e histórias, atitude que vem consignada numa das epígrafes do livro:“Relato o que vi e ouvi e aquilo que alguém deu de si” (Antônio Vieira).
Quanto à sua filiação, sabe-se apenas o nome de sua mãe, Felicidade Nunes Pereira, costureira; seu pai era sapateiro, conforme “O Dono do Trovão - Manoel Nunes Pereira (1893-1985)” - título de artigo escrito por Mariza Corrêa67, que o entrevistou em 1984: [...] relembrou o seu Maranhão, mãe Andresa Maria68 (a testemunha contra o sincretismo: “Santo negro é Santo negro” ) da casa das minas onde sua mãe, Felicidade Nunes Pereira, teria chegado a ser nochê, se não fosse levada pela gripe espanhola de 1918.
63 COSTA, Selda Vale da. Labirintos do saber: Nunes Pereira e as culturas amazônicas. 1997. 437 f. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22063 64 ROESSING, Telma de Verçosa; SCHERER, Elenise Faria. A Amazônia na narrativa mítica na obra Moronguetá – Um Decameron indígena, de Manuel Nunes Pereira. IN RELEM – Revista Eletrônica Mutações, janeiro –junho, 2016 65 PEREIRA, Manuel Nunes. Moronguetá: Um Decameron indígena. vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. (Coleção Retratos do Brasil nº 50). 66 https://www.oestadonet.com.br/noticia/1737/um-decameron-indigena/ 67 CORRÊA, Mariza. O Dono do Trovão Manoel Nunes Pereira (1893-1985). (in Memorian). 374-Texto do artigo-15576-1-1020180608.pdf 68 Andresa Maria de Sousa Ramos, conhecida como Mãe Andresa (Caxias, Maranhão, 1854 — 1954), foi uma grande sacerdotisa do Tambor de Mina Jeje, culto aos voduns do Maranhão. Considerada a última princesa de linhagem direta Fon, seus nomes africanos dados pelos voduns eram Ronçoiama e Rotopameraçuleme (nome dado após o barco, ou cerimônia de iniciação). Mãe Andresa coordenou a Casa das Minas entre 1914 e 1954. Faleceu aos 100 anos de idade. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A3e_Andresa
Segundo Augras (1983) 69 Nunes Pereira é mestiço e sua mãe era sacerdotisa em templo vodu de São Luís do Maranhão. Ele é o primeiro a dar testemunho de uma verdade interior, que pertence ao seu patrimônio pessoal: [...] Consagrado desde pequeno a Badé, da família de Keviosso, o equivalente Gege de Xangô –é-lhe difícil levar a sério as interpretações euro-americanas. Nega que haja sincretismo com os santos católicos. De modo semelhante a Manuel Querino, Nunes Pereira é alguém “de dentro”, cujas práticas rituais sempre foram parte do cotidiano, tentando legitimar sua religião de origem para “fora”, ao descrevê-la. Sobre os primeiros autores das religiões afrobrasileiras, alguns já mencionados até aqui, Julio Braga (op. cit.: 51) faz um arremate: “Os principais estudiosos do candomblé e da cultura negro-africana de maneira geral foram ou são ogãs e têm prestado relevantes serviços à preservação e valorização do aludido universo sociocultural”
No documentário “NUNES PEREIRA – A CASA DAS MINAS (1978)”, de José Sette70: “Fui entregue por minha mãe, Dona Felicidade, à proteção do Vodum Badé, com suas contas azuis, na casa matriarcal das Minas, e, acolá, durante muito tempo, verifiquei a ritualística Jêje, motivo da minha obra, a primeira a realmente tratar dos resquícios da cultura de africanos naquela parte do Brasil”. (Nunes Pereira)
Em agosto de 1977, o Jornal do Brasil, em matéria assinada por Sérvulo Siqueira71, informava a preparação de um projeto em que Nunes Pereira e o seu livro seriam um dos temas. Dirigido por Rolando Santos, Carlos Silva e José Sette, tratava-se de uma série de documentários sobre um culto religioso em vias de desaparecimento e seria filmado em São Luís, no Rio de Janeiro e no Benim: [...] com duração de 30 minutos, o documentário começa no gabinete de trabalho de Nunes Pereira — prateleiras que abrigavam uma biblioteca há pouco vendida ao governo do Pará — , com o professor recordando traços de sua meninice em São Luís do Maranhão (...) onde Felicidade Nunes Pereira — sua mãe e uma noché — participava como uma das oficiantes do culto. De suas lembranças vamos para Jacarepaguá onde o professor nos introduz a um querebetã, terreiro, em idioma nagô".16 Anos depois, em entrevista ao jornal O Globo, Nunes Pereira sublinharia essa espécie singular de comprometimento com o culto: "Com o leite materno, fui absorvendo uma participação direta nas práticas do culto. Nunca recorri a práticas de
69 AUGRAS, Monique. O Duplo e a Metamorfose. Petrópolis: Vozes, 1983. 70 https://www.forumdoc.org.br/movie/nunes-pereira-a-casa-das-minas/ 71 O culto vudu no Brasil: a visão de um documentário. Entrevista do Professor Nunes Pereira a Sérvulo Siqueira. Matéria publicada no jornal O Globo em 25 de agosto de 1977. http://www.guesaaudiovisual.com/Cinema/NunesPereira.html
Para Corrêa (1984) 73, sua mãe o entregara a Badé, o “dono do trovão” (santo militar, “podem crer que eu não gosto”, e que também usava bengala) e sua trajetória pessoal foi semelhante à percorrida pelas religiões de origem africana que migraram do Maranhão para o Pará: Em Belém, aos cinco anos, ele perdeu seu pai (sapateiro, “e fazia sapatos muito lindos para mim, ainda hoje me lembro, sapatos de cano alto, assim muito lindo, muito enfeitado.’’) e a noviche do bairro de São Pantaleão virou costureira de uns parentes abastados. Eles o ‘perfilharam” e o mandaram estudar no Colégio Inglês-Alemão, em Petrópolis, depois no Salesiano, de Niterói e, mais tarde, no Ginásio Paes de Carvalho, de volta a Belém.
Zemaria Pinto, quem vai elucidar essa questão74:
Um tio desembargador, marido de outra noviche, a tia Ida Alves Barradas, achou que ele era muito boêmio para seguir a carreira de direito: Tinha jeitão boêmio, bom bebedor que foi até findar-se aos 92 anos. Era estudioso metódico, pesquisador obstinado e pertinaz, o qual se tornou autodidata, após abandonar o curso de Direito. Além do português e o tupi-guarani, nheengatu, dominava o inglês, o francês, o alemão e o italiano. (BITTENCOURT, 1993, p. 117)75 .
Voltando ao Rio, Nunes Pereira se tornou aluno da primeira escola (nunca fundada) de veterinária do país, de Alípio de Miranda Ribeiro76, integrante, como outros a quem conheceu na época, da equipe de Rondon:
72 PEREIRA, Manuel Nunes. Carta a Judith Gleoson comunicando que não será possível recebê-la quando vier ao Rio pois estará viajando para Porto Velho. Rio de Janeiro, 02/02/1983. 1 p. Orig. Ms. Acompanha envelope. Série Correspondência ativa. Coleção
Nunes Pereira. 1-08,29,017 73 CORRÊA, Mariza. O Dono do Trovão Manoel Nunes Pereira (1893-1985). (in Memorian). 374-Texto do artigo-15576-1-1020180608.pdf 74 PINTO, José Maria (Zemaria). Nunes Pereira, esboço em cinza e sombras. https://pt.slideshare.net/Zemaria1957/nunespereira-esboo-em-cinza-e-sombras 75 BITTENCOURT, Ulisses. A partida do velho amigo. In: PORTO, Arlindo. Nunes Pereira “O Cavaleiro de todas as madrugadas do Universo”. Manaus, 1993, 115-118. http://www.guesaaudiovisual.com/Cinema/NunesPereira.html 76 Alípio de Miranda Ribeiro (Rio Preto, 21 de fevereiro de 1874 - Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 1939) foi um naturalista brasileiro. Foi o criador do primeiro serviço oceanográfico da América do Sul, a Inspetoria de Pesca(1911). Nascido em Rio Preto, desde jovem interessou-se por História Natural e, na adolescência, traduziu para a língua portuguesa a obra do conde de Buffon. Mudou-se para o Rio de Janeiro, então capital do Império do Brasil, onde se matriculou na Faculdade de
No mesmo ano em que ele casou com Maria e entrou, por concurso, no Ministério da Agricultura, como técnico (“Não havia universidade naquela época e eu já era universitário. Sou um autodidata, como Sócrates e Platão.”) e onde trabalhou a vida toda.
Escrevendo sobre os autores maranhenses que se dedicaram à narrar sobre esportes, em minha revista (VAZ,201977) relato essa passagem de Nunes Pereira pelo Rio de Janeiro: NUNES PEREIRA Manuel Nunes Pereira - Nunes Pereira - (1892 — 1985), nascido no Estado do Maranhão, foi um antropólogo e ictiólogo que viveu grande parte de sua vida em Manaus, e, posteriormente, na cidade do Rio de Janeiro78 . Coelho Netto – transformado em uma, nem sempre bem sucedida, agencia de empregos, solicitou a um amigo uma colocação a Nunes Pereira:
“Prestes amigo, O portador, Manuel Nunes Pereira, é poeta e do Maranhão, já se vê, filho da oliveira e da cigarra. Dá-lhe tu que o tens, um lugarzinho no posto que és defensor perpétuo e escracha contrabandistas. Se deferires este meu pedido, saberei cantar-te o favor em rimas de ouro, as quais já levam o selo e o coração do teu,
Coelho Netto”.79
Nunes Pereira foi veterinário do Ministério da Agricultura até a sua aposentadoria e teve alguns de seus opúsculos científicos editados pela Div. de Caça e Pesca do M.A. (O pirarucu, A tartaruga verdadeira do Amazonas e O peixe-boi da Amazônia, tendo sido este último artigo científico publicado, em 1944, no Boletim do Ministério da Agricultura). Escreveu diversos livros, sendo a sua obra mais conhecida Moronguetá - um decameron indígena, conjunto monumental de pesquisas, apresentado por Thiago de Mello (dois tomos), onde constam reproduções de páginas de cartas a Nunes Pereira emanadas de cientistas sociais como Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss. Com esses estudiosos o antropólogo maranhense-amazonense travou contato pessoal, quando da passagem deles pelo Brasil. Carlos Drummond de Andrade escreveu, no Jornal do Brasil, uma crônica sobre o autor de Os índios maués, um dos primeiros pesquisadores mestiços brasileiros - era cafuzo, descendente de índios, negros e brancos - a obter reconhecimento científico internacional89.
Medicina do Rio de Janeiro, não tendo chegado a concluir o curso. Em 1894 ingressou no Museu Nacional, com a função de preparador interino da 1ª Secção. Em 1897 foi nomeado naturalista-auxiliar, vindo a exercer os cargos de Secretário (1899), professor e chefe da Divisão de Zoologia (1929), função que exerceu até vir a falecer. Participou da Comissão Rondon e acompanhou a sua primeira expedição (1908-1910), oportunidade em que realizou valiosas observações e coleta de material, tendo aproveitado o percurso do Rio de Janeiro a Corumbá, para coletar material zoológico (1908). Theodore Roosevelt, exPresidente dos Estados Unidos, participou de uma dessas expedições juntamente com o Coronel Cândido Mariano Rondon (18651958), na que ficou conhecida como Expedição Roosevelt-Rondon. Exerceu o cargo de substituto da Secção de Zoologia (19101929), quando foi promovido a Professor-Chefe do mesmo. Em 1911, após ter visitado museus na Europa e nos Estados Unidos, e de ter estudado os seus programas de pesquisa, fundou a Inspetoria de Pesca, primeiro serviço oficial a dedicar-se ao setor, no Brasil. Foi seu primeiro diretor (1911-1912), ali tendo estabelecido um espaço museológico sobre a pesca, uma biblioteca especializada, seções técnicas de pesquisa e tendo operado um navio oceanográfico, o "José Bonifácio". Foi membro fundador da Sociedade Brasileira de Ciências e produziu uma vasta obra com mais de 150 obras sobre vertebrados e invertebrados da fauna brasileira, além de outros títulos sobre peixes, répteis, pássarose mamíferos, com destaque para a fauna brasiliense - peixes, em cinco volumes. https://pt.wikipedia.org/wiki/Al%C3%ADpio_de_Miranda_Ribeiro 77 VAZ, Leopoldo Gil Dulcio. CONSTRUÇÃO DE UMA ANTOLOGIA DE TEXTOS DESPORTIVOS DA CULTURA BRASILEIRA: PROPOSTA E CONTRIBUIÇÕES.. IN REVISTA DO LÉO 17 SÃO LUIS – MARANHÃO NUMERO 17 – FEVEREIRO – 2019, 78 In http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Nunes_Pereira 79 CORRÊA, Rossini. Atenas Brasileira – a cultura maranhense na civilização nacional. Brasília: Thesaurus; Corrêa & Corrêa, 2001, p. 149-150
Informa Côrrea90 ser o “Prestes amigo” burocrata aduaneiro, que despachou o jovem Nunes Pereira, sem dar-lhe o emprego. Não atendido em sua pretensão, Nunes Pereira pediu o bilhete de Coelho Netto de volta. O “Prestes amigo” mandou-o bater em retirada, afirmando que jamais devolveria um bilhete de Coelho Netto! Desafiado o poeta, havendo perdido o emprego e a oportunidade de ficar no Rio de Janeiro – sonho multicor dos maranhenses no passado – decide que, sem o bilhete, jamais ficaria! E o toma de assalto; o “Prestes amigo” fica atonito, em face da força titanica e herculea do poeta na vida prática... (VAZ e VAZ, 2000)80 .
Em adeus ao autor de Moronguetá, Joao de M. Souza (1993)81 registrou que “na eternidade da obra etnológica, a glória mais viva de Nunes Pereira aqui ficou, neste adeus, reconheço que jamais deixará de viver na gratidão dos amazonenses, como luz sempre acesa de esplendor e de imortalidade. Ao se reportar a sua morte, o jornal O Globo publicou: Com sua fisionomia de índio (descendia de negros, portugueses e índios), uma vasta cabeleira precocemente embranquecida, que fazia um belo contraste com sua tez escura, Nunes Pereira, nas quatro décadas de permanente contato com os índios adquiriu hábitos estranhos ao homem civilizado. Deitava-se para dormir às 19 horas, acordava às 2 da madrugada, trabalhava até às 5 horas e voltava a dormir por uma ou duas horas. Com os índios comeu tudo que eles comiam, que é a melhor maneira de dar-lhes satisfação. Provou, inclusive, caça assada dentro da própria pele do animal, que ele afirmava ser muito saborosa e de alto valor nutritivo. Depois, toda a sua alimentação era à base de peixe. (O GLOBO, 1993, p. 26).
Suas características físicas e comportamentais também foram destacadas por Josué Montello (1993)82 Cor de cobre, cabeça branca, estatura média, era ele um tipo inconfundível. Olhando uma vez, permanecia para sempre em nossa memória. Sobretudo se entretinha conosco um diálogo. Porque o seu modo de falar era também inconfundível. Autenticamente Nunes Pereira.
Outro pesquisador, Harald Pinheiro, traça seu perfil, conforme publicado no Blog Taquiprati83, quando de defesa de tese de doutoramento, onde analisa as obras de Nunes Pereira, afirma ele ser “Zombeteiro, gozador, bufão, intelectual e boêmio” Harald define o perfil do nosso herói num depoimento pessoal: "Lascivo e libidinoso, contava histórias surpreendentes e engraçadas, na roda de amigos e admiradores nos bares em que frequentava. Quando eu era ainda adolescente frequentei uma dessas rodas de narrativas encantadas (acompanhando meu pai) e me fascinei com estranha história narrada por Nunes Pereira com seriedade e volúpia, depois de posar para uma foto na genitália de uma baleia. Há quem afirme ser verídica e, inclusive, ter visto a foto, mas até hoje ela ecoa em minha imaginação com verossimilhança e mistério, acompanhada por atmosfera de curiosidade erótica e profundo encantamento etnopoético".
Nunes Pereira foi veterinário do Ministério da Agricultura até a sua aposentadoria e teve alguns de seus opúsculos científicos editados pela Div. de Caça e Pesca do M.A. (O pirarucu, A tartaruga verdadeira do Amazonas e O peixe-boi da Amazônia, tendo sido este último artigo científico publicado, em 1944, no Boletim do Ministério da Agricultura). Escreveu diversos livros, sendo a sua obra mais conhecida Moronguetá - um decameron indígena, conjunto monumental de pesquisas, apresentado por Thiago de Mello (dois tomos),
80 VAZ, Leopoldo Gil Dulcio; VAZ, Delzuite Dantas Brito. Construção De Uma Antologia De Textos Desportivos Da Cultura
Brasileira: Proposta E Contribuições. IN Congresso Brasileiro De História Da Educação Física, Esportes, Lazer E Dança, VII,
Gramado, junho de 2000. Anais... 81 SOUZA, João de Mendonça de. Adeus a Nunes Pereira. In: PORTO, Arlindo. Nunes Pereira “O Cavaleiro de todas as madrugadas do Universo”. Manaus, 1993, 87-90. 82 MONTELLO, Josué. Elegia para o velho Nunes Pereira. In: PORTO, Arlindo. Nunes Pereira “O Cavaleiro de todas as madrugadas do Universo”. Manaus, 1993, 109-113. 83 BESSA FREIRE, José Ribamar. Blog Taquiprati. Nunes Pereira, o colecionador de histórias. http://www.taquiprati.com.br/cronica/1062-nunes-pereira-o-colecionador-de-historias
onde constam reproduções de páginas de cartas a Nunes Pereira emanadas de cientistas sociais como Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss. Com esses estudiosos o antropólogo maranhense-amazonense travou contato pessoal, quando da passagem deles pelo Brasil. Carlos Drummond de Andrade escreveu, no Jornal do Brasil, uma crônica sobre o autor de Os índios maués, um dos primeiros pesquisadores mestiços brasileiros era cafuzo, descendente de índios, negros e brancos - a obter reconhecimento científico internacional. Em São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul, existe uma rua Nunes Pereira. 84
Ao lembrar-se de sua vida, [...] fala sem parar: de sua esposa, morta a poucos anos, da namorada nova que o fez mudar-se de Santa Tereza, dos netos, da dieta de peixe que seguia, da idade (“Coisa terrível é a velhice. Mas eu tenho as minhas mandingas, os meus santos. E tem as minhas cachacinhas.”), de visitar Câmara Cascudo85 de quem era muito amigo. Cita os autores franceses que levaram em conta seu trabalho (Roger Bastide86, Lévi-Strauss87), com uma ponta de mágoa por ser tão pouco conhecido dos brasileiros e uma grande felicidade em relação à vida que levara.
Conta à Corrêa (1984)88, em entrevista, sobre seu vício em cocaína: [...] como tinha sido viciado em cocaína e em Margot (que “me amargou”) e de como se “livrara dela e do vício” [...] Mulher era seu assunto predileto, falava mal das cariocas “sem pudor”, comparando-as com as índias que escondem o sexo ao sentar e contava anedotas impublicáveis a respeito das índias que ele tinha ‘beneficiado’ no decorrer das pesquisas.
Conhecido também como “Dr. Tira-Tira”, fala de sua prisão, por ter visitado Jorge Amado:
84 https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Nunes_Pereira 85 Luís da Câmara Cascudo foi um historiador, antropólogo, advogado e jornalista brasileiro. Câmara Cascudo passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo da cultura brasileira. Wikipédia 86 Roger Bastide foi um sociólogo francês. Em 1938 veio, com outros professores europeus, à recém-criada Universidade de São Paulo para ocupar a cátedra de sociologia. No Brasil, estudou durante muitos anos as religiões afro-brasileiras, tornando-se um iniciado no candomblé da Bahia. Wikipédia 87 Claude Lévi-Strauss foi um antropólogo, professor e filósofo francês, embora tenha nascido na Bélgica. É considerado o fundador da antropologia estruturalista, em meados da década de 1950, e um dos grandes intelectuais do século XX. Wikipédia 88 CORRÊA, Mariza. O Dono do Trovão Manoel Nunes Pereira (1893-1985). (in Memorian). 374-Texto do artigo-15576-1-1020180608.pdf
Seus amigos de Belém, Manaus, Natal, até do Rio Grande do Sul, onde recebeu o apelido de doutor “tira-tira”, graças à expressão que usava para apartar o gado doente, a sua prisão por ter visitado Jorge Amado na hora errada, o filme do qual participou (The end oi the river).
Ao se buscar nos jornais do Maranhão, depositados na Hemeroteca Digital Brasileira, encontra-se sob o tema de busca – Manoel Nunes Pereira – diversas ocorrências, a partir de meado dos 1800, referindo-se a um promotor de justiça da Comarca de Carolina, envolvido em assassinato (1859). Naturalmente não se trata de nosso biografado. Já em 1884 encontramos outro Manoel Nunes Pereira, aluno da Escola de Educandos, mas que também não tem parentesco com o biografado, haja vista o nosso objeto de estudo ter nascido em 1892, e mudado para Belém, pois informa que perdera o pai aos cinco anos de idade naquela cidade. Mandado estudar no Rio de Janeiro – Petrópolis e Niterói – é provável que a correspondência que se encontrava na repartição dos Correios de São Luis, em 1914, e devolvida, contendo documentos, era destinada à ele, postada em 8 de dezembro de 1914, e não reclamada (Pacotilha, 5 de agosto de 1915). Em várias notas do Jornal do Comércio, de Manaus, do ano de 1904, refere-se a um Manoel Nunes Pereira requerendo benefícios, sendo-lhe concedida a dispensa de ‘colaborador do Tesouro do Estado’. Certamente não se referem ao biografado esses fatos, pois naquele ano, contava 12 anos de idade. No Jornal do Comercio de 1913 é informado que saíra da Bahia, em direção à Belém, Manoel Nunes Pereira, junto com outros inúmeros passageiros (18 de dezembro) Essa “ausência” de Nunes Pereira nos noticiários de jornais é explicada por Olívia Maria Gomes da Cunha89 Como outros intelectuais de sua geração, Nunes Pereira foi um colecionador de recortes de jornais e de notas na imprensa que lhe deram alguma visibilidade pública. Não eram tão freqüentes como acontecia com outros intelectuais de sua geração, os quais, talvez por ocuparem cargos públicos, podiam pagar por serviços diários de clippings realizados por antigas empresas, como a Lux, por exemplo. Desde, pelo menos, os anos 40 — quando jornais de Belém e Manaus noticiaram seu desaparecimento e provável morte violenta entre os "selvagens" —, às matérias em cadernos culturais na década de 1970 — quando sua imagem é a de um especialista da cultura brasileira e, sobretudo, profundo conhecedor dos índios do * Professora do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ) e pesquisadora vinculada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/ CNPq. An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 121 26 Brasil — vários são os enquadramentos que o transformaram ora num folclorista especializado na cultura regional da região amazônica — das populações ribeirinhas aos enclaves de pajelança e outros cultos afroamerídios nas periferias urbanas da região —, ora num etnólogo dos povos ameríndios.
Embora não tenhamos encontrado as reportagens que a Autora se refere, deixa-nos outros indícios, como a primeira vez em que Nunes Pereira foi entrevistado por O Pasquim, cerca de dez anos antes de seu falecimento, em maio de 1976, era o etnólogo especializado nos "temas afro-brasileiros", autor do essencial, ainda que pouco conhecido, A Casa das Minas. Thiago de Melo90, na apresentação de Moronguetá, de Nunes Pereira, assim se expressa: "Um livro de estórias encantadas", Num dos momentos mais turvos da vida deste País, eis um acontecimento luminoso. Luminoso e sério, e cheio de amor: Monronguêtá. Um livro de estórias encantadas. Estórias inventadas e contadas, através de séculos, pelos índios do Amazonas, recolhidas diretamente por um homem que, varando verdes e águas, consagrou quarenta anos de sua vida para realizar, com paciência e paixão, esta obra destinada a permanecer viva no tempo, pela sua alta importância cultural e também pela força de sua beleza. Moronguêtá, ciência e magia. Livro em que viajam, em fraternal harmonia, a poesia e a ciência. A ciência vai por conta da sabedoria do autor: mestre Nunes Pereira, nome que aprendi a querer bem desde menino,
89 CUNHA, Olivia Maria Gomes da. O ETNOLOGO E O FOLCLORISTA vistos de Santa Teresa. An. Bibl. Nac., Rio de Janeiro, 121, 2001, publicado em 2006, Arquivo Nunes Pereira: inventário analítico. Organizado e Descrição Vera Lúcia Miranda Faillace 90 Amadeu Thiago de Mello é um poeta e tradutor brasileiro. É um dos poetas mais influentes e respeitados no país, reconhecido como um ícone da literatura regional. Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas. Preso durante a ditadura, exilou-se no
Chile, encontrando em Pablo Neruda um amigo e colaborador. Wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello
quandojá o seu trabalho entre os índios e até a sua própria e mansa figura, ganhavam na ternura dos nossos barrancos, os contornos de uma estranha lenda. Nunes Pereira, veterinário viajando a serviço do Ministério da Agricultura para estudar a fauna silvestre e aquática do Amazonas, de repente, dominado pelo fascínio da imaginação indígena, dedicou-se inteiro aos caminhos da antropologia. Autodidata, à falta na época de cursos universitários especializados, o antigo ictiologista se fez mestre na ciência do homem, principalmente na ciência da raça. E a verdade é que se os anteriores livros seus, todos sobre assuntos da Amazônia, já atraíam a atenção e o respeito dos modernos cientistas estrangeiros, Metraux e Lévi-Strauss, por exemplo; se os seus outros trabalhos já inscreveram o seu nome no Handbook of Ethnology, - com este admirável Moronguêtá, Nunes Pereira - rio crescido e se fazendo mar e simplesmente - um lugar entre os maiores da etnologia brasileira. A magia do livro vai por conta da raça. Por conta do índio, no qual o autor, meio índio ele também, viu, sobretudo e profundamente o homem. Não o bugre, não apenas o ser primitivo, o pré-lógico. Mas um homem, uma mulher, uma criança, sinto vontade de dizer um companheiro. Porque só assim é que Nunes Pereira quis e pôde recolher o que os índios tinham de melhor e de mais essencial e vivo: o seu pensamento, a sua imaginação, o poderoso sortilégio de sua literatura oral. E aqui estão, reunidas em acervo jamais antes conseguido, as suas lendas, mitos, tradições, fábulas e estórias. O autor estuda antes, porém, a área cultural onde as lendas floresceram: são cinco áreas, compreendendo todo o Estado do Amazonas e os territórios de Roraima e Rondônia. Estuda a fauna e a flora, o relevo e o clima, a economia e a ecologia, os antecedentes da conquista, a história e a aventura, concluindo pela situação atual dos indígenas: de como eles conversam, como moram e particularmente como amam, porque amam muito esses índios do Amazonas. Mas também conta como padecem eles nos seus choques sociais com o chamado homem civilizado; e como lutam - até mesmo eles, os companheiros índios, lá nos longes centros da mata, para resistir, em rebeldia de altiva dignidade humana, à grande praga da sociedade moderna que é a exploração do homem pelo homem. Moronguêtá, um Decameron Indígena. Como o do florentino Boccacio, obra-prima do século XIV, este é um livro romântico, heróico, fescenino, sarcástico, burlesco, lírico e obsceno. Moronguêtá: o dom da poesia, a riqueza erótica, a força da imaginação, trabalhados com ciência e amor por quem hoje melhor conhece os habitantes animais e vegegetais, aquáticos e terrestres do Amazonas, imenso e sofrido pedaço verde do mundo: Nunes Pereira, irmão dos índios, porque irmão do Homem. [1967] 91. Outro estudioso M. Cavalcante Proença92, comenta também o "Um Decameron Indígena", em um ensaio contido em Moronguetá, vol. 1, pp. XI-XIX) Nunes Pereira pertence àquele pequeno grupo de pessoas que, no Brasil, pensa nos índios, sinal identificador de um extraviado idealismo, nestas horas de auto-suficiente tecnologia, com certas reacionárias tendências à tecnocracia.Essa marca de idealismo é característica na sua inteligência e na sua obra. 93
91 https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Nunes_Pereira 92 Manuel Cavalcanti Proença (Cuiabá, 1905 —- Rio de Janeiro, 1966) foi um romancista e crítico de literatura brasileira. Escreveu ensaios ou livros sobre, entre outros, Augusto dos Anjos, Mário de Andrade e Guimarães Rosa. Em seu romance Manuscrito holandês ou a peleja do caboclo Mitavaí com o monstro Macobeba, revela grande influência destes dois últimos. Seu livro Roteiro de Macunaíma é considerado um clássico e uma das principais referências críticas sobre a famosa obra de Mário de Andrade. https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Cavalcanti_Proen%C3%A7a 93 https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Nunes_Pereira
Ulysses Bittencourt94 escreveu o artigo "A partida do velho amigo", texto-homenagem que foi publicado no jornal A Crítica e depois veio a lume em "Patiguá"95, coletânea póstuma a que recorreu Samuel Benchimol96 em seu livro "Manáos do Amazonas - Memória empresarial, vol. 1" para descrever o tipo amazônico do "coronel de barranco" (líder do extrativismo florestal - borracha, castanha, guaraná, essências da floresta, pesca etc. - e político regional da época áurea da borracha). Tendo conhecido pessoalmente Wenceslau Nicolau de Mello, proprietário da região do Lago do Ayapuá (Baixo Purus), citado por Benchimol como "o rei da castanha do Amazonas", Nunes Pereira incluiu as primeiras páginas da monografia "Reminiscências do Ayapuá", do geógrafo amazonense Agnello Bittencourt (ex-prefeito de Manaus e autor da Corographia do Estado do Amazonas, de 1925), como anexo de "O sahiré e o marabaixo", sugerindo sua urgente publicação, acontecida efetivamente em 1966 (Rio, edição do Autor) 97: “A partida do velho amigo” (7 de março de 1985), Na intimidade quieta da mata, causa susto e tristeza ver de repente o raio abater árvore secular. A mesma sensação acometeu-me ante o desaparecimento, dia 26 de fevereiro, do sábio Nunes Pereira. Por sua morte a floresta amazônica ficou sem um dos seus mais altos e valiosos exemplares, um exemplar insubstituível. A metáfora pode ser antiga, mas é exata para expressar o doloroso fato. Nascido no Maranhão, cedo ele viajou para o Amazonas e ao nosso Estado passou a dedicar quase todo o resto de sua produtiva e longa vida de intelectual, antropólogo, etnólogo e biólogo, partindo da Veterinária. Com seu jeitão boêmio, bom bebedor que foi até findar-se aos 92 anos, Manoel Nunes Pereira, na realidade, era um estudioso metódico, um pesquisador obstinado e pertinaz. Tendo abandonado o curso de Direito, a partir daí tornou-se autodidata. Além do português, do tupi-guarani, nheengatu, dominava o inglês, o francês, o alemão e o italiano. Mantinha intercâmbio verbal ou por correspondência com os mais importantes nomes da cultura brasileira e estrangeira. Foi a síntese perfeita do homem brasileiro: branco, preto e índio. Ele mesmo dizia ter “os cabelos do português, as feições do índio e o tom de pele mulato herdado de minha mãe”. Daí ser recebido em todos os ambientes com alegria. Para exemplificar: esteve em várias tribos afastadas da “sifilização” (como ele chamava), sendo logo acolhido como sábio pajé e chamado pelos naturais de “saracura branca”. Conviveu por longos períodos com os silvícolas, alimentando-se e procedendo como um deles, o que lhe valeu um enorme repertório engraçadíssimo de episódios e de anotações de raro valor científico, aproveitadas em seus trabalhos. De vez em quando, Nunes Pereira era tema de extensas reportagens em jornais, revistas e entrevistas
94 Ulysses Uchôa Bittencourt (Manaus, 4 de abril de 1916 — Rio de Janeiro, 19 de março de 1993), também conhecido como Ulysses Bittencourt, foi um jornalista, administrador público e historiador brasileiro. Foi prefeito de Guarapuava, município do estado do Paraná, durante o primeiro mandato do presidente Getúlio Vargas, por indicação do então interventor no estado, Manuel Ribas. De acordo com o amazonólogo Samuel Benchimol, Ulysses Bittencourt - pesquisador que produziu uma descrição acadêmica do povoamento da bacia Amazônica (Porto Alegre, PUC-RS, 1988) - foi um dos autores que logrou delinear alguns dos tipos humanos da região, especialmente o do coronel de barranco (o assim chamado "barão da borracha", da época do boom amazônico da hévea - que não pertencia ao Exército Brasileiro -, geralmente adquiria uma patente da extinta Guarda Nacional). um resumo biográfico do poeta-operário Hemetério Cabrinha [4] [5] [6], em Patiguá, p. 46]. Graduado pela Escola Nacional de Veterinária, abandonou a profissão de médico veterinário quando se tornou administrador público, tendo sido, em 1939, nomeado prefeito de Guarapuava. Membro da Academia Amazonense de Letras [7] e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas [8], escreveu Raiz (Rio de Janeiro: Copy e Arte, 1985), Povoamento da Bacia Amazônica (Porto Alegre, PUC, 1988 conferência proferida na PUC-RS) e Patiguá(Rio de Janeiro: Copy e Arte, 1993). Articulista, nos anos 1980, do jornal A Crítica, de Manaus, Ulysses Bittencourt, foi editor da revista da Grande Loja do Brasil, do Rio de Janeiro. Pesquisador da história do Amazonas, é autor do verbete Benjamin Lima, da Série Memória, da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas [9] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ulysses_Bittencourt 95 Artigo publicado na coletânea póstuma “Patiguá”, Rio de Janeiro: Copy & Arte, 1993, pp. 114–115; apresentação de Mário Ypiranga Monteiro; desenho reproduzido na capa 96 Samuel Isaac Benchimol (Manaus, 13 de julho de 1923 – Manaus, 7 de maio de 2002) foi um economista, cientista e professor brasileiro de ascendência judia-marroquina. Foi considerado um dos principais especialistas da região amazônica. Contribuiu no estudo de aspectos sociais no domínio da economia da região da Amazónia, aprofundando questões sobre o desenvolvimento sustentávelda bacia do rio Amazonas. Publicou mais de cem artigos e livros sobre estes assuntos. O governo brasileiro instituiu o prêmio Benchimol em sua homenagem, o qual é anualmente atribuído em três categorias para as primeiras três pessoas que tenham contribuído de forma substancial para o entendimento da região da Amazônia. Lecionava Introdução à Amazônia na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). O novo prédio da administração da Faculdade de Direito da UFAM, na cidade de Manaus, hoje leva seu nome[1], assim como o prédio da Escola Superior de Artes e Turismo da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), localizada na Avenida Leonardo Malcher, na Praça 14 de Janeiro, Zona Sul de Manaus. https://pt.wikipedia.org/wiki/Samuel_Benchimol 97 https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Nunes_Pereira
na televisão. Guardo três dessas reportagens de O Globo, uma de 1974 e duas outras de 1975 e 1977. Em artigo do Jornal do Brasil, disse dele Carlos Drummond de Andrade: ”Homem de ciência agudamente provido de sensibilidade e visão humanística, eis o que é o caboclo maranhense Nunes Pereira. Daí seu livro soar um som claro, alegre, sadio, jamais instalando tédio pela informação indigesta”. Membro fundador da Academia Amazonense de Letras, Nunes pertencia ainda a inúmeras outras instituições culturais e científicas. Todo esse prestígio, porém, não o afetava. Residindo em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, por muitos anos, fazia suas viagens com módicas ajudas-de-custo pelo Ministério da Agricultura – do qual foi funcionário, recebendo daí sua modesta aposentadoria – ou comissionado pelo Governo do Amazonas, pouco mais auferindo com a venda de seus livros. Um sábio que era, morreu pobre, despojado e simples como sempre viveu, respeitado pela grandeza de sua obra e pelas cintilações de sua presença em qualquer meio. Honrou-me frequentando minha casa, como frequentou a casa de meu avô, a de meu pai, a de meus irmãos, depois também a de meu filho Flávio, com cujo filho Eduardo brincou várias vezes, somando assim uma amizade que se estendeu ao longo do tempo por cinco gerações98.
Arlindo Augusto dos Santos Porto, ex-presidente do IGHA, publicou um livro sobre Nunes Pereira intitulado "Nunes Pereira: o cavaleiro de todas as madrugadas do universo", título contém referência ao Clube da Madrugada de Manaus, movimento renovador da cultura e das artes no Amazonas do qual Nunes Pereira era membro99. O escritor amazonense Márcio Souza refere-se à relevância científica da alentada obra "Moronguetá", editada por Ênio Silveira, em seu livro "A expressão amazonense". O criminalista Carlos de Araujo Lima, de O Dia (Rio de Janeiro) e A Crítica (Manaus), escreveu um elogio sobre Nunes Pereira após o seu falecimento, cuja causa foi um câncer intestinal. Zemaria Pinto100, ao tomar posse na Cadeira 59 da Academia Amazonense de Letras, da qual é patrono o etnólogo Manuel Nunes Pereira (1893-1985). Zemaria Pinto editou o folheto - Nunes Pereira: esboço em cinza e sombras, com seu discurso de posse. Conhecido por sua dedicação ao trabalho intelectual, o novo membro do IGHA deu partida a outra renovação: a de redescobrir e divulgar a atuação de seu patrono, hoje envolvido em lendas e esquecimento. A parte inicial do folheto vai abaixo postada, num abraço de boas vindas a Casa de Bernardo Ramos.
98 https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Nunes_Pereira 99 O Clube da Madrugada, criado em 22 de novembro de 1954, é uma associação literária e artística brasileira. Os ecos da Semana de Arte Moderna de 1922, apesar de terem chegado tardiamente a Manaus, contribuíram no sentido de que fosse escrito, de acordo com A. Coutinho e J. Galante de Souza, "um capítulo importante da história da literatura amazonense" (Coutinho e Souza, Enciclopédia de Literatura Brasileira, p. 496). O poeta Jorge Tufic, um dos fundadores do Clube da Madrugada, influenciado pelo então em voga movimento da Poesia Concreta, criou a Poesia de Muro. Escreveu Alencar e Silva (nasc. em Fonte Boa (Amazonas), 1930): "(...) Que nos resta dizer? Em verdade, bem mais, sobre as muitas faces da [poesia de Jorge Tufic], a começar por alguns aspectos formais da sua experiência concretista e sua concepção da Poesia de Muro. Na área do concretismo, por exemplo, depois de levar seus experimentos aos limites extremos da palavra, “pintando”, por assim dizer, uma paisagem bucólica com apenas três vocábulos :Ode,campo,bode. Jorge Tufic leva tais experimentos ainda mais longe, mediante a inclusão de elementos extraverbais no texto poemático. (...)". Às experiências modernistas de vanguarda e à arte pós-modernista praticada por vários de seus integrantes [Adrino Aragão, por exemplo, é um dos cultores, no Brasil, do miniconto, soma-se, por exemplo, os Haikais de Luiz Bacellar. Um dos mais ativos participantes do Clube era um eclesiástico, o Pe. Luiz Ruas, autor de uma reunião de poemas, "Aparição do Clown", que mereceu elogiosos comentários do filólogo Raimundo Nonato Pinheiro (Pe. Nonato Pinheiro), membro da Academia Amazonense de Letras. O contista Adrino Aragão (nasc. em Manaus, em 1936) sobre o Clube da Madrugada, assinalou: "(...) O Clube da Madrugada nunca possuiu sede própria: seus escritores sempre se reuníram embaixo de um mulateiro [grande árvore da Amazônia] na Praça da Polícia[Praça Heliodoro Balbi, Centro, Manaus]. Mas sua existência transcendeu os limites geográficos dessa Praça. E, hoje, é reconhecido não apenas no Brasil, mas em várias parte do mundo (...)" (Rev. O Pioneiro, Brasília). As reuniões do Clube da Madrugada acontecem ao abrigo da sombra de uma árvore imponente da Praça Heliodoro Balbi, entre os prédios, de linhas neoclássicas, da Polícia e do Colégio Estadual. https://pt.wikipedia.org/wiki/Clube_da_Madrugada 100 Zemaria Pinto – Nascido em Santarém, no Pará, em 1957, desde tenra idade vive em Manaus, capital do Amazonas. Publicou os seguintes livros de poemas: Corpoenigma (1994), Fragmentos de Silêncio (1996) e Música Para Surdos (2001). Professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, tem, em parceria com Marcos-Frederico Krüger, dois livros de ensaios sobre obras indicadas para o vestibular da Universidade Federal do Amazonas (2000 e 2001). Escreve também para o teatro, tendo sido primeiro colocado no Concurso de Textos Teatrais Inéditos, promovido pela Secretaria de Cultura do Amazonas, em 2002, com a peça Nós, Medeia, a ser publicada em 2003, pela Editora Valer. Encenou a comédia Papai Cumpriu Sua Missão, em 2000/2001, e no momento ensaia Diante da Justiça, baseado em Kafka. http://www.jornaldepoesia.jor.br/zpinto.html#bio
AS RAZÕES DO TÍTULO E DO SUBTÍTULO TENHO POR HÁBITO COMEÇAR A ESCREVER MEUS TRABALHOS COM UM TÍTULO, AINDA QUE PROVISÓRIO. É UMA FORMA POUCO SUTIL DE ME DAR UMA DIREÇÃO, DEFINIR UM ESCOPO, PARA ALÉM DO ROTEIRO TRAÇADO PREVIAMENTE. O TEMA NUNES PEREIRA, POR EXEMPLO, É MATERIAL PARA INUMERÁVEIS TESES E DISSERTAÇÕES, SENDO IMPOSSÍVEL ESGOTÁ-LO NOS LIMITES DE UMA FALA. ASSIM, DEFINI O TÍTULO: "NUNES PEREIRA, ESBOÇO DE UM RETRATO". IMAGINEI ESSE ESBOÇO EXPRESSIONISTA E EM CORES, EXPLORANDO O AMÁLGAMA RACIAL DO RETRATADO — ÍNDIO, NEGRO, BRANCO, BUSCANDO A IDEIA PRECISA DE QUEM FOI ESSE CIENTISTA E ESCRITOR, A UM TEMPO TÃO CITADO E CULTUADO, MAS TÃO POUCO LIDO, E AGORA QUASE NO ESQUECIMENTO. PELAS DIFICULDADES ENCONTRADAS NO LEVANTAMENTO DE DADOS, ENTRETANTO, O RETRATO CONTINUOU APENAS UM ESBOÇO, PORÉM ESMAECIDO NUM IMPRESSIONISMO LIGEIRO, LIMITADO EM CINZA E SOMBRAS. O SUBTÍTULO — O CIENTISTA, O POETA, O CONTADOR DE HISTÓRIAS — É ATÉ ÓBVIO, CONFORME SE VERÁ NO FLUIR DO TEXTO. MAS ADIANTO QUE O CIENTISTA RIGOROSO, AUTODIDATA CONSCIENTE DE SUAS POSSÍVEIS LIMITAÇÕES, E, POR ISSO MESMO, MUNIDO DE UMA AUTOCRÍTICA INCOMPLACENTE, JAMAIS DEIXOU DE SER O LÍRICO QUE CULTIVAVA ALEXANDRINOS NA JUVENTUDE, ESPECIALMENTE QUANDO RECONTAVA AS HISTÓRIAS OUVIDAS DA INDIADA, COMO ELE CARINHOSAMENTE SE REFERIA ÀQUELES A QUEM PROCURAVA, SOBRETUDO, "CONHECER E AMAR HUMANAMENTE". O INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DO AMAZONAS, AO COMPLETAR 99 ANOS DE EXISTÊNCIA, RESGATA A MEMÓRIA DESSE BRASILEIRO EXEMPLAR QUE FOI MANOEL NUNES PEREIRA, MARANHENSE DE NASCIMENTO, COM UMA PASSAGEM FULGURANTE E DURADOURA PELA NOSSA REGIÃO, ESPECIALMENTE POR MANAUS, QUE ELE DIZIA SER O "CORAÇÃO DA AMAZÔNIA". A FINALIDADE DESTE TRABALHO OS QUE CONHECEM NUNES PEREIRA JÁ DEVEM TER OUVIDO ALGUMAS DAS HISTÓRIAS QUE SE CONTAM SOBRE ELE — E QUE ELE MESMO AJUDOU A DIVULGAR, ALIMENTANDO UM FOLCLORE EM TORNO DE SUA FIGURA EMBLEMÁTICA. HISTÓRIAS DE REBELDIA, DE BOEMIA E DE SEXO. ESSE ANEDOTÁRIO ACABA SUPERVALORIZADO EM RELAÇÃO A UMA OBRA QUE, AINDA VIÇOSA E ORIGINAL, É SUBESTIMADA — PELO QUE LEVANTEI, APENAS DUAS TESES DE DOUTORADO TÊM COMO CENTRO A OBRA DE NUNES PEREIRA, AMBAS DA PUC-SP: LABIRINTOS DO SABER: NUNES PEREIRA E AS CULTURAS AMAZÔNICAS, DE SELDA VALE DA COSTA (1997), E MITOPOÉTICA DOS MUIRAQUITÁS, PORANDUBAS E MORONGUETÁS: ENSAIOS DE ETNOPOESIA AMAZÔNICA, DE HARALD PINHEIRO (2013). ENTÃO, A PROPOSTA DESTE TRABALHO É, IGNORANDO O ANEDOTÁRIO, DAR UMA VISÃO, AINDA QUE SUPERFICIAL, SOBRE A VASTA OBRA DE NUNES PEREIRA, PROCURANDO DESPERTAR, ESPECIALMENTE NOS MAIS JOVENS, PELO MENOS A CURIOSIDADE DE CONHECER O ESSENCIAL DA OBRA DO AUTOR DE MORONGUETÁ, O QUE NÃO É POUCO.101
CMaio de 1976. Chegando a Manaus para rever os amigos, o antropólogo Nunes Pereira está sendo ciceroneado na cidade pelo poeta Anthístenes Pinto. Embora maranhense de nascimento, Manuel Nunes Pereira era uma das figuras exponenciais da nossa literatura tendo sido, inclusive, um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras. Quando da sua morte, em 1985, sua biblioteca de cinco mil livros foi comprada pelo Governo do Amazonas e hoje faz parte do acervo do IGHA.
Em 1993, o jornalista Arlindo Porto lançou o belíssimo livro Nunes Pereira: o cavaleiro de todas as madrugadas do universo, onde mostrava algumas facetas do autor do clássico A Casa de Minas. Durante o passeio com o poeta, o pajé Nunes Pereira, do alto dos seus 83 anos bem vividos, cismou que queria rever o pessoal do Clube da Madrugada, para tomar umas “branquinhas” e atualizar as fofocas. Anthístenes Pinto resolveu levá-lo ao Bar do Alfredo, no cruzamento das ruas Ferreira Pena com Monsenhor Coutinho. Todos os intelectuais presentes (Artur Engrácio, Jorge Tufic, Aloísio Sampaio, Van Pereira, Carlos Genésio, Garcibal do Lago e Silva, Rômulo Gomes e Afrânio de Castro, entre outros) fizeram a maior festa ao ver o morubixaba cada vez mais lúcido e saudável. Quer dizer, todos menos um. Sentado sozinho a uma mesa nos fundos, preparando-se para detonar a segunda garrafa de uísque Vat 69, o vereador Fábio Lucena fez questão de não se manifestar. Intrigado, Anthístenes Pinto pegou Nunes Pereira pelo braço, levou-o até a mesa do vereador e tentou quebrar o gelo: – Êi, Fábio, o que está havendo? Esse aqui é o autor de Moronguetá – um decameron indígena e de Panorama da alimentação indígena, dois livros fundamentais sobre a Amazônia. Este aqui é o nosso grande Nunes Pereira!!! Fábio Lucena ajeitou os óculos, limpou a boca com a manga do paletó, olhou para aquele sujeito com fisionomia de índio e vasta cabeleira branca, que fazia um belo contraste com sua tez escura, aí, escandindo bem as sílabas, sem levantar-se da cadeira, disparou à queima-roupa: – Nunes Pereira? O senhor, por acaso, não seria tio da matinta-pereira?... Foi a primeira vez na vida que o pajé perdeu as estribeiras. E só não deu um tabefe no insolente vereador porque foi resgatado a tempo pela turma do “deixa-disso”. Publicado no Blog do Simão Pessoa, 20 de outubro de 2011
Kyssian Castro102relata um episódio envolvendo Nunes Pereira e seu inseparável amigo Maranhão Sobrinho: A SURRA POR ENGANO Talvez em busca de fortuna fácil prometida pela borracha, Maranhão Sobrinho, logo após ter publicado “Estatuetas”, transfere-se para Manaus, entre os anos 1909 e 1910. Lá revê antigos colegas, entre os quais Theodoro Rodrigues (1873-1913), poeta com o qual tivera contato em Belém, e que ali acabaria por se tornar seu mais chegado amigo; e o também maranhense Nunes Pereira. Este foi quem acabou por metê-lo numa terrível enrascada. Como os literatos da Manaus daquele decadente período viviam se digladiando mutuamente, Nunes Pereira, apontado acima e que nutria desavenças com o jornalista Generino Maciel, publicou em jornal esta quadra ofensiva:
“Genebrino, Genebrino, que escreves coisas fecais, onde anda esse suíno que se chama Th. Vaz?”
Thaumaturgo Sotero Vaz (1869-1921), comparsa de Generino e a quem também fora dirigida a afronta, ferido em seus brios, arquiteta uma vingança particular. Como era mui amigo do chefe de polícia, solicitou-lhe alguns homens a fim de darem uma lição no petulante versejador, já que acabara de receber informações sobre o seu
paradeiro. Maranhão Sobrinho, alheio ao que se passava, hospeda-se com sua amada no quarto em que na véspera fora visto seu amigo Nunes Pereira. Os policiais, em lá chegando, alta madrugada, caíram vorazes sobre aquele que juravam ser o autor da malfadada quadra, dando-lhe baita surra e atirando-o na prisão. O nosso poeta, assim, acabou pagando por um crime que não cometera..
Em Macapá, existe uma biblioteca que leva seu nome - a Biblioteca SESC/Centro Nunes Pereira. A Biblioteca Nacional possui a Coleção Nunes Pereira, que reúne cerca de 1430 documentos produzidos ou acumulados pelo veterinário e antropólogo Manuel Nunes Pereira (1893-1985), que viveu por muitos anos na região amazônica, entre os povos nativos, coletando informações sobre costumes, alimentação, imaginário. A coleção doada pelo titular inclui correspondência, pareceres, artigos, recortes de jornal, notas sobre etnologia.
Para Cunha (2006) 103 O legado intelectual de Nunes Pereira restaria dessacralizado e desconhecido — porque praticamente ausente das histórias da antropologia — não fosse a sua aparição nas memórias do bairro e de uma pequena parcela de intelectuais de esquerda que o conheceram. As sucessivas entrevistas que concedeu ao Pasquim, sua participação num documentário sobre os cultos vodus em São Luís do Maranhão e sua atuação comunitária no bairro em que viveu por mais de vinte anos retiraram Nunes Pereira da condição de especialista em temas regionais.Dois anos depois da sua morte, um grupo de amigos ligados à Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa (AMAST), que ele ajudara a fundar, encaminhava ao então presidente da República, José Sarney, e ao ministro da Cultura, Celso Furtado, uma carta aberta na qual propunham medidas para que o "grande etnólogo romancista não fosse esquecido".