Candace schuler homem sob suspeita (tentação 22)

Page 1

Homem sob Suspeita Candace Schuler AS COISAS NEM SEMPRE SÃO O QUE APARENTAM SER... Além de linda, a loira Natalie Bishop era uma detetive particular competente e corajosa. Ao ser contratada para investigar a misteriosa morte de um empresário, suas suspeitas recaíram sobre Lucas Sinclair, irmão da vítima. Natalie jurou que, além de pagar pelo assassinato, ele iria responder pelo crime de ser fascinante como o pecado! Atraído por Natalie desde o instante em que a vira, Lucas insistia em querer ajudá-la a desvendar aquele mistério, mas ele só "atrapalhava" o trabalho da bela detetive com sua presença máscula e sensual. Até que a investigação tomou rumos perigosos e começou a esquentar de verdade em todos os sentidos...

Título Original - A Dangerous Game Disponibilização e Digitalização: Marina 1


Revisão: Ana Maria / Formatação: Edina

CAPÍTULO I As águas do Lago Minnetonka lambiam tranqüilas o muro de pedras que delimitava o gramado bem aparado. Soprava uma brisa amena, suficiente apenas para fazer deslizar os veleiros ao longe. O céu do mês de agosto, muito azul e sem nuvens, completava a ilusão de um paraíso perfeito. Belo dia para reunir amigos e familiares, pensou Natalie Bishop, observando a paisagem, em pé junto da janela panorâmica. Mas rejeitou a idéia no mesmo instante. As pessoas reunidas na sala as suas costas não celebravam a chegada do verão, mas choravam a recente perda de um ente querido. Suspirou, afastando a mecha de cabelos loiros que caía em cima do rosto. E mais uma vez tentou imaginar o que acontecera havia três noites, quando Rick Peyton se deparou com seu trágico destino. Os fatos eram simples. Entre onze e onze meia de uma noite clara e estrelada, ele bateu o carro, em alta velocidade, contra o pilar de uma ponte. O acidente aconteceu em um trecho longo e reto da rodovia 494. Nenhum outro carro foi atingido, e não havia sinais de derrapagem no asfalto indicando que Rick tentara evitar a colisão. Exatamente por causa desses fatos tão simples, o Departamento de Polícia da cidade de Minneapolis tentava reunir provas de que se tratava de mais um caso de suicídio. Os comentários histéricos da viúva, quando notificada do acidente, confirmaram essa suspeita. Entre lágrimas e gritos de desespero, Sherri Peyton falou da recente "crise de depressão" do marido, e das "terríveis dores de cabeça que Ricky vinha tendo nos últimos meses". A autópsia nada revelou de anormal. Não havia drogas na corrente sangüínea, exceto por uma grande quantidade de aspirina extra-forte, o que comprovava a história de Sherri. Nem chegaram a encontrar vestígios da única cerveja que Rick tomara em companhia do sócio, Daniel, irmão de Natalie, antes de deixar o trabalho, às oito e meia da noite. Apenas seu paradeiro até o acidente permaneceu um completo mistério. A hipótese do suicídio ganhava força. E, no entanto... Natalie balançou a cabeça, recusando-se a aceitá-la. Um rapaz bemsucedido, jovem, gozando de boa saúde, sócio de um próspero escritório de desenvolvimento de vídeo-games, casado havia menos de um ano com uma linda mulher que o tratava como um deus, não poria fim à própria vida.

2


A menos que tivesse um excelente motivo. Olhando fixo pela janela envidraçada, Natalie sabia que Rick podia ter esse motivo. Na verdade, não o conhecia muito bem. Tratava-o como o sócio de seu irmão caçula e nada mais, um rapaz agradável, educado, um pouco exibido e casado com uma mulher submissa e enjoada. Nada que inspirasse uma grande amizade. Mesmo assim, não parecia o perfil de um suicida em potencial. Talvez não fosse tão saudável quanto parecia, ou ocultasse algum problema grave no casamento, ou... — Natalie? A voz do irmão, baixa em respeito às circunstâncias, trouxe-a de volta do mundo de seus pensamentos. — Nat, pode vir ao escritório, por favor? A Senhora Peyton... Quer dizer, a mãe de Rick — concertou, lembrando que havia duas Senhoras Peyton presentes — gostaria de falar um instante. Natalie estranhou o convite. Sherri Peyton, frágil e sensual, o tipo de mulher que uma feminista mais inflamada teria vontade de trancar no armário e jogar a chave fora, podia ser considerada inofensiva. Bastariam dez minutos na companhia de Bárbara Peyton, no entanto, para qualquer um descrevê-la como uma pessoa dura feito rocha, que odiava e manipulava os homens, e que emprestava ao termo "mulher de negócios" no mau sentido. Quando se afastou da janela para atender à solicitação, quase trombou com a irmã mais velha. Andréa, que se aproximava. — Oh, desculpe — disse Natalie. Indicando a porta fechada do escritório, explicou meio sem graça — Daniel disse que a Senhora Peyton quer me ver. — Sim, eu ouvi — respondeu Andréa, a voz sempre calma — Não se preocupe, só a procurei para avisar que estou indo embora. Preciso apanhar as crianças no rinque de patinação e a babá, antes de ir para a faculdade — Sorriu — O carro dela quebrou de novo. — Pensei que você trabalhasse a noite até setembro. — E trabalho. Depois das aulas. Natalie examinou-a preocupada, reparando melhor nas olheiras de cansaço no rosto da irmã. — A que horas você dorme? — Dormir? Mas pensei que já tivesse caído de moda! — Andréa... — Brincadeira — disse Andréa, dando palmadinhas no ombro — Verdade. Durmo pelo menos, deixe-me ver, cinco horas... A cada vinte e quatro. — Cinco horas? Não é o suficiente. — Por enquanto, não tenho outra alternativa. Mas será por pouco tempo. Dentro de duas semanas as crianças voltam para a escola. — Ora, seus filhos quase não dão trabalho — Natalie protestou — O problema são essas aulas noturnas.

3


— Quanto mais eu estudar, mais cedo me formo e tiro meu diploma — A expressão suave de seu rosto tornou-se obstinada — Tenho de recuperar o tempo perdido. — Eu sei, mas... Andréa balançou a cabeça, impaciente, interrompendo Natalie. — Vamos deixar essa discussão para outra hora, Nat — Consultou o relógio — Já estou atrasada. — Sinto muito. Você não precisa de mais uma pessoa para ensinar de que maneira deve conduzir sua vida — Adiantou-se e deu um rápido abraço na irmã — Não quis ser chata. — Tudo bem — disse Andréa, devolvendo o abraço. Sorria outra vez. Natalie observou-a passar entre as poucas pessoas ainda presentes e sair pela porta da frente. Amaldiçoou em silêncio o ex-marido da irmã. Depois de dez anos de um casamento em que a Andréa só coubera o papel de mulher amorosa, fiel e dedicada, ele simplesmente fora embora a deixando com três crianças para criar, a hipoteca da casa e as prestações do carro para pagar. Sem emprego, sem pensão nem para os filhos, sem nada. Três anos depois, Andréa começava a ver uma luz no fim do túnel. Natalie, porém, ainda não perdera o hábito de deliciar-se sonhando com uma pequena sessão de tortura em que ela seria o carrasco e a vítima, claro, o ex-cunhado. — Nat? — Daniel cutucou-a — A Senhora Peyton está esperando. Natalie suspirou e seguiu-o para dentro do pequeno, porém agressivo ambiente masculino em que, até então, Rick Peyton reinara absoluto. Encontrou Sherri Peyton sentada em um sofá de couro, de costas para as portas de vidro que, atrás das cortinas, abria-se para o deque. Nas mãos entrelaçadas sobre o colo entrevia-se a renda preta de um delicado lenço de viúva. O véu mal cobrindo o cabelo ruivo e sedoso, aliado às lágrimas que desciam por seu belo rosto, emprestava-lhe a aparência de uma rosa beijada pelo orvalho. Uma pontada de inveja perturbou Natalie e ela desviou os olhos. Um homem alto, distinto, em pé ao lado da mesa, acabava de fechar uma valise de pele de enguia. Advogado, com certeza, Natalie deduziu. Mas quem de fato dominava o escritório era Bárbara Peyton. Com uma elegância insultuosa, emoldurada pelo verde escuro do veludo recobrindo a cadeira que um dia pertencera a seu filho, parecia presidir uma aborrecida reunião de negócios, em vez de demonstrar qualquer dor que teria transtornado outra mulher, dotada de um mínimo de amor maternal. — Obrigada por nos atender tão de pronto, Senhor Kemp — Bárbara Peyton dizia ao advogado. Bateu nos documentos a sua frente, fazendo brilhar o esmalte vermelho vivo das unhas — Entrarei em contato com o Senhor se houver mais alguma coisa.

4


O advogado assentiu com um gesto de cabeça e, pegando a valise, dirigiuse para a porta com uma pressa indelicada. Desviando o corpo para não se chocar com Natalie. — Entre e feche a porta, Senhorita Bishop — a Senhora Peyton ordenou áspera. Natalie atendeu-a em silêncio. Atravessou o escritório até a cadeira de couro na frente da mesa. Em uma atitude instintiva, sentou-se na beirada, de forma que seus pés repousassem no chão. — Em que posso ser útil, Senhora Peyton? — perguntou, procurando disfarçar a antipatia que tinha por aquela mulher. — Sherri disse que você é detetive particular. — Sim — Cruzou as pernas, puxando para baixo dos joelhos a saia de seu único traje escuro. De propósito, Bárbara Peyton mediu-a de alto a baixo, sem perder nenhum detalhe. O cabelo loiro e liso, os óculos de aros cor de caramelo que ressaltavam a tez branca, a sobriedade do casaco e da saia verde escuros, os sapatos de saltos muito altos, nada escapou àqueles frios e calculistas. — Incomoda-se se disser que não se parece com uma detetive particular? — a Senhora Peyton comentou e ergueu uma sobrancelha em sinal de ceticismo. — As aparências enganam — Natalie respondeu, dando de ombros. Sabia que era seu caso. Muitas pessoas a subestimavam por causa do um metro e cinqüenta e cinco de altura, e dos quarenta e sete quilos bem pesados, a última vez que subiu numa balança estava vestida e com a roupa encharcada. Problema delas, não seu. Havia muito deixara de se constranger com isso, passando a tirar proveito, sempre que possível, de sua baixa estatura. — Tem experiência no ramo? Bárbara Peyton parecia entrevistá-la para oferecer um emprego de doméstica. Natalie pensou em retrucar a altura, mas decidiu que não valia à pena se indispor com a velha Senhora antes de saber ao certo onde ela pretendia chegar. — Trabalhei quase quatro anos com a Shaffer e Associados — respondeu com toda calma, referindo-se a agência, melhor conceituada no ramo empresarial da cidade — Há dois anos e meio tenho minha própria agência, a Estritamente Confidencial. — E se considera uma boa profissional? Os olhos castanhos de Natalie se estreitaram por trás das lentes dos óculos muito grandes. — Uma das melhores — afirmou segura de si. — Que bom — Bárbara Peyton acolheu a demonstração de confiança balançando a cabeça, em sinal de aprovação. Sorria como um tubarão ao ver surgir seu almoço — Muito bom mesmo. Porque quero que investigue uma certa pessoa. 5


— Quem? Relanceou os olhos para o irmão, encarapitado no braço do sofá de couro, ao lado de Sherri. Porém Daniel limitou-se a dar de ombros. — Chama-se Lucas Sinclair — explicou Bárbara. Inclinou-se para frente e descansou os cotovelos sobre a mesa, enquanto se certificava de que detinha a atenção de todos no escritório. — Meu filho. — Seu filho? — Natalie arregalou os olhos — Mas eu nunca soube... — Do meu primeiro casamento. — Não me lembro de ter ouvido Rick mencionar que tinha um irmão — Natalie voltou a consultar Daniel com o olhar. Porém ele fez que não com a cabeça, igualmente surpreso. — Meio irmão — corrigiu Bárbara — Lucas é bem mais velho que Ricky. Tem quase trinta anos. Não o vejo desde que deixou os Fuzileiros Navais — Torceu os lábios pintados da cor exata das unhas, como se aquelas palavras deixassem um gosto amargo na boca — Ao contrário do que sempre pensei, Ricky se relacionava com o meio irmão. Parece que nem você sabia disso. O tom ameaçador dirigido à nora foi acompanhado de um olhar gélido. — Só o vi uma vez — desculpou-se Sherri. A voz quase inaudível, perturbada com a possibilidade de aborrecer a sogra. Daniel estendeu a mão, desajeitado, tentou confortar a viúva tocando no ombro. Como recompensa, ganhou um débil e grato sorriso de Sherri, que continuou, — Lucas esteve aqui apenas uma vez. Eu voltava do supermercado e encontrei-o tomando um drinque com Ricky no deque. Foi em fevereiro, acho. Assim mesmo — fungou e deu de ombros, em um gesto tímido e inútil — quase não conversamos. Fui para a cozinha preparar alguns sanduíches, mas quando voltei, ele já estava de saída. Ameaçava nevar e ele disse que preferia voltar para casa antes que o tempo piorasse. Nunca mais o vi e... Bem... — Mordeu o lábio. — E o quê? — Bárbara quis saber. Sherri fitou o lenço que transformara em uma bola de pano amarrotado, de tanto retorcê-lo. — Ricky me pediu para não dizer nada a... Ninguém. — Ninguém? — Bárbara repetiu. — Para a Senhora — Sherri admitiu, sem encará-la — Disse que a Senhora e Lucas nunca se entenderam, e que ficaria aborrecida se soubesse da visita de Lucas. — Tinha toda razão — Bárbara retrucou. Sherri fungou de novo, abaixando a cabeça ao mesmo tempo em que levava o lenço ao nariz, em um esforço óbvio de esconder-se do olhar lancinante da sogra.

6


— Não tenho certeza se entendi, Senhora Peyton — Natalie interveio, salvando Sherri de maiores embaraços — Quer que encontre seu filho e diga onde ele está? Seria possível que Bárbara Peyton quisesse restabelecer o contato com o filho mais velho? Que, apesar de tudo, a morte de Rick despertara sentimentos inimagináveis naquele coração de pedra? — Sei muito bem onde ele está — disse Bárbara, dissipando as dúvidas de Natalie — Lucas mora aqui em Minneapolis. — Nesse caso, o que quer que eu faça? — Que o investigue. — Por quê? — Porque ele herdou a parte de Ricky no Galaxies. — O quê? — Natalie e Daniel exclamaram em uníssono. Bárbara limitou-se a erguer uma sobrancelha, divertindo-se com o peso de sua declaração. Em seguida fez sinal para que a nora continuasse. Sherri recorreu ao lenço mais uma vez para disfarçar o constrangimento antes de falar. — Ricky deixou todas as ações da Galaxies para Lucas — Lutava para conter as lágrimas, mas um segundo depois se deu por vencida — E eu mal o conheci! — gemeu, esfregando os enormes olhos azuis. Daniel deu-lhe palmadinhas no ombro, enquanto Natalie perguntava, — E isso quer dizer que...? — Que Sherri não ficou com nada! — Bárbara anunciou dramática. — Também não é assim — retrucou Sherri, heróica, recompondo-se depressa para defender o finado marido — Ricky me deixou a casa e o dinheiro do seguro. E ainda tenho as ações da Galaxies que ele me deu como presente de casamento — Voltou-se para Daniel — A menos que eu seja obrigada a entregálas a Lucas, agora que Ricky está... Apertou com força os lábios que começavam a tremer, impedindo-a de completar a frase. — Não se preocupe essas ações estão no seu nome — Daniel tranqüilizou-a — Rick não poderia fazer nada com elas sem seu consentimento — inseguro, olhou para a irmã — Poderia? Natalie balançou a cabeça, mas quis saber, — Lembra-se de ter endossado as ações, ou de ter assinado alguma procuração em nome dele? Não. — Bem, nesse caso, continuam sendo suas — disse Daniel, agora mais confiante. — Está vendo? — Sherri provocou a sogra — Ricky não me deixou desamparada. — Não cante vitória antes do tempo, mocinha — redargüiu Bárbara, implacável — Se a polícia concluir que foi suicídio, a companhia de seguros não dará um centavo — Com um gesto amplo, abrangendo todo o escritório, 7


completou — Terá de vender tudo para sobreviver com um mínimo de dignidade. Sherri engoliu em seco e arregalou os olhos muito azuis. — Isso é verdade, Danny? — perguntou, agarrando-o pela manga do paletó. — Eu n-não sei... Daniel gaguejou incapaz de consolá-la dessa vez. Ainda não absorvera o choque de tantas revelações que se sucediam à morte repentina do sócio. — Em geral consta de qualquer contrato de seguro uma cláusula que exime as companhias do pagamento em caso de... Suicídio — Olhou para a irmã em busca de auxílio — Não é isso, Nat? — A maior parte das vezes, sim — Natalie concordou. Mas teve a delicadeza de emendar — Eu não me preocuparia com isso por enquanto, Sherri. A menos que existam provas irrefutáveis, a polícia sempre pretere optar pela alternativa do simples acidente. Para fazer tal afirmação, Natalie contava sua experiência como detetive particular, e com os conhecimentos adquiridos convivendo com o pai, policial em Minneapolis havia dezesseis anos. — Acha mesmo? — Se é Nat quem está dizendo — respondeu Daniel, acariciando a mão presa a sua manga. — Isso não altera em nada os fatos — esbravejou Bárbara. — Um completo estranho assumirá o comando de uma empresa que, por direito, deveria garantir o futuro de Sherri. — Ora, mas e seu filho! — Natalie comentou atônita diante de tamanha fúria. — A quem não vejo há mais de dez anos — Bárbara disparou — Ha, se eu soubesse que Rick tinha procurado Lucas... Jamais permitiria que tomasse dinheiro emprestado. — Por que Ricky haveria de emprestar dinheiro do irmão? — Natalie quis saber. — Meio irmão — Bárbara corrigiu outra vez — Também não faço a menor idéia. — O advogado disse que ele emprestou dinheiro do ir... Meio irmão — Sherri retificou, olhando rápido para a sogra — alegando que gostaria de expandir a Galaxies. Parece que Ricky usou as ações como uma espécie de... — Sua adorável fronte enrugou-se enquanto ela pensava — Garantia, acho que é esse o termo. — Expandir? — Natalie repetiu, olhando para o irmão. — Rick vinha falando muito em publicidade — explicou Daniel — Dizia que precisávamos investir mais se quiséssemos aumentar a clientela. Espalhar outdoors pela cidade, publicar anúncios cheios de cores nas revistas mais populares, instalar boxes em feiras especializadas, esse tipo de coisa. Pelo visto, ele decidiu levar a idéia adiante sem me consultar. 8


O que não era de surpreender. Natalie pensou. Rick se responsabilizava por quase tudo na empresa, das vendas à contabilidade. A Daniel cabia apenas desenvolver bons jogos. — Bem, se precisava tanto de dinheiro, devia ter me consultado — Bárbara ralhou, parecendo ofendida — Por que não me procurou? — Não sei — disse Sherri. Para Natalie, porém, era fácil imaginar por que Rick preferira não recorrer à mãe. Aceitar dinheiro dela significaria dançar conforma a sua música. E Rick Peyton era esperto demais para meter-se em tamanha enrascada. — Muito bem — disse em voz alta, voltando a atenção de todos para o principal assunto em discussão — A Senhora quer que investigue seu filho. O que pretende que eu descubra? — Alguma coisa que eu... — corrigiu-se depressa, sorrindo para a nora — que nós possamos utilizar para forçá-lo a devolver as ações para Sherri. Direto ao ponto, concluiu Natalie. Sem rodeios. Mas tinha plena consciência de que um pequeno, porém importante detalhe fora deliberadamente omitido, em poder da nora, as ações ficariam ao alcance das mãos de Bárbara, que as controlaria com facilidade, de acordo com seus próprios interesses. — Creio que não será difícil — Bárbara prosseguiu — Lucas era uma criança incorrigível e piorou muito com o passar do tempo. Cabulava as aulas, cometia pequenos furtos em lojas, e, na adolescência, foi pego algumas vezes no banco traseiro do carro com moças de moral duvidosa. Fez uma pausa em que aproveitou para tirar um fiapo invisível do belo casaco, ressaltando assim que o comportamento do filho mais velho pouco a incomodava, a não ser quando entravam em conflito com seus interesses. Como naquele momento. — Chegou a roubar um carro certa vez — continuou — O pai de Rick e eu pretendíamos mandá-lo para um reformatório, mas ele nos poupou o trabalho fugindo de casa. Apesar dos esforços da velha Senhora. Natalie sentia crescer a simpatia por Lucas, mesmo sem conhecê-lo. Ninguém, por "incorrigível" que fosse, merecia ter por mãe uma mulher como Bárbara Peyton. Mas evitou que seus olhos denunciassem esses pensamentos ao encará-la e dizer, — Estou certa de que não é esse tipo de delito que a Senhora quer encontrar para poder... Chantageá-lo. Hesitou, receando que a força da palavra provocasse a ira de Bárbara. No entanto, prevaleceu a curiosidade em saber se ela negaria sua verdadeira intenção. Como esperava, não foi o que aconteceu. — As pessoas nunca mudam — Bárbara argumentou — Lucas era endiabrado e mulherengo aos dezessete anos, e não tenho dúvidas de que continua igual. Se procurar com atenção, Senhorita Bishop, descobrirá algo na 9


vida de Lucas de que até ele se envergonharia se o mundo inteiro viesse, a saber.

CAPÍTULO II Do deque, atrás das portas de vidro entreabertas, Lucas Sinclair ouvia a mãe denegrir sua imagem. Fascinava-o constatar que depois de tanto tempo, suas palavras ainda conseguiam machucá-lo. Não com a mesma intensidade de outrora, claro. Nunca mais Bárbara Peyton o abalaria tanto como na época em que deixara os Fuzileiros Navais e voltara para casa. Recém casado, braços dados com a esposa, levava no peito a vontade de começar uma vida nova. Imaginara que a mãe, viúva e com um filho adolescente para criar, também estaria ansiosa por reparar os erros do passado. Enganara-se redondamente. Lucas deu de ombros. Procurou se convencer de que reagia como outro ser humano qualquer ao ouvir referências tão pouco elogiosas sobre sua pessoa. E, ainda por cima, descobrir que travavam um plano diabólico, cujo objetivo aquela loirinha sensual definira com precisão, chantagem. Sentia o sangue fervendo nas veias, mas tantas aventuras ensinaram a controlar as emoções, a canalizá-las para seu próprio bem. Respirou fundo, instalou um sorriso sarcástico nos lábios e empurrou as cortinas de lado para entrar no escritório. Não imaginara experimentar tanto prazer com a expressão de pânico que tomou conta do rosto da mãe. Os olhos se arregalaram, o queixo caiu, o sangue fugiu de suas faces. Era a primeira vez que a via em mais de dez anos. Mesmo assim, Lucas esperou até que todos os presentes se voltassem, acompanhando o olhar de Bárbara Peyton. Curiosos em saber o que provocara tamanha transformação. A loirinha sensual foi a primeira a olhar em sua direção, girando a cabeça tão depressa que o cabelo liso chicoteou o rosto. O garoto prodígio, ex-sócio de Rick, encarou-o com ar confuso, a testa cheia de rugas de preocupação. Por fim a linda e frágil viúva de seu irmão voltou os enormes olhos azuis, marejados de lágrimas, para ele. Lucas relanceou os olhos por eles antes de fixá-los na mãe e cumprimentá-la com um aceno de cabeça. Lívida, tensa, Bárbara Peyton parecia uma estátua que alguém esquecera atrás da mesa de Rick. — Olá mamãe — saudou-a, alargando o sorriso ao constatar que o som de sua voz a sobressaltara. Quinze tensos e silenciosos segundos transcorreram em câmara lenta. Perdidos em pensamentos, ninguém ousava interferir no curso dos

10


acontecimentos que só mãe e filho, personagens principais daquele drama, tinham o direito de determinar. Bem, pelo menos em um sentido a velha bruxa parece ter razão, concluiu Natalie, observando o intruso que, muito à vontade, ocupava o centro do escritório e das atenções. Ele tinha todo o jeito de ser um grande mulherengo. Em parte graças ao pai, que, na mocidade, não podia ver um rabo-desaia, mas também aos homens com que era obrigada a conviver em seu trabalho, Natalie conhecia o tipo muito bem. Tampouco escapavam traços que caracterizam um machão nato. Como os que via em Lucas Sinclair. O cabelo castanho escuro curto demais, revelava desprendimento com relação aos ditames da moda atual. Apesar de ter deixado a corporação havia muito tempo, seu passado de fuzileiro naval ainda devia influenciá-lo bastante. O nariz era curvo para baixo, como se tivesse sido quebrado, mais de uma vez, com certeza e não recebesse o tratamento adequado para consertá-lo. Os olhos verdes claros ostentavam o brilho cínico de quem acha que já viu de tudo nessa vida. O sorriso frio e sarcástico não demonstrava consideração por ninguém. Mas era a maneira como se postava que na verdade denunciavam suas tendências machistas. Lembrava um franco atirador, calmo, desembaraçado e arrogante por fora, tenso, calculista e disposto a tudo por dentro. Por outro lado o rosto anguloso, os ombros fortes de boxeador e a atitude viril deixariam de pernas bambas muitas mulheres. Inclusive ela própria, Natalie reconheceu em pensamentos, lamentando a inegável, ainda que muito bem disfarçada, fraqueza por tipos brutos, ao estilo de Clint Eastwood. Sabia dos estragos que eles podiam fazer, mas não tinha como evitar. Uma considerável parcela da população feminina mundial concordaria com ela. Enquanto isso. Daniel alternava o olhar embasbacado entre Natalie e o estranho que se erguia a sua frente. Deixava claro que esperava a reação da irmã antes de fazer seu próprio julgamento. Sherri Peyton continuava sentada no sofá, muda de espanto, sem desviar os olhos do homem que só vira uma vez na vida e que, de acordo com a sogra e o advogado, detinha seu futuro nas mãos. Afinal Bárbara Peyton rompeu o incômodo silêncio. — O que você veio fazer aqui? — exigiu saber com sua petulância característica. Parecia acusá-lo de tentar roubar a prataria. — Imagino que a mesma coisa que você — Lucas respondeu, sem alterar o sorriso — Dar meus pêsames à viúva. — Veio reclamar sua parte na herança, isso sim — retrucou a mãe. — Como eu disse a mesma coisa que você. Então, ignorando-lhe o olhar ultrajado, voltou-se e tocou no ombro de Sherri. Que se encolheu toda, talvez com medo de que pudesse queimá-la. — Eu sinto muito — disse com uma delicadeza surpreendente — Faço idéia do quanto você deve estar sofrendo. Os lábios de Sherri tremeram patéticos. 11


— Na verdade eu e Rick começávamos a nos conhecer melhor — Lucas continuou — Mas, apesar do pouco contato que tivemos, eu gostava muito dele. Esperava que a cunhada não rompesse em um pranto histérico, mas aprovava sua falta de controle sobre as próprias emoções. Seria um comportamento típico de uma mulher feminina, difíceis de encontrar hoje em dia. Admitia que faltasse sinceridade no que acabava de dizer. Certos aspectos da personalidade do irmão não o agradavam muito. Mas que importância tinha isso naquele momento? Sentia-se na obrigação de oferecer algumas palavras de conforto à viúva. — Não terá de vender nada para sobreviver — assegurou, lançando um rápido e penetrante olhar para a mãe — Fique tranqüila com relação a isso. — Obrigada. Sherri enxugou as lágrimas e exibiu um sorriso tímido. A promessa de Lucas alcançara o efeito desejado. — Quer dizer que pretende passar as ações para o nome dela? — Bárbara perguntou ansiosa. — Não, mamãe. Se Rick resolveu me deixar essas ações, e porque tinha um bom motivo — Para que você não pusesse as mãos gananciosas em cima delas, completou em pensamento — Pretendo descobrir que motivo era esse antes de tomar qualquer atitude. Deu a volta no sofá enquanto falava e estendeu a mão para Daniel. — Lucas Sinclair — apresentou-se, como se nenhum dos presentes tivesse plena consciência de quem ele era — Parece que vamos ser sócios. Por algum tempo, pelo menos. — Sim, parece — Daniel levantou-se olhando de relance para Natalie antes de tomar a mão que era oferecida. Porém a boa educação falou mais alto que a insegurança — Prazer em conhecê-lo. Lucas percebeu o olhar do rapaz e tentou imaginar o que seriam. Casados? Namorados? Em seguida voltou-se para a loirinha que o estudava sem disfarçar por trás das lentes grandes dos óculos. — E você, quem é? — perguntou de repente, classificando-a no grupo das mulheres "modernas", independentes e agressivas como sua ex-esposa e sua mãe. Natalie levantou-se e estendeu-lhe a mão com a firmeza de quem cumprimento um parceiro de negócios, confirmando suas suspeitas. — Natalie Bishop — ela respondeu áspera, habituada a tratar os homens de igual para igual — Sou irmã de Daniel — acrescentou para não dar margem a confusões. No mesmo instante se arrependeu. Não devia explicações. Além do mais, por que essa necessidade de deixar claro que o vínculo entre eles era apenas fraternal?

12


Lucas tomou a mão que ela estendia, abaixando os olhos para poder encará-la. Quer dizer que são apenas irmãos, considerou, enquanto tentava negar a satisfação que experimentava em saber disso. Ela sustentou seu olhar com uma frieza bem calculada. Claro que aqueles óculos na última moda, aqueles olhos castanhos, grandes e suaves como os de um cocker spaniel, escondiam a mesma curiosidade dos demais com relação ao estranho que acabava de entrar no escritório, provocando o choque de um terremoto. Não foi isso que o abalou. Nem sua pequena estatura, que os saltos de uma altura absurda pouco faziam para dissimular. Mas sim o toque de sua mão, pequenina e muito macia. O cabelo loiro, que mal chegava aos ombros. E, acima de tudo, o perfume. Uma essência floral e feminina, com toques de ervas orientais, desenvolvida para atingir os homens em seu ponto mais fraco. Era só o que me faltava! Lucas pensou, aborrecido com os sentimentos que o invadiam contra a própria vontade. Por que aquele tipo o atraía tanto? Maldição! As mulheres modernas, empenhadas em transformar uma simples carreira profissional em um exemplo de sucesso, deviam ter uma aparência que correspondesse a essa opção de vida, e não a suas fantasias sexuais mais loucas e deliciosas! Natalie abaixou os olhos para a mão que ele não soltara ainda, querendo indicar que essa atitude a incomodava. Mas deparou-se com algo inesperado que prendeu sua atenção. Ele tinha uma tatuagem no dorso da mão. A cabeça de uma serpente, linda e mortífera, surgia debaixo do punho da camisa branca de algodão cru. Com a língua bifurcada projetando-se da boca. Ela parecia prestes a dar o bote. Um suvenir digno de qualquer machista. Natalie concluiu ao mesmo tempo em que um gostoso arrepio corria a espinha e se alojava nos recessos mais femininos de seu corpo. Ah, Não! Pensou no instante seguinte, proibindo-se de sentir qualquer coisa além de repugnância por aquele homem. Inutilmente. Apesar da professa, mas raras vezes experimentada admiração por homens sensíveis e delicados, não tinha como negar o fascínio que exerciam sobre ela homens másculos e viris. Como aquele que continuava a segurar sua mão. Alarmada, Natalie recuou, procurando se recompor. — Como soube disso? — perguntou brusca, em um esforço para superar sua embaraçosa reação inicial. — Do que? — Lucas murmurou, preocupado em adivinhar que tipo de problemas ela causaria. Pois a experiência dizia que mulheres como aquela sempre significavam problemas em sua vida. — As ações — Natalie repetiu, fingindo-se impaciente.

13


Na verdade, sentia-se minúscula e indefesa diante dele, como se Lucas tivesse o poder de desnudá-la com os olhos. — Acabamos de ser comunicados do destino que Rick resolveu dar a suas ações da Galaxies. No entanto, você já sabia que Daniel era seu novo sócio. — Com certeza ouviu nossa conversa por trás da porta — Bárbara intrometeu-se, com ar de desprezo. — Mais ou menos isso — Lucas admitiu, conseguindo afastar-se de Natalie afinal para encarar a mãe — Mas também um tal de Kemp deixou um recado na minha secretária eletrônica. Sugeria que, como sou o principal beneficiário, deveria estar presente na leitura do testamento do meu irmão — Fez uma pausa e completou — Foi assim que fiquei sabendo de sua morte. Daniel assobiou baixinho. — Que jeito de descobrir uma coisa dessas — murmurou. Natalie concordava. Mesmo para um meio irmão, ou ex-fuzileiro naval, habituado a emoções fortes... Obrigou sua mente a parar e retomar ao assunto em discussão. Lucas estava sendo sincero ao dizer que ele e Rick "'começavam a se conhecer"? Afinal de contas, quem emprestaria dinheiro a um estranho, ainda que fosse um parente? Principalmente se fosse um parente, Natalie emendou, achando divertida a idéia. Um homem tão vivido e cínico como Lucas Sinclair, com certeza raciocinaria da mesma maneira. A menos que... Olhou de relance para ele. Frio, controlado e tão perigoso quanto um espécime vivo da cobra enrolada em seu pulso, trocava olhares lancinantes com a mãe. A menos que esperasse tirar grande proveito daquela transação, completou o pensamento. Algo muito maior que simples juros. Qual seria o montante daquele empréstimo? Milhares, ou centenas de milhares de dólares? Tinha de ser uma quantia considerável, Natalie concluiu, para justificar que se desse as ações de uma empresa em garantia. Mas quanto custaria alguns anúncios em revistas e outdoors. Não muito, com certeza... — Duvido muito! Bárbara exclamou de repente, interrompendo as frenéticas considerações de Natalie. Levantou-se e, as mãos apoiadas na mesa, o rosto crispado de raiva, insistiu. — Duvido muito que você só tenha ouvido falar nessas ações agora. Para mim, você planejou tudo isso! Daniel engoliu em seco. Natalie retesou-se, chocada com a grave acusação insinuada nas palavras de Bárbara Peyton. — Como assim? — Sherri perguntou ingênua, do sofá — Planejou o quê? Lucas aprimorou a pergunta. — Sim, mã... — deteve-se, incapaz de chamá-la de mãe naquele momento, nem no tom sarcástico que costumava emprestar ao termo — Explique-nos o que foi que eu planejei, na sua opinião. — Acho que fui bastante clara. 14


— Por favor, me faça rir um pouco — ele desafiou a voz baixa, entre dentes, fazendo retroceder a própria Bárbara — Diga-o com todas as letras, para que não haja possibilidade de uma má interpretação. Não obteve resposta. — E então? — Lucas perguntou, avançando um passo — Estamos esperando. — Muito bem — Bárbara jogou a cabeça para trás em sinal de coragem, atirando o bom senso pela janela — Muito bem, eu direi! Não e segredo para ninguém que Ricky morreu em circunstâncias um tanto... Suspeitas. — Suspeitas? — Sherri repetiu — Mas não há nada de suspe... Daniel colocou a mão em seu ombro para acalmá-la e mantê-la calada. — Suspeitas sim — Bárbara insistiu alheia ao protesto da nora e à expressão dura, implacável do filho — Não encontraram marcas de derrapagem no asfalto, nem drogas ou álcool no sangue dele. Absolutamente nada que indicasse um acidente. — Então o que seria? — Lucas quis saber. — A polícia acha que foi suicídio. — Não — Sherri interrompeu de novo — Foi um acidente. — Calma — disse Daniel, e apertou o ombro. — Mas... — Por favor, fique calma. — O que você acha que aconteceu? — Lucas perguntou à mãe. Um brilho intenso nos olhos verde-claros. As palavras pairaram no ar como uma lâmina desembainhada. Parece um pistoleiro de filme de faroeste, pensou Natalie, ameaçando virar a mesa de pôquer em cima do jogador que ousou chamá-lo de desonesto. Por pouco não correu a procura de um lugar que a abrigasse do tiroteio. — O que você acha que foi? — Lucas perguntou outra vez. Bárbara terá coragem de dizer que desconfia de um... Assassinato? Natalie imaginou. Os anos de experiência como detetive particular ensinaram que tudo era possível. Ainda mais se levando em conta, que Lucas só tinha a ganhar com a morte do irmão. Mesmo assim e por estranho que pareça, relutava em associar Lucas Sinclair a um crime tão violento. Por mais ameaçador que ele parecesse naquele instante. — Suicídio — Babara declarou afinal — Acho que foi suicídio. Natalie deixou escapar um suspiro de alívio que a surpreendeu. — Mas também acho que teve seu dedo nisso — Bárbara acrescentou, eliminando o efeito apaziguador da última afirmação — De algum modo, você o levou a tomar essa atitude desesperada. Lucas arqueou os ombros para trás como se acabasse de levar um murro. — Eu o levei a se suicidar! — Bateu as mãos na superfície lisa da mesa e parecia prestes a saltar por cima dela — Aonde você pretende chegar com uma acusação dessas?

15


Bárbara encolheu-se toda diante da ferocidade da expressão no rosto seu filho. Sentou-se e apertou com tanta força os braços da cadeira de veludo que os nós de seus dedos perderam a cor. — A lugar nenhum — Mesmo intimidada, sua teimosia a impedia de voltar atrás — Você emprestou dinheiro sabendo muito bem que ele jamais teria condições de salvar a dívida. Cedo ou tarde ficaria inadimplente. Quando isso aconteceu, você o perseguiu tanto que ele não conseguiu mais suportar. Sherri disse que Rick andava muito deprimido, e acho... — Sabe por que você acha isso... Mamãe? — Lucas esbravejou, fazendo questão de deixar bem claro a dor que sentia pronunciar essa palavra — Porque é exatamente o que você teria feito! Bárbara levantou-se de um salto e empurrou a cadeira com as pernas, como se precisasse de mais espaço para enfrentá-lo. — Mas não fiz — acusou — Você sim. Você o levou ao suicídio! — Não! — Sherri livrou-se da mão de Daniel e levantou-se também — Ricky não se matou! Lucas agiu rápido. Rodopiou nos calcanhares e segurou Sherri antes que outra pessoa qualquer tivesse tempo de reagir. Ela resistiu por um instante, derrubando o pequeno chapéu, mas então rompeu em um choro convulsivo e apoiou-se no peito dele. — Ricky não se matou — repetia entre soluços — Foi acidente — Ainda segurando o lenço molhado de lágrimas, bateu o punho delicado no ombro de Lucas. — Eu sei — A mão com a sua mão tatuada parecia maior ao segurar a nuca frágil de Sherri e embalá-la como a uma criança. — Foi apenas um acidente. Apesar do tom suave para confortar a viúva, naquele momento Lucas assumiu um compromisso consigo mesmo, descobriria de uma vez por todas o que de fato acontecera com Rick. Esperava que Sherri tivesse razão. Mas não descansaria até ter certeza. Só assim se sentiria livre das terríveis acusações, que sua própria mãe acabava de endereçar. O telefone tocou, um barulho estridente que aumentou a tensão no escritório. Bárbara tirou o fone do gancho em um gesto automático. Em seguida estendeu-o para Natalie dizendo, — E para você. Sem pressa, o olhar ainda fixo em Lucas e Sherri, ela atendeu. — Alô? Papai? Por que ligou para cá... Tem certeza? Não — Balançou a cabeça — Eu sinto muito, papai. Claro, você tem razão. Do contrário, não telefonaria. Sim, eu direi a eles — Inclinou-se para frente e desligou antes de anunciar — Meu pai telefonou da delegacia de polícia. Acabaram a análise do carro. — E? — Lucas perguntou o corpo rijo de ansiedade. — Não foi suicídio. 16


— Graças a Deus! — O carro de Rick foi preparado para sofrer um acidente — Encarou os olhos verde claros de Lucas Sinclair e concluiu — A polícia agora acredita que ele foi assassinado.

CAPÍTULO III — Ora papai, me dê mais detalhes — Natalie encarapitou-se na escrivaninha do pai, mãos nos quadris, pernas cruzadas — Prometo que não conto para ninguém. — Nem para Bárbara Peyton? — O policial experiente olhou-a desconfiado, as mãos descansando sobre a pasta aberta na sua frente — Ouvi dizer que ela a contratou para investigar o filho. Parece que quer chantageá-lo com o que você descobrir. Natalie sustentou seu olhar e ignorou a pergunta. — Eu não pediria uma coisa dessas a menos que fosse muito importante. — Você sabe muito bem que não posso dizer nada — replicou o pai, áspero, fechando a pasta. Natalie inclinou-se em sua direção. — Ora, papai... Usava seu tom mais doce de voz, capaz de derreter uma rocha. Nathan Bishop encarou-a por baixo das sobrancelhas grossas e grisalhas. — A resposta e não — repetiu. — Mas... — Vai perder seu tempo se continuar insistindo — Suspirou para mostrar à filha o quanto aquela discussão o aborrecia e empurrando a pasta de lado, cruzou os braços em cima da escrivaninha — Os documentos que você quer ver são confidenciais e só podem ser abertos mediante ordem judicial. Coisa que você não tem... — Mas posso conseguir. — E verdade. Mas enquanto isso não acontece, pare de tentar me convencer com essa sua fala mansa. Já devia saber que esse artifício não funciona comigo. Natalie nem se deu ao trabalho de corar ao ser desmascarada. Tinha plena convicção de que todas as armas eram válidas para se atingir um objetivo. Mesmo que fosse contra seu próprio pai. — Além do mais — Nathan continuou — é pouco provável que encontre algum juiz maluco o suficiente a ponto de dar autorização, para que uma detetive particular mate sua curiosidade vasculhando a vida da pessoa que ela acha que cometeu um assassinato. Porque, nesse caso, eu mesmo cuidaria de processar esse irresponsável.

17


Seus olhos brilhavam de raiva, nada irritava mais o Tenente Nathan Bishop, que ver uma pessoa ocupando um cargo público trair a confiança nela depositada. — Não se trata de mera curiosidade — Natalie defendeu-se, endireitando o corpo — E em nenhum momento eu acusei Lucas de assassinar o irmão. Nem o faria. O simples fato de associá-lo a um crime tão sórdido bastava para perturbá-la. — Eu só queria conhecer mais detalhes do passado dele — continuou enquanto alisava o tecido azul claro da saia — Um procedimento perfeitamente legal. Lembre-se que ele será sócio de Daniel. Por algum tempo, pelo menos — Lançou ao pai um olhar acusador, estreitando os olhos atrás dos óculos — Pensei que você também estivesse curioso sobre esse homem. Sabe como é Daniel. — Sim, eu sei — Nathan concordou. Pai e filha sorriram um para o outro. Daniel, um gênio em tudo que se relacionava com eletrônica, não tinha o menor senso prático, nem para resolver os problemas mais corriqueiros da vida. Sendo assim, sua família julgava-se obrigada a protegê-lo de tudo e de todos — inclusive de si mesmo, quando necessário. — Por isso fiz uma pequena investigação sobre esse seu amigo. — Ele não é meu amigo — Natalie corrigiu depressa. Depressa demais. Mas advertiu-o, séria — Por favor, papai, não me olhe assim. Meu único interesse é de resolver esse caso. Portanto, pare com isso. — Mas o que foi que eu fiz? — Nathan perguntou, fingindo-se inocente. No entanto, deparando-se com o olhar fulminante da filha, resmungou — Não se pode culpar um velho pai por ainda alimentar suas esperanças, pode? Você está com vinte e sete anos, certo? E ainda não encontrou um homem para cuidar de você. — Da mesma maneira como Kevin cuidou de Andréa? — provocou, referindo-se ao ex-marido da irmã. Nathan Bishop lançou à filha um olhar dolorido. — Não se preocupe com Andréa. Ela encontrará outro homem, muito melhor que aquele verme. — Não preciso de ninguém para cuidar de mim — Natalie retrucou, tentando imaginar por que continuavam discutindo aquele assunto. Fundamentados em convicções muito diferentes, seria difícil um dos dois mudar de opinião. — Toda mulher precisa de alguém que cuide dela. É a ordem natural das coisas. — Não quero ouvir isso — ela protestou, fechando os olhos e tapando os ouvidos com as mãos, feito uma criança. Nathan abriu a boca para continuar, mas calou-se. Com a ponta do indicador, empurrou a pasta na direção de Natalie, até encostá-la em sua coxa. — Pode dar uma olhada — convidou. 18


Natalie baixou as mãos. — Quer dizer que esta é a pasta dele? O pai fez que sim com a cabeça. — Ora, sua raposa velha — disse ela, perdoando-o no mesmo instante. Agarrou a pasta, abrindo-a de um só golpe — Não tem muita coisa aqui. — O suficiente. Natalie acomodou-se melhor na beirada da mesa, descruzando e cruzando de novo as pernas cobertas pelas meias de náilon enquanto lia, — Uma multa por estacionar em local proibido... Outra multa... De repente calou-se e leu em silêncio, para em seguida exclamar, — Foi arrolado como testemunha em um tribunal porque precisavam de um perito em computação! Ele e Daniel vão se dar muito bem — comentou — Mas, fora isso, não estou vendo nada de muito interessante. — Continue — o pai aconselhou-a — Você vai ter uma surpresa. Natalie lançou-lhe um olhar rápido, curioso, e então passou para a próxima página. — Nove anos nos Fuzileiros Navais — leu em voz alta — Foi campeão de boxe. Serviu em Nam como voluntário. Foi promovido a Capitão. Recebeu várias condecorações. "Medalha por distinção no serviço." Impressionante. Na verdade, procurava se manter distante do homem que aqueles registros revelavam. Mas a imagem de Lucas Sinclair, fardado e com o peito cheio de medalhas, formou-se em sua cabeça e estava custando a sair. — Ele levou um tiro em Saigon. Mesmo assim, pilotou um helicóptero cheio de refugiados e só descansou quando os viu sãos e salvos. Natalie apontou para a pasta e disse, — Isso não está escrito aqui. — Conversei com um velho amigo meu que também esteve na guerra. — Oh, entendo. Você pode usar seus contatos para conseguir uma informação, mas me recrimina quando faço a mesma coisa, não é? — A ficha de serviços de um militar não é confidencial. — Mas também não se pode dizer que seja de conhecimento público. Nathan deu de ombros. Natalie retomou a leitura. De fato, havia muita coisa ali, mas não o que ela procurava. — Diplomou-se em computação depois que voltou do Vietnã. Trabalhou para o serviço secreto americano... — Tornou a olhar para o pai — Há um parágrafo inteiro completamente rasurado. Não dá para ler nada. — Eu sei. — Espionagem? — Pode ser. — O que será que estava escrito aqui? Alguma mensagem ultra-secreta, talvez? — ela sugeriu cada vez mais intrigada — Ou nomes comprometedores que também trabalhavam para a KGB? Nathan balançou a cabeça e comentou, divertido, 19


— Você é mais parecida com seu irmão do que pensa. — Uma espécie de 007, com licença para... Matar? O tom de brincadeira desaparecera de sua voz. — Imagine uma pessoa que passa dia após dia dentro de um escritório fétido e sem janelas, traduzindo códigos com o auxílio de um computador, e terá chegado mais perto da verdade. Ao ouvir essas palavras a suas costas Natalie girou tão depressa que quase caiu de cima da mesa. No mesmo instante Lucas adiantou-se e segurou-a pelo cotovelo. — O que você está fazendo aqui? — ela quis saber, puxando o braço com força para afastar-se dele. O movimento brusco fez a pasta voar, aterrissando no chão, junto da cadeira de Nathan. — Atendendo um convite — disse Lucas, muito tranqüilo. Na verdade, porém, lutava para impedir que seus olhos se fixassem nas pernas esculturais que surgiam por debaixo da saia curta, alongavam-se até os pés delicados, protegidos por sapatos de saltos altos, e enchiam a boca de água. — Quem o convidou? — Natalie o interrogou, resistindo a tentação de puxar a barra da saia, se possível até cobrir os joelhos. — Eu, menina — Nathan interveio ao mesmo tempo em que se curvava e pegava a pasta. Natalie franziu a testa. Nunca gostou quando ele a chamava de "menina". Na frente de Lucas, então, odiou. Sentiu-se pequenina e frágil como os bibelôs de porcelana que Andréa colecionava. Porém sua expressão de zanga ou passou despercebida pelos dois homens, ou não foi levada a sério por nenhum deles. Observando-os juntos pela primeira vez, Natalie notou que tinham algo em comum, ambos eram machistas, do tipo para quem o lugar da mulher é em casa, dedicando-se aos afazeres do lar, debaixo do pulso firme, ainda que indulgente do marido. — Recebi o recado que o Senhor deixou na minha secretária eletrônica — disse Lucas, dirigindo-se ao Tenente da polícia. Natalie concluiu que ele acabava de conquistar mais um ponto ou dois na estima do pai ao chamá-lo de Senhor. Além do respeito devido a uma pessoa mais velha, o tratamento também reconhecia em Nathan o fuzileiro naval que ele fora um dia. — O Senhor disse que gostaria de conversar o quanto antes — Lucas continuou — Bem, aqui estou. — Não precisava se dar ao trabalho de vir até o centro da cidade, Capitão Sinclair — Nathan reclinou-se na cadeira e atirou a pasta em cima da mesa — Poderíamos nos falar pelo telefone. — Tenho certeza que sim — Lucas concordou — Mas resolvi para aproveitar e esclarecer algumas dúvidas. A propósito — emendou, estendendo a mão — prefiro que me chame de Lucas, Senhor. 20


A cobra escorregou pelo punho da camisa e ficou bem à vista. — Lucas, então — Nathan concordou, levantando-se para tomar a mão que era oferecida — E a um ex-fuzileiro eu permito que me trate por Nate. Mas por favor, sente-se, sente-se. De repente pareceu notar a filha que continuava encarapitada sobre sua mesa. — Desça daí, Natalie — ordenou — e vá embora. Lucas e eu temos alguns assuntos importantes para tratar. — Não se preocupem comigo — disse ela sorrindo e desviando os olhos da cobra no pulso de Lucas para encarar o pai — Façam de conta que não estou aqui. — E um assunto oficial — Nathan insistiu — Portanto, nada que seja da sua conta. — E claro que é da minha conta... — ela começou, indignada, mas interrompeu-se ao sentir as mãos de Lucas em volta de sua cintura. — Permita-me ajudá-la — disse ele, erguendo-a da mesa como se não pesasse mais que uma criança. Seus corpos se tocaram por uma fração de segundo, mas foi o suficiente para que um calor imenso os envolvesse e lembrasse a ambos, o que poderia acontecer quando um homem e uma mulher se aproximavam tanto. — Bem, se é assim — Natalie conseguiu dizer, esforçando-se para controlar as próprias emoções — Tentarei descobrir o que preciso em outro lugar. Era uma ameaça sutil ao pai, apenas para adverti-lo de que não se deve desprezar a força de uma mulher. — Talvez seja mais difícil do que você imagina — disse Nathan, divertido — Jeffries foi transferido do Arquivo. Natalie ergueu uma sobrancelha. — Isso quer dizer o quê? — Da última vez, bastou você piscar para ele para conseguir tirar cópias de documentos que não teria acesso de outra maneira. Achei que seria para o próprio bem de Jeffries se ele fosse transferido para um lugar menos tentador. Furiosa, Natalie ficou na ponta dos pés e bradou, — Eu não sou do tipo que sai por aí piscando para todo mundo! Em seguida girou nos saltos dos sapatos azul claro e saiu pisando duro da sala da delegacia, com toda a dignidade de uma mulher ofendida. Depois de um minuto em silêncio, durante o qual só se ouviu o barulho de saltos se distanciando, Nathan observou, pensando alto, — Mas foi o que você fez. Embora eu duvide que tenha consciência disso. — Senhor? — perguntou Lucas, distraído, os olhos ainda retendo a visão dos quadris de Natalie, balançando vigorosamente ao passar por ele. — Nada, nada. Vamos ao que interessa. Natalie bufou durante todo o caminho até o Arquivo onde descobriu que, de fato, Jeffries não trabalhava mais. A oficial atrás da mesa da recepção era 21


uma veterana, que não se deixaria impressionar por nenhum de seus estratagemas. Natalie desistiu de tentar convencê-la a mostrar documentos proibidos. Em vez disso, como também precisava cuidar de outros dois casos, dirigiu-se à seção reservada para os registros municipais. Talvez fosse inútil, mas ao menos tentaria encontrar alguma coisa ali a respeito de Lucas Sinclair. Não só para cumprir o compromisso assumido com Bárbara Peyton, mas também para satisfazer uma curiosidade pessoal. Três horas vasculhando arquivos e microfichas não deram muito material com que trabalhar. Encontrou apenas as informações usuais. Nascido em um dia de inverno no Hospital Metodista, Lucas Sinclair foi um saudável bebê de quatro quilos e trezentos gramas. Na época sua mãe era secretária da Suprimentos para Escritórios Peyton, seu pai, um operário da construção civil desempregado. A julgar pelos documentos do divórcio, datados de quando Lucas contava com apenas oito anos de idade, e os processos subseqüentes exigindo o pagamento de pensão alimentícia e para a educação da criança, parecia que Bárbara Sinclair, futura Senhora Peyton tinha motivos para justificar a amargura que demonstrava para com os homens. Havia pouca coisa sobre Lucas depois que ele completou dez anos de idade. Obstinada, Natalie tomou nota de tudo. Ele se registrou no Partido Republicano. Comprou uma licença para pesca válida por um ano. Foi proprietário de um barco a motor de tamanho modesto, um reboque para transportá-lo, e uma perua Jipe modelo Cherokee, ano 1988. Essa ela conhecera ao vê-lo partir do condomínio em que morava Sherri Peyton. As licenças, taxas e impostos municipais ele pagava sempre em dia e à vista. Era o único proprietário de uma empresa chamada Sistemas de Segurança Sinclair. Sua principal atividade, descrita na ficha de registro estadual, era criar sofisticados sistemas, que protegiam grandes redes de computadores, contra a chamada "pirataria" eletrônica, impedindo o acesso a informações valiosas de empresas e bancos. Mas também desenvolvia e instalava sistemas menores para residências e escritórios. Parecia que Lucas encontrou uma maneira lucrativa de utilizar os conhecimentos adquiridos, enquanto decifrava códigos para o serviço secreto, Natalie concluiu, anotando os fatos mais relevantes com seu método único de taquigrafia. Não que acreditasse na história que ele contou. Ninguém classificaria como secretos os arquivos de um homem, que traduzia mensagens cifradas para o Tio Sam. Aquele parágrafo rasurado devia conter alguma informação muito importante, informação essa que Natalie daria seu par de sapatos predileto para obter. Continuou especulando o que seria enquanto trocava uma microficha por outra, apesar de não ter esperanças de encontrar nada de relevante. Mas encontrou. Casado, leu com um sentimento muito parecido com decepção, e também anotou em seu bloco repleto de sinais incompreensíveis para outra 22


pessoa qualquer. Em 1981, ele e Madeline Stratton se casaram. Em 1982 compraram uma casa modesta em um bairro elegante de Minneapolis. Em seguida, porém, descobriu um dado que combinava mais com a imagem que fazia de Lucas Sinclair. Madeline entrou com um pedido de divórcio em 1984. Alegava "'diferenças inconciliáveis". Conseguira ficar com a casa e um dos carros registrados em nome do casal, mas não havia ordem de pagamento de pensão alimentícia nem para filhos, nem para ela. A última informação que Natalie obteve foi um verdadeiro achado. Lucas possuía uma casa em uma das praias no lado oeste do Lago Minnetonka, o mesmo que margeava o condomínio em que morava seu irmão, Rick Peyton. Uma casa pequena, mas que fora bastante ampliada, a julgar pelo grande número de licenças para construção obtidas no decorrer dos anos. O terreno, porém, ocupava uma área de doze acres. Natalie tomou nota de tudo e, confiante de que não havia mais nada a respeito de Lucas Sinclair para ser pesquisado, voltou a atenção para os outros dois casos em que trabalhava no momento, um incêndio sob suspeita de ser doloso e um curioso pedido de seguro por perda de uma propriedade. Apesar de rotineiros, ambos demandavam tempo. Era tarde quando deixou o prédio do Arquivo e estava com fome. Decidiu procurar o restaurante mais próximo antes de ir para a Galaxies. Precisava se preparar para o longo trabalho que tinha pela frente. Pretendia analisar as pastas, documentos e objetos pessoais que Rick deixava no escritório. Talvez assim conseguisse entender qual o verdadeiro papel desempenhado por Lucas Sinclair na vida do irmão. Lucas deixou o Departamento de Polícia de Minneapolis sentindo-se melhor e pior ao mesmo tempo. Melhor porque, apesar do enorme trabalho que deu, conseguiu convencer Nathan Bishop de que não era responsável pela morte do irmão. Pior porque agora conhecia as condições em que Rick morrera. E, embora ainda não se soubesse quem preparara o carro ou por que, sem dúvida alguma não fora um acidente. As perguntas devoravam as entranhas de Lucas como um câncer. Seria possível que tivesse alguma coisa a ver com os vinte mil dólares, que emprestara ao irmão em fevereiro último? Dizer que se surpreendera quando Rick telefonou para marcar um encontro, sem nenhum motivo aparente, seria subestimar seus sentimentos. Não se viam havia cerca de vinte anos. Tinha dezessete anos na época. Portanto, Rick devia ter quatro. Maldição. Lucas pensou, arrancando a gravata com um safanão, enquanto caminhava até a perua Jipe preta. Quase se esquecera da existência daquele irmão. Imaginava que o mesmo acontecia com Rick. Assim sendo, Lucas ficara intrigado naquela tarde de dezembro em que atendeu ao telefone, para ouvir uma voz alegando que fazia parte de seu passado. Rick se mostrara tímido, porém carinhoso, desculpando-se por ligar de

23


repente e, ao mesmo tempo, afirmando que estava na hora de os dois irmãos se reencontrarem. — Eu me casei no último verão — explicara — e pretendo construir uma grande família. Mas antes acho que devo conhecer melhor a família que já tenho. Encontraram-se algumas vezes em bares, restaurantes e, por fim, na casa de Rick. Havia um acordo tácito entre eles de que guardariam segredo sobre esse relacionamento, principalmente da mãe. Ao menos por enquanto. Conheciam-se havia menos de três meses quando Rick tocara no assunto do empréstimo. No mesmo instante Lucas percebeu que vinha sendo manipulado. Mas não recuou. Em parte porque tinha o dinheiro, a empresa de sistemas de segurança ia muito bem. E em parte para tentar resolver um incômodo sentimento de culpa. Afinal, durante longos anos ressentira-se contra o irmão mais novo, objeto de uma devoção maternal que ele jamais recebera. Mas também porque, por estranho que parecesse, tinha a impressão de que a vida fora mais condescendente com ele do que com Rick. Conseguira fugir do ódio destruidor da mãe. Tudo que conquistara devia a seus próprios esforços. Enfim, podia se orgulhar do homem em que se transformara. Seu irmão, no entanto, crescera debaixo do pulso firme da mãe. E nem na vida adulta fora capaz de se desvencilhar daquele peso. Em outras palavras. Lucas sentia-se em débito para com o irmão. Uma dívida que só consideraria paga quando visse seus assassinos por trás das grades de uma cadeia. Abriu a porta da perua e atirou a gravata de seda e o terno cinza no assento do passageiro antes de entrar. Fechou a porta, ligou o motor e deixou o estacionamento da delegacia. O escritório da Galaxies devia estar fechado àquela hora, mas Daniel tivera a delicadeza de presentear seu novo sócio com um molho de chaves... Talvez uma busca nos arquivos de computador de Rick o levasse a uma explicação para aquele bárbaro assassinato.

24


CAPÍTULO IV Durante o jantar, Natalie mudou os planos. Os arquivos de Rick continuariam no escritório depois que escurecesse, mas as pessoas se mostrariam mais receptivas para abrir a porta de suas casas com a luz do dia. Ainda mais para uma mulher, e baixinha como ela. Pela milésima vez, tentou imaginar se sua estatura era algum tipo de piada cósmica. Mas essa característica, que em geral a impedia de ser levada tão a sério quanto gostaria, também tinha suas vantagens. Seguiu para o lado oeste da cidade, rumo ao Lago Minnetonka. Faria uma pequena visita aos vizinhos de Rick e Sherri. O tipo de informação que essa gente possui já a ajudara a solucionar mais de um caso. Vizinhos são pessoas que notam pequenos detalhes do dia a dia, alguém que conversou com um estranho, a briga de um casal no deque, alguém que transportou uma caixa pesada ou um tanque de gasolina no meio da noite... Coisas sem importância, mas que se mostram fundamentais quando acontece algo errado. Os vizinhos dos Peyton, no entanto, não ajudaram muito. Não viram estranhos de aparência suspeita nas redondezas, não repararam em movimentações estranhas na calada da noite, nada. Porém quando Natalie já pensava em desistir, um deles lembrou-se de um acontecimento interessante. Rick erguera o tom de voz certo dia, enquanto conversava com alguém através de um telefone sem fio. — Ele estava agitado de verdade — revelou a fonte — Agitado e aborrecido, entende? Parece que tinha perdido muito dinheiro. Pelo que entendi, foi em um jogo de futebol. Estávamos em plena temporada. De qualquer forma, Rick falava em juros altos, ou prazo muito curto, algo assim. Já faz tempo, não me lembro direito. — Ele mencionou algum nome? — Nome? Quer dizer, do time de futebol em que tinha apostado? — Não — Natalie explicou paciente — Da pessoa com quem conversava? — Pode ser, mas acho que não... — Pense bem. Não precisa ter pressa — Inclinou a cabeça para o lado fingindo dispor de todo o tempo do mundo, a caneta pousada sobre a agenda que segurava para dar um aspecto oficial a sua investigação. — Bem, acho que ele falou em Rob, ou Bob... Como disse não me lembro direito. Fazia frio e eu queria voltar logo para dentro de casa. — Posso perguntar o que o Senhor fazia no deque naquela noite de...? Quando foi mesmo? — Natalie perguntou ainda. — Dezembro. Meados do mês. Sei disso porque havia enfeites luminosos de Natal em todas as casas. E eu saí para fumar um cigarro. Estava tentando parar de fumar e não queria que minha esposa me visse — admitiu um pouco constrangido — Alguns dias depois, toquei no assunto com Rick. Brinquei

25


dizendo que, naquela noite, nós dois fugimos das esposas. Eu, por causa do cigarro. E ele, porque apostava em jogos de futebol. Mas ele me olhou como se não fizesse a menor idéia do que eu estava falando. Não era grande coisa, Natalie admitiu quando voltava para o carro, depois de visitar as casas mais próximas da residência dos Peyton. Muitos homens jogam a dinheiro, muitos podem, e com certeza a maioria preferia ocultar o fato da esposa e dos vizinhos. Em suma, perdera seu tempo indo ao Lago Minnetonka. A menos que... Ainda era dia e já que estava nas redondezas, podia aproveitar para fazer mais uma visita. Entrou no carro e pegou o telefone celular. Digitou seu próprio número, acionou o controle remoto e ouviu as mensagens em sua secretária eletrônica. Satisfeita por não encontrar nada que exigisse sua atenção imediata, ligou para o serviço de informações. Rabiscou o número de Lucas na agenda, agradeceu e em seguida ligou para a casa dele. Esperou até o vigésimo toque antes de concluir que não havia ninguém em casa. Pelo menos alguma coisa está dando certo hoje pensou. Não queria correr o risco de se deparar com Lucas enquanto entrevistava seus vizinhos. Depois de percorrer cinqüenta quilômetros de uma estrada sinuosa margeando o Lago, porém, qual não foi sua decepção ao descobrir que ele não tinha vizinho. Os doze acres de terra eram cobertos de bosques que protegiam sua privacidade. A única exceção era a casa, na verdade uma cabana de madeira da qual se projetavam algumas construções de tijolos em ângulos estranhos, porém harmoniosos. Com certeza as ampliações para as quais conseguira todas aquelas licenças na prefeitura. Um caminho coberto de pedregulhos levava até dois compridos degraus de madeira e uma varanda estreita, guarnecida por balaústres rústicos. Três vasos pendiam de cordas na beirada da varanda, e os gerânios vermelhos precisavam de uma poda urgente. Impedida de cumprir a missão a que se propusera, Natalie demorou cinco segundos imaginando se seria prudente dar uma olhada no local. Se Lucas aparecesse, não teria uma boa desculpa para justificar sua presença. Por outro lado, o máximo que ele poderia fazer seria expulsá-la de sua propriedade. O estado em que se encontravam os gerânios, as cortinas cerradas nas janelas, e a ausência de um cão para proteger a casa convenceu-a de que talvez ele só usasse aquele lugar como um refúgio para os finais de semana. Portanto, seria pouco provável que a encontrasse por ali. Natalie já estava fora do carro no momento em que chegou a essa conclusão e caminhava pé ante pé em direção à varanda. A esperança de que a porta da frente tivesse sido esquecida destrancada não se confirmou. Deu a volta na casa e experimentou a porta dos fundos. Tentou inclusive empurrá-la com o ombro, mas não conseguiu movê-la nem um milímetro. — Maldição — desabafou, desejando não ter tanto respeito pelas leis. Em situações como aquela, seria útil se seu código moral permitisse arrombar a porta e entrar. 26


Suspirou e voltou-se para olhar as águas plácidas do Lago, enquanto pensava em qual seria seu próximo passo. Um cais estreito conduzia da terra firme até um abrigo construído dentro da água. Debaixo do toldo listrado de vermelho e branco havia um barco a motor velho, porém em excelente estado de conservação. De onde estava Natalie podia ver os frisos de metal reluzindo ao sol. Sem um objetivo claro, mas esperando descobrir algum dado útil que compensasse a longa viagem até ali, ela começou a descer o caminho até o Lago. Andava devagar para que os saltos altos do sapato não escorregassem nos pedregulhos. Ao pisar no cais flutuante, assustou-se quando ele afundou sob seu peso. Deu meia dúzia de passos vacilantes, mas foi obrigada a parar porque um dos saltos prendeu-se no vão entre as tábuas. — Maldição! — xingou pela segunda vez — Hoje não e meu dia. O cais estreito não permitia movimentos bruscos. Tentou soltar o sapato, mas não conseguiu. Se puxasse com mais força talvez desse certo, porém arranharia o couro azul-claro. Agachou-se para abrir a fivela que prendia seu pé. O cais balançou. Alarmada, tentou se levantar, erguendo os braços para readquirir o equilíbrio. Foi em vão. Por um instante inclinou-se para frente, os braços girando no ar até cair de cabeça dentro do Lago. Soltou um grito de raiva, ainda mais ao sentir que o sapato se soltava afinal, mas a água o abafou. Lucas soube que havia alguém na casa do Lago trinta segundos depois que o carro de Natalie passou pela entrada que conduzia à garagem. Escondido sob os pedregulhos, ele estendera um arame fino que, se pressionado, fazia soar um alarme discreto no computador de bolso que sempre carregava consigo. Não ficou muito preocupado, às vezes acontecia de alguém entrar em sua propriedade para pedir informações sobre algum outro endereço, ou imaginando que conseguiria cortar caminho até a próxima estrada. Mesmo assim, resolveu esperar no carro antes de ir para a Galaxies. Digitou um código no computador para silenciar o suave, porém insistente alarme. Esperava ouvi-lo disparar a qualquer instante de novo, quando o intruso percebesse o engano e tornasse a passar sobre o arame. No entanto, o que ouviu foi outro sinal, avisando que alguém tentava abrir a porta da frente. Um ou dois minutos depois, disparava o sinal relativo à porta dos fundos. Lucas não esperou mais. Ligou a perua Jipe e saiu a toda velocidade, em direção ao Lago. Parou a meio caminho da entrada, fora da vista da casa e de quem quer que resolvera violar sua privacidade. Contornou o veículo com toda calma, abriu o porta-malas e pegou seu rifle de carro comprido e lustroso. Em seguida, silencioso como uma cobra e contando com o auxílio das árvores para escondêlo, aproximou-se da casa. Estacou assim que reconheceu o Ford cinza de Natalie. Quase no mesmo instante o computador avisava que alguém subira no cais. Impaciente, silenciouo com um movimento ágil do indicador. 27


— Maldita bisbilhotei... Um grito curto e o barulho de água o interrompeu. Lucas saiu correndo e chegou ao cais a tempo de ver Natalie subir à superfície, sem fôlego e lutando para se equilibrar sobre o fundo lodoso do Lago. Do cabelo loiro, grudado a seu rosto e pescoço, escorriam grossos rios de água. A elegante blusa azul, de um tecido muito fino colava-se a cada curva de seu corpo estonteante. Os óculos, pendurados em uma só orelha, completavam a comicidade da cena. Lucas não conseguiu conter o sorriso. Bem feito para esse pequeno pedaço de mau caminho! Pensou, travando de novo o gatilho do rifle. Apoiou a arma em cima do ombro e percorreu o resto do caminho até a margem do Lago, preparado para se divertir um pouco às custas da inesperada visitante. Alheia ao fato de ser observada. Natalie parou de se debater na água que chegava ás coxas para tirar o cabelo dos olhos e colocar os óculos no lugar. Usando as mãos como remos, forçou-se para recuperar o equilíbrio e caminhar até a praia. Tropeçou duas vezes, mergulhando completamente em cada uma delas. Mas pelo menos, conseguiu manter os óculos no rosto. Ajoelhou-se na água rasa. Exausta. Começava a se arrastar de gatinhas até a terra seca quando ouviu, — Acho que essa e a primeira atitude inteligente que você toma hoje, menina. Natalie imobilizou-se no mesmo instante. Atirou a cabeça para trás até conseguir ver, através das lentes embaçadas, os olhos verdes e divertidos da última pessoa na terra que gostaria de encontrar naquele momento. A expressão de raiva que escapou de seus lábios, embora vulgar, era a mais perfeita tradução de seus sentimentos. — Seu pai sabe que você diz essas coisas? Natalie xingou de novo e ergueu-se para poder encará-lo de uma posição um pouco mais digna. Lucas continuava parado na beirada da água, as mãos descansando no rifle que passara por trás do pescoço, os lábios rasgados em um sorriso cínico. Os olhos de Natalie se estreitaram. — Você podia ao menos me ajudar a sair daqui — disse ela e estendeu a mão. Porém Lucas limitou-se a balançar a cabeça. — Você entrou aí sozinha. Terá de sair sozinha também. A mão de Natalie caiu com toda força, atirando gotas de água para todo lado. — Muito bem, então. Sentou-se no chão do Lago, mas o movimento fez com se desequilibrasse outra vez e suas pernas subissem. No mesmo instante enfiou a barra da saia entre as coxas para impedir que boiasse. Não queria correr o risco de se expor mais ainda. 28


— Não tem graça nenhuma — disse ela furiosa ao ouvi-lo gargalhar. — De onde estou, e muito engraçado. Ela lançou-lhe um olhar feroz por cima dos óculos molhados e, sem se descuidar da saia, tentou soltar as fivelas dos sapatos, se conseguisse tirá-los, seria mais fácil firmar os pés e sair de uma vez de dentro da água. — Bem feito para você — Lucas provocou — Invasão de propriedade e crime, sabia? Imaginava quanto tempo ela levaria para perceber que seus esforços para prender a perna entre as saias eram inúteis, uma vez que precisava levantar os joelhos quase até o peito para alcançar os sapatos. — Eu não invadi coisa nenhuma — ela retrucou, atirando um pé do sapato para a areia da praia afinal. Do mesmo modo como não piscou para o funcionário do Arquivo, ele pensou. — Vim para conversar com você — Natalie improvisou, curvando-se para tirar o outro sapato — Como ninguém atendeu a porta, imaginei que talvez o encontrasse cuidando do barco. — Depois de forçar a porta dos fundos. Natalie parou de repente o que estava fazendo e ergueu os olhos. — Quem disse isso? — Soube que você estava aqui no minuto em que entrou com o carro na minha propriedade. Você foi até a varanda, tentou abrir a porta da frente, depois contornou a casa e fez a mesma coisa com a porta dos fundos. Ela dirigiu-lhe um olhar sem expressão e cauteloso, como se não fizesse idéia do que Lucas estava falando. — Sou especialista em sistemas de segurança, lembra-se? — Tirou o rifle de cima do ombro e encostou-o em uma pedra grande que enfeitava a margem do Lago — A casa está toda protegida. Assim como a entrada para carros e o cais. E se você colocasse um pé no barco, com certeza levaria o maior susto de sua vida. Dispararia uma sirene muito alta que pode ser ouvida até a metade do Lago. Natalie ouviu-o com atenção, sem perceber que revelava uma boa parte de suas coxas. Uma tira estreita de náilon aparecia e desaparecia entre suas pernas, acompanhando o movimento das ondas. Lucas, porém, não perdia nenhum detalhe. — Será que entendi bem? — perguntou, indignada — O cais está preparada para derrubar as pessoas? Nesse caso você é o responsável pelo banho que acabo de tomar! — Calma, não e nada disso. Você caiu por sua própria falta de habilidade — Perturbado pela visão que se descortinava a sua frente, Lucas resolveu dar um basta naquela tortura e agachou-se junto da água — Deixe-me ajudá-la. Sem esperar por seu consentimento, segurou firme a canela de Natalie e puxou-lhe a perna. Pega de surpresa, ela tombou para trás, apoiada nos cotovelos. 29


— O que você pensa que está fazendo? — Natalie esbravejou, tentando soltar o pé ao mesmo tempo em que puxava a saia para baixo. — Pare com essa bobagem. Se ficar mais tempo dentro dessa água vai acabar se resfriando. Assim dizendo, Lucas passou um dedo por baixo da correia do sapato e rasgou-a com um puxão forte. — Meu sapato! — Natalie choramingou. — Por que o escândalo? O salto já estava quebrado. — Mas talvez ainda tivesse conserto. Lucas levantou-se e deixou cair o sapato ao lado dela. — Nesse caso, podem consertar a correia também — E aproveitou para acrescentar — Mas, se quer saber minha opinião sincera, você faria melhor se o jogasse fora. Parecem sapatos de prostituta. — Ora seu...! Mas Lucas não a deixou terminar. — Alguma vez você teve a curiosidade de olhar para os pés daquelas moças que à noite ficam paradas nas esquinas da cidade esperando os "namorados"? Usam sapatos iguaiszinhos a esses. — Fique sabendo que paguei cento e cinqüenta dólares por este par — Natalie informou-o — Estão na última mo... — Muito bem, retiro o que eu disse. São sapatos de "'acompanhantes''. Fica bem mais chique assim, não acha? — Estendendo a mão para ela convidoua — Venha. Saia logo da água. Natalie sentiria um prazer enorme em recusar sua oferta. Mas o bom senso falou mais alto. A noite caía rápido e começava a ficar com frio. Permitiu que ele a puxasse para terra firme. — Ei. Espere um pouco! — gritou quando Lucas fez menção de arrastá-la pelo caminho coberto de pedregulhos. — Qual o problema agora? — Estou descalça, caso não tenha notado. O olhar de Lucas desceu por suas pernas molhadas até se deter em seus pés. Oh, notara sim e muitas outras coisas. Soltou um suspiro desconsolado, que Natalie interpretou como um sinal de que ele estava prestes a perder a paciência. Seu pai costumava suspirar assim quando ela passava dos limites. — Suponho que quer que a carregue? — Claro que não — Prefiro comer esfolar os pés até sangrar a permitir que isso aconteça, pensou — Tem um par de tênis dentro do carro. — Quer que eu vá buscá-los? — Seria a atitude natural de um cavalheiro — Natalie retrucou como se duvidasse que ele fosse merecedor de tamanho elogio. Lucas balançou a cabeça. — Por que não?

30


— Porque não confio em você. Só Deus sabe o que poderia fazer na minha ausência. — Ora, faça-me o favor — ela protestou exasperada — Já disse que não posso ir a parte alguma descalça. Lucas balançou a cabeça de novo, recusando-se a dar razão. Não saberia dar outro motivo para sua perversidade além do prazer de provocá-la. — Bem, se é assim... — Natalie abaixou os olhos para esconder o súbito nervosismo — Acho que terá de me carregar. Lucas suspirou de novo fingindo-se contrariado. — Esta camisa foi feita sob medida e é a primeira vez que a uso, caso esteja interessada em saber. Natalie o encarou com desprezo. Na verdade, porém, imaginou que não devia ser fácil encontrar roupas prontas que servissem em ombros tão largos e musculosos. — E você está encharcada. — Mande a conta da lavanderia para mim, está bem? — Droga! Pouco se importava em parecer indelicado. Não queria que Natalie percebesse sua disposição de usar qualquer desculpa para tocá-la de novo. Agachou-se para que ela subisse em seus ombros. Natalie, no entanto, recuou protestando, — Assim não. — Como você prefere? — Que me erga em seus braços. — E o que devo fazer com meu rifle? — Você me carrega, eu carrego o rifle. Lucas fitou-a de alto a baixo, dos cabelos escorridos, os óculos salpicados de água, a roupa pingando, cada centímetro das pernas bem torneadas, até os pés nus. — O choque térmico deve ter afetado seu cérebro, se pensa que vou confiar minha arma. Assim dizendo, curvou-se para encostar o ombro na barriga de Natalie e puxou-a, levantando-se em seguida. Segurou-a pelas pernas com a mão esquerda e empunhou o rifle com a direita. Natalie soltou um grito de raiva. — Ponha-me no chão seu... Troglodita! Seu gorila! Seu... — Calou-se um segundo para impedir que os óculos caíssem no chão, mas completou — Seu fuzileiro naval! Lucas achou graça ao saber que esse era o pior insulto em que ela conseguira pensar. Mas não gostou muito quando sentiu o primeiro murro atingir suas costas. — Me solta! Deu um tapa no traseiro e voltou rápido a segurá-la pelas pernas, ao mesmo tempo em que ameaçou, 31


— Cale essa boca ou eu a jogo de volta no Lago!

CAPÍTULO V Lucas carregou Natalie até a varanda da casa. Encostou o rifle na parede e destrancou a porta. Antes de entrar, digitou um código em um pequeno painel numérico para desativar o sistema de alarme. Só então acendeu a luz da sala.

32


— Pode me por no chão agora — ela pediu, doce como mel para não correr o risco de levar outro tabefe no traseiro. — Só mais um minuto. De cabeça para baixo, Natalie só conseguia enxergar as tábuas do chão. E, claro, as nádegas firmes do homem que a segurava, cobertas por um tecido sóbrio de gabardine cinza, todo respingado. A visão roubou-lhe o fôlego e a fez protestar, — Se está preocupado com seu chão prometo que o enxugo... Lucas não respondeu. Enveredou por um corredor estreito e só depois de atravessar uma porta abaixou-se para que ela descesse de seu ombro. Preocupado em não deixá-la cair, enquanto a segurava sua mão roçou-lhe a coxa e toda a extensão das costas. Natalie respirou fundo, mas não disse nada. Apenas observou sua camisa colada ao ombro que a transportara, salientando os bíceps poderosos. Teve a impressão de que Lucas ofegava. Seria por causa do esforço de carregá-la até ali ou ele também experimentava o mesmo calor que de repente a invadira e acelerava o pulso? A proximidade de seus corpos só fazia aumentar essa sensação incômoda. Pensou em se afastar, porém Lucas tomou a iniciativa, enquanto dizia, — Pode tomar um banho quente, se quiser. Só então Natalie se deu conta de que estava dentro de um banheiro. — As toalhas ficam dentro daquele armário — ele continuou — Jogue as roupas no corredor. Vou colocá-las na secadora. — Não será necessário — Natalie replicou mais que depressa. Preferia uma pneumonia a se despir sob o mesmo teto que aquele homem — Só quero me enxugar um pouco e ir embora. Se puder me emprestar uma dessas toalhas para forrar o assento do carro... — Nada feito. — Como assim? — Encarou-o surpresa — Tem medo de que eu não devolva sua toalha? — Não quero que vá embora ainda — ele explicou. Natalie sentiu um calafrio. O sangue latejava em suas veias. — Se acha que pode me manter aqui contra a vontade, seu brutamontes — desafiou-o — está completamente enganado. Mas Lucas não se deixou intimidar. — Você não disse que veio até aqui para conversarmos? Pois então. Quero aproveitar para fazer algumas perguntas. Deu-lhe as costas e ia saindo quando a ouviu dizer, — Não preciso tirar a roupa para isso. No mesmo instante cerrou os lábios, arrependida. Lucas virou-se, a mão apertando com força a maçaneta da porta.

33


— Você é quem sabe. Quanto a mim vou vestir alguma coisa mais confortável. E nem pense em fugir, menina. Já tirei a chave da ignição do seu carro. — Não me chame de menina! — ela exclamou furiosa, para a porta que se fechara. — Há um robe pendurado atrás da porta, caso resolva ser um pouco mais sensata — disse Lucas do corredor — Seja qual for sua decisão, você tem dez minutos para sair daí de dentro. Então dirigiu-se ao carro dela para pegar a chave, coisa que ainda não fizera. O corpo trêmulo de frio convenceu Natalie de que seria melhor tomar um banho. Mas de modo algum aceitaria que impusessem prazos. Assim sentou. Só abriu a porta do banheiro vinte minutos depois. Os cabelos penteados para trás, os óculos limpos, usava o robe de Lucas que a cobria do pescoço aos pés e ainda arrastava no chão. Com cuidado para não tropeçar, atravessou o corredor em direção à sala de estar. Ao ver que se aproximava. Lucas ergueu os olhos da pasta que encontrara no carro dela. — Você andou ocupada. — É o meu trabalho — Natalie replicou altiva — Tudo que há nessa pasta consta de registros públicos. Qualquer pessoa tem acesso a essas informações. Cruzou as tábuas lisas do assoalho e um colorido tapete oval para se instalar em uma cadeira de balanço, o mais distante possível do sofá em que Lucas se encontrava. Ele respondeu com um resmungo e retomou a leitura. Natalie dobrou os joelhos, apoiando os pés descalços no assento da cadeira, e prendeu a barra do robe debaixo dos dedos dos pés. Não restava mais nada para fazer além de esperar. E observar. Lucas mudara de roupa. Usava calça de moletom cinza e uma camiseta verde oliva desbotada que delineava os músculos fortes de seu peito e ombros. Com certeza uma relíquia dos tempos de fuzileiro. Natalie engoliu em seco e desviou o olhar. Precisava concentrar a atenção em outra coisa. Se ele percebesse o quanto a excitava, sem dúvida usaria esse fato em seu próprio benefício. Lucas gostava de móveis antigos, confortáveis e práticos. Além da cadeira de balanço de madeira, havia uma mesa do século 19 na frente do sofá macio e acolchoado. As almofadas do sofá e das duas poltronas eram revestidas de capas, fáceis de lavar. O tapete colorido emprestava um tom alegre à sala, ao mesmo tempo em que disfarçaria bem a sujeira. E as tábuas do chão não davam trabalho para limpar. Os poucos abajures, bem distribuídos, iluminavam todo o ambiente. E as enormes janelas de folha dupla permitiam a entrada de uma brisa gostosa enquanto que a tela que as revestia impedia a entrada de incômodos insetos.

34


Por um momento desejou não gostar tanto da forma como ele decorara sua casa. Mas em seguida distraiu-se tentando imaginar onde ficava o computador que controlava os sistemas de segurança. O único fanático por computação que conhecia era seu irmão Daniel, o seu apartamento parecia uma loja de equipamentos eletrônicos. Terminada a leitura. Lucas ergueu os olhos. Natalie não percebeu o movimento e continuou admirando a casa. Dentro do robe enorme, com os joelhos quase tocando o queixo, ela parecia uma frágil menininha. Porém essa visão não bastou para livrar sua cabeça das fantasias que a povoavam desde o instante em que se conheceram. Sabia a mulher que o robe escondia. Ele a vira seios, cintura, pernas e quadris, toda sedução e feminilidade, desenhada pelo traje azul encharcado da água do Lago. Como também sentira suas maravilhosas curvas ao descê-la do ombro. Ficara tentado a pegá-la de novo e levá-la para a cama. Alguma coisa dizia que talvez Natalie não se recusasse a acompanhá-lo. Havia uma grande sensualidade na maneira como o enfrentava e retrucava tudo que ele dizia. Claro que não passava de atração física o que sentiam um pelo outro. Natalie não era o seu tipo e fazia questão de deixar bem claro que ele também não correspondia aos seus sonhos de homem perfeito. Afinal ela notou que vinha sendo observada. Antes que dissesse qualquer coisa Lucas ofereceu, — Quer um café antes de começarmos? — E apontou para uma xícara sobre a mesinha de centro. — Vai me submeter a um interrogatório? — Se é assim que você prefere pensar — ele respondeu, com toda calma — Quer o café ou não? — Sim. Nada nesse mundo me faria desperdiçar esse gesto tão raro de delicadeza da sua parte — disse ela só para lembrá-lo que estava ali contra sua vontade. — A cozinha fica depois daquela porta — ele ensinou, apontando com o polegar — O café está no fogão. Natalie não se mexeu. — Algum problema? — Um anfitrião educado traria o café em uma bandeja para sua convidada. — Você não é minha convidada, mas uma intrusa. Isso me desobriga de ser educado. Ainda por cima é feminista — acrescentou — Vocês, mulheres modernas, vivem reclamando dos rituais ultrapassados da nossa sociedade, que as impede de serem tratadas como iguais — A amargura em seu tom de voz revelava mais do que ele pretendia — Pois bem, resolvi tratá-la como igual. Sirva-se à vontade. Natalie levantou-se sem dizer uma palavra e, apertando o robe a sua volta, foi para a cozinha. A mulher dele deve ter ensinado uma boa lição, pensou. Sem mencionar a mãe, Bárbara Peyton. Não era de admirar que Lucas 35


fosse tão agressivo com ela. Talvez a situação exija uma mudança de tática, concluiu, enchendo uma xícara de café fumegante. — Posso usar seu telefone? — gritou da cozinha — A ligação será local. — Não adianta pedir ajuda — A voz de Lucas soou mais próxima do que Natalie esperava. Assustada, voltou-se a tempo de vê-lo entrar na cozinha, a caneca na mão — Arranco tudo que quero de você antes que alguém tenha tempo de chegar até aqui — concluiu, estendendo a mão para o bule de café. Natalie levantou uma sobrancelha, sem se intimidar. — Tenho certeza de que aprendeu métodos excelentes de tortura nos Fuzileiros Navais. — Entre outras coisas — Apontando o telefone com a caneca, disse — Ligue para quem quiser, se isso a faz se sentir melhor. Natalie tirou o fone do gancho e pediu mordaz, — Quer me dar licença? É particular. Lucas deu de ombros e voltou para a sala. Antes de digitar o número do pai. Natalie espiou pela porta para certificar-se de que ele se afastara. — Alô? Papai? Sou eu, Nat — Foi direto ao assunto — Ainda não o perdoei, mas prometo pensar no assunto se me responder algumas perguntas. A respeito de Lucas Sinclair. — O que foi agora? — quis saber o pai. Natalie baixou o tom de voz e curvou a mão em torno do bocal para não ser ouvida da sala. — Sobre o que ele queria conversar essa tarde? — Sobre a morte do irmão, e claro. — Sei disso, mas seja mais específico. — Bem, Lucas quis ver o laudo médico e do perito que examinou o carro. Também perguntou se já temos algum suspeito — Fez uma pausa — Por que quer saber? — Você contou tudo a ele? — disse Natalie, ignorando a pergunta. — Lógico. Por que não deveria? Natalie respirou fundo e apoiou o ombro na parede. — Então não acredita que ele possa estar envolvido na morte de Rick? — Com os diabos, não! — Por quê? — Confio nos meus instintos, depois de tantos anos trabalhando na polícia. Além do mais, Lucas estava em Los Angeles quando o irmão morreu. Foi instalar um sistema de segurança na Mansão de um desses astros do cinema. Essa gente tem paranóia de ser seqüestrado. — Você tem como confirmar essa informação? — Lucas me deu o número do telefone do cara. Falei com a secretária dele, que parecia tão deslumbrada com o nosso amigo quanto você.

36


Natalie pensou em protestar, mas pensou melhor e resolveu que mais tarde teria uma longa conversa com o pai. Por hora limitou-se a agradecer a ajuda, desligando em seguida. Não demorou mais que alguns segundos para tomar uma decisão. Levando sua xícara, voltou para a sala disposta a responder todas as perguntas de Lucas. Sentou-se no sofá dessa vez, não muito perto, mas também não no extremo oposto. — E então — disse afinal, servindo-se de um gole de café e acariciando os pés no tapete macio — por onde começamos? A expressão no rosto dele indicava que conseguira surpreendê-lo. E isso fazia um bem enorme. — Devo esperar suas perguntas ou simplesmente contar o que descobri até agora? — perguntou. Lucas apontou para a pasta em cima do sofá e respondeu, — Já li o que você descobriu e não encontrei nenhuma novidade. — Duvido que tenha entendido as anotações taquigrafadas. — Está disposta a traduzi-las para mim? — Claro. Lucas inclinou-se para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, e analisou-a com um olhar cínico e especulativo. — O que você pretende com isso, Natalie? — indagou de repente. — Como assim? Procurou não demonstrar o prazer que sentia porque, pela primeira vez, ele a chamava pelo nome. — Quando uma mulher muda de repente de atitude e se dispõe a cooperar fingindo inocência, é sinal de que vai aprontar alguma. — Pois dessa vez você se enganou. Apenas imaginei que, como estamos interessados no mesmo caso, nós poderíamos trabalhar juntos. — Pensei que eu fosse seu principal suspeito. — Não o principal, mas o único — Natalie corrigiu — Pensei melhor e resolvi descartar a possibilidade de você ter matado seu irmão. — Quando foi isso? Agora, na cozinha? — Fez uma pausa e afirmou — Você ligou para seu pai. — Sim. — E ele disse que sou inocente. — Acho "inocente" uma palavra muito forte — Natalie não poderia deixar passar uma oportunidade tão perfeita para provocá-lo um pouco — Mas, de fato, ele acredita que você não está envolvido no assassinato de Rick. — De qualquer forma, muito obrigado por esse voto de confiança, Senhorita Bishop! — Oh, pelo amor de Deus! Não precisa ficar tão ofendido. Nada mais natural que as suspeitas recaíssem sobre você. Afinal, foi o grande beneficiário do testamento de seu irmão. 37


— E com certeza minha mãe influenciou todos vocês a pensarem dessa forma — Estreitou os olhos verdes enquanto continuava — Ouvi os elogios que ela me fez aquele dia no escritório da casa de Rick. Na verdade, nada do que Natalie encontrara nos registros de Lucas confirmavam as palavras de Bárbara Peyton. Talvez ele tivesse mudado. Por outro lado aquele nariz quebrado e o modo como ele segurara o rifle, com uma intimidade preocupante, indicavam que Lucas não passara a vida inteira na frente de um computador, decifrando mensagens em código para o serviço secreto. — Por que veio bisbilhotar minha casa? — ele perguntou, interrompendo o silêncio. — Eu não... Oh, está bem, eu vim bisbilhotar sua casa — admitiu ao se deparar com aqueles olhos que deviam ter feito tremer o inimigo nos campos de batalha — Mas não foi por causa do que sua mãe me disse. — Tem certeza? — Absoluta — Natalie afirmou com tanta ênfase que o convenceu — Só queria saber um pouco mais a seu respeito. Afinal, é o novo sócio do meu irmão. — Então reconhece que invadiu uma propriedade privada? Natalie suspirou fundo antes de explicar, — Não era minha intenção. Pretendia conversar com os vizinhos, saber como eles o viam. Mas então, quando cheguei aqui descobri que não havia vizinho algum. Tive um dia cheio, estava cansada de dirigir e resolvi dar uma volta. O que há de mal nisso? — Nenhum — ele concordou seco. Depois de alguns instantes, Natalie abaixou o tom de voz para perguntar, — E então, aceita ser meu sócio? — O que eu ganho com isso? — Os serviços de uma experiente detetive particular. — Consigo tudo que preciso com seu pai — Lucas lembrou-a. — Mas ele tem outros casos para resolver, não pode se dedicar em tempo integral ao assassinato de Rick — ela retrucou rápida — Ora vamos Lucas. Sei que não gosta de mulheres "modernas" como você mesmo diz. E já deve ter percebido que não morro de amores por fuzileiros navais. Parou com medo de sua reação. Mas ele respondeu apenas, — Continue. Natalie deixou a xícara de café sobre a mesinha de centro antes de atendê-lo. — Conversei com todos os vizinhos de Rick e Sherri. Não consegui muita coisa — Fez um gesto de desprezo com a mão — Mas isso não tem importância. Amanhã começo a investigar os escritórios vizinhos da Galaxies e tenho certeza de que vou encontrar alguma coisa. Só preciso de uma pista que me coloque na direção certa. — E onde eu entro nisso? — Lucas quis saber, a atenção dividida entre o rosto de Natalie, radiante ao se imaginar atuando na profissão que tanto amava, 38


e os dois joelhos redondos que surgiram debaixo do robe quando ela se inclinou para frente. — Você é um gênio da computação — ela explicou, impaciente por julgar que sua parte estava clara como água — Examine os arquivos do computador de Rick. Pretendia fazê-lo eu mesma, mas se quer saber a verdade... — Faço questão. — Não sou muito boa com essas máquinas — Natalie confessou, ignorando seu tom sarcástico — Sempre que precisei usar um computador, Daniel resolvia tudo para mim — Esse pequeno detalhe não diminuiu o entusiasmo. Tanto que se remexeu no sofá para melhor encará-lo, alheia ao fato de que agora expunha parte da coxa e da pele lisa e macia do colo — O que você me diz? Lucas não respondeu de imediato. Tinha certeza de que acabaria se arrependendo se aceitasse a sociedade com aquela mulher intrometida e, ao mesmo tempo, tão sensual. Seria uma das coisas mais estúpidas que faria na vida, disputando o primeiro lugar com a cobra que tatuara no braço e o casamento com uma feminista. Por outro lado, como negar seus sentimentos? Maldição, não havia nada que quisesse mais naquele momento que tornar-se seu sócio, de preferência, na cama! Pressentindo que ele se renderia, Natalie estendeu a mão. — Sócios? Lucas hesitou menos de um segundo antes de suspirar e ceder ao inevitável. — Sócios — concordou, tomando na sua a mão pequena e macia que era oferecida. Então, perdendo o controle sobre os próprios instintos, atendeu a um desejo que o incomodava desde que a conhecera e tirou os óculos dela. — O que... — Natalie começou, mas era tarde demais. Lucas atirou-se para frente e plantou-lhe um sólido beijo nos lábios. A primeira reação de Natalie foi colocar as mãos espalmadas no peito dele e tentar empurrá-lo. A segunda, porém, falou mais alto e ela abriu a boca para se entregar. Ao perceber que ela não ofereceria resistência, um gemido de prazer escapou da garganta de Lucas. Natalie escorregou no sofá até ficar quase deitada, sentindo o peso daquele homem másculo sobre toda a extensão de seu corpo. Enlaçou-o com os braços no mesmo instante em que suas línguas se encontravam para um duelo apaixonado. Jamais imaginara que experimentaria tamanho êxtase ao transgredir todos os princípios feministas que dizia professar. Lucas parecia envolvê-la por todos os lados. Sentia-se frágil e protegida ao mesmo tempo. Deus, como era bom! — Eu não deveria... — sussurrou contra os lábios de Lucas.

39


Sabia que era verdade. Nunca fora tão longe com um quase desconhecido. Mesmo se ele não fosse o tipo de homem que jurara evitar como uma praga, temia as conseqüências. — Por favor, não diga nada — ele pediu ofegante. Desceu os lábios pelo rosto de Natalie até beijar-lhe o pescoço. — Ah, se você soubesse o quanto a desejo. E mordeu-a de leve como se não conseguisse se controlar por muito mais tempo. Natalie retesou-se debaixo dele, deliciada. Ele me mordeu! Pensou um pouco assustada consigo mesma ao descobrir que esse gesto machista e primitivo a excitava tanto. Enquanto sua pele se arrepiava, sentiu um calor maravilhoso nas porções mais femininas do corpo. — Eu a desejo desde a primeira vez que coloquei meus olhos em você — ouviu-o murmurar em seu ouvido. — É mesmo? — ela perguntou, fascinada com aquela declaração. Em resposta, Lucas apertou-se mais contra ela. De fato, seu corpo não o deixava mentir. — Acho que, no começo, não gostei muito de você — disse ele, e depois de abrir o decote do robe com os dentes, completou — Mas eu a quis assim mesmo. Foi como se um raio de luz penetrasse a nuvem densa de prazer que se instalara na mente de Natalie. — Não gostou de mim? — Achei que não fosse meu tipo — ele murmurou, os lábios descendo mais, o tecido grosso do robe quase sufocando a voz. — Não gostou de mim? — Natalie repetiu. — Mas agora gosto — ele assegurou, finalmente percebendo que cometera um grave erro sendo tão franco — Adoro você. De verdade. — Mas... — Shhh. Lucas escorregou a mão por dentro do robe e fechou-a sobre um dos seios rijos. Natalie teve a impressão de que derreteria a qualquer momento, tal foi o calor que a inundou diante do contato daqueles dedos hábeis que agora começavam a brincar com seu mamilo intumescido. Engoliu em seco, tonta de excitação, ao abaixar os olhos e deparar-se com a cobra tatuada no pulso daquela mesma mão que a acariciava. — Lucas... — Não diga nada, apenas me beije — ele exigiu, tomando a iniciativa de silenciá-la unindo seus lábios outra vez. Estava adorando cada segundo daquele sonho que se transformava em realidade. Rolou o mamilo de Natalie entre o polegar e o indicador, e sentiu que ela correspondia arqueando o corpo como se implorasse mais.

40


Apoiado no cotovelo, com a mão livre soltou o cinto que prendia o robe e abriu-o. No mesmo instante Natalie roçou a coxa nua entre o vão de suas pernas, excitando-o a ponto de quase não conseguir se conter. Apenas um fino tecido de moletom cinza os impedia de consumar aquela união. De repente, porém, Natalie virou a cabeça de lado e pediu, — Chega — Apesar da voz ainda embargada pelo deleite, encontrou forças para empurrar-lhe os ombros — Por favor, pare. Perdido de paixão, Lucas tentou recapturar os lábios, apertando a ereção nas coxas que agora o recusavam. — Pare Lucas! — Por quê? — ele perguntou, atendendo-a, mas sem se afastar um milímetro. — Porque nós não gostamos um do outro, só por isso — Natalie replicou irritada — Agora me deixe sair daqui. Se fosse sincera, diria que apenas ele não gostava dela. Porém de maneira alguma estava disposta a admitir seus sentimentos. Muito menos em voz alta. Lucas ergueu-se o suficiente para lembrá-la que estava seminua. — Você tem um jeito estranho de demonstrar que não gosta de uma pessoa — grunhiu os olhos no mamilo duro a sua frente. Natalie puxou a frente do robe sobre o corpo e lutou para se sentar no canto do sofá. — Foi uma loucura — disse, enquanto dava um nó apertado no cinto — Perdemos a cabeça por alguns minutos, nada mais. — Pode ser. No entanto, preferia que a sua continuasse perdida mais uns dez minutos no mínimo. Acabou de se levantar. Pegou uma almofada grande de uma das poltronas e colocou-a em cima do colo antes de se acomodar outra vez no sofá. Eu também concordou Natalie em pensamento. Maldição! — Você se recupera — disse ela, procurando o óculos a sua volta. Encontrou-os sobre a mesa de centro — Na verdade você não me queria Lucas. Ele ameaçou erguer a almofada. — Quer que prove o quanto está errada? — Não! — Natalie gritou — Por favor, me poupe de sua grosseria. — Não me achou grosseiro um minuto atrás. — Estava fora de mim — ela retrucou — E você também. Lucas abraçou a almofada com os braços compridos e descansou o queixo sobre ela. recusando-se a continuar com aquela discussão inútil. Natalie levantou-se. — Acho melhor eu ir embora — anunciou muito tranqüila. — Também acho. Lucas recusava-se a encará-la. Sentia-se enganado, humilhado e frustrado demais para isso. Talvez fosse infantilidade sua, mas queria que Natalie se sentisse da mesma forma. 41


— Não sei onde você colocou minhas roupas. — Na lavanderia. Fica depois da cozinha. Ao passar por ele. Natalie tentou evitar que o robe roçasse suas pernas. Mas não conseguiu e Lucas ergueu os olhos. No mesmo instante, apesar do ar altivo com que era observado, ele a viu nua de novo. O desejo tornou a invadi-lo e o fez sentir-se um perfeito idiota. — Natalie... Espere. Mas ela não o atendeu e seguiu em frente, rumo à porta da cozinha. — Maldição. Natalie! — Estendeu a mão a tempo de segurar a barra do robe — Desculpe. Estou agindo como uma criança de quem tiraram um brinquedo. Oh que bom. Primeiro ele diz que não gosta de mim. Agora sou seu brinquedo! — Você tem todo direito de dizer não. Mas... Ora, você sabe o quanto é duro... — Lembrou do motivo por que colocara a almofada no colo e mais que depressa corrigiu-se — Juro que não era minha intenção fazer um trocadilho de mau gosto. — Eu entendi o que você quis dizer Lucas. Voltou-se para encará-lo, arrancando a barra do robe de sua mão. — Posso parecer uma menina, mas eu... — Você me interpretou mal quando a chamei de menina... — Mas eu asseguro — Natalie continuou, interrompendo a explicação — que sou uma mulher madura e experiente. Compreendo que tenha... Se excitado. Sinto muito se frustrei suas expectativas. Se isso serve de consolo, saiba que também estou me sentindo bastante frustrada. Lucas fez menção de se levantar e Natalie recuou. — Por favor — pediu, estendendo as mãos para detê-lo — não tome minhas palavras como um convite para começarmos tudo de novo. — Natalie, eu... — Nada que você disser mudará minha opinião. Portanto, não chegue perto de mim! Lucas tomou a afundar no sofá, calado. — Melhor assim — disse ela, soltando um discreto suspiro de alívio — Agora somos sócios, lembra? Temos um caso muito importante a solucionar. O sexo só atrapalharia nosso principal objetivo. Como se isso ainda não tivesse acontecido! Pensou. — Além do mais — emendou — já chegamos à conclusão de que eu não sou seu tipo, nem você é o meu. — Não foi o que pareceu há um minuto, neste mesmo sofá — Lucas insistiu. — Uma questão de circunstâncias apenas. Afinal, estou praticamente nua. Não tem nada a ver com o que sentimos um pelo outro — mentiu — Vamos esquecer o que aconteceu.

42


No entanto, Natalie sabia que aquela noite ficaria gravada em sua memória para o resto da vida. Mas seria melhor assim. Livravam-se de problemas futuros. Apesar da inegável atração que Lucas exercia sobre ela, não conseguia imaginá-los mantendo um relacionamento duradouro. Depois que descobrissem quem matou Rick, o tempo e a distância se incumbiria de aquietar o redemoinho de emoções que se instalara em seu coração desde que o conhecera. — Lucas? — chamou — Está bem assim? — Está — ele resmungou. — Você não me parece muito confiante. — Já concordei com você, não foi? O que mais espera que eu diga? — Mais nada — Natalie respondeu ofendida — Só não precisa me dar uma mordida por causa de um simples comentário. — Desculpe — Meio sem jeito, sugeriu então — Por que não pega suas roupas? Enquanto isso, vou buscar o tênis no carro. — Obrigada — Saiu em direção à cozinha, mas voltou-se para avisar — Está no porta-malas. Minutos depois, Lucas voltava sem o tênis. — Tenho certeza de que deixei no carro — Natalie insistiu já vestida no traje azul-claro. Apenas os pés continuavam nus — Procurou no banco traseiro? — E debaixo dos bancos também. Não tem tênis nenhum lá dentro. — Acho que meus sapatos de salto alto não...? — A essa altura já foram levados pelas águas ou por algum guaxinim curioso. — Nesse caso, o jeito é ir embora descalça mesmo. Assim dizendo, desceu os degraus da varanda e pôs-se a caminhar sobre os pedregulhos, controlando-se para não fazer uma careta cada vez que machucavam seus pés. Sem que ela percebesse, Lucas aproximou-se por trás e pegou-a nos braços. — Fique sossegada — foi logo dizendo, antes que Natalie protestasse — Prometo não aproveitar a escuridão para estuprá-la dentro do carro — Mas acrescentou, com um sorriso maroto brincando nos lábios — A menos que você me peça. E com muito jeito. Natalie esperou até estar instalada ao volante para responder, sagaz, — Nem em sonhos eu pediria uma coisa dessa, Senhor Lucas Sinclair.

CAPÍTULO VI 43


Natalie chegou ao conjunto de escritórios em que ficava a Galaxies nas primeiras horas da manhã seguinte. Mesmo assim, já encontrou a monstruosa perua Jipe preta no estacionamento. — Que bom — murmurou contrariada. Tivera uma noite péssima. Nos poucos momentos em que venceu a insônia, perturbaram-na sonhos de um erotismo assustador, mas que nunca se consumavam. Claro que seu parceiro não podia ser outro além de Lucas Sinclair. O sol raiou e a encontrou exausta. Não teve forças nem para descer até a padaria. Portanto, seria obrigada a enfrentá-lo logo cedo e de estômago vazio. Resignada, desceu do carro e caminhou em direção às portas de vidro da empresa. Pelo menos a roupa que escolhera a satisfazia. Usava seu conjunto predileto, composto de saia vermelha lisa, um pouco acima dos joelhos, e um paletó de ombros largos, folgado, na mesma cor. Apenas a blusa de linho exibia estampas geométricas em tons de bege e vermelho claro. Os escarpins de salto alto combinavam com o traje. A bolsa de vime ia bem com o bege da blusa. De acessórios, apenas o relógio e os brincos de argola, ambos de ouro. Estou a própria síntese da mulher dos anos noventa, pensou, elegante, feminina, mas independente e de uma competência a toda prova. A idéia fez com que recuperasse a autoconfiante. Decidida abriu a porta da Galaxies e entrou na recepção refrigerada pelo ar-condicionado. Estacou ao se deparar com Sherri Peyton sentada no lugar da secretária, às voltas com uma pilha de faturas. Ergueu os olhos ao perceber que alguém entrara. — Oh, olá — cumprimentou, o rosto iluminado por um doce e inocente sorriso — Pensei que fosse Jana. Referia-se à secretária, que trabalhava em regime de meio período. — Olá — respondeu Natalie aproximando-se da mesa. Por mais que a incomodasse o jeito submisso de Sherri, sentia-se compelida a ser gentil sempre que se encontravam. — Jana não deve chegar antes de uns quarenta minutos, pelo menos. O que me leva a imaginar o que você faz aqui tão cedo. Daniel comentara certa vez que Sherri só estivera no escritório da Galaxies em duas ocasiões. Mesmo assim, só de passagem, para almoçar com o marido. — Acho que eu esperava que você tivesse passando seu tempo em casa por algum tempo. — Lucas sugeriu que talvez eu me sentisse melhor se tivesse alguma coisa para fazer além de ficar em casa, pensando... Em tudo que aconteceu — disse ela, os lábios trêmulos. — Ele tem toda razão — concordou Natalie, colocando a bolsa no canto da mesa — Quer um café? —perguntou enquanto se servia da cafeteira elétrica.

44


— Não, obrigada. Trouxe meu chá de folhas de rosas. Natalie deu de ombros, pensando que só mesmo Sherri para se dar ao trabalho de carregar um pacote de chá em seu primeiro dia de trabalho. — Onde está todo mundo? — perguntou, bebericando o café. — Daniel eu não sei — disse Sherri, pegando uma fatura da pilha a sua frente — Acho que ainda não chegou. Lucas saiu há poucos minutos, mas disse que voltaria logo. Com certeza não foi muito longe, Natalie concluiu, lembrando-se que vira a perua estacionada lá fora. Mesmo assim, seria uma boa oportunidade para sondar a viúva de Rick. Talvez ela tivesse alguma informação sobre o cunhado que Natalie ainda desconhecia. Fingindo indiferença, apoiou o quadril na beirada da mesa e tomou outro gole de café antes de comentar, — Não vi seu carro lá fora. Lucas a trouxe até aqui? — Sim — disse Sherri, decidindo-se afinal por uma pasta para guardar a fatura — Passou em casa e como viu as luzes acesas, imaginou que eu já devia estar acordada. Pegando outra fatura, confessou, — Não tenho dormido bem. Acho estranho ficar deitada sozinha naquela cama. Na verdade é até engraçado — disse, pensativa, as mãos detendo-se por um instante — Sempre dormi sozinha antes de casar com Ricky. Mas agora é diferente. Estremeceu de leve e retomou a tarefa. Natalie esperou um pouco antes de perguntar, — O que Lucas queria? — Como assim? — Concentrada no trabalho, uma ruga de preocupação crispando sua linda fronte Sherri parecia não escutar. Natalie implorou a Deus que lhe desse paciência e repetiu, — O que ele queria quando passou em sua casa, hoje cedo? — Oh, sim. Queria saber sobre os negócios. Não ajudei muito. Ricky sempre cuidou de tudo, de forma que nunca precisei me preocupar. De qualquer forma, depois do café da manhã, Lucas insistiu em pegar os documentos do escritório e trazer para cá. Bárbara não vai gostar disso quando descobrir, Natalie imaginou. — Dessa forma — prosseguiu Sherri — não precisará ir até em casa para pegar o que precisa. Não que me importaria com isso — disse ela, tristonha — A casa está tão vazia agora. Mas Lucas alegou que gosta de trabalhar até tarde da noite e preferia não me incomodar. Ele é tão gentil, não acha? Não se parece nada com o homem que Bárbara descreveu. Natalie achou que qualquer resposta a essa afirmação poderia comprometê-la. Assim, colocou a xícara de café em cima da mesa e concentrouse na única informação que parecera relevante em tudo que Sherri havia dito. — Você e Lucas tomaram o café da manhã juntos? — Sim. Comentei que ando sem apetite e ele ficou todo preocupado. Parecia um irmão mais velho, insistiu para que eu comesse alguma coisa, nem 45


que fosse um pedaço de pão com manteiga. Até se ofereceu para preparar tudo, mas sei como os homens são desajeitados na cozinha — Sorriu suavemente, como se a idéia a divertisse — Fiz torradas e panquecas para ele. Ricky gostava tanto das minhas panquecas... — um soluço a interrompeu e Sherri escondeu o rosto nas mãos — Oh, Deus eu o perdi para sempre! Natalie estendeu a mão e tocou de leve seu ombro, querendo oferecer conforto, mas sem saber como fazê-lo. Porém Sherri livrou-a do embaraço, — Desculpe, por favor — disse, colocando-se em pé — Preciso... Ir ao banheiro. Passou correndo por Natalie, a saia rodada do esvoaçante vestido de verão enrodilhando-se nas pernas bem torneadas. Natalie continuou imóvel, dividida entre acompanhá-la e deixá-la sozinha para chorar seu desabafo. De repente uma voz familiar soou da porta. — Qual será seu próximo passo? Torturar criancinhas? Assustada, Natalie virou e deparou-se com Lucas. — Pelo amor de Deus, não foi culpa minha! Estávamos conversando e ela... não agüentou. — Da próxima vez, pense antes de abrir a boca — acusou Lucas em voz baixa — Sherri é uma mulher muito frágil, perde o controle por qualquer motivo. — Por que você não pensou nisso antes de trazê-la para cá e colocá-la para trabalhar? — retrucou Natalie também falando baixo para não chamar a atenção de Sherri. Mas, furiosa, apontou para as faturas sobre a mesa — Deixála sozinha com um monte de documentos que nunca viu na vida não me parece a melhor terapia para sua dor. Lucas avançou até ficarem a menos de trinta centímetros de distância um do outro. — Em primeiro lugar, ela precisa de alguma coisa que a distraia. E em segundo lugar, eu não a deixei sozinha. Vi um sujeito entrar no escritório vizinho e saí para fazer algumas perguntas. Sem se intimidar pela diferença de estatura, Natalie precisava por para fora a raiva que sentia. E estava disposta a usar qualquer desculpa para isso. — "Algumas perguntas" — repetiu em tom de desprezo — Aposto como o pobre coitado preferia ser atropelado por um tanque de guerra a ser submetido ao seu interrogatório. — Uma técnica que aprendi de observá-la em ação. — Você ainda não me viu em ação, seu brutamonte! — Mas posso fazer uma idéia... — Sinto muito por ter me descontrolado, Nat... — Sherri calou-se ao entrar na recepção e ver a estranha cena — Lucas. Você já voltou. Olhou para um, depois para o outro, sem entender por que estavam tão próximos. A vaga impressão de que discutiam deixou-a curiosa. — Algum problema? — Claro que não — responderam em uníssono, afastando-se cabisbaixos. 46


— Apenas discutíamos nossa... Natalie hesitou, sem encontrar uma boa desculpa para dar. — Sociedade — Lucas ajudou. Adiantou-se para segurar a mão de Sherri e perguntar. — Você está bem? Sherri fez que sim com a cabeça. — Agora sim — disse ela, reconfortada pelo gesto carinhoso — Mas gostaria de ir embora para casa, Lucas. Acho que ainda não estou preparada para ajudar aqui no escritório... — Claro — ele concordou, no tom sussurrado e gentil que se usa com uma criança carente — Vou levá-la agora mesmo. Sherri pegou a bolsa de cima de um armário e despediu-se de Natalie com um sorriso triste. Saiu depois que Lucas abriu a porta de vidro e indicou que tomasse a dianteira. O queixo de Natalie caiu enquanto o observava. Seria o mesmo homem com quem acabava de trocar tantas farpas, de repente cheio de mesuras e amabilidades? Um lobo se transformara em cordeiro diante de seus olhos. Meu Deus, pensou, atônita, será Sherri o tipo de mulher de que ele gosta? Muito meiga, olhos grandes, seios fartos e cabeça oca? Com certeza o superestimara. Ah, os homens, sempre tão convencionais... Nesse instante Lucas entrou. Viera dar um último recado, mas surpreendeu uma expressão de repulsa nos olhos castanhos que o encararam. Sem saber o que se passava pela cabeça de Natalie, mesmo assim avisou, — Faça-me o favor de não ir embora. Ainda não acabei com você. Ali estava o velho Lucas com que ela se acostumara a conviver. Lucas voltou para a Galaxies cansado, depois de quase duas horas repetindo sempre as mesmas palavras de consolo para a viúva do irmão. Em nada o espantou constatar que o carro de Natalie não se encontrava no estacionamento. Seria louco se achasse que ela atenderia sua ordem. — Toda mulher metida a moderna tem verdadeira aversão a aceitar qualquer coisa que um homem diga — pensou em volta — Morrem de medo de serem acusadas de "'submissão ao opressor". Atravessou o pátio do estacionamento a passos largos, ansioso por começar a trabalhar nos arquivos de computador de Rick. Porém estacou assim que abriu a porta da Galaxies e uma música assaltou-lhe os ouvidos. — Mas que diabos...? Caminhou em direção à sala de onde vinha o som. Respirou fundo antes de abrir a porta, tentando evitar que a impaciência transparecesse em seu semblante. Visitara todo o escritório da Galaxies havia poucos dias. As telas apagadas dos computadores, as mesas vazias, o silêncio, tudo isso transmitira a sensação de um escritório como outro qualquer. Dessa vez, porém, aquela sala mais parecia uma loja de vídeo-games.

47


As venezianas fechadas bloqueavam os raios do sol, e as lâmpadas do teto estavam desligadas. Apenas os spots de luz vermelha, azul e amarela piscavam no ritmo frenético da música, acompanhando o caleidoscópio de cores que emanavam dos monitores de vídeo. Daniel Bishop, o grande gênio dos aparelhos eletrônicos, e mais três crianças de alturas e idades variadas, ocupavam a frente de uma das máquinas. Cada qual com um joystick nas mãos traçavam o destino de um terráqueo em meio a um ataque alienígena. — Daniel — Lucas chamou da porta. Como não obtivesse resposta, repetiu erguendo o tom de voz — Daniel! Gritos de alegria e emoção explodiram do grupo, que continuava alheio a sua presença. Lucas apalpou a parede, a procura de um interruptor. Apenas a menina menor notou quando as luzes acenderam. Olhando a sua volta, puxou a manga do casaco de Daniel quando viu o estranho parado à porta. — Tio Daniel — disse ela sem tirar os olhos do homem alto que se aproximava — Tio Daniel. Tio Daniel. Enfim ele se deu conta de que a sobrinha parara de jogar e ergueu os olhos. No mesmo instante engoliu em seco e gaguejou, — Oh. Senhor... Sinclair. O que faz por aqui? — Ia perguntar a mesma coisa. — Estamos testando. — Testando? — 0 novo jogo que criei. Sempre trago as crianças para testá-los. Gosto de saber como funcionam sob fogo pesado, por assim dizer, se elas não gostam, é sinal de que precisam ser mais trabalhados. — Boa idéia — Lucas respondeu, sorrindo. Mas será que vocês precisam consumir tantos decibéis para isso? pensou — Quem são seus pilotos de prova? — Os filhos de Andréa, minha irmã — Daniel explicou — O mais velho e Kyle. O outro, Christopher. E esta aqui — colocou a mão no ombro da menina — é Emily. Crianças, quero apresentar meu novo sócio, o Senhor Sinclair. — Podem me chamar de Lucas — ele corrigiu. — Dessa vez você foi rápido, tio — comentou Kyle com a falta de sensibilidade característica das crianças de treze anos de idade — Seu antigo sócio ainda nem esfriou na cova e você já arranjou outro. Se tivesse espaço sob as mesas. Daniel teria se refugiado ali para fugir daquela vergonha. Lucas, no entanto, não se abalou. — O antigo sócio de seu tio era meu meio irmão. O garoto abaixou a cabeça, e murmurou, — Desculpe. — O que é um meio irmão? — Emily quis saber. — É uma pessoa de quem se e apenas, bem... — Daniel tentou explicar, sem grandes resultados, e olhou para Lucas pedindo socorro. — O meio irmão também é filho ou da sua mãe, ou do seu pai, mas não dos dois — disse ele, no mesmo tom compreensivo que usara com Sherri. 48


Animada porque ele não implicou com sua pergunta. Emily atravessou a sala para erguer os olhos grandes e confiantes para Lucas. Muito séria, insistiu, — Isso só vale para os meninos? — Não. Vale para as meninas também. Achou graça na dúvida da criança, mas ao mesmo tempo, tentou imaginar se Natalie já a estaria doutrinando sobre a igualdade entre homem e mulher. — E elas também só tem o papai ou a mamãe? — Emily perguntou, segurando a mão de Lucas. — Não, elas tem os dois, só que não são os mesmos que de seus irmãos — Como diabos fora se meter em uma discussão tão confusa com uma menina que não devia ter mais que seis anos de idade — Por acaso os pais de alguma amiguinha sua são separados0 — A minha mãe é separada do meu pai — ela explicou — E meu pai casou com outra mulher. Às vezes minha mãe chora por causa disso. Lucas não sabia o que dizer. Apertou a mão pequenina e tirou o cabelo da frente de seus olhos. Se tivesse tido filhos com Madeline, estariam quase com a mesma idade de Emily. E ficariam tão confusos quanto ela depois do divórcio. Mas Madeline era egoísta demais para pensar em bebês. Dedicada ao trabalho, o status e a determinação de traçar uma bem sucedida carreira profissional tivera precedência até sobre ele. Foi melhor assim, pensou, não sem uma pontada de amargura. — Estarei na sala de Rick... Ou melhor, na minha sala a maior parte do dia — anunciou, voltando-se para Daniel — Se possível, gostaria que você abaixasse um pouco o volume da música. — Claro — disse Daniel, aliviado — Vamos usar os fones de ouvido. — Ótimo. Lucas fechou a porta quando saiu e dirigiu-se à outra sala. A primeira coisa que chamou sua atenção foi um bilhete de Natalie, afixado na tela do computador. “Duvido que encontre algo interessante por aqui, mas acabo de ter uma idéia que talvez nos dê a pista que estamos procurando. Direi o que é quando o encontrar se você pedir com muito jeito.” Essa mulher não tem dó de ninguém, pensou. Mas sorria quando se sentou diante do computador. Levou menos de um minuto para descobrir que a senha de Rick era o nome da esposa. A maior parte das pessoas usa uma óbvia e palavra fácil de lembrar. Quatro horas mais tarde, no entanto, ainda não havia encontrado nada servisse de indício para descobrir o nome do assassino de Rick. Mesmo assim, a investigação ajudou a conhecer seu irmão um pouco melhor. Os números que corriam pela tela do computador não deixavam dúvidas, Rick vinha desviando fundos da empresa para uma conta particular havia menos de um ano. Pequenas quantias a princípio, mas que foram 49


crescendo com o passar do tempo. Na semana anterior a sua morte, chegara a "redirecionar" uma gorda fatia dos lucros da Galaxies de uma só vez. Sete mil dólares ao todo. Nem se dera ao trabalho de esconder o roubo com artifícios contábeis. Bastaria acessar aquele arquivo e examinar os lançamentos. Mas ninguém o fizera. Pelo que Lucas podia perceber, durante todo aquele ano ninguém, a não ser o próprio Rick, consultara os registros financeiros da empresa. Analisando as faturas que dera para Sherri arquivar, notou que todas, sem exceção, continham a rubrica de seu irmão. Como também era dele a letra nos canhotos dos cheques emitidos. Lucas balançou a cabeça em sinal de reprovação. Daniel confiara tanto no sócio que não se preocupara em acompanhar de perto o que acontecia com as finanças da Galaxies. Rick podia se dar ao luxo de ser descuidado, pois não corria risco algum de ser pego. Enquanto fosse vivo. Nada disso, porém, acrescentava muita coisa. A única pessoa lesada em tantas falcatruas era Daniel, mas esse fato não justificava um assassinato. Bastaria contratar uma firma de auditoria para mandar o sócio para a cadeia por longos anos. Além do mais, se fosse o responsável pelo "acidente", com certeza faria de tudo para impedir que Lucas tivesse acesso àqueles arquivos. Portanto, voltava à hipótese do suicídio. Mas seria possível que Rick se matasse porque vinha roubando a si próprio? Não conseguia encontrar sentido em tudo aquilo! Muito menos ao constatar que seu empréstimo de vinte mil dólares não fora usado para cobrir o desfalque. Aliás, esse dinheiro nem sequer constava dos registros. Rick simplesmente continuara se servindo dos lucros da empresa. Lucas resolveu deixar aquele arquivo de lado por enquanto e inseriu outro disquete no computador. Mais uma vez, como bem previra Natalie, nada de interessante. Exceto por um arquivo que se recusava a aceitar a senha padronizada por Rick. Tentou de novo. digitando o nome de Sherri com cuidado para evitar um possível erro. Na tela surgiu a mesma mensagem, Senha inválida. Lucas retesou-se na cadeira e depois de consultar alguns documentos do irmão, digitou a data em que ele e Sherri se casaram. Senha inválida. Experimentou a data do nascimento de Sherri, depois a de Rick. Senha inválida. Lucas sorriu, sentindo se renovar o entusiasmo pela caçada. — Finalmente um arquivo secreto.

CAPÍTULO VII 50


A idéia de Natalie era tão simples que sentiu vontade de se bater por não ter ocorrido antes. Verificar a movimentação financeira da vítima de um assassinato não era o procedimento mais comum durante uma investigação — Pelo menos, não tanto quanto a análise das impressões digitais deixadas na cena do crime. Mas podia ser útil, ainda mais levando-se em consideração que dispunham de poucas pistas para trabalhar. No entanto, precisaria da autorização do parente mais próximo do falecido ou de uma ordem judicial para convencer os funcionários dos bancos a entregar os registros de Rick. Claro que havia uma forma bem mais rápida de conseguir o que queria, e foi por ela que optou. Telefonou para o pai na delegacia de polícia. — Estamos na sua frente, menina — Nathan anunciou, depois que ela expôs o que pretendia — Coffey e Larson fizeram uma pequena visita à Senhora Peyton e saíram de lá com a autorização. — E já examinaram os registros? — Não sei. Ei, Coffey! — gritou, afastando a boca do fone — Você já examinou os registros bancários de Peyton? Como assim, "que Peyton"? Em quantos casos com esse nome você está trabalhando? Natalie ouviu um rumor ininteligível enquanto Coffey respondia. — Não. Ninguém mexeu em nada ainda — disse Nathan ao telefone afinal... — Deixe que eu me encarrego disso — Natalie sugeriu mais que depressa — É um trabalho chato e minucioso. Assim vocês ficam livres para coisas mais importantes. Prometo que entrego um relatório completo. — Tem certeza de que não vai usar as informações em benefício de sua cliente, Bárbara Peyton? — Eu já expliquei que meu interesse nesse caso diz respeito a Daniel e a mais ninguém — respondeu Natalie — Além do mais, eu não seria louca de cometer um crime suprimindo dados que constarem desses registros bancários. — Sei disso. Mas poderia demorar a me entregar o relatório, dando tempo para sua cliente agir. — Fique tranqüilo com relação a isso, papai. Deixei de trabalhar para ela. — Ei, Coffey — ouviu-o gritar outra vez para o policial — Tem alguma objeção se eu pedir para outra pessoa examinar aquela papelada no banco? — Depois de um segundo, confirmou — Claro que é Natalie. Já me viu confiar nossos casos para mais alguém? A resposta do colega o fez gargalhar. Para a filha, porém, ele apenas disse, — Coffey quer saber de tudo que você encontrar. Tudo mesmo está me ouvindo? — Sim papai — retrucou Natalie procurando disfarçar sua alegria — Agradeça-o por mim.

51


A análise dos registros bancários em nome de Rick Peyton se mostrou menos produtiva do que Natalie esperava. Ainda assim, descobriu muita coisa que desconhecia a seu respeito. Rick recebera uma pequena herança do pai, e sua retirada na Galaxies era quase o dobro da de Daniel. Mesmo assim, para manter o estilo de vida, gastava muito mais do que ganhava. Excedera o limite de todos os cartões de crédito. Dois empréstimos em bancos diferentes totalizavam mais do que ele recebia em um ano. E nos últimos quatro meses, atrasara as prestações da hipoteca da casa e de dois carros. Se a casa no Lago Minnetonka ou os escritórios da Galaxies tivessem se incendiado, Natalie não duvidaria em classificar o fato como uma manobra de Rick para receber o dinheiro do seguro. Até a hipótese de suicídio se tornara plausível. Rick preparara o carro para que todos o considerassem vítima de um misterioso assassinato. Dessa forma, garantiria o futuro da esposa, ao mesmo tempo em que a desobrigaria de saldar suas enormes dívidas. Natalie balançou a cabeça, descartando essa possibilidade. O Rick Peyton que conhecera seria incapaz de um gesto tão altruísta. Ele teria preferido pedir concordata e começar tudo de novo a desistir de viver. Ajeitando melhor os óculos sobre o nariz, Natalie retomou a árdua tarefa de relacionar nomes e quantias e anotar dados que gostaria de investigar mais tarde. Só parou quando um funcionário do banco bateu em seu ombro e avisou que precisavam fechar. — Aposto como minha previsão se confirmou e você não encontrou nada nesse computador. Lucas ergueu os olhos dos papéis espalhados em cima da mesa para ver Natalie parada na porta de seu escritório. Trazia no rosto o frescor de quem acaba de tomar uma ducha deliciosa, além do costumeiro ar de triunfante insolência. Por sua vez, depois de um dia inteiro debruçado sobre a tela do computador, Lucas sentia-se um trapo. — Pois perdeu a aposta — disse ele — Tem alguma coisa aqui que deve ser muito interessante. Apenas não consegui acessá-la — E acrescentou, cerrando os dentes enquanto se virava para o computador — Ainda. Procurando não demonstrar a admiração que sentia pela tenacidade dele, e fascinada em constatar como Lucas ficava bem com a barba por fazer, Natalie entrou na sala. Colocou a bolsa e um pacote grande no canto da mesa, deixando seus olhos percorrer os ombros largos, o cabelo escuro, macio, e os ante-braços peludos que as mangas da camisa, enroladas, permitiam entrever. Irritada, tentou imaginar como era possível que um dia tão cheio só servisse para torná-lo ainda mais irresistível, ao passo que ela se sentia exausta. E por que aquela cobra tatuada em seu pulso se tornava mais sensual cada vez que a via? Há três dias, se alguém pedisse para dizer como ela o homem de seus sonhos, com certeza não ouviria uma descrição em que Lucas Sinclair pudesse 52


se encaixar. Sendo assim, como explicar o arrepio de excitação que percorria a espinha à simples menção do nome dele? Classificara-o como um machista incorrigível desde o dia em que se conheceram. Essa impressão se confirmou em mais de uma oportunidade. No entanto, às vezes ele demonstrava uma incrível capacidade de surpreendê-la, demonstrando uma sensibilidade a toda prova. Como por exemplo, quando conversara com Emily. Natalie telefonara do banco para Daniel, avisando que levaria alguma coisa para comerem juntos na Galaxies e ele a colocara a par de tudo. — Você sabe cozinhar? — O quê? — Lucas desviou os olhos da tela fingindo-se aborrecido. Na verdade, mais que suas palavras, a presença de Natalie o distraía. E, por absurdo que pareça, também o agradava muito. — Se sei o quê? — Cozinhar. — Por que a pergunta? Natalie deu de ombros. — Mera curiosidade. Sabe? — O suficiente para não morrer de fome. Ou seja não sabe ela concluiu. Qualquer pessoa capaz de abrir uma lata e ligar um forno de microondas não morre de fome. Mais uma prova de que estava diante de um completo machista. E que importância tinha isso afinal? Irritada consigo mesma dessa vez Natalie decidiu parar de pensar como uma adolescente, que sonha com o herói de sua fotonovela preferida, para se concentrar no trabalho. — O que você está procurando agora? — quis saber. — A maldita senha para os arquivos secretos de Rick. — Arquivos secretos? Verdade? — Deu a volta e pendurou-se na mesa, inclinada sobre o ombro de Lucas para olhar a tela do computador — Como sabe que são secretos? — Porque não consigo abri-los. Exige uma senha diferente dos outros arquivos — Voltou-se para encará-la — Você não entende nada de computadores? Estavam cara a cara. Os deliciosos lábios de Natalie, a poucos centímetros de distância, provocavam de uma maneira absurda o seu autocontrole. — Sei me virar apenas — ela admitiu, a fala mansa e suave. Natalie tentou encontrar, nas profundezas daqueles olhos verde claros, algo além do próprio reflexo. Não conseguiu e, incomodada com o silêncio que desceu sobre a sala, recuou. Engolindo em seco, retesou-se e cruzou os braços sobre o peito, em um gesto inconsciente de proteção. — Daniel me ensinou o suficiente para que eu pudesse administrar minhas contas — disse, voltando ao assunto — Mas desistiu de nos transformar em amigos de verdade.

53


Lucas suspirou, reprimindo o desejo urgente de estender as mãos e eliminar a distância que impossibilitava o tão sonhado beijo. — Ninguém é amigo de um computador, Natalie. A gente apenas o utiliza, como uma máquina qualquer — Fungando o ar, perguntou — Engraçado, estou sentindo cheiro de batata frita. — Está com fome? — Morrendo — ele respondeu. Entretido com os arquivos de Rick, esquecera-se de comer. Mesmo assim, pensou em acrescentar que sentia fome dela, mas desistiu da idéia. — Foi o que imaginei — Natalie virou-se para pegar o pacote que deixara sobre a mesa — Daniel disse que não o viu se ausentar do escritório o dia inteiro. — Daniel? Ele ainda está aqui? — Estava quando liguei para avisar que traria alguma coisa para comermos. — Pensei que ele tivesse ido embora quando sua irmã... — Andréa — ela ajudou. — Quando Andréa veio buscar as crianças. Não ouvi um pio na sala dele desde então. — Daniel precisa ficar em absoluto silêncio para criar. O mesmo não acontece na hora de experimentar os novos jogos — Natalie inclinou a cabeça de lado e um pequeno sorriso abriu-se em seus lábios enquanto o olhava por cima dos óculos — Ele disse que Emily adorou você. — E mesmo? — Ah, o que não daria para ouvi-la dizer que ela o adorava! — Também gostei muito dela. Uma criança muito inteligente e encantadora. — Puxou à tia. — Em mais de um sentido — Lucas concordou seco, escondendo um sorriso. — Como assim? — Quantos anos ela tem? Seis? Natalie fez que sim com a cabeça. — E já é uma feminista radical. — Faço o que posso — retrucou Natalie aceitando a provocação. — Tenho certeza que sim — Sem dar a chance de começar um longo discurso em defesa da liberdade das mulheres, emendou — Você pretende me dar um pouco dessas batatas ou só queria me torturar com esse cheiro? — Bem... Depende. — Do que? — De você me pedir com muito jeito. Natalie descera da mesa e atravessava a sala antes de acabar de dizer essas palavras, impedindo-o de ceder ao impulso de tentar agarrá-la. — Vou levar um pouco para Daniel e já volto para compartilhar minha parte com você — Parou na porta antes de sair e sugeriu — Enquanto isso, por que não pega duas xícaras de café para nós? O meu pode ser forte, por favor. 54


Lucas levantou-se para obedecer sua ordem. Em seguida, abriu um espaço na mesa abarrotada de documentos e esperou. Essa mulher é um verdadeiro quebra-cabeça, pensou. Do contrário por que dividiria seu jantar com ele depois da discussão tão acalorada daquela manhã? Jamais a entenderia. Tinha um lado positivo que o fascinava, era bonita, feminina, sensual, dona de pernas belíssimas e um sorriso capaz de derreter blocos de gelo em pleno Alasca. Lucas sentia a porção mais sensível de seu corpo adquirir a rigidez de uma árvore petrificada sempre que a via. Mesmo quando travavam lutas verbais, pegava-se imaginando como seria bom ver toda aquela fúria canalizada para o supremo ato de amor... Dessa vez, até a consumação dos fatos. E agora descobria que além de não guardar rancor Natalie Bishop esbanjava generosidade. Mas então se lembrou de seu lado negativo. Arrogante, intrometida, bisbilhoteira, era do tipo que colocava a profissão acima de tudo. Depois de um casamento fracassado exatamente por esse motivo, Lucas jurou para si mesmo nunca mais se envolver com uma mulher independente e liberada. Custava admitir, mas não suportaria ser relegado a segundo plano de novo! — Deus do céu, Lucas! — exclamou Natalie ao voltar para sua sala — Não precisa fazer careta. Aqui está sanduíches de hambúrguer e batatas fritas. Assim dizendo, dispôs a comida em cima da mesa, junto com os guardanapos de papel que tirou do pacote. — Também trouxe tortas de maçã para a sobremesa — acrescentou — São deliciosas, não acha? — Acho sim — ele concordou, sorrindo apesar de si mesmo. — Que bom que você gosta. Natalie encarapitou-se na beirada da mesa, cruzou as pernas e desembrulhou seu sanduíche. Enquanto comia Lucas refletiu que talvez ela sentasse em cima das mesas para compensar a pequena estatura. Um hábito tão arraigado que Natalie parecia alheia ao suplício a que o submetia naquele exato momento. Na posição em que se encontravam, descortinava-se diante dele um delicioso par de pernas. De bom grado Lucas o acariciaria, das coxas até os pés cobertos com aqueles ridículos sapatos de salto alto. Por um instante enxergou-a nua, só de sapatos, sentada ali mesmo onde estava. — Pare de franzir a testa para meus pés — disse Natalie depois de engolir um pedaço do sanduíche — e conte por que não abriu esses arquivos secretos de Rick. — Já disse. Ainda não descobri a senha. Testei várias, mas nenhuma deu certo. — Talvez eu consiga ajudar. — Não e tão simples assim. — Mas também não custa tentar. Posso surpreendê-lo. Tenho certeza disso. 55


Lucas pensou, suspirando. — Experimentei tudo que me parecia óbvio — explicou. — Como, por exemplo? — Nove em dez vezes, as pessoas usam algo fácil de lembrar. A data do próprio nascimento, o nome da esposa ou de um filho. Também pode ser o passatempo preferido, o nome da escola que freqüentaram ou o número da carteira de identidade. Em geral, basta conhecer um pouco essa pessoa para descobrir sua senha. — Aposto como você não conseguiria descobrir a minha. Lucas a encarou por cima do sanduíche. — Aceito. O que vamos apostar? — O que você quiser. — Bem... Que tal um dia inteiro de trabalho? Mas não valem grosserias nem reclamações. Natalie hesitou. Afinal de contas, Lucas era especialista em computadores, acostumado a desvendar códigos intrincados. Além do mais, a que tipo de "trabalho" ele se referia? — Está com medo? — ele desafiou. Embora não quisesse dar o braço a torcer, Natalie preferiu se resguardar. — Eu topo, desde que seja um trabalho razoável. — Fechado. — Terá de ser depois que resolvermos este caso — ela acrescentou — E por "dia" entendo o período entre o nascer e o por do sol. Também só dou dez minutos para adivinhar minha senha. Lucas sorriu triunfante e jogou o guardanapo de papel na lata do lixo. — Faço em menos de cinco minutos — vangloriou-se. Reclinado na cadeira, os dedos cruzados atrás da cabeça, assumiu uma pose estudada para aparentar despreocupação. Observou-a por um instante e não resistiu à oportunidade de fazer uma observação sarcástica, — Você se julga esperta. Portanto, não vai pensar em coisas simples como datas de nascimento, o número de sua casa ou seu nome soletrado de trás para frente. Mas preciso descartar todas as possibilidades. Vejamos... Que tal o número de sua carteira de motorista? Natalie fez que não com a cabeça. — Certo. Então o nome de sua sobrinha? Ou de um dos sobrinhos? Ou a primeira letra do nome de todos eles? Natalie continuou balançando a cabeça, sentindo a confiança de que ganhara a aposta crescer após cada tentativa. — O nome de seus pais ou irmãos? — Não. — Então deve ser algo ligado a sua profissão. O número da licença de detetive? Também não. Talvez algum personagem da literatura ou de histórias

56


em quadrinhos. Que tal... Sherlock Holmes? Watson? Hercule Poirot? Olho-vivo? Faro-fino? Ou... Mas de repente Lucas lançou-se para frente, exultante. — Eu vi você piscar de uma maneira diferente. Vamos lá, menina, confesse. Qual desses nomes você utilizaria como senha? — Olho-vivo — Natalie reconheceu, retorcendo os lábios em um sorriso acanhado. Não esperava que ele conseguisse tão depressa. Porém o que mais a incomodava era saber que Lucas tinha razão, julgara-se esperta ao escolher o nome dessa personagem de desenho animado como senha. — Podemos marcar a data em que você trabalhará para mim? Natalie fingiu não ouvir. — Se é tão fácil, por que ainda não descobriu a senha de Rick? — Porque ele foi mais esperto que você — Lucas retrucou no mesmo tom — Já tentei de tudo, o nome dos vídeo-games de maior sucesso lançados pela Galaxies, das cidades de Minnesota, de minha mãe e dos sentimentos a ela relacionados, como ódio, por exemplo. Lançou-lhe um sorriso de cúmplice e prosseguiu, — Até meu nome e iniciais experimentei, imaginando que poderia ter algo a ver com o dinheiro que emprestei. Nada. Criei um programa para formar anagramas com as letras contidas nos nomes de Rick e Sherri — Apontou para a tela do computador, onde pequenos sinais luminosos piscavam sem parar — Ele ainda não chegou à alternativa correta e duvido que o faça. Começo a achar que Rick escolheu essa senha ao acaso, pegando uma palavra da lista telefônica ou de um dicionário. Uma idéia acendeu-se na mente de Natalie como uma lâmpada. Alguma coisa que a incomodava desde o começo da tarde. Muito ereta na ponta da mesa, deteve o sanduíche a meio caminho da boca para dizer, — Experimente Dobbs. — O que? — Dobbs. D-o-b-b-s. Atirou o resto do sanduíche no lixo. Estava excitada demais para continuar comendo. — Passei a maior parte do dia no banco, esmiuçando os registros em nome de Rick e Sherri — explicou — Encontrei dois cheques pequenos, emitidos em nome desse tal de Dobbs e por ele endossados. Os cheques tinham sido devolvidos por insuficiência de fundos. Lucas não se mexeu, aguardando que ela continuasse. — Agora sei por que isso me chamou a atenção. Entrevistei um vizinho de Rick e etc contou que o ouviu conversar ao telefone, sobre o dinheiro que perdera apostando em um jogo de futebol. Ele achava que o nome do sujeito do outro lado da linha era Bob ou Rob, mas podia muito bem ser Dobbs. Tenho certeza que era!

57


No mesmo instante Lucas começou a digitar a série de comandos que interrompia o programa dos anagramas. — Já vamos saber. Natalie inclinou-se de novo sobre seu ombro para ver. Mais alguns toques no teclado e o computador aceitou a senha. Lucas instruiu-o a imprimir o arquivo inteiro e arrastou a cadeira até a impressora. — Macacos me mordam! — exclamou de repente. Natalie saltou da mesa e aproximou-se. — O que e isso? — perguntou, tentando descobrir algum sentido nos números que começavam a surgir no papel. — Na primeira coluna são datas. Na segunda, quantias em dólar. Agarrando-lhe os ombros com as duas mãos, Natalie assobiou. — Mas... É muito dinheiro! — Sim — ele concordou — Parece que meu querido irmão estava até o pescoço com dívidas de jogo.

CAPÍTULO VIII — Sim, eu o conheço — disse Nathan Bishop, depois que Natalie e Lucas revelaram sua mais recente descoberta — Marty Dobbs. E um book-maker que gosta de pensar em si mesmo como um cavalheiro — O tom de sua voz era de

58


menosprezo — Na verdade, porém, recebe a maior parte das apostas nos fundos do Lamplighter. Uma espelunca no centro da cidade. Também atua como agiota para ajudar os clientes que apostam mais do que têm. Dessa forma consegue manter o '"fluxo de caixa"'. Franziu a testa e balançou a cabeça antes de continuar, — Nunca imaginei que uma pessoa como Rick Peyton, pudesse se misturar com um tipo desses. — Bem, mas foi o que aconteceu — Lucas replicou sério — Meu irmão devia até as calças. — A peça que faltava em nosso quebra-cabeça descoberta graças a dois míseros cheques devolvidos — divertiu-se Nathan, olhando para a filha com uma expressão de orgulho no rosto — Fez um bom trabalho, menina. Um bom trabalho mesmo. Natalie ficou radiante ao ouvir um dos raros elogios do pai em reconhecimento ao seu profissionalismo. — Você vai mandar prendê-Io? — perguntou. — Sob que acusação? — Como assim? Pelo assassinato de Rick, é claro. Nathan recostou-se na cadeira e declarou, — Não temos o suficiente nem para submetê-lo a um interrogatório. — Mas... — Você sabe tão bem quanto eu que esses cheques não provam nada. Devia saber, pelo menos — Respirou fundo e explicou — Ninguém garante que o Dobbs para quem foram emitidos os cheques, seja o mesmo a que me referi. Deve ter no mínimo uma dúzia de pessoas com esse nome na lista telefônica. — Mas o que me diz do arquivo do computador? — lembrou Lucas — Ele listou datas e quantias. Até o nome dos times em que Rick apostou estão lá. O que mais o Senhor precisa? — Depende para que — disse Nathan com toda calma — Se eu quisesse provar que seu irmão era um jogador, já me daria por satisfeito. Além disso, sua descoberta sugere que ele utilizava os vários serviços de Marty Dobbs para fazer as apostas. Os dados encontrados no computador podem até indicar um motivo para o crime, mas não nos dão certeza de que ele foi cometido por causa disso. A polícia exige provas concretas para efetuar uma prisão. — Mas Marty Dobbs deve estar envolvido de alguma forma nessa história — Natalie insistiu. — Conhecer um fato e conseguir prová-lo são coisas diferentes — disse o pai — Sei de muita coisa que não poderia provar perante um juiz. — Quer dizer que a polícia vai ficar esperando de braços cruzados? — Lucas quis saber, indignado — Dobbs continuará praticando seus crimes sem ser incomodado? — Em primeiro lugar, não sabemos se ele está envolvido nesse assassinato — Nathan repetiu com firmeza — Marty Dobbs pode ser um

59


vigarista, mas não e estúpido. Se matasse Rick estaria eliminando para sempre sua galinha dos ovos de ouro, concorda? Nathan balançou a cabeça e prosseguiu, — Gente como ele usa outros métodos de persuasão. Por exemplo, mandaria um de seus seguranças forte e musculoso dar uma lição em Rick que ele jamais esqueceria. Nunca ouvi o nome de Dobbs associado ao assassinato de ninguém. — Existe uma primeira vez para tudo... — Natalie começou. Lucas calou-a colocando a mão em seu braço. — E em segundo lugar? — perguntou, no tom suave que fazia arrepiar o cabelo da nuca de Natalie. — Em segundo lugar — disse Nathan sustentando o olhar de seu interlocutor — a polícia não vai ficar esperando de braços cruzados. Mandarei Coffey e Larson investigar a informação que vocês me trouxeram. — Mas, papai... — Já chega Nat. Saiam daqui, os dois, e me deixem trabalhar. Dez minutos depois, no Jipe de Lucas, esperavam o semáforo abrir quando Natalie comentou, — Já que não temos outra alternativa, vou dar um pulo nesse tal de Lamplighter. — Aonde? — Lembra que papai mencionou uma espelunca em que Dobbs costuma agir? Pois então. Presumo que seja um bar ou restaurante. — E o que vai dizer? — perguntou Lucas, cético, descontando sua frustração em cima dela. Em tom de falsete, imitou-a — "Por favor, Senhor Dobbs, por acaso foi o Senhor que assassinou Rick Peyton?"' — Brinque à vontade — disse ela, com ar de desprezo — Acontece que meus próprios métodos para descobrir o que quero. — Se esse lugar for mesmo uma espelunca, todos a tomarão por uma prostituta assim que puser os pés lá dentro — Lucas instigou-a — Principalmente se for com esses sapatos. Natalie abaixou os olhos para os pés. Não via nada de errado com seus sapatos. Pelo contrário, achava-os adoráveis. O tom pêssego-escuro era da cor exata do vestido, e os frisos creme combinavam com o paletó. — Quer me explicar, de uma vez por todas, o que você tem contra os sapatos que uso? — esbravejou — Levei dias para encontrar algo que ficasse bem com essa roupa. — Pois na minha opinião, eles te deixam parecida com um sundae, ou... Enfim, alguma coisa pedindo para ser devorada. — E mesmo? — Natalie ergueu os olhos, encantada. Sem perceber, ele acabava de endereçar um elogio. Dividida entre notificá-lo ou não do fato, acabou optando por dizer apenas. — Pare o carro. — Para que? 60


— Tem uma cabine telefônica logo ali. Preciso consultar a lista para pegar o endereço do Lamplighter. Mas Lucas passou pela cabine e seguiu em frente, rumo à rampa de acesso à via expressa. Natalie lançou-lhe um olhar irado. — Por acaso ocorreu alguma idéia melhor? — perguntou. — Por acaso, sim. Decidi que eu vou procurar Dobbs no Lamplighter. — Ora essa é muito boa! — exclamou Natalie — O que vai fazer lá? Exibir sua tatuagem para intimidá-lo caso Dobbs se recuse a revelar o que você quer saber? — Pelo menos sei como me proteger, caso algo saia errado. — Comigo, nada sairia errado. — Como pode ter tanta certeza disso? — As pessoas só são hostis quando se sentem ameaçadas. E sou a pessoa menos ameaçadora que conheço. — Engano seu — Lucas murmurou. Natalie ouviu, mas preferiu ignorá-lo. — Em todos os meus anos de prática como detetive particular, nunca me envolvi em nenhum tipo de violência — Remexeu-se no banco, virando o corpo para poder encará-lo — Certa vez segui uma adolescente até um ponto de venda de crack em um dos piores bairros desta cidade. Entrei e a trouxe para fora sem o menos problema. — Pura sorte — Lucas comentou, estremecendo ao imaginá-la exposta a tamanho perigo. Por mais corajosa que fosse. Natalie continuava sendo uma mulher. Na melhor acepção da palavra. E pequenina, ainda por cima. — Sou uma excelente profissional, isso sim — declarou, com seu vigor característico — Além do mais, em último caso poderia lançar mão desse pequeno artifício. Enfiou a mão em um pequeno bolso escondido dentro da bolsa e tirou um revólver calibre 38. Por pouco Lucas não jogou o carro fora da estrada. — Pelo amor de Deus. Natalie vire essa coisa pra lá! Armas não foram feitas para servir de brinquedo. — Eu não brinco com minha arma — disse ela azeda — Papai me ensinou muito bem a manejá-la, Quando afinal desistiu de me tirar da cabeça a idéia de trabalhar como detetive, achou melhor me ensinar algum tipo de autodefesa. Hoje atiro melhor que ele. sabia? Pelo canto dos olhos, Lucas viu o sorriso de satisfação que se instalou nos lábios de Natalie, ao mesmo tempo em que ela batia com carinho no lado da bolsa que tomara a acondicionar seu revólver. Em resposta, porém, brindou-a com um muxoxo de descrença. — Posso provar o que estou dizendo — Natalie assegurou. — Tem um estande de tiro municipal perto daqui. Aceita um desafio?

61


Seria uma boa oportunidade para descarregar o ódio que experimentava desde o início daquela conversa. Sentia-se alvo de mais um preconceito por parte de Lucas. De acordo os preceitos machistas que ele seguia, toda mulher era frágil e indefesa. Daria tudo para ver sua surpresa ao constatar que ao menos dessa vez enganara-se redondamente. No entanto, quem se surpreendeu foi ela quando Lucas mordeu a isca. — Seria perda de tempo — disse ele atento ao trânsito, o rosto duro como uma pedra — Eu ganharia fácil de você. — Diz isso porque está com medo. — Muito bem foi você quem pediu. Onde fica o estande? — Valem as mesmas condições da noite passada — Natalie anunciou enquanto se aproximavam da linha de tiro — Quem perder deve um dia inteiro de trabalho, a ser realizado com alegria e sem reclamações, para seu oponente. — Não me lembro desse "com alegria" — Lucas observou — Tenho a impressão de que e um acréscimo seu de última hora. — Está bem, risque o "'com alegria". Não vai fazer diferença, de qualquer forma. — Por que não? — Porque, depois que eu vencer... — Se você vencer. Natalie se corrigiu impaciente, — Se eu vencer, essa aposta cancelará a outra e não deverei mais nada. — E se eu vencer? — Nesse caso, serei sua escrava por dois dias — Lançou um sorriso tentador — Mas a possibilidade de acontecer uma coisa dessas é quase nula. Portanto, não se encha de esperanças. Com o cano do revólver sempre apontado para baixo, abriu o tambor com o polegar, girando-o para examinar a munição. Em seguida fechou-o com energia e ditou as regras da competição, — Cada um dará todos os tiros de uma só vez. No caso de empate, alternaremos os tiros até que fique claro quem ganhou. Sorriu, confiante de que isso não seria necessário, e perguntou, — Quer treinar um pouco para se familiarizar com minha arma? Maldição! Pensou Lucas. Essa mulher não se cansa de me provocar. — Muito obrigado, mas acho que posso recusar essa oferta tão gentil — Ainda exagerando as boas maneiras, estendeu o braço como um maítre de restaurante e disse — Primeiro as damas. Imaginando que ele contava com sua objeção, Natalie adiantou-se e assumiu posição de tiro. Antes, porém, ajustou os protetores de ouvido, cuidando para que não a incomodassem sem tirar os óculos. Só então ergueu a arma, a mão direita empunhando a coronha enquanto que a esquerda servia de apoio. Olhando para o perfil de um homem recortado em um pedaço de papel e colado a um papelão, perguntou, — Qual será o alvo? Cabeça ou peito? 62


— Cabeça, claro. E muito menor. Natalie concordou e preparou-se para atirar. Mirando com grande cuidado, apertou o gatilho. Um pequeno orifício surgiu no papelão. Permitiu-se um sorriso satisfeito ao constatar que acertara onde seria o espaço entre os olhos do alvo. Isso e, se ele tivesse olhos. Seguiram-se mais cinco tiros. Colocouos todos a poucos centímetros do primeiro. Lucas continuava atrás dela a uma distância segura para evitar atrapalhála. Porém não observava o alvo. Seus olhos estavam postos em Natalie. Reparou no cabelo loiro e fino, que até a brisa suave do verão conseguia soprar. Nos ombros delicados, mas tensos, antecipando o coice da arma a cada tiro. Nas coxas e na curva de seu traseiro que a saia justa delineava. Nas pernas bem torneadas, separadas para garantir o equilíbrio do corpo sobre o chão coberto de cascalhos. E nos sapatos de salto alto que inspirava as mais absurdas fantasias. Por esse motivo os chamava de sapatos de prostituta. — Sua vez — disse Natalie. Tirou os protetores de ouvidos e afastou-se para dar lugar na linha de tiro. A expressão triunfante desapareceu de seu rosto ao perceber que Lucas não a ouvira. Pior ainda foi a impressão de que ele também não assistira a sua evidente vitória. -— Lucas? — chamou — É a sua vez... Afinal conseguiu despertá-lo do torpor em que se encontrava. Porém, em vez de pegar a arma ela oferecia, Lucas atacou-a com a velocidade de uma cobra ao dar o bote. Pegando-a em seus braços, levantou-a do chão e apertou com força aquele corpo pequenino, porém transbordante de sensualidade. Ignorou quando Natalie tentou se debater. Passou a mão atrás de sua cabeça e trouxe a boca para junto da sua. Impetuoso, enfiou a língua pelos lábios entreabertos, calando seus protestos ao mesmo tempo em que a devassava. Saboreou-a como o melhor dos vinhos, acalentado por um desejo abrasador. Natalie sentiu-se uma perfeita boneca de pano. Os pés balançando no ar, a arma descarregada em uma das mãos, os protetores de ouvidos na outra. Porém fervilhavam em seu peito sentimentos que só uma mulher de carne, osso e um coração apaixonado sabe experimentar. No entanto, foi como se atirassem um balde de água fria no melhor dos sonhos. De repente, Lucas a soltou. Deixou que escorregasse até apoiar-se sobre os próprios pés e então tirou a arma da mão. Sem dizer uma palavra, sem olhála, inseriu as balas no tambor, subiu à linha de tiro vizinha à que ela usara e descarregou o revólver contra o alvo. Perplexa, Natalie nem sequer piscou a cada disparo. Os protetores de ouvidos, inúteis, continuavam pendendo de seus dedos. Naquele instante, a única coisa que a incomodava era sua incapacidade de lidar com emoções tão contraditórias quanto ódio e excitação a um só tempo. Mesmo assim, viu que Lucas atravessava o estande para conferir os resultados que cada um obtivera. 63


Arrancou os alvos do papelão, virou-se e voltou, caminhando a passos tensos como os de um pistoleiro, que atravessa uma rua empoeirada para duelar. Natalie quase podia ouvir as esporas retinindo. Só então reparou no monturo que se elevava sob a calça de Lucas. O discreto tecido azul marinho pouco fazia para esconder sua condição. Um alívio enorme se abateu sobre ela ao descobrilo excitado também. Idéias estranhas se insurgiram contra sua vontade. Se Lucas a abraçasse de novo... Se a beijasse... Se ao menos a tocasse... Acabaria estirada no chão do estande de tiro, implorando para que consumassem ali mesmo o que haviam começado. Em vez disso, ele entregoulhe os alvos e disse, — Você venceu. Por questão de milímetros, mas venceu. Ainda evitava olhá-la de frente. Temia as conseqüências se o clamor de seu corpo falasse mais alto que a razão outra vez. — Saiu-se melhor do que eu esperava — emendou. Natalie engoliu em seco e procurou se recompor antes de comentar, — Você também. As palavras soaram frias como uma lâmina de aço aos ouvidos de Lucas. Tentou imaginar por que ainda se submetia àquela tortura. Se não a tivesse beijado pela segunda vez, talvez se esquecesse mais depressa do sabor delicioso de seus lábios ávidos, e seu corpo parasse de reclamar por ela com tanta insistência. Porém a visão daquela mulher que o desafiava a todo momento com sua auto-confiança e ousadia fora demais para ele. Afinal compreendia o significado da expressão "impulso incontrolável", aprendera-o da maneira mais difícil. Reconhecia que a desejava. Imediatamente. De todas as formas possíveis e imagináveis. E, no entanto Natalie continuava estudando os buracos de bala naqueles malditos pedaços de papel! Um boneco de neve não seria mais insensível. — Eu diria que empatamos — ela confessou — se você não tivesse reconhecido a derrota primeiro. Enrolou os alvos e enfiou-os debaixo do braço, como se sua maior preocupação na vida fosse guardar para a posteridade o troféu que comprovava sua vitória. — Pode devolver minha arma, por favor? — pediu, disfarçando a tensão na voz. Enquanto isso, devolveu o protetor de ouvidos ao lugar em que o encontrara. E inventaria quantas desculpas fossem necessárias, para não encarar aquele homem que tanto a perturbava. Lucas atendeu-a de pronto. Paciente, esperou que ela recarregasse, conferisse duas vezes se fechara a trava de segurança e guardasse o revólver na bolsa antes de perguntar, — Vamos embora? Natalie fez que sim com a cabeça e liderou o caminho até o Jipe. Agiam como se nada tivesse acontecido. Tanto melhor, pensou, disposta a vencer a própria frustração custasse o que custasse, Só teve o cuidado de não tropeçar 64


nos cascalhos. Isso arruinaria sua performance, digna de um Oscar de melhor atriz na Academia de Hollywood. Daniel falava ao telefone quando os viu entrarem nos escritórios da Galaxies. Pediu licença para cumprimentá-los e disse, — Que bom que vocês já voltaram. Parecia não notar a expressão grave no rosto do sócio e da irmã. Tapou o fone com a mão e explicou, desolado, — Estou conversando com Sherri. É a terceira vez que ela liga. Não consigo trabalhar desse jeito. — Pode deixar, eu falo com ela — ofereceu-se Lucas. Daniel passou-lhe o fone e levantou-se para confidenciar para Natalie, — Pensei em não atender, mas o toque insistente do telefone também me incomodava. Devia ter ligado a secretária eletrônica... — Ele disse quem era? — Lucas perguntou tenso, ao telefone. No mesmo instante Natalie acenou para que o irmão se calasse. — Não, está tudo bem, Sherri — tranqüilizou-a Lucas, depois de ouvir a resposta — Ouça. Quero que você chame a polícia. Peça para os policiais que estão cuidando do caso irem até aí. Espere um pouco. Voltou-se para Natalie. Antes que abrisse a boca, porém, ouvia-a dizer, como se lesse seus pensamentos, — Coffey e Larson. Lucas repetiu os nomes para Sherri e continuou, — Repita cada detalhe do que me contou para eles — Fez uma pausa para escutá-la e replicou — Não, não espere até eu chegar. Telefone agora mesmo — ordenou — Não chore, Sherri... Por favor, não chore. Olhe, quando antes você desligar, mais cedo eu estarei aí. Sim, prometo. Natalie conseguia distinguir a impaciência em seu tom de voz e tentou imaginar o que impedia Sherri de percebê-la também. — Sim, Sherri — disse ele, cerrando os dentes — Agora vamos desligue e chame a polícia. Já estou a caminho. — O que aconteceu? — Natalie quis saber assim que o viu livre da cunhada. — Sherri recebeu uma ameaça por causa do dinheiro que Rick devia. — Dobbs? — Ela não sabe. Por outro lado, quem mais poderia ser? — A meio caminho da porta, a mão segurando a maçaneta de metal, deteve-se para perguntar — Você vem? Natalie balançou a cabeça. — Acho melhor você resolver esse problema sozinho. Depois daquela tarde, a última coisa que queria era vê-lo desfazer-se em mesuras e delicadezas com a pobre, doce e indefesa Sherri. — Vou aproveitar para passar no meu escritório. Preciso dar andamento a outros casos que tenho pendentes.

65


CAPÍTULO IX

66


Natalie estacionou na frente ao Lamplighter, do outro lado da rua, e analisou o lugar por algum tempo antes de descer do carro. Sua fachada e localização confirmavam o julgamento de Nathan, era mesmo uma espelunca. Abriu a pasta com as informações que adquirira no Arquivo antes de ir até ali. As fotografias de Marty Dobbs mostravam um homem de aparência comum, rosto estreito, queixo saliente, olhos arredondados e inexpressivos. Apenas uma pequena verruga na face esquerda o distinguia da multidão. Usava bigode e o cabelo cortado de forma a esconder um princípio de calvície. Considerando-se seu "ramo de atividade", tinha uma ficha policial bastante curta. Tentaram relacioná-lo com o funcionamento de casas de jogo ilegal meia dúzia de vezes, mas foi em vão. Um dos homens que trabalhava para ele delatou-o em juízo para conseguir um abrandamento de pena. Seu depoimento foi averiguado, embora o considerassem suspeito. Não encontraram nada que justificasse a prisão. Nos registros policiais não constava nenhuma ocorrência associando-o a atos violentos. Nem por isso Natalie deixou-se convencer da inocência de Dobbs no assassinato de Rick Peyton. Qualquer pessoa, ainda mais um criminoso, era capaz das maiores loucuras quando provocada. Planejava ser cautelosa para que ele não entendesse nenhum de seus gestos como uma provocação. Certificando-se de que sua arma estava onde deveria estar, respirou fundo, passou a alça da bolsa pelo ombro e desceu do carro. Sentia a adrenalina inundando a corrente sangüínea a cada passo que dava sobre o asfalto da rua. A porta pesada do Lamplighter abriu-se com surpreendente facilidade para revelar uma atmosfera escura e esfumaçada. Natalie parou à entrada, esperando os olhos se adaptarem. Afinal distinguiu como homens os vultos que se espalhavam pelas mesas redondas do salão e no bar. Não chegavam a dez no total. Mas talvez as cabines privativas, enfileiradas junto à parede do fundo, escondessem mais alguns. Contava com essa possibilidade, embora sua posição não permitisse ver se estavam ocupadas. No bar, a luz mortiça de uma televisão colorida exibia as imagens mudas de um jogo de basquetebol. No entanto, ninguém o acompanhava. Apenas o barman, braços apoiados no balcão, e o freguês com quem conversava pareciam alheios à súbita entrada de uma mulher naquele reduto masculino. Todos os outros olhos estavam postos em Natalie. Respirando fundo, ela aproximou-se do bar, confiante de que, a plena luz do dia, do lado de fora, pelo menos nada de mal poderia acontecer. Alguém deve ter feito um sinal para o barman. que virou-se e, sem demonstrar surpresa, perguntou, — Está perdida? Talvez adivinhasse que aquele não era ambiente para ela. Mesmo assim, Natalie respondeu, — Não. Só estou com sede.

67


Subiu em um banco junto ao balcão, usando de toda sua feminilidade nesse gesto tão simples. Deixou que a alça escorregasse do ombro porque pareceu sensual e apoiou a bolsa no colo. O barman deu de ombros, talvez para se isentar da responsabilidade pelo que viesse a acontecer. — O que vai querer? — perguntou. — Um Jack Daniel. Puro, e sem gelo. Acho que vinho branco, sua bebida favorita, não combinaria com a imagem que tentava projetar. — São três e cinqüenta — anunciou o barman, colocando o copo sobre um pequeno guardanapo branco sobre o balcão a sua frente. Natalie tirou uma nota de dez dólares da bolsa e, antes de entregá-la comentou, — Ouvi dizer que esse lugar costuma ser bastante agitado. — Depende do que vote está procurando. Ela colocou outra nota de dez em cima do balcão. — Queria me divertir um pouco. Me indicaram um tal de Marty... Dobbs, acho que é esse o nome. O barman encarou-a sem expressão. — Tem certeza de que quer falar com Marty? — Absoluta. — Muito bem — Guardou as duas notas de dez no bolso e gritou — Ei, Cal. A mocinha aqui gostaria de conversar com Marty. — É mesmo? — veio a resposta do interior de uma das cabines. No instante seguinte Natalie viu surgir dali de dentro um homem alto, grandalhão, dono de um corpo esculpido, a duras penas em alguma academia de ginástica da cidade. A calça jeans de tão apertada, fazia imaginar como o sangue chegava às pernas. Usava uma camiseta justa e sem mangas para realçar o físico, e o cabelo loiro, muito curto, deixava expostos os nós dos músculos rijos que trazia até no pescoço. Do brinco de argola na orelha esquerda pendia um minúsculo crânio de plástico. Exibia um largo e insinuante sorriso quando chegou perto de Natalie. Com certeza baseado na crença equivocada de que toda mulher o achava irresistível. Sempre preocupada em não levantar suspeitas, ela correspondeu sorrindo também. — Sobre o que quer falar com Marty doçura? — perguntou Cal acariciando com o dedo a mão que ela apoiava no balcão do bar. Natalie refreou o impulso de afastá-la com um gesto brusco e respondeu, — Uma amiga me contou que o Senhor Dobbs trabalha aqui — abaixou o tom de voz para completar — Como bookmaker. — Verdade? — Sim. Ele aceita aposta em corridas de cavalo, jogos de futebol... Coisas desse tipo — murmurou.

68


Não se preocupou em disfarçar o nervosismo. Imaginou que ficava bem para uma mulher que entrava sozinha em um lugar como aquele a procura de um marginal. Menos pela necessidade de beber alguma coisa que para afastar a mão daquele dedo insistente, pegou seu copo e tomou um longo gole. Sentiu a garganta queimar ao engolir. — O Senhor Dobbs está aqui? — perguntou então. — Talvez sim, talvez não. Natalie acomodou-se melhor no banco, aproveitando para se afastar e olhar na direção da cabine de onde ele saíra. Esperava ver Dobbs a espreitá-los, curioso em conhecer quem o procurava. Mas Cal percebeu seu movimento e aproximou-se, bloqueando-lhe a visão. — Eu precisava tanto conversar com ele — Natalie insistiu. — Converse comigo — disse Cal — É a mesma coisa. Natalie arregalou os olhos como se estivesse surpresa. — Você é secretário do Senhor Dobbs? — Exato — replicou Cal divertido. — Bem, se é assim... Minha amiga disse que ele poderia... — Quem e essa "amiga"? — Cal interrompeu-a. Natalie teve de ser rápida para responder, — Oh, sinto muito, mas ela pediu que não mencionasse seu nome. O marido ameaçou pedir o divórcio, se descobrisse que anda apostando o dinheiro das compras de novo — Deu de ombros e piscou, convidando-o a ser cúmplice da pequena infidelidade que cometia contra a suposta amiga — Sabe como são essas coisas. O sorriso insinuante de Cal se alargou. — É. Eu sei — Em seguida inclinou-se tanto que Natalie sentiu as narinas invadidas por um terrível hálito de cerveja — E você, também tem marido, doçura? Ao mesmo tempo em que falava, começou a acariciar o braço. — Eu? Claro que tenho — mentiu. — E ele é do tipo ciumento? Seus dedos encontraram a extremidade da manga do paletó creme que Natalie ainda usava e tocaram a pele nua. — Sim, muito — Estremeceu de tanto se esforçar para controlar a repugnância que a invadia — Seria capaz de me matar se soubesse que vim até aqui. A mão de Cal subiu por seu braço e antes de alcançar seu ombro, roçou o seio de propósito. — Quer dizer que esse vai ser o nosso segredo, certo? — Como assim? Não estou entendendo. Mas claro que Natalie compreendera muito bem onde ele queria chegar. Só a levaria ao seu chefe depois que satisfizesse os instintos sexuais.

69


Precisava ganhar tempo. Nem mesmo um brutamontes como Cal arriscaria estuprá-la no meio do salão de um bar, à vista de todos. Por outro lado, seria inútil debater-se contra aquela montanha de músculos, se ele resolvesse arrastá-la para um lugar menos público. Com certeza a opção mais sensata seria dar as costas e ir embora antes que fosse tarde demais. Nesse caso, teria de sepultar para sempre a esperança de que sua visita ao Lamplighter servisse ao menos para descobrir o paradeiro de Marty Dobbs. A detetive particular falou mais alto que a mulher em Natalie. Decidiu provocá-lo ao máximo. Enquanto Cal concordasse em participar de seu jogo de sedução, estaria segura. Se ele resolvesse partir para as vias de fato, contava com a arma na bolsa para protegê-la. Esvaziou o copo de uma só vez para tomar coragem e enxugou os lábios com a língua. — A que segredo você se refere, Cal? — perguntou, fingindo inocência. — Ah, é um segredo enorme, você vai adorar — Seus olhos brilhavam de excitação — Vamos até meu carro que eu mostro. Está bem atrás do bar. Assim dizendo, esfregou o dorso de um dedo no mamilo de Natalie. — Ora, Cal — ela protestou, segurando a mão, mas abrindo os lábios no mais doce de seus sorrisos — Nós mal nos conhecemos. — Mais um motivo para você vir comigo, doçura. Estou ansioso para conhecê-la... A fundo. Desconcertada, Natalie soltou sua mão e remexeu dentro da bolsa como se procurasse alguma coisa. — Por que não me paga outro drinque? — sugeriu então — Podemos conversar um pouco enquanto bebo. Gosto de conversar antes de... — A gente conversa no carro — ele interrompeu. De repente, pegando-a de surpresa, puxou-a do banco e enlaçou a cintura com força. Natalie mal teve tempo de segurar a bolsa e passar a alça pelo braço. — Cal, por favor — Empurrou-o pelo ombro, tentando se desvencilhar — Não vamos apressar as coisas. Em resposta, ele apertou-a com mais força. Natalie então resolveu mudar a estratégia e aninhou a cabeça contra seu peito. Como esperava, sentiu relaxar o braço que cingia a cintura. Porém não teve tempo de aproveitar para fugir. Cal empurrou-a para trás, prendou-a entre o balcão e o próprio corpo e curvou-se. Curvou a cabeça, ameaçando beijá-la. Natalie não estava disposta a ir tão longe para conseguir o que queria. Girou depressa a cabeça, enquanto lutava para alcançar a alça da bolsa e puxá-la para cima. Sentiu o balcão machucar suas costas, mas não desistiu. No exato momento em que enroscava os dedos na alça. Ouviu um assobio agudo e a voz do barman, — Se vocês querem namorar Cal tratem de ir lá para fora. Não vou permitir essa pouca vergonha aqui dentro.

70


Foi então que a primeira pontada de pânico percorreu a espinha de Natalie. Não podia contar com ninguém para socorrê-la! Embora não pudesse vê-los, sabia que os outros fregueses continuavam sentados em suas mesas, admirando o espetáculo. E Cal era tão forte, tão determinado em seu propósito! Finalmente agarrou a bolsa, sua única tábua de salvação naquele instante. Mesmo assim, debateu-se apavorada, tentando acertar a canela de Cal com o bico do sapato. — Ora vamos, doçura — ele cochichou ao seu ouvido, fechando a mão sobre seu seio — Não precisa fingir que não quer. Para Natalie, os segundos se transformaram em séculos até sentir o metal frio do revólver dentro da bolsa. Quase desmaiando de alívio, passou um dedo pelo gatilho. Com um safanão, livrou-se da bolsa, que continuou pendurada no seu braço, e ergueu a arma até encostá-Ia na fronte de Cal. Foi com enorme satisfação que viu seu fogo apagar como que por encanto. Ele empalideceu, arregalou os olhos e soltou-a para poder recuar. — O que diabo... — começou. Porém um golpe forte na altura da nuca o fez calar-se. Cal rodopiou e estatelou-se no chão, aos pés daquela que, até a pouco, mantivera prisioneira. Natalie ergueu os olhos a procura de seu salvador. Queria agradecer, mas também avisar que seu gesto heróico não era mais necessário. Antes que o visse, no entanto, caiu o queixo ao reconhecer a voz que vociferava, — O que você pensa que está fazendo aqui, sua... Sua... Sua maluca! A raiva, mas também o susto por imaginá-la exposta a tantos perigos, impediram Lucas de dizer qualquer outra coisa. Tomou-a pelo braço e se preparava para arrastá-la dali de dentro quando alguém chamou, — Ei cara! Você acabou de apagar um amigo nosso, sabia? Lucas estacou, tão de súbito que Natalie trombou contra seu corpo. Soltando-a. encarou os dois sujeitos que dirigiam a palavra e se interpunham entre eles e a porta. — Saiam da minha frente — ameaçou. — Calma Lucas — Natalie advertiu, com medo do que estava para acontecer. Mas ele a ignorou. — Mandei saírem da frente. — Lucas. — Cale a boca! — ele ordenou, sem se virar. Natalie ainda tentou mais uma vez, — Lu... Porém não conseguiu terminar. Imaginando que ele se distraíra com a insistência da companheira, um dos amigos de Cal saltou para cima de Lucas. Para sua própria infelicidade, cometia um grave erro. Lucas esquivou-se ao mesmo tempo em que segurava o braço e o torcia para trás. Em seguida plantou-lhe um chute no traseiro, que o atirou de queixo contra a madeira do

71


balcão do bar. Desacordado, ele escorregou para o chão e imobilizou-se ao lado de Cal. Lucas, porém, não se descuidou. Ágil e ferino como uma cobra, avançou sobre o outro homem. O pobre coitado ainda fez menção de fugir, mas dois punhos certeiros atingiram o peito. Seus joelhos dobraram e ele caiu de quatro, a cabeça erguida lutando para conseguir respirar. — Mais alguém? Lucas perguntou então, dirigindo-se à platéia que, muda e estupefata, observava das mesas. Como ninguém se manifestasse, agarrou o punho de Natalie e correu para a porta. Só parou quando chegaram à calçada do outro lado da rua. — Pode me soltar agora — Natalie reclamou. Sem fôlego, a bolsa balançando em seu braço, esforçou-se para endireitar os óculos. O braço preso, porém, impediu-a de continuar. — Lucas, por favor — pediu — Estou ficando sem circulação nos dedos. Mas ele não a atendeu. Em vez disso, abriu a porta do Jipe preto, estacionado atrás do carro de Natalie, e ordenou, — Entre. — Lucas... — Entre e fique quieta. Vou levá-la para casa. — Não posso abandonar meu carro aqui. — Natalie estou fazendo o possível para não perder a calma. Portanto, ou você entra de uma vez ou eu... — Ou você o quê? — Safou-se de sua mão afinal e deu um passo para trás — Vai me dar uma surra também? — Não me tente — Lucas advertiu, por entre os dentes cerrados. — Eu o processo se encostar mais um dedo em mim! — Pela última vez, Natalie entre nesse carro. Aqueles caras não vão passar o dia inteiro deitados no chão do bar. Podem sair dali de dentro a qualquer instante e correr atrás de nós. Mas ela não se mexeu. Furiosa, pôs-se a esbravejar, — Já estou cheia de ser tratada como criança! Primeiro meu pai, agora você. Fique sabendo que não admito isso, está me ouvindo? — Eu e todas as pessoas no raio de um quilômetro. — Sei muito bem me defender, não preciso da ajuda de nenhum fuzileiro naval metido a Rambo. Sinto decepcioná-lo, mas a guerra do Vietnã acabou faz tempo! — Pois precisa me ensinar seu método de defesa. Quando entrei no bar, achei que aquele grandalhão a dominara e estava prestes a... — O que você acha ou deixa de achar não me interessa — Natalie interrompeu no mesmo tom sarcástico. Jamais reconheceria que despejava em Lucas todo o ódio pelas investidas de Cal, reprimido por um motivo bastante simples, a própria inferioridade física, somada ao instinto de sobrevivência. 72


— A licença de detetive particular pendurada na parede do meu escritório não está ali por acaso — continuou — Fui treinada para lidar com situações como essas. Além do mais, esqueceu que tenho uma arma e que sei usá-la melhor que você? — Então por que não o fez? — Mas eu tentei — Natalie gritou — Quando você chegou, eu tinha acabado de encostá-la na testa dele, assim... Deu um passo a frente e, sacando o revólver da bolsa, ergueu-o até bater com o carro na fronte de Lucas. — Pelo amor de Deus cuidado! — ele resmungou, aflito, enquanto recuava. — Vocês dois reagiram exatamente da mesma maneira — disse Natalie, saboreando a sensação de vingança antes de guardar a arma na bolsa — Agora vou entrar no meu carro e dirigir até a minha casa sem a interferência de ninguém. Assim dizendo, deu as costas e afastou-se pisando firme com os sapatos de salto alto. Em silêncio Lucas aguardou imóvel enquanto a via procurar a chave na bolsa, abrir a porta e se acomodar ao volante. Tão logo ela girou a chave na ignição e partiu, no entanto, saltou para dentro de seu Jipe e seguiu-a. Natalie não demorou a perceber o que acontecia. Cada vez que dobrava uma esquina ou acelerava, era acompanhada de perto por aquele carro preto. Em vez de se ofender, porém, surpreendeu-se com a sensação de segurança que a proximidade de Lucas proporcionava. Talvez por esse motivo, toda a tensão acumulada nas últimas horas explodiu assim que parou o carro na entrada de sua garagem. O pavor que experimentara voltou com intensidade redobrada. Ao estender a mão para desligar o motor e ver o quanto ela tremia, não agüentou mais. As lágrimas desceram pelo rosto, embaçando os óculos. Piscou várias vezes procurando conte-las. Maldição! Orgulhava-se de sua força e determinação. Tinha certeza absoluta de que conseguiria se livrar de Cal e ainda arrancar-lhe tudo que queria saber sobre Marty Dobbs, não fosse a intromissão de Lucas. Mas as lágrimas insistiam em escorrer, irritando-a sobremaneira. Considerava o choro um artifício que não caía bem. Preferia deixá-lo para mulheres frágeis e delicadas como Sherri. O simples fato de encontrar um termo de comparação entre ela e a doce viúva de Rick Peyton aumentou a raiva que sentia de Lucas. De repente o elegera como responsável por todos os seus males. Seria pior ainda se o deixasse vê-la naquele estado. Sem dúvida o interpretaria como uma evidência de que até ela estava sujeita a demonstrações de debilidade feminina. Lucas estacionara na frente da casa e esperava dentro do Jipe. Observando-o pelo espelho retrovisor, Natalie imaginou o sorriso de um

73


machista que consegue provar quem tem razão. Sem perda de tempo, desceu do carro e correu para a porta da frente. Demorou a abri-la, atrapalhada com o molho de chaves, mas não se voltou quando ouviu passos que se aproximavam. — Podemos conversar? — Lucas perguntou em tom baixo e apaziguador. — Não tenho nada para conversar — Natalie retrucou. Encontrara a chave, mas as lágrimas impediram-na de enfiá-la na fechadura na primeira tentativa — Por favor, vá embora. — Natalie, olhe para mim. Como não fosse atendido, Lucas segurou os ombros e obrigou-a a virar. A expressão de seu rosto passou do assombro à indignação ao ver que ela chorava. — Algum problema? — balbuciou — Aquele filho da puta... Ele a machucou? — Você e o único filho da puta capaz de me machucar — Natalie respondeu, livrando os ombros de suas mãos e dando as costas de novo — Portanto, vá embora e me deixe em paz! Afinal conseguiu abrir a porta, porém Lucas seguiu-a para dentro de casa. — Eu a machuco? — Correu para passar à frente dela e detê-la. Com extrema delicadeza, levantou o queixo — Como? — Em meu orgulho! — disse Natalie, encarando-o através das lágrimas — Desde que nos conhecemos, você age como se eu fosse uma débil mental a quem precisa proteger de tudo e de todos. Fungou para conter o choro que ameaçava irromper outra vez e prosseguiu, — Minha vida inteira lutei contra esse tipo de atitude, e me recuso a mudar agora. Não admito que ninguém, nem meu pai, muito menos você, se intrometam onde não foram chamados... — Natalie não tive intenção de ferir seus sentimentos. Procurou confirmar o que dizia com um sorriso condescendente. Mas só o que conseguiu foi aumentar-lhe a revolta. — Lucas, você me deixa maluca! Sua mãe tinha razão, você foi e sempre será um machista incorrigível. Não sei por que ainda perco meu tempo explicando algo que você nunca será capaz de entender — Tirou os óculos para enxugar os olhos e completou depois de recolocá-los — Pronto, já parei de chorar. Agora faça um favor para nós dois e suma da minha vista, antes que eu esqueça que não sou uma pessoa violenta! Assim dizendo, atirou a bolsa em cima da mesa e saiu para a cozinha como se tivesse coisas mais importantes para fazer, além de discutir um assunto sobre o qual jamais concordariam. No entanto, seria impossível negar para si mesma a enorme frustração que sentia. Ah. Como gostaria que aquele homem a compreendesse e aceitasse seu jeito de ser!

74


Encostada no balcão da pia esperou ouvir a porta bater, indicando que ele se fora. Qual não foi sua surpresa, porém, quando o viu surgir de repente, emoldurado pela porta da cozinha. No mesmo instante seus olhares se encontraram, imobilizando-os durante longos e tensos segundos. Hipnotizada por aquele par de olhos verdes. Natalie sentiu o coração se apertar, ao mesmo que uma onda de excitação quase insuportável a invadia. Ansiosa em dissipá-la. ordenou, — Saia daqui. Mas Lucas não a ouviu, fascinado em ver, com impressionante nitidez, a expressão daquele lindo rosto espelhando um sentimento que julgava só seu. Reconheceu-o de imediato, paixão. Total, arrasadora daquelas que faz ferver o sangue nas veias. As palavras de Natalie o expulsavam, mas seu rosto o desafiava a ficar. E Lucas não era homem de fugir de um desafio. No passo gingado de pistoleiro, aproximou-se lentamente, sem desviar os olhos dos dela, até alcançar os ombros e apertá-los entre seus dedos. Com a insolência habitual, mas transpirando sensualidade por todos os poros, Natalie levantou a cabeça e sustentou seu olhar. — Estava falando sério quando o mandei ir embora — disse, colocando as mãos no peito de Lucas para empurrá-lo. — Não, não estava. Agindo rápido, puxou-a para junto de si, apertando os braços entre seus corpos, e beijou-a. Natalie ainda tentou resistir, cerrando os lábios. Mas seu desejo, auxiliado pelo volume rijo dentro da calça de Lucas a comprimir o ventre arfante, em uma fração de segundo venceu o duelo contra a razão e o orgulho ferido. — Tem razão — ela sussurrou, quando Lucas parou para respirar — Eu não estava falando sério.

75


CAPÍTULO X Moviam-se como uma só pessoa, ansiosos por consumar um desejo que há tanto tempo os torturava. Abraçaram-se com força enquanto se beijavam. Lábios entreabertos, línguas se tocando, recuando e voltando a se unir em um balé apaixonado. Na ponta dos pés, os seios colados ao peito largo de Lucas, a cabeça atirada para trás, Natalie vivia um momento glorioso. Porém a fome que experimentava exigia muito mais. Escorregou as mãos pelas costas dele até chegar seu traseiro firme. Puxou-o então para junto de si, deliciada em sentir sua ereção apertar-se contra o próprio corpo. Dobrando o joelho, ergueu a perna tanto quanto permitia a saia justa, roçando-o no lado da coxa dele. Assim está bem melhor, pensou, embriagada de luxúria. Notou que as mãos de Lucas, acariciando-a sem parar, distanciavam-se de repente. Enquanto uma delas subia para revolver os cabelos, a outra descia, percorrendo toda a extensão de seu corpo até se deter na perna erguida para sustentá-la e levantá-la ainda mais. Através da meia fina, Natalie sentiu o contato quente dos dedos apertando sua carne rija. No mesmo instante um gemido de súplica escapo dos lábios. — Sim — sussurrou ele ofegante — eu também quero mais... Muito mais... Lucas soltou sua perna, que Natalie tornou a apoiar no chão. Ansioso e sem parar de beijá-la, tentou abrir o casaco que ela vestia. Mais que depressa Natalie desvencilhou-se dele e virou para que Lucas abrisse o zíper de seu vestido. Pensou que ia desmaiar quando a respiração quente e pesada atingiu-lhe a nuca. Ajudou-o a empurrar o vestido para baixo e então o chutou longe. Lucas ainda soltou o fecho do sutiã antes que ela tivesse tempo de se voltar e abrir os botões da sua camisa. Natalie estava impaciente para despi-lo também, ávida para encostar-se contra seu torso nu. Assim que o sutiã caiu, porém ele não se conteve e cingiulhe os seios nus com as duas mãos. Natalie prendeu a respiração, enlevada, enquanto fazia a camisa dele escorregar dos ombros musculosos, e fechou os olhos. Seus mamilos endureceram, respondendo aos dedos que os acariciavam sem parar. Desesperada de desejo, ergueu os braços pretendendo envolver o pescoço e trazer os lábios até seus seios. Em vez de atendê-la, porém Lucas segurou-a pelos pulsos e abriu seus braços. Extasiado, observou-a sem a menor pressa. Seu corpo branco como o marfim transpirava paixão.

76


Passeou o olhar por seus seios fartos, pelos mamilos rosados, pelo ventre trêmulo de expectativa. Deteve-se na calcinha creme, que deixava entrever uma zona escura no vão das pernas, cheia de sugestões de prazer. Lucas soltou um dos pulsos e percorreu seu corpo com a mão livre. Embevecido como quem admira uma obra de arte, tocou os seios mais uma vez. Natalie contorceu-se e gritou. Abriu os olhos e no mesmo instante foi hipnotizada pelo desejo que transbordava daquele par de olhos verdes. Só então percebeu que mão que percorria cada centímetro de seu corpo era a mesma que levava a tatuagem da cobra. Isso a excitou ainda mais. Quando os dedos de Lucas se enredaram na cintura de sua calcinha, imaginou-os como se aquela cobra ganhasse vida e executasse uma dança erótica em cima de sua pele nua. Lucas fez sua mão descer dentro da calcinha até tocá-la entre as coxas. Natalie não resistiu. Suas pernas bambearam e seus joelhos dobraram. Só não caiu porque Lucas, em um movimento rápido, sustentou-a com o outro braço. Incansável em seus afagos, a mão dentro da calcinha estava levando Natalie a conhecer sensações de que jamais se julgara capaz. — Lucas... Oh, Lucas, por favor... Assim gemendo, ela arqueava o corpo para trás movendo os quadris em busca de um toque mais profundo. Trêmulo com a própria excitação. Lucas não se cansava de admirá-la, até que, sentindo-a úmida, atendeu a seus anseios e penetrou-a com os dedos. Curvou-se então para imitar o gesto com a língua dentro de sua boca. Natalie agarrou-se a seu ombro e entregou-se inteira. Delirava a cada investida daquela mão entre suas pernas, até que não agüentou mais. Quando atingiu o clímax, espasmos incontroláveis percorreram o corpo e ela gritou. — De novo — Lucas murmurou ao seu ouvido quando ela parou de se agitar — Quero que você faça isso de novo. Vou tornar a penetrá-la, mas dessa vez, não com os dedos. — Q... sim, Lucas — Natalie suspirou — Quero sentir você dentro de mim. Assim dizendo, levantou-se de seu braço e pegou-o pela mão. Conduziu-o pelo corredor agora escuro, já que a noite caíra, e levou-o até seu quarto. — Não se mexa — pediu ela soltando a mão quando pararam ao lado da cama. Afastando-se um pouco, correu a acender um pequeno abajur cor-derosa e puxar a colcha da cama, revelando lençóis estampados com motivos florais. Em seguida tirou os óculos, livrou-se dos sapatos de salto alto e da calcinha. Então, em sua nudez gloriosa, encarou-o de novo. — Sua vez — convidou-o em um suave tom de provocação — Quero vê-lo tão nu quanto eu. Abrindo os botões de sua camisa com uma pressa febril, arrancou-lhe a camisa de dentro da calça e empurrou-a para trás. Perdeu o fôlego quando se revelaram seus ombros largos, o peito forte e viril, os pelos entrançados que o 77


recobriam como uma mata densa, porém macia. Fascinada, a boca seca de desejo, Natalie deixou que ele terminasse de tirar a camisa enquanto voltava sua atenção para a fivela do cinto. Ouviu o sussurro macio de couro deslizando sobre tecido ao puxá-lo, o gemido ríspido do zíper quando o abaixou, e a trovoada de um riso tenso e masculino. — Natalie — disse Lucas, segurando as mãos — Preciso tirar os sapatos e as meias primeiro, ou vou parecer ridículo. Mas ela não deu ouvidos. Deixou a calça dele cair e amontoar-se em torno de suas pernas. O sorriso nos lábios de Lucas desapareceu e deu lugar a um gemido de deleite ao sentir os dedos se fechando sobre a montanha que se elevava debaixo de sua cueca. — Por favor — suplicou — eu preciso me despir... De repente Natalie se ajoelhou e disse, provocando arrepios ao correr as mãos por toda a extensão de suas pernas, — Levante o pé. Lucas obedeceu em silêncio, irrequieto, mas também deslumbrando em vê-la aos seus pés. Sua ex-esposa teria preferido cortar os pulsos com os cartões de crédito a se colocar em tal posição. E no entanto Natalie, que também gostava de fazer o tipo "mulher moderna e liberada", não considerava uma humilhação ajoelhar-se diante dele para ajudá-lo a tirar sapatos, meias e a calça. Pelo contrário, parecia deliciada com isso. Ainda mais ao erguer os braços para puxar a cueca, fazendo-a deslizar lentamente por suas coxas grossas e peludas. — Você não está nada ridículo — disse ela ofegante — Pelo contrário, desse ângulo você me parece ainda mais impressionante. Suas mãos tornaram a escalar as pernas de Lucas, até afagarem o membro duro com a ponta dos dedos. — Não que eu consiga ver muita coisa sem meus óculos — Natalie completou, e riu. A observação bem humorada serviu para aliviar a tensão de Lucas e ele riu também. Pegou-a pela mão e fez com que se levantasse para poder apertá-la contra seu corpo outra vez. Assim abraçados, caíram em cima da cama e rolaram sobre os lençóis, às gargalhadas como duas crianças. Até que seus olhares se encontraram, lembrando-os do desejo já quase impossível de controlar. — Você é uma mulher incrível, Natalie Bishop — Lucas murmurou antes de cobrir-lhe os lábios com os seus. Compartilharam um beijo sôfrego, voraz. Em meio a suspiros, abraçaramse com mais ardor. Suas línguas experimentaram o sabor de lábios faces, pescoços. Lucas desceu aos seios que ela oferecia e tomou um mamilo intumescido entre os dentes. Natalie fez correr a língua sobre o tapete de pelos que revestia o peito e também chupou seus mamilos. Embalados pelo descompasso dos 78


próprios corações, navegaram os vales e colinas de seus corpos ardentes a bordo da paixão que os consumia. Em dado momento, sufocada pelo desejo que o corpo de Lucas deitado sobre o seu só fazia crescer. Natalie afastou as coxas. Ele entendeu o convite e, muito gentil, penetrou-a. Pretendia ir devagar a princípio para não machucá-la. Porém Natalie remexeu-se para melhor recebêlo e, com um gemido. Lucas devassou suas entranhas. No mesmo instante seus corpos adquiriram um movimento ritmado e frenético, fundindo o suor que lhes escorria pela pele incandescente de prazer. Sabiam que se aproximavam do gozo final, mas não tinham forças para prolongar aquele êxtase. Uniram os lábios outra vez, em um beijo doce e entrecortado pela respiração arquejante. Natalie atingiu o orgasmo primeiro. Seus braços o soltaram e ela agarrou o lençol da cama com toda força. Quando arqueou o corpo para trás permitiu que ele a invadisse mais fundo ainda. Em uma fração de segundo Lucas explodiu em contrações violentas. Queria gritar, uivar, proclamar em alto e bom som seu direito de posse sobre a mulher que acabava de transportá-los às alturas. Em vez disso, porém, enterrou o rosto em seu pescoço e abafou até o gemido rouco que escapou da garganta. Temia que ela entendesse seu gesto como uma demonstração de machismo e o rejeitasse, apesar dos momentos gloriosos que estavam passando juntos. Essa idéia o surpreendeu bastante. Enquanto fincava os cotovelos na cama para se apoiar, reconheceu que há poucos instantes não pensava em nada além de possuí-la. Então por que de repente, preocupava-se em não aborrecê-la a ponto até de evitar sufocá-la com o peso do próprio corpo? Intrigado, viu que Natalie continuava imóvel, de olhos fechados, estirada sobre os lençóis. Roçou os dedos em seu rosto e chamou, — Natalie? Está se sentindo bem? Um amplo sorriso curvou-lhe os lábios. — Estou me sentindo maravilhosamente bem — declarou ela abrindo os olhos enevoados, como se ainda enxergassem as últimas imagens de um sonho encantador. — Fico contente em ouvir isso — disse Lucas, sorrindo também — Muito contente mesmo. Uma hora mais tarde, jantavam na cozinha da casa de Natalie. — Você cozinha muito bem — disse ela, admirada. Observava seu sanduíche de pepino e queijo grelhado, acompanhado por uma porção de batatas fritas, tudo que ele encontrara na geladeira que Natalie nunca se lembrava de abastecer. — Você ainda nem experimentou. — Sei só de olhar. Minha irmã. Andréa, diz que o segredo está no aspecto da comida. E isso aqui está com um aspecto ótimo — Deu uma mordida no sanduíche, com cuidado para não queimar os lábios no queijo quente, e confirmou — O gosto também é excelente. 79


Lucas sentou-se diante dela, mas não tocou em seu sanduíche. Parecia sério, o que levou Natalie a perguntar, — Algum problema? — Gostaria de saber se você tomou alguma precaução — disse ele, indo direto ao ponto. — Refere-se à gravidez? — Deu outra mordida no sanduíche e, ao vê-lo concordar com um aceno de cabeça, concluiu com a boca cheia — Não se preocupe com isso. — Como assim? Não sei se você sabe, mas alguns bebês nascem nove meses depois que seus pais resolveram se divertir da mesma maneira que acabamos de fazer. — E que faremos outra vez. Em breve — Natalie completou com ar maroto, piscando para ele por trás dos óculos. — Não vejo motivo para piadas — Lucas protestou. — Mas eu vejo — Enfiou uma batata frita na boca. — Acha mesmo que sou tão desmiolada a ponto de me descuidar de uma coisa dessas? — Quer dizer... — Quer dizer que não precisa se preocupar — Mas nesse instante, uma idéia ocorreu e ela resolveu conferir — Não vai me chamar de prostituta de novo só porque sou uma mulher prevenida, vai? — Claro que não! — Lucas replicou ofendido — E eu nunca a chamei de prosti... — Chamou, sim. Por causa dos meus sapatos. Mas afinal, por que a pergunta? — Bem... — Parecia intimidado, porém não se esquivou de dizer — A maioria das mulheres espera que o homem se preocupe com essas coisas. — Não pertenço a essa maioria — Natalie retrucou. Aquela conversa começava a irritá-la. Mais ainda porque a última afirmação de Lucas a fez imaginar com quantas ele tivera um relacionamento tão íntimo, a ponto de saber de uma coisa dessas, em seu passado de mulherengo. — Tem razão — ele concordou, recriminando-se pela demora em se acostumar à idéia de que Natalie era uma mulher única e inigualável — Mesmo assim, não acha que eu deveria ter tocado no assunto? — Não. — Ora, Natalie... — Levantou-se e suspirou, contrariado. — Estamos brigando? — ela quis saber. — Acho que sim. Ou quase. — Por algum motivo sério, que valha a pena? Lucas virou-se e sorriu. — Agora você me pegou — Estendeu a mão por cima da mesa e perguntou — Vamos fazer as pazes? — Está bem — E apertou a mão que era oferecida. 80


Comeram em silêncio por alguns minutos, cada qual ocupado com os próprios pensamentos. — Será que nunca conseguiremos conversar, só discutir? — Lucas questionou de repente. — Podemos tentar — respondeu Natalie. E fingindo desinteresse sugeriu — Por exemplo, que tal se você me contasse o que havia naquele parágrafo de sua ficha que foi todo rasurado? Ele sorriu por cima do sanduíche. — Acho uma péssima idéia. Você brigaria comigo de novo quando eu dissesse que é segredo. — Não pode me dar ao menos uma pista? — Já dei. Na época, meu trabalho se resumia a desvendar códigos secretos. — Oh claro — ela zombou — Você quebrou o nariz quando foi atacado por um dos computadores que usava para isso. Uma ocorrência freqüente, ou não teria aprendido a lutar tão bem como demonstrou naquele bar, hoje à tarde. — Para sua informação — disse Lucas, impaciente — quebrei o nariz durante uma briga estúpida em que me envolvi com um bêbado, logo depois que saí dos Fuzileiros Navais. Onde por acaso, defesa pessoal é uma das coisas que se aprende, não importa que tipo de trabalho seja destinado depois. Natalie fez uma careta de incredulidade, mas ele não a deixou interromper. — De uma vez por todas, não sou, nem nunca fui uma espécie de 007. Não tenho licença para matar, muito menos para ser morto. Portanto, esqueça os filmes de espionagem que assistiu. Eles não se aplicam a mim. — Isso é o que você diz — Natalie resmungou, recusando-se a abrir mão de sua emocionante e romântica fantasia com tanta facilidade. Lucas balançou a cabeça, exasperado, e resolveu que seria melhor se concentrar nos últimos bocados de seu sanduíche. Dando de ombros. Natalie resignou-se a deixar o assunto para outra oportunidade. — Afinal — disse ela, voltando às batatinhas — o que aconteceu com Sherri? Parecia tão nervosa. Dobbs ligou para ela? — Acho que não era ele. — Quem então? — Pelo que ela contou, foram várias pessoas. Ligavam e diziam "Senhora Peyton? Seu marido estourou a conta que tinha conosco. Gostaríamos de saber quando a Senhora pretende saldar sua dívida, antes que sejamos obrigados a acionar nossa agência de cobranças.” Sherri ficou apavorada. — Não é para menos — comentou Natalie — Tem certeza de que se referiram a uma "conta estourada"? — Creio que sim — Colocou uma batata entre os dentes — Sherri estava transtornada demais para se lembrar com precisão. 81


— Aposto como Coffey tem muito a ver com isso. Papai diz que ele prefere enfrentar um bando de viciados armados de metralhadoras a uma mulher histérica. Deve tê-la pressionado e atrapalhado seu depoimento. — Pelo contrário — corrigiu Lucas — Ele foi bastante gentil e se colocou à disposição para qualquer eventualidade antes de ir embora. E Sherri não estava histérica, apenas nervosa. Afinal, além de perder o marido, agora descobre que herdou uma montanha de dívidas. — Não me surpreende que ela não soubesse de nada — comentou Natalie — A conta bancária estava em nome de Rick. Ele devia deixar um talão de cheques assinado para as compras do mês. Caso surgisse alguma eventualidade, além dos cartões de credito — adivinhou, sem disfarçar seu antagonismo por esse tipo de dependência — Sherri podia recorrer aos carinhos para convencer o marido a dar mais dinheiro. — Presumo que você não aprova esse artifício? — E você, aprova? Honestamente? — Bem... Na verdade, não tinha uma opinião formada sobre isso. Mas parecia bem melhor do que o acordo imposto por Madeline na época em que foram casados. Ela insistira em que mantivessem contas separadas. Cada um contribuía com partes iguais para as despesas da casa. Às vezes imaginava-se dividindo um quarto com uma colega de faculdade, em vez de compartilhar uma vida com sua esposa. — Pelo amor de Deus, não me diga que aprova — Natalie ameaçou. Mas Lucas ousou perguntar, — Seria tão ruim assim? — Lucas, pare de pensar em você mesmo e coloque-se no lugar da mulher — disse ela indignada — Imagine como seria humilhante depender de mesada, como uma criança. E esse dinheiro seria só para administrar a casa. Você não poderia comprar um sapato, uma calça, um... Um vestido novo sem ter de pedir que ele desse! Mesmo que ele atendesse, sabe como você se sentiria? Como um mendigo, de pires na mão, implorando uma esmola! De repente Natalie gesticulava muito, o rosto afogueado discorrendo sobre o tema que mais a revoltava. — E se seu marido morresse como aconteceu com Rick? Você acabou de dizer que Sherri não fazia idéia das dificuldades financeiras em que estava metida. Tenho certeza de ela desconhece até o valor da hipoteca da bela casa à beira do Lago em que mora. Acha isso certo? Ou justo? — Balançou a cabeça, horrorizada — Uma mulher que se submete a esse tipo de vida está procurando problemas. — Algo parecido já aconteceu com você? — Lucas perguntou curioso. — Comigo, não — Natalie admitiu — Com Andréa. — Sua irmã? — Sim. Bastava estender as mãos para Andréa chegar ao topo do mundo. Era uma aluna brilhante, recebeu ofertas de bolsas de estudo das melhores 82


universidades. Mas duas semanas após a formatura, casou-se com um colega de faculdade. A partir de então, e contando com total aprovação de papai, dedicouse ao papel de esposa perfeita. Ia à ópera em vez de assistir aos musicais porque era assim que ele gostava. Vestia-se para agradá-lo e teve os filhos na época em que ele determinou. Ele fazia mestrado, mas era Andrea quem preparava suas pesquisas e datilografava seus trabalhos. E nunca, jamais, estourou o orçamento apertado que ele dava. Procurando controlar a amargura que essas más recordações causavam, continuou, — Até que um dia, cerca de três anos depois do nascimento de Emily, ele a acusou de "asfixiá-lo". E foi embora para a Califórnia com uma menina que devia ter a metade da idade dele e um cérebro de minhoca. — O que aconteceu com Andréa? Natalie suspirou. — Ela perdeu tudo. Marido, lar, padrão de vida, posição social, até a autoestima. — Sinto muito. — Mas está se dando muito bem agora, considerando tudo que sofreu. Mudou-se com as crianças para a casa de papai. Mamãe morreu pouco depois do casamento de Andréa, e logo Daniel e eu resolvemos morar sozinhos. De forma que ele agora tem companhia de novo. Andréa trabalha meio período e freqüenta uma escola profissionalizante. Vai ser encanadora. — Encanadora? Lucas não queria acreditar. Lembrou-se que a vira uma vez, quando ela passou na Galaxies para buscar as crianças. Sua imagem não combinava com a idéia que ele fazia de uma encanadora. — Isso mesmo. Se trabalhar por conta própria, poderá tirar um bom dinheiro. Muito mais do que ganharia trabalhando em um escritório qualquer. De qualquer forma — concluiu — em minha opinião, nada disso teria acontecido se ela não fosse tão dependente do marido. — Agora creio que compreendo seu ponto de vista — disse Lucas, pensativo — Quanto à pergunta que me fez há pouco, a resposta é não. Não aprovo que o marido trate a mulher como criança, nem que a mantenha alienada das questões financeiras. Mas um dos dois precisa ficar encarregado dessa parte, ou as contas jamais serão pagas. — Concordo, se a mulher trabalhar fora ou se ficar cuidando da casa e dos filhos, deve ser ouvida na hora de tomar as decisões. O casamento é uma sociedade. — Tem toda razão — Lucas ergueu as mãos em uma rendição de brincadeira — Você me convenceu. — Está dizendo isso só para que me cale? — Não. Concordo com tudo que você disse. E pode ter certeza de que isso surpreende muito mais a mim que a você, ele pensou. 83


— Que bom. Porque, do contrário, eu odiaria pensar que fui para a cama com você concluiu em silêncio. Disposta a esquecer aquele assunto que tanto a deprimia, levantou-se para colocar o prato na pia e anunciou. — Chega de discursos por hoje. — Ótimo — disse Lucas, levantando-se também — Tenho outros planos para o resto dessa noite — Enlaçou a cintura e esperou que ela se virasse antes de continuar — A menos que você não queira... A inflexão de sua voz, ou talvez o brilho em seus olhos, fez com que essas palavras soassem como uma provocação. Erguendo-se na ponta dos pés, Natalie sussurrou ao ouvido, — Quero sim. Prometo fazer tudo que você mandar. Mas só se você conseguir me pegar. Assim dizendo, desvencilhou-se de seus braços e disparou feito uma louca pela porta da cozinha. Lucas ainda conseguiu agarrar o robe antes que ela desaparecesse. Natalie gritou, mas teve tempo de soltar o cinto e deixá-lo com um punhado de seda azul na mão, antes de correr nua para o quarto. Xingando baixinho, ele atirou o robe de lado e saiu em seu encalço. Do quarto Natalie passou ao banheiro adjacente, onde arrancou uma toalha de banho do suporte para se cobrir. Um segundo quarto, que ela usava como escritório, comunicava-se tanto com o banheiro quanto com o corredor. Completado o círculo, quase trombou com as costas de Lucas. Natalie gritou de novo, um som agudo, feminino e cheio de excitação e voltou pelo mesmo caminho que viera, fechando as portas ao passar, na tentativa de retardá-lo. Por duas vezes eles percorreram o quarto, o banheiro, o escritório e o corredor, o bater das portas acompanhado de risos sem fôlego e de ameaças do que aconteceria quando ele a alcançasse. E então, de repente, toda a movimentação cessou e instalou-se um enorme silêncio. Natalie se deteve no banheiro, ofegante, o coração disparado, e procurou algum barulho que indicasse onde Lucas estava. Não ouviu som de passos, nem sua respiração pesada. Nada. Mas sabia que ele aguardava para dar o bote a qualquer instante. Olhava de um lado para o outro sem parar, tentando adivinhar por qual deles ele viria, até que de repente, imaginou ver uma sombra sob a porta do quarto. Mais que depressa se colou à parede. O movimento brusco derrubou a toalha, mas não teve tempo de fazer nada, pois Lucas entrou de supetão, ocultando-a atrás da porta. — Te peguei! — exclamou ele. Mas o entusiasmo morreu assim que se deparou com o banheiro vazio — Droga. Natalie esperou que ele desse mais alguns passos dentro, do banheiro para então saltar atrás da porta e fugir na ponta dos pés. Esforçando-se para conter o riso, foi do quarto ao corredor e bateu a porta do escritório sem sair do

84


lugar. Imaginando enganá-lo dessa forma, correu para a sala de visitas escura, encolheu-se debaixo da comprida mesinha de centro. Em seguida, esperou. Sabia que ele acabaria por encontrá-la. Só esperava dar um pouco de trabalho antes que isso acontecesse. Percebeu que Lucas se aproximava pelo corredor quando o ouviu chamar, — Natalie... Porém ele entrou na cozinha. Abriu e fechou as portas dos armários, como se a julgasse capaz de se esconder debaixo da pia. — Natalie... Estava sob o arco entre as salas de jantar e de visitas. — Natalie, meu bem. Será melhor para você mesmo se entregar. Ela prendeu a respiração, observando-lhe os pés nus dando a volta no sofá e aproximando-se de seu esconderijo. Tinha certeza de que não podia ser vista. — Achei! Ela ainda tentou lutar contra as mãos de Lucas que se fechavam em volta de seu tornozelo, mas acabou cedendo e sendo puxada para fora. — Eu avisei — disse ele virando-a de costas — Agora você vai me pagar. Ao se deparar com a faca que ele segurava como um punhal. Natalie deu um grito lancinante. Mas o pânico a dominou e foi incapaz de se mexer. Lucas se deu por satisfeito ao ver a expressão transtornada em seu rosto. Jogou a faca em cima do sofá e interrompeu as próprias gargalhadas com um rápido e terno beijo. Porém Natalie não reagia. Continuava a encará-lo com os olhos cheios de espanto. — Meu Deus. Você está bem? — ele perguntou, preocupado — Era só uma faca de passar manteiga. Afinal, um sorriso malicioso desenhou-se em seus lábios. — Assustei você? — perguntou em tom de vitoriosa brincadeira. — A mim e a todos os seus vizinhos — disse Lucas, sorrindo com os olhos — Não me surpreenderia nada se um deles chamasse a polícia, para denunciar que tem alguém cometendo um crime aqui dentro. Natalie ficou séria de repente e sentou-se sobre o tapete. — Acha mesmo que isso pode acontecer? A última coisa que queria era ter de explicar a um dos colegas do pai por que estava nua no meio da sala, com um homem sem camisa imobilizando os tornozelos, e o que fazia aquela faca em cima do sofá. — Deixe-me levantar! Lucas fez que não com a cabeça. — Você disse que concordaria com meus planos se eu a pegasse — lembrou, enquanto a obrigava a deitar-se outra vez. Tirou-lhe os óculos, que colocou sobre a mesa, e continuou. — Pois muito bem. Eu pretendia pedir um favor muito especial, e já que você prometeu...

85


Assim dizendo, soltou suas pernas, mas debruçou-se em cima dela para dedilhar seus mamilos. Natalie sentiu-os intumescidos no mesmo instante. O desejo tornou a percorrer seu corpo em enormes vagalhões. Sabia exatamente a que Lucas se referia, o que só aumentava sua ansiedade. — Eu sempre cumpro minhas promessas — murmurou. Esquecida dos vizinhos, da possibilidade de uma visita da polícia, de tudo, agachou-se sobre o tapete e estendeu a mão para abrir o zíper da calça de Lucas. Dessa vez não havia meias, nem sapatos, nem mesmo a cueca para atrapalhá-la. Empurrou-o e ele se deitou de costas, dócil como um gatinho. Em seguida. Natalie puxou para fora a expressão máxima de sua masculinidade, tesa como um mastro, e pôs-se a acariciá-la com a língua. Lucas deixou escapar um gemido longo e suave. Nunca mulher alguma o tratara com tanto entusiasmo, tanto desprendimento, tanto... Amor. Pela primeira vez na vida admitia que, até conhecer Natalie, não se relacionara com nenhuma mulher que o amasse de verdade. Essa nova descoberta o encheu de ternura. — Natalie — chamou, tocando-lhe o cabelo sedoso com dedos trêmulos. Além do imenso prazer que ela proporcionava naquele momento, sentia o peito prestes a explodir de paixão. — Natalie. Ela levantou a cabeça e sorriu, sedutora como uma ninfa. Sempre a encará-lo, montou-o como a um garanhão, deixando-se penetrar outra vez por seu membro vigoroso. Saboreando as delícias daquele momento, entrelaçou os dedos com os de Lucas e então começou a cavalgá-lo. Aumentava e diminuía o ritmo, girava os quadris, ameaçava expulsá-lo de seu interior para em seguida engoli-lo com força redobrada, tudo para lhes proporcionar o máximo de prazer. Lucas a olhava como a uma deusa, fascinado. Até que, em determinado momento, quis dizer-lhe que não agüentaria por muito tempo mais. Porém não foi preciso. Percebendo que a respiração dele se acelerava, Natalie arqueou a cabeça para trás e explodiu, exultante em saber que atingiam o clímax da maneira como sonhava de passar o resto de seus dias, juntos.

CAPÍTULO XI

86


Na manhã seguinte, depois de fazerem amor no chuveiro em meio a muito riso e vapor, Natalie lembrou-se de perguntar a Lucas como ele adivinhara sua presença no Lamplighter. — Foi fácil — ele respondeu enquanto se barbeava na frente do espelho — Acho que, a essa altura, já sei como funciona essa sua mente diabólica. Percebeu que Natalie parará de se enxugar para olhá-lo com ar de dúvida. — Claro que também contei com uma pequena ajuda — Lucas admitiu, sorrindo — A funcionária do arquivo telefonou para seu pai e contou que você andava investigando um tal de Marty Dobbs. Contou também que você saíra correndo de lá, como se estivesse atrasada para algum compromisso importante. — Aquela bruxa nunca me inspirou a menor confiança — Natalie esbravejou. — Seu pai então me ligou e sugeriu, como quem não quer nada, que talvez fosse uma boa idéia se eu procurasse saber por onde andava minha mais nova "sócia". Na verdade, Nathan Bishop fora um pouco mais enfático. Temia o que podia acontecer com a filha, teimosa e impulsiva demais para perceber o perigo antes que fosse tarde. Também se dissera tranqüilo por contar com alguém tão ponderado e ajuizado para protegê-la. Mas Lucas achou melhor omitir esses detalhes. Do contrário, com certeza acabaria por irritá-la mais do que já estava. — Lembre-me de agradecê-lo pela preocupação da próxima vez que o encontrarmos! — Natalie gritou furiosa, do quarto. Voltou ao banheiro enfiando uma blusa verde escura e vasculhando a bolsa de maquiagem a procura de um batom. Lucas aproveitou para perguntar, — Acha mesmo que pode culpá-lo? Alguém precisa cuidar de você — disse ele, lavando o rosto para poder segui-la até o quarto — Afinal, você parece que gosta de se meter em confusão mesmo quando não há ninguém... As últimas palavras foram abafadas pela toalha com que Lucas secava o rosto. Natalie encontrou o batom, mas parou antes de aplicá-lo nos lábios. Sabia que não ia gostar do que ele dissera, mas mesmo assim, pediu, — Desculpe, não entendi. Pode repetir? — Você gosta de se meter em confusão. — Essa parte eu ouvi. Não concordo, e tenho a impressão de que vou concordar menos ainda com o resto, mas quero saber o que é. Lucas pendurou a toalha nos ombros nus, inclinou-se contra o batente da porta e cruzou os braços. — Você parece que gosta de se meter em confusão, mesmo quando não há ninguém por perto para protegê-la. Foi isso que eu disse. — Não preciso de sua proteção — Com uma calma surpreendente, entrou no banheiro para se maquiar. Mas fez questão de ignorá-lo ao passar por ele — Já avisei que sei muito bem me cuidar. — Não foi isso que eu quis dizer.

87


— Sim, foi — ela insistiu, a voz ríspida traindo seu mau humor. Lucas deu de ombros. Tentando descontraí-la comentou, — Detesto informá-la, mas acho que estamos brigando de novo. — Tem toda razão — Natalie replicou, recusando-se a participar da brincadeira — E vamos brigar toda vez que você vier com essa conversa machista pra cima de mim. Só faltou aquela frase clássica de qualquer machista, "Fiz isso porque era para seu próprio bem". Brigo com meu pai sempre que ele me fala assim. Por que haveria de ser diferente com você? Com movimentos bruscos, vestiu uma saia também verde e apoiou-se na porta do armário para calçar os sapatos da mesma cor. Esforçava-se para não demonstrar, mas estava decepcionada. Lucas se revelara um parceiro perfeito na cama. Tanto que chegara a desejar tê-lo ao seu lado pelo resto da vida. Agora percebia que fora uma ilusão momentânea. — Ou seja — ele perguntou, magoado — o que aconteceu ontem não significou nada para você? — Pelo contrário — disse Natalie, arrancando um casaco salmão do cabide — Significou que preciso prestar mais atenção. Prometo que, da próxima vez, nem você nem ninguém conseguirá seguir meus rastos. Abriu a porta do armário para conferir seus trajes no espelho grande da porta. Ajeitava a lapela do casaco quando o ouviu dizer, — Não me referia ao incidente no Lamplighter. — Não? Lucas se interpôs entre ela e o espelho para obrigá-la a encará-lo. — Pensei que a última noite me desse direitos que seu pai não tem. Bufando, Natalie olhou para o teto e disse, como se pensasse em voz alta, — Mais uma observação machista — Em seguida, levando as mãos às cadeiras, tornou a enfrentá-lo — A última noite não dá direito nenhum sobre mim. Nós dormimos juntos e foi muito bom, mas isso não muda nada. Acabo de proferir a maior mentira da minha vida, concluiu em silêncio. Porém nada a faria abrir mão de um espaço conquistado às duras penas. — Continuo sendo dona do meu próprio nariz. Nossa sociedade me permite consultá-lo ou não antes de tomar uma atitude qualquer. Eu disse consultá-lo, e não pedir sua permissão. Fui clara? — Transparente — ele replicou através dos dentes cerrados. — Ótimo — Pegou a bolsa de couro marrom de dentro do armário e, abriu-a. Tirou uma chave, que entregou para Lucas. — Vou tomar o café da manhã com um cliente. Não precisa se apressar, mas tranque a porta quando sair está bem? Assim dizendo, passou pelo escritório, onde apanhou uma pasta de cima da escrivaninha, e marchou rumo à porta da frente. Estacou ao se deparar com o Jipe preto bloqueando a entrada da garagem. Batendo o pé, impaciente, enquanto considerava suas opções, Natalie decidiu entrar no carro e esperar. Seria uma alternativa mais honrosa que voltar e pedir ajuda. Principalmente depois da maneira como se despedira. Além do 88


mais, sozinho na casa ele levaria no máximo cinco minutos para se vestir e ir embora. Que diabo estava acontecendo com ela? Natalie se perguntou, cruzando os braços. Nunca se entregara de maneira tão completa a um homem. Por que escolhera logo Lucas Sinclair para isso? Desde o instante em que pusera os olhos nele, no escritório da casa de Rick Peyton, sabia que não tinham nada em comum. Reconheceu que tinha diante de si um convicto defensor da idéia de que "'lugar de mulher em casa, cuidando do lar e atendendo as ordens do marido". Tudo em nome de seu bem estar, claro. Natalie fungou, achando graça em um pensamento que a aborrecia tanto. Como se algum homem fosse capaz de admitir que visasse apenas suas próprias conveniências! Sem dúvida, um relacionamento com Lucas significaria envolver-se em uma interminável batalha por independência. Se tivesse consciência disso, como explicar que o achava tão irresistível? Por que ele não saía da cabeça, dia e noite, sem descanso? E por que continuava a desejá-lo com uma intensidade que a assustava? Fechou os dedos em torno do volante e apertou-o com toda força. Jamais agiria como Andréa ou Sherri Peyton, ou como os milhares, talvez milhões, de mulheres que viravam do avesso pelo amor de um homem. — Não estou apaixonada por ele — disse em voz alta, como se isso bastasse para dar veracidade à afirmação. Nada do que acontecera na noite anterior tinha a ver com sentimentos tão profundos. Fora apenas a satisfação de uma necessidade física. Com Lucas realizara desejos que havia muito trazia escondidos no peito. Davam-se muito bem na cama, porém estava mais do que provado que eram incompatíveis em qualquer outra situação. E depois que solucionassem a morte de Rick, como seria? A idéia assaltou-a de repente. Vamos nos separar e nunca mais nos veremos. Mas o simples tato de considerar essa possibilidade causava-lhe uma sensação de vazio. Para se livrar desse pensamento tão incômodo, Natalie voltou a se concentrar na raiva que a impulsionara até então. E, como Lucas demorasse, chamou-o apertando a buzina várias vezes. Cinco minutos depois, Lucas apareceu na porta da casa, mais sensual do que nunca na roupa amarrotada, que passara a noite jogada em um canto do chão do quarto. Cumprimentou-a com um sorriso e só então se voltou para trancar a porta. Furiosa, Natalie observou-o demorar um tempo absurdo para realizar uma tarefa tão simples. Com certeza, porque sabia que ela não iria a parte alguma, enquanto não retirasse o Jipe da frente da garagem. Mas perturbou-se quando ele se aproximou do carro em seu andar gingado de pistoleiro. Mordeu a língua, exasperada, por ter de abrir o vidro para aceitar a chave que estendia. Mesmo assim, não concedeu mais que um rápido olhar antes de atirar a chave 89


no banco ao lado e ligar o motor do carro, para deixar claro que estava com pressa. Porém, mesmo depois que Lucas, sem dirigir a palavra, entrou em seu Jipe e partiu, continuou parada na garagem. Os minutos corriam e ela não conseguia tirar as mãos do volante para engatar a marcha à ré. Muito menos conter as lágrimas que escorriam por baixo da armação do óculos e molhavam seu rosto. Desconsolada, não queria acreditar que a noite mais importante e maravilhosa de sua vida terminaria assim. Lucas forçou-se a controlar a velocidade, em vez de disparar pelas ruas de Minneapolis como um adolescente apaixonado, que acabasse de ter a primeira discussão com a namorada. — E o pior — exclamou — é que nem sei se gosto dela. No mesmo instante percebeu que tentava se enganar. Adorava tudo que dizia respeito a Natalie Bishop, incluindo sua teimosia, a necessidade de se provar independente a todo momento, e até os sapatos de salto alto. Tanto que começava a suspeitar dos próprios sentimentos. Aquilo que tomara por desejo revelava-se, que Deus me proteja, pensou uma avassaladora paixão. Quando acontecera? Em algum momento da noite passada, em que Natalie o fizera sentir-se um sultão no meio de um harém inteiro? Gostaria de acreditar que sim. Porque, nesse caso, ainda estava em tempo de mudar de idéia. Sexo não era amor. Podia provocar as mesmas sensações às vezes, mas no final, tudo voltava à estaca zero. O amor, pelo contrário, ardia sem parar. Considerava-se um homem vivido, sabia distinguir as duas coisas. Natalie, porém, não só tinha o dom de aborrecê-lo como também de confundi-lo. Ainda assim e muito a contragosto, começara a suspeitar que a amava na tarde do dia anterior. Sherri pedira que fosse até sua casa para contar sobre os telefonemas anônimos que recebera. Lucas a atendeu, mas logo perdeu a paciência. Espantou-se ao reconhecer que preferia conversar horas a fio com Natalie, sempre tão corajosa e segura de si, a ouvir mais cinco minutos a indefesa e chorosa cunhada. Felizmente, os policiais não demoraram a chegar para livrá-lo do sufoco. Enquanto voltava à Galaxies, essa transformação profunda em seu modo de pensar não saía da cabeça. Até há bem pouco tempo, Sherri encarnava seu ideal de feminilidade. Dócil, meiga, bonita e submissa ao marido. De repente, porém, imaginava como uma verdadeira tortura ter de conviver com ela as vinte e quatro horas do dia. E então, assim que entrou no escritório, recebeu o telefonema de Nathan Bishop avisando-o do perigo em que a filha poderia estar se metendo. Em vez de ouvir a voz do bom senso e dizer que mandasse uma viatura atrás dela, sentiu o coração disparar e saiu correndo, como um cavaleiro medieval disposto a tudo para resgatar sua princesa das garras do terrível dragão. 90


Conseguira evitar que Natalie fosse estuprada por aquele brutamonte que a acuava contra o balcão do bar. Só ouviu críticas e desaforos por causa disso, mas mesmo assim, precisara de muita força de vontade, para não expressar seu alívio em vê-la sã e salva com um abraço apertado. Nunca se sentira daquela maneira por ninguém. Sim. Estava apaixonado. Perdera a batalha muito antes de fazer amor com Natalie. Por outro lado, abrigar esse sentimento em seu coração implicaria, com toda certeza, em se expor a sofrimentos cruéis em um futuro não muito distante. Natalie Bishop tinha uma capacidade incrível de irritá-lo ao máximo, com sua aversão a ceder um milímetro que fosse para qualquer homem que se atravesse a chegar perto demais. — Perdi a batalha — concluiu Lucas, não sem uma ponta de tristeza — mas ainda posso ganhar a guerra. Analisando o andamento das investigações, Natalie angustiou-se ao constatar que continuava na estaca zero. Um conhecido prometera a relação completa de todos os telefonemas dados da casa dos Peyton, mas isso ainda deveria demorar dias talvez meses. Não fosse pela brutal interferência de Lucas, estava certa de que teria conseguido estabelecer contato com Marty Dobbs. Mas depois do que acontecera, não podia nem pensar em retomar ao Lamplighter. Precisava se ocupar de alguma coisa. Durante o café da manhã, várias vezes seu cliente tocara em assuntos não relacionados com o motivo por que a contratara, apenas para manter a conversa. Ela então aproveitava para divagar, lembrando dos prazeres da noite anterior e imaginando se algum dia voltaria a ter Lucas em seus braços... Aborrecida consigo mesma, ainda mais por desconfiar que o cliente reparara em sua desatenção, voltou para casa depois que se despediram. Datilografou o relatório final de um caso que resolvera para uma companhia de seguros e enviou-o pelo fax. Em seguida telefonou para alguns contatos, a caça de mais informações sobre Marty Dobbs. Não conseguiu nada. Até que, por fim, cedeu à tentação que a atormentava desde que ali chegara e entrou no quarto. Olhou com saudades para a cama, ainda desarrumada, em que vivera momentos maravilhosos havia poucas horas. Pegou os travesseiros como se fosse guardá-los no armário, mas abraçou aquele em que Lucas dormira para sentir seu cheiro. — Maldição! — exclamou de repente, jogando o travesseiro longe. Começara a divagar de novo. No entanto, sabia que seria inútil sonhar com um homem que na verdade não existia. Precisava se conscientizar de uma vez por todas que Lucas jamais se enquadraria no papel de companheiro que imaginava. Certificou-se que deixara a secretária eletrônica ligada e saiu. Resolveu passar pela Galaxies antes de ir para o escritório. Quando a viu entrar, Jana, a recepcionista, cumprimentou-a e disse que nenhum dos sócios havia chegado.

91


Tanto melhor, pensou Natalie. E avisou que esperaria na sala de Daniel. Na verdade, porém, sem que Jana percebesse, entrou no escritório de Lucas e fechou a porta atrás de si. Aproveitou sua ausência para vasculhar mesas e gavetas. Não deixou uma pasta sem ser examinada. Até que se deparou com a agenda de Rick, uma verdadeira mina de ouro, repleta de nomes, endereços e números de telefones. Estavam listados ali seu parceiro de tênis, clientes da empresa, restaurantes a que comparecera para um almoço de negócios ou para um drinque informal com os amigos. Mais de depressa. Natalie anotou o máximo que pode. Então, apanhou o telefone e ligou para a viúva de Rick. — Alô? — atendeu Sherri, vacilante. — Oi, aqui quem fala é Natalie Bishop. Não queria incomodá-la, mas... — Oh, você não me incomoda, em absoluto — retrucou Sherri, parecendo aliviada — E que pensei que fosse algum cobrador de novo. — Continua recebendo esses telefonemas? — O dia inteiro. Não fazia idéia de que Rick devia tanto dinheiro para tanta gente. Fico apavorada cada vez que toca o telefone. — Se é assim, não atenda. — Mas... — Existem leis bastante específicas quanto a isso — interrompeu-a Natalie — Ninguém tem o direito de ameaçar uma pessoa dentro de sua própria casa. Nem para cobrar uma dívida que é devida. — Não sei... Quero dizer, existe alguma maneira de obrigá-los a parar de ligar para cá? — Você tem advogado Sherri? — Claro, o Senhor Kemp. Ele cuidou do testamento de Ricky, lembra? — Não, refiro-me ao seu advogado. Alguém de sua confiança, que a ajude a sair dessa confusão — Aproveitou a oportunidade para dizer — Conheço alguns profissionais excelentes. Que tal se eu for até aí e levar os nomes para você examinar? Gostaria mesmo de dar uma olhada no escritório de Rick. Isto é, se você não se importar. — Bem eu... — Sei o quanto é difícil. Sherri, mas cedo ou tarde, você terá de se fazer alguma coisa para resolver esse problema. Quanto mais o tempo passar, mais a situação se complicará. Um longo suspiro chegou pela linha telefônica. — Lucas me disse a mesma coisa. — Foi? — Ele se dispôs a me ajudar no que fosse preciso, mas acha que certas decisões eu devo tomar por conta própria. Por exemplo, o pedido de falência... — Tropeçou na palavra como se expressasse uma idéia completamente estranha ao seu pequeno mundo doméstico — Talvez seja a única solução. Pedi que ele

92


cuidasse de tudo para mim, mas Lucas é da opinião que vou ter de aprender a andar sobre meus próprios pés um dia. — Verdade? — Sim — Suspirou — Portanto, eu agradeceria muito se você fizesse a gentileza de trazer os nomes desses advogados. Parecia muitos anos mais velha do que há apenas um minuto. Junto com o número do telefone e nome dos advogados, Natalie rabiscou o endereço de sua irmã. Talvez, se Sherri quisesse procurá-la, a história do casamento e da sobrevivência de Andréa servisse para animá-la a seguir em frente. Antes de sair, pegou uma fotografia recente de Rick de cima da mesa, bem como a folha de papel em que anotara os dados contidos em sua agenda. Percorreu os restaurantes em que Rick era mais assíduo. Mostrou sua foto e a de Marty Dobbs a todos os garçons e garçonetes que encontrou. Ninguém os reconheceu. Ousada como de costume, passou pela vizinhança do Lamplighter. Atenta para não ser pega de surpresa por Cal ou um de seus amigos, entrevistou donos de bares, vendedores ambulantes e até as moças que vendiam o corpo nas esquinas. Nada. De uma cabine pública, ligou para o parceiro de tênis de Rick. Alcançou-o de saída para o trabalho, mas final conseguiu alguma coisa. Descobriu que ele e Rick freqüentaram a mesma faculdade. Além de jogar tênis muito bem, desde aquela época, Rick era viciado em apostas. Teria se metido em várias encrencas por causa de dívidas de jogo, não fosse o socorro da mãe, que também o livrou das acusações de fraude no último exame, com uma generosa doação para a entidade mantenedora da faculdade. — Se não me engano — contou o amigo de Rick — o dinheiro deu para construir um laboratório inteiro. De volta ao carro, Natalie tentou imaginar por que Rick evitara recorrer à mãe da última vez. Mas não foi difícil chegar a uma conclusão. O caráter dominador de Bárbara ficara evidente desde a primeira vez que a vira. O dinheiro que usava para livrá-lo dos apuros devia ser cobrado com juros, sob forma de intromissões aviltantes na vida do filho. Com certeza a atitude de Rick, ao procurar Lucas para pedir o empréstimo, fora uma tentativa desesperada de cortar o cordão umbilical. Por isso não confessara à esposa, também uma mulher, que seu vício os levara à bancarrota. Esquecera que o casamento é uma sociedade. Supõe-se que duas pessoas apaixonadas dependam, confie uma na outra, aconteça o que acontecer. E Rick, talvez com medo de perdê-la, optou por não confiar em Sherri. Da mesma forma, Natalie percebeu como ela não queria confiava naquele a quem amava. O pensamento ocorreu-lhe sem surpresas, como se tivesse se alojado em sua mente havia muito tempo. O que sentia por Lucas não era um desejo irresistível, mas amor. Apaixonara-se de uma maneira inquestionável por um 93


homem do tipo exato com o qual jurara jamais se envolver. No entanto, uma dúvida a importunava fazia alguns dias, podia afirmar, sem medo de cometer uma injustiça, que Lucas era tão machista quanto parecia? Afinal, a grande maioria da população mundial, incluindo a feminina, acreditava que toda mulher precisa do cuidado e proteção de um marido. Mas ao menos uma vez, ele faltara ao respeito, como se a considerasse um ser inferior? Sua infeliz tendência a preocupar-se com ela não seria uma forma de expressar seu carinho? Será que se deixara influenciar pela imagem que Bárbara Peyton criara daquele filho? Pior ainda, será que fora preconceituosa classificando-o como machista, apenas para negar a enorme atração que sentia por aquele homem másculo, viril e inteligente? Envergonhada ao responder suas próprias indagações. Natalie afundou atrás do volante e escondeu o rosto nas mãos. E pensar que o tratara tão mal naquela manhã... Precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais. Talvez, se tomasse a iniciativa de procurá-lo, ainda conseguisse reverter a situação. Entre todas as qualidades que agora reconhecia em Lucas, estava a de não guardar rancor. Essa possibilidade deu um novo ânimo. Ergueu o rosto, jogou o cabelo para trás e respirou fundo. Mais uma vez decidida a traçar as linhas do próprio destino, ligou o carro e partiu rumo à Galaxies. Só depois de estacionar Natalie reparou em dois dos carros que ocupavam as outras vagas. Lá estavam o Jipe de Lucas, e a viatura que seu pai usava em serviço. Pressentindo problemas, saltou e correu para dentro do prédio. Encontrou-os em pé, de costas para a porta, inclinados sobre a cadeira da recepcionista. — Aconteceu alguma coisa? — perguntou, batendo nas costas do pai para chamar sua atenção — O que... Oh, meu Deus! Daniel! Vira o irmão sentado na cadeira. Estendeu a mão para tocá-lo, mas recuou, temendo aumentar a dor. Daniel, incapaz de abrir o olho direito, inchado e circundado por uma mancha roxa, apertava um lenço ensangüentado contra o nariz. — O que foi que houve? — ela quis saber, aflita. — Daniel recebeu uma visita daquele rapaz simpático que você conheceu no Lamplighter. — Cal? Oh, meu Deus! — Deu a volta na mesa para se aproximar do irmão — Ele bateu em você? Daniel afastou o lenço do nariz para dizer, a voz rouca, quase inaudível, — Foram só dois socos, Nat. — Mas por quê? — Voltou a cabeça para Lucas, já sentindo a culpa pesando nos próprios ombros — Por minha causa? Pelo que aconteceu ontem no bar?

94


— Acho pouco provável — Lucas reconfortou-a — A menos que você disse a ele quem era, ele não poderia adivinhar que seu irmão trabalha aqui. — Mas, nesse caso... — Ele veio trazer um recado de Marty Dobbs — Lucas explicou. — Ou seja, quer tirar de Daniel o dinheiro que Rick devia? — Creio que sim. — Que história é essa de "amigo"? — intrometeu-se Nathan, encarando a filha. — Lucas não contou? — Achei que você preferiria contar pessoalmente — disse Lucas, dando de ombros. — Parem com isso e falem de uma vez! — exigiu Nathan — Ou mando prender os dois por obstruírem a ação da justiça. — Bem... — Natalie começou. Sabia que seu pai não ia gostar nem um pouco do que estava prestes a ouvir — Resolvi dar um pulo no Lamplighter ontem à tarde e... — Eu sabia! — esbravejou Nathan, voltando-se para Lucas — Eu disse que ela ia até lá. Meteu-se em confusão outra vez não foi? — perguntou para a filha. — Não me meti em confusão nenhuma — ela retrucou, disparando um olhar para Lucas que o advertia a manter a boca fechada. O movimento de seus olhos não escapou a um policial experiente como seu pai. — O que aconteceu? Natalie suspirou. — Quando entrei, o barman me perguntou se estava perdida, mas... — Com certeza achou que você era uma prostituta — Nathan resmungou. Lucas não conseguiu conter o riso, mas fingiu que tossia para evitar que o velho policial ficasse ainda mais irritado. — Como eu ia dizendo — continuou Natalie, sem se deixar abater — expliquei ao barman que uma amiga me recomendara Marty Dobbs, para fazer uma pequena aposta. Assim, ele chamou Cal e... — Deve ser Calvin Maloney — seu pai interrompeu-a de novo — O braço direito de Dobbs. — Em resumo — Natalie insistiu — Cal e eu estávamos tendo uma pequena... Discussão quando Lucas entrou e pôs tudo a perder. — Ele a apertava contra o balcão do bar — Lucas explicou — E ninguém fazia nada para detê-lo. — E daí? — replicou Natalie — Eu tinha uma arma apontada para a testa dele. Cal já me soltara e começava a recuar. Teria me contado tudo que eu queria saber se você não chegasse naquele instante. — Parem com essa discussão — ordenou Nathan — Quando a você — disse, olhando para a filha — passe na delegacia amanhã bem cedo e preste queixa. 95


— Não será necessário. — Você apontou uma arma para ele. — Mas não atirei. Pai e filha se entreolharam com ar de desafio. Até que Nathan cedeu, — Oh, que diabos. Você é mesmo impossível, menina — Voltou-se então para Daniel — Mas você terá de ir à delegacia. Isto é, quando se sentir melhor. — Eu estou bem, papai. — Mas vai se sentir péssimo essa noite — Lucas advertiu — Por enquanto a adrenalina impede que você sinta muita dor, mas seu rosto inteiro estará latejando dentro de algumas horas. Tome um analgésico e faça compressas com uma bolsa de gelo. — Não seria melhor procurar um médico? — Natalie perguntou. — Para que? Ele não fraturou nada. — Tem certeza absoluta disso, doutor Sinclair? — Já me quebraram o nariz e sei como é. — Ora... — Não precisa fazer tanto estardalhaço, Nat — interveio Daniel — Eu estou bem, de verdade. — Preciso ir andando — disse Nathan, e apertou o ombro do filho em uma rápida demonstração de carinho — Não quero que fique trabalhando aqui sozinho depois do expediente. Pelo menos, até solucionarmos esse caso. — Mas, pai... — Nem, mas nem menos. Da próxima vez aquele valentão pode causar um estrago ainda maior. Estamos entendidos? Daniel fez que sim com a cabeça. Nathan então olhou para a filha. — Isso se aplica em dobro para você, menina. Nada de perambular por aqui sozinha, ouviu? E trate de se manter o mais longe possível do Lamplighter. Para Lucas, pediu, — Cuide para que ela siga minhas determinações. — Pode deixar Senhor. Natalie esperou o pai sair e voltou-se para Lucas, disposta a discutir com ele essa pronta concordância em servir de cão de guarda. Porém, a firme determinação que ele trazia no rosto surpreendeu-a. — O que foi? — quis saber. — Como assim? — Você está com uma expressão estranha. Parece... — Provavelmente são as rugas de preocupação se formando — Lucas brincou, evitando tocar no assunto — Como se sente? — perguntou para Daniel — Está doendo? — Um pouco. — Por que não leva seu irmão para casa, Natalie? Coloque-o na cama e providencie o remédio que falei. — E você, o que vai fazer?

96


— Preciso terminar um servicinho antes de dar por encerrado meu dia de trabalho — Lucas respondeu, apontando para sua sala. — Sozinho? — Ora, Natalie... — Sorriu de maneira calculada para provocá-la — Está preocupada comigo? — Não mais do que com qualquer pessoa que se exponha ao perigo — ela mentiu. — Pois pode parar de se preocupar. O recado já foi entregue — disse, indicando o pobre Daniel — Dobbs esperará um dia ou dois antes de mandar alguém buscar a resposta. Relutante, Natalie ainda insistiu, — Tem certeza? — Palavra de fuzileiro. Agora vá. Seu irmão está quase caindo da cadeira, e preciso dar alguns telefonemas. Assim dizendo, virou-se e desapareceu atrás da porta fechada do antigo escritório de Rick. — Vou deixar o computador ligado na minha sala — disse Daniel, levantando-se — Assim poderei trabalhar no terminal que tenho em casa. Também quero levar alguns disquetes e os gráficos do jogo que estou criando. Você me espera? — Claro — respondeu, distraída — Mas não demore. De bom grado trocaria seus melhores sapatos para saber para quem seriam aqueles telefonemas. Nesse momento, um botão aceso no painel do telefone sobre a mesa da recepcionista chamou sua atenção. Se o apertasse, Lucas ouviria o barulho e interromperia a ligação. Por outro lado, conhecia várias secretárias que usavam o intercomunicador para descobrir segredos dos chefes. Não pensou duas vezes antes de lançar mão do mesmo estratagema. No mesmo instante reconheceu a voz de Lucas saindo pelo alto-falante do aparelho, —... Tão ansioso quanto você para resolver o problema. Quanto antes, melhor. Seguiram alguns segundos de silêncio. Seu interlocutor devia estar respondendo. — Agora, dentro de dez minutos, quando você quiser — disse Lucas — Só gostaria que fosse ainda essa noite. Silêncio outra vez. — Ouça. O interesse é seu — Havia um tom de ameaça nessas palavras — O arquivo que encontrei no computador do meu irmão está bastante completo. De repente todas as dúvidas de Natalie quanto a quem estaria do outro lado da linha desapareceram. Daria sua coleção inteira de sapatos para ouvir a resposta de Dobbs. Mas, de novo, o intercomunicador emudecera. — Pode ser aqui mesmo — Lucas replicou afinal — As dez, então. Combinado. Estarei esperando. 97


Fim

CAPÍTULO XII O primeiro impulso de Natalie foi invadir o escritório de Lucas feito um furacão e exigir que dissesse o que diabo estava fazendo. Encontrar-se sozinho com um assassino, imagine! Mas, pensando melhor, concluiu que ele negaria tudo e depois de dispensá-la, ligaria para Dobbs de novo, adiando o compromisso para outra

98


data. Um pouco de discrição viriam bem a calhar. Pelo menos sabia onde se daria o encontro, e a que horas. De qualquer forma, reconhecia a astúcia de Lucas. Ele devia ter chantageado Dobbs, ameaçando entregar à polícia o arquivo de computador que Rick criara para registrar os dados completos de suas apostas. Se não por assassinato, Dobbs com certeza seria preso por prática de contravenção penal. Mas enfrentá-lo sozinho era uma completa estupidez. Qualquer que fosse o acordo a que chegaram Dobbs não dispensaria a presença de Cal, seu fiel cão de guarda. Lucas o derrotara no Lamplighter graças ao fator surpresa. Mas dessa vez, ele viria bem preparado. Maldição! Por que não pediu minha ajuda? Afinal, somos sócios ou não? Desligou o intercomunicador e soltou um suspiro de alívio. Antes que Lucas a pegasse perto do telefone e desconfiasse de alguma coisa, aproximou-se pé ante pé do escritório de Daniel e abriu a porta. — Está pronto? — perguntou para o irmão. — Sim — disse ele mais abatido do que nunca — Só quero que me ajude a carregar essas coisas. Natalie apressou-se a pegar a pilha de gráficos do novo jogo. deixando para Daniel apenas a caixa de disquetes. — Vamos logo — ordenou — Ou terei de carregá-lo nos braços até sua casa. Depois de abrir a porta do carro para o irmão e colocar seus pertences no banco traseiro, voltou para avisar que estavam de partida. — Lucas — chamou, batendo na porta do escritório — vou levar Daniel agora. Mal terminou de falar e porta se abriu, assustando-a. Natalie engoliu em seco quando ele saiu, parando a poucos centímetros de distância. — Por que não faz companhia a ele essa noite? — Lucas sugeriu — Daniel pode acordar e precisar de alguma coisa. — Boa idéia — mentiu. Sabia que, por trás daquelas palavras, havia uma segunda intenção. Lucas queria evitar que ela voltasse para a Galaxies' e atrapalhasse a conversa com Dobbs. Tentou sorrir para certificá-lo de que isso não aconteceria quando sentiu que ele segurava suas mãos. Espantada, abaixou os olhos e deparou-se com a cobra tatuada sob os pelos daquele pulso másculo. Uma visão enervante e fascinante ao mesmo tempo. Fez com que se lembrasse de todas as carícias que recebera na noite anterior. Isso não é hora para pensar em uma coisa dessas, concluiu. Quis tirar as mãos, porém os dedos de Lucas se fecharam sobre os seus para impedi-la. — Natalie... Tornou a encará-lo. — O que foi? — Nada. Só queria me despedir.

99


Assim dizendo, passou os braços ao redor de sua cintura e puxando-a para junto de si, plantou-lhe um beijo caloroso em seus lábios entreabertos. — Amanhã a gente se fala — completou então, afastando-se — Temos muito que conversar. — Concordo plenamente — foi tudo que Natalie conseguiu responder antes de dar as costas e ir embora. Levou Daniel para o apartamento e colocou-o na cama. Providenciou o analgésico, a bolsa de gelo e obrigou-o a usá-la, embora reclamasse muito da dor. Só o deixou depois de ouvi-lo ressonar. Em seguida voou para casa e mudou de roupa. Vestiu calça jeans, blusa, casaco e tênis, todos pretos. Por fim, acrescentou o coldre de ombro que o pai dera, de má vontade, quando a presenteara com o revólver calibre 38. Seu couro marrom estava duro devido à falta de uso, mas seria fácil de ocultar sob o casaco e daria liberdade de movimentos. Agora, restava uma última providência, telefonar para o pai. Pensara bastante no assunto durante o percurso entre o apartamento de Daniel e sua casa. Decidira que Lucas contaria com o maior número de pessoas possível na hora de enfrentar os bandidos. Tinha certeza absoluta do envolvimento de Dobbs no assassinato de Rick, o que o tomava um sujeito extremamente perigoso. E Cal, assim que reconhecesse o homem que o nocauteara no Lamplighter, não descansaria até vê-lo estirado no chão... Talvez sem vida! Na delegacia, porém, disseram que seu pai não estava. Natalie agradeceu e avisou que mais tarde tentaria outra vez. Sentou-se na sala para esperar. Só escureceria depois das oito e trinta, nove horas, e precisava da noite para cobrir seus próximos passos. Marty Dobbs devia pensar da mesma maneira. Por isso marcara o encontro para as dez. O manto negro da noite ocultava tanto benfeitores quanto criminosos. As oito e quarenta e cinco ligou para o pai de novo, mas obteve o mesmo resultado. Hesitou por um momento, mas resolveu deixar seu recado. Isso feito, deu de ombros e saiu. A retaguarda de uma pessoa seria melhor que nenhuma. Passava pouco das nove quando chegou à Galaxies. Desligou as luzes do carro e estacionou atrás do prédio, escondido entre os caminhões de entrega dos escritórios vizinhos. Desceu e esgueirando-se junto à parede, correu até poder ver o estacionamento. Só o Jipe de Lucas e a perua velha de Daniel continuavam ali. Satisfeita em constatar que Dobbs ainda não havia chegado, voltou para entrar pela porta dos fundos da Galaxies. Esperou os olhos se acostumaram à escuridão, atenta ao mais leve ruído. Só então avançou pelo corredor, espremendo-se entre caixas empilhadas e máquinas de vídeo-games obsoletas. Sob a porta que se abria para a recepção, um filete de luz muito fraco indicou que Lucas aguardava em sua sala. Mesmo assim, Natalie afastou-a com cuidado para não fazer barulho e apenas o suficiente que permitisse conferir se de fato, todo o resto do escritório estava às escuras. 100


Confirmada essa impressão, entrou e fechou a porta depois de passar. Afastou a cadeira da recepcionista, dando a impressão de que ela se esquecera de colocá-la no lugar antes de ir embora, e enfiou-se debaixo da mesa. Confiava que ninguém, em qualquer lugar daquela sala, poderia vê-la ali. E, na hipótese improvável de que isso acontecesse, teria tempo suficiente para sacar da arma e defender-se. Procurou se acomodar da melhor maneira possível para a espera de quase uma hora. No entanto, menos de trinta minutos depois, ouviu passos se aproximando. Era Lucas que passava, a caminho da porta da frente. Ele destrancou-a e, segundos depois, alguém entrava. Só uma pessoa? Espantou-se Natalie, descobrindo tarde demais o único problema de seu esconderijo. Não podia ser vista, mas tampouco podia ver. — Olá — A voz do estranho ecoou pelo escritório vazio — Tem alguém aí? — Dobbs? — A voz de Lucas, oculto nas sombras, veio de um canto da recepção — Marty Dobbs? Seguiu-se o sussurro de sapatos pisando o carpete. — Não havia necessidade de preparar uma cena tão dramática Senhor Sinclair — disse Dobbs — Como vê. Cumpri minha palavra. Vim sozinho. Natalie ouviu o rangido da porta abrindo e fechando. Presumiu que Lucas se adiantara para confirmar se ele falara a verdade. De repente, uma luz acendeu-se. — Você não se parece com seu irmão — comentou Dobbs. — Somos apenas meio irmãos. — Você deve ser muito mais velho que ele. — E tão visível assim? Havia um traço de sarcasmo na voz de Lucas, porém Natalie surpreendeuse ao se dar conta de que nunca o ouvira empregar um tom tão áspero e inamistoso. — Por que será que ele nunca mencionou sua existência? O pobre Ricky e eu... Bem, nós conversávamos muito. — Aposto que sim. Mas seu relacionamento com o "pobre Ricky" não me interessa nem um pouco. Portanto, vamos direto ao ponto. — Você não se parece mesmo com o pobre Ricky — Dobbs repetiu — Ele seria incapaz de tamanha grosseria. — Talvez por isso tenha morrido tão jovem — Lucas provocou. Mas Dobbs não se deixou enredar na armadilha, — Uma fatalidade, esse acidente. — O problema é que você providenciou para que Rick beijasse o pilar daquela ponte antes de pagar os vinte mil que me devia. — Oh, você acha que fui eu? — retrucou Dobbs, muito calmo. Não negava nem confirmava a acusação — Ele saldou uma dívida comigo de exatos vinte mil dólares em janeiro. Tentei imaginar onde conseguira o dinheiro. Disse que sua mãe não emprestaria nem um centavo.

101


— Aquela bruxa sempre foi muito mais esperta do que eu — comentou Lucas — Não se deixaria enganar pela história que ele contou. — Que história? — Dobbs quis saber, interessado. — Bem, Rick me convenceu de que seu sócio tinha criado um jogo de vídeo-game que deixaria os concorrente a ver navios. Se eu o ajudasse a lançar o produto no mercado, teria de volta dez vezes o que investi, e dentro de bem pouco tempo. A cada palavra que Lucas proferia. Natalie espantava-se mais com sua inventividade e capacidade de representar. — Só após a sua morte — ele prosseguia — descobri a verdade. A empresa vai bem, ou melhor, iria bem, não fosse a enorme quantidade de dinheiro que meu "educado" irmãozinho desviou. Mesmo assim, jamais renderá os milhões de dólares com que ele me atraiu. Não tenho tempo a perder com um negócio tão pouco lucrativo. — E é aí que eu entro — emendou Dobbs. — Sim — disse Lucas, cínico — é aí que você entra. — Devolvendo seus vinte mil? — A conclusão está correta, mas você errou na quantia. Quero duzentos mil. Natalie perdeu o fôlego. Duzentos mil dólares? O que, em nome de Deus, Lucas tentava fazer? — Em troca do que? — Marty Dobbs perguntou impassível. — Já expliquei ao telefone. Rick tinha tudo arquivado e atualizado no computador. Datas, valores, juros, amortizações. Inclusive o nome de outros clientes que você atendia. Alguns eu conheço das colunas sociais publicadas nos jornais da cidade — Lucas assobiou como se estivesse impressionado — Nunca imaginei que pessoas tão importantes também gostassem de fazer um goguento de vez em quando. Calou-se um instante para aumentar o impacto do que diria a seguir, — Suas ameaças também foram descritas nesse arquivo. Debaixo da mesa. Natalie imaginava se ele não fora longe demais com suas invenções. — Nunca faço ameaças, apenas promessas, Senhor Sinclair — Ouviu Marty Dobbs dizer, frio como um bloco de gelo — E prometo deixá-lo sair daqui com vida se me entregar o disquete que o Senhor afirmou já ter gravado. Natalie estremeceu. Cuidado, Lucas! Teve vontade de gritar. — Assim que você me der os duzen... Uma pancada surda interrompeu a frase de Lucas, seguida de um gemido abafado e o barulho de um corpo batendo no chão. Desesperada, Natalie retesou cada músculo do corpo no esforço para adivinhar o que acontecia. Quem fora atingido? Quem caíra? Que não tenha sido Lucas, meu Deus, ela rezou. — Ora, quem diria. Esse e o cara do bar. Com um sobressalto, reconheceu a voz de Cal. 102


— Aquele que quase arrancou sua cabeça? — perguntou Dobbs. — O filho da mãe que me pegou pelas costas — defendeu-se o brutamontes — E tudo por causa daquela maldita mulher! — Oh, sim. Ia me esquecendo da mulher misteriosa. Será que ela tem alguma coisa a ver com essa história? — Posso tentar descobrir — ofereceu-se Cal, ansioso. Natalie imaginou Dobbs fazendo que sim com a cabeça, porém tudo que ouviu foi o som de um soco e outro gemido de dor. Tapou a boca com a mão para não gritar. Preciso manter a calma, disse para si mesma. Lutava contra o medo terrível de que seu amado estivesse em apuros, mas a oportunidade de salvar a ambos, só se apresentaria se esperasse o momento certo para agir. No entanto, a pancadaria recomeçava poucos metros a sua frente. Tinha a nítida impressão de que quem batia era sempre a mesma pessoa. Por que Lucas não reagia? E onde diabos se metera seu pai, quando mais precisava dele? Será que não tinham dado seu recado? — Já chega — Dobbs ordenou de repente. Natalie seria capaz de beijar-lhe os pés. — Ele me devia essa — Cal rosnou. — Compreendo seu desejo de vingança — disse Dobbs, simpático como um psicólogo — mas o Senhor Sinclair ainda precisa me entregar o disquete. Depois disso, você poderá cuidar para que ele sofra um acidente como o que levou o pobre Ricky — Endureceu a voz para completar — Coloque-o de pé! Sons de pés se arrastando e mais gemidos chegaram até o vão debaixo da mesa. — Levante-se de uma vez, homem! — vociferou Cal — Antes que eu o machuque de verdade. Natalie não agüentava mais. Tinha de impedir que aquele facínora transformasse Lucas em uma poça de sangue. A oportunidade só surgiria se ela própria a criasse. Rastejando sobre o carpete, espiou pelo lado da mesa. Um par de pernas finas, envoltas em uma calça caqui, erguia-se bem a sua frente. Só podia ser Marty Dobbs, em carne e osso. Ia ser mais fácil do que imaginara. Escorregava a mão para o coldre quando outro detalhe chamou a atenção. Seu olhar escalou o vulto de um homem cambaleante que tentava permanecer em pé escorando-se na parede. Lucas. Um filete de sangue escorria-lhe da cabeça e manchava o colarinho da camisa. Ao lado, Cal segurava um revólver pelo carro e já comemorava a vitória com um largo sorriso. Devia ter usado a coronha da arma como um porrete para golpear o oponente. Por um momento Natalie considerou a possibilidade de atacá-lo como um cão raivoso e enterrar os dentes em sua mão. Experimentaria a imensa satisfação de vê-lo arregalar os olhos e gritar de dor. Mas desistiu dessa insensatez. Levou a mão à arma e esperou. Lucas e Cal estavam próximos 103


demais para arriscar um tiro. A qualquer instante, porém, um dos dois se afastaria e então... De repente, sem mais nem menos. Cal deu um soco no estômago de Lucas e riu ao vê-lo se dobrar. Natalie esqueceu tudo que aprendera na academia para detetives sobre a necessidade do autocontrole em situações como aquela. Gritando, alucinada, de um salto pôs-se em pé. Empurrou Marty Dobbs ao passar e, gritando, aterrissou seus quarenta e sete quilos de puro ódio sobre a montanha de músculos que era Cal Maloney. Mesmo assim, conseguiu deseqüilibrá-lo. O revólver que ele segurava escapou de seus dedos, ricocheteou na parede e caiu. Então, foi como se as portas do inferno se abrissem. Marty Dobbs agarrou-a por trás e atirou-a longe. Natalie rolou no chão, mas conseguiu se levantar outra vez num instante, pronta para brigar pelo homem a quem amava. Qual não foi sua surpresa, no entanto, ao vê-lo subitamente recuperado e exclamando, — Pelo amor de Deus, Natalie saia daqui! O próprio Lucas incumbiu-se de afastá-la com um empurrão. Enquanto ele se virava para enfrentar Cal. Natalie foi agarrada por trás outra vez. Marty Dobbs prendeu seus braços nas costas. Não se deu ao trabalho de apertá-los com muita torça, talvez menosprezando sua capacidade de fugir. De fato ela estava ocupada demais observando a cena que se desenrolava diante de seus olhos para tentar qualquer reação. Lucas, que enganara a todos fingindo não conseguir parar em pé, agora golpeava o rosto de Cal sem descanso, curvando os ombros como um boxeador. Emocionada, Natalie sentiu vontade de gritar como uma fã. Mas então percebeu que Dobbs tentava empurrá-la para frente. Queria aproximar-se da arma que ela derrubara da mão de Cal. Por impulso, Natalie pisou firme no peito do pé de Dobbs. Admirou-se ao ouvir um simples gemido e receber um tapa na cabeça. Estou sem saltos, lembrou. Aproveitando que ele soltara um dos braços, começou a se debater. Porém Dobbs era ágil e conseguiu aprisioná-la de novo. Por mais que se contorcesse. Natalie não conseguiu se livrar. — Pare com isso — Dobbs ordenou — Pare ou vai se arrepender. Como não fosse atendido, soltou-a por uma fração de segundo. Apenas o tempo suficiente para laçar-lhe o pescoço com o braço e apertá-lo. Natalie lutou para mordê-lo, mas foi em vão. Asfixiada, ainda quis arranhar sua pele, mas faltou-lhe forças para tanto. Até que, por fim, olhos arregalados, pendeu os braços ao lado do corpo e se rendeu. — Boa menina — ouviu Dobbs sussurrar ao seu ouvido. Como esperava, sentiu que ele afrouxava o abraço. Tossiu aparentando estar engasgada, e encheu os pulmões de ar. Dobbs voltou a empurrá-la para frente. Choramingando para dar maior veracidade à encenação. Natalie o acompanhou. Como imaginara, ele 104


subestimou-a outra vez. Começou a se abaixar para pegar a arma, segurando seus dois pulsos juntos com apenas uma das mãos. Arrependeu-se tarde demais desse gesto. Com um safanão, Natalie livrou-se dele e mais que depressa sacou o revólver do coldre. Quando Dobbs tentou detê-la, ela sem querer puxou o gatilho e por pouco não o atingiu no ombro. — Sua puta! — ele uivou apavorado. — Eu estou bem! — Natalie gritou para Lucas, com medo de que o tiro o assustasse e Cal tirasse vantagem de sua distração. Em seguida afastou-se o suficiente para apontar o revólver para Dobbs que estendia a mão para a arma sobre o carpete. — Mexa-se e eu te mato — disse Natalie. Ele estacou no mesmo instante, mas não afastou a mão. — Em vez de matá-lo — Natalie continuou, abaixando um pouco o cano da arma — posso atirar em suas rótulas e aleijá-lo para o resto da vida. Dobbs ainda olhou para arma antes de tornar a encará-la. Sabia que ela falava sério. Então, bem devagar, endireitou o corpo. — Para trás — Natalie mandou — Ande logo, para trás. Vire-se e encoste a posição. Com tantos anos de crime, tenho certeza de que conhece a posição. Esperou até vê-lo de costas para agachar e recolher a outra arma do chão. Em seguida empurrou os óculos para o alto do nariz e perguntou para Lucas, por cima do ombro, — Já acabou aí? — Qua-quase... — ele esforçou-se muito para conseguir responder, enquanto atirava Cal de cabeça contra a parede. O brutamontes colidiu sem emitir um único som, e tombou para trás inerte. Exausto e resfolegando sem parar, Lucas encostou-se à parede para não cair em cima do corpo do adversário. Nesse exato momento os policiais invadiram a sala da recepção da Galaxies. Surgiam de ambos os lados, pelas portas da frente e dos fundos. Reconhecendo o pai Natalie saudou-o com carranca e disse, — Já era hora de vocês chegarem. Estava começando a imaginar se não tinham dado meu recado. — Do que diabos você está falando, menina? — perguntou Nathan depois de tomar o revólver de Cal da sua mão. — Como assim? — Natalie espantou-se — O Senhor não passou pela delegacia no começo da noite? — Não. Eu e meus homens estávamos escondidos na carroceria da perua de Daniel, dando cobertura a Lucas — Apontando para a arma que ela devolvera ao coldre pediu — Me de isso aqui. O pessoal da balística vai querer examiná-la também. Atônita, Natalie entregou-a sem protestar. Ao ver que Lucas se afastara da parede c. cambaleante, procurava se aproximar, tomou a mão ensangüentada para ajudá-lo. 105


— Conseguiram o suficiente? — ele quis saber, desviando dos policiais que arrastavam Cal Maloney desacordado, para fora. — O suficiente — Nathan grunhiu. O olhar atento àquelas mãos entrelaçadas — A menos que a gritaria de Natalie tenha estragado tudo. Coffey vinha chegando nesse instante, depois de cuidar da remoção de Dobbs e ouviu o que o chefe dissera. — Quase me estoura os tímpanos — acrescentou, olhando para Natalie com ar de reprovação. — Não estou entendendo nada — ela protestou confusa de verdade. — Escondemos um pequeno microfone junto ao corpo do nosso amigo aqui — Nathan explicou, indicando Lucas. — Microfone? — Natalie fixou o olhar no pai e, incrédula, quis confirmar — Quer dizer que, além de permitir que Lucas se expusesse ao risco de se encontrar sozinho com dois bandidos perigosíssimos, o Senhor ainda o ajudou a arquitetar esse plano maluco? — O único plano maluco dessa noite foi idealizado e executado por você — disse Lucas, sem dar chance a Nathan de responder — Nunca vi nada tão estúpido na minha vida! Quando a vi saltar em cima de Cal, achei que tinha posto tudo a perder. Mais uma vez você não fazia a menor idéia de onde estava se metendo! Precisou apoiar-se na beirada da mesa da recepcionista quando Natalie soltou a mão para exclamar, magoada com tamanha ingratidão, — Pois fique sabendo, Lucas Sinclair, que se não fosse por minha interferência, Cal o teria liquidado! A essa hora você já estaria batendo na porta do inferno! — Engano seu — Lucas retrucou, entre um gemido de dor — Cal não teria a chance de encostar um dedo em mim, se você não estivesse escondida debaixo da mesa. — Como? — De repente, a cor fugiu do rosto de Natalie — Quer dizer que... Ele bateu em você porque você deixou? — Claro. Precisava evitar de alguma maneira que eles a vissem no seu esconderijo. — Você sabia que eu estava lá? — Desde o instante que abri a porta para Dobbs entrar. Percebi uma sombra se mover sob a mesa e vi o pedaço de um tênis preto. Embora estranhasse a ausência dos saltos altos, concluí que um pé tão pequeno só podia ser seu. Lançou-lhe um sorriso muito terno que fez o coração de Natalie disparar. Mesmo assim, ela adiantou-se e começou a desabotoar a camisa. — Você devia ter continuado escondida — ele comentou — em vez de pular de cima de Cal. O máximo que conseguiu foi fazer um pouco de cócegas. — Pode ser, mas ele parou de te socar, não foi? A mente ágil livrou-a da humilhação de reconhecer o próprio erro. Coisa que Natalie procurava evitar a qualquer preço. 106


Aberto o último botão, puxou a camisa de Lucas para trás, revelando o microfone minúsculo preso a seu peito por uma fita adesiva. Arrancou-a com raiva, em um movimento tão rápido que não deu de tentar impedi-la. — Ai! Deus do céu, Natalie, cuidado! — Qual o problema? — ela perguntou, atirando fita e microfone na direção do pai — Será que consegui machucar nosso bravo fuzileiro? — Claro. Isso dói. Já estou com que corpo todo quebrado, não preciso da ajuda de ninguém para me sentir pior. A expressão no rosto de Natalie suavizou-se. Por um momento, esquecera que Lucas acabara de levar uma surra por sua causa. — Desculpe. — Está desculpada — ele murmurou fascinado pelo sincero arrependimento que Natalie demonstrava. Adivinhando que se constrangeria de novo se aqueles dois resolvessem dar outra demonstração de carinho, Nathan Bishop pigarreou e ofereceu, — Quer que chame um médico? Ninguém o ouviu. Então, sorrindo, saiu da recepção para acompanhar seus homens e deixá-los a sós. — Oh, Lucas — Natalie exclamou — você está com uma aparência horrível. Na verdade, achava-o magnífico. Mesmo ensangüentado, com a barba crescida e o cabelo em desalinho. Meu herói! Roçou os pelos do peito, como se temesse aumentar seu sofrimento com o leve toque dos dedos. No mesmo instante sentiu o corpo arder. Dessa vez, porém, reconheceu que era de paixão, mais que de desejo. — Dói muito? — perguntou. — Agora, bem menos — ele mentiu deliciado com a atenção da mulher a quem amava. — Tem alguma coisa que eu possa fazer para que você se sinta ainda melhor? — Aposto que sim. Uniram-se em um longo e suave beijo. Apesar das pontadas que atravessava o corpo, Lucas fez questão de estreitá-la em seus braços. Durante a longa espera por Dobbs, nem a própria morte o apavorara tanto, quanto a possibilidade de nunca mais repetir aquele gesto. — Você esteve maravilhosa essa noite — disse ele afinal, contra os lábios de Natalie — Mas da próxima vez que fizer alguma coisa parecida, prometo bater nesse seu traseiro até deixá-la uma semana sem conseguir se sentar. — Terá de chamar o exército para me segurar. Lucas riu, porém seu rosto transformou-se em uma careta medonha quando lembrou-se da dor. — Você simplesmente não sabe quando é hora de parar — disse então. — E você, sabe? A pergunta o pegou de surpresa. 107


— Acho que não — reconheceu — Ainda bem, porque, do contrário, não teria me apaixonado por você. Natalie sorriu e, tomando as mãos entre as suas, beijou os nós dos dedos esfolados de tanto esmurrar o rosto de Cal. — Já é tarde para voltar atrás? — indagou de repente. — Mesmo que não fosse nada nesse mundo me faria desistir de você agora. Suas palavras calaram fundo no coração de Natalie. Ainda assim, ela lembrou, apenas para verificar como ele reagiria, — Nós brigamos o tempo todo. — Não, nós discutimos o tempo todo. É diferente. Somos pessoas de gênio forte, mas se prestar atenção, verá que nos damos maravilhosamente bem. — Também não sou seu tipo. — É óbvio que me enganei. — E você mesmo disse que não gosta de mim. — Tem razão — Segurou-a antes que fugisse, magoada. Abriu os lábios em um sorriso sensual e explicou — Não gosto de você. Que Deus me proteja, mas eu te amo. — Amém — completou Natalie, deixando-se abraçar — Porque também te amo muito. Beijaram-se outra vez, até que ela afastou-se para perguntar, — E agora, o que vamos fazer? — Precisamos fazer alguma coisa? — Lucas brincou. — Claro! — Nesse caso — deu de ombros fingindo resignação — acho que seremos obrigados a nos casar. — Tem certeza de que é uma boa idéia? — disse Natalie, pensativa — Talvez fosse melhor morarmos juntos por algum tempo antes de assumirmos um compromisso mais definitivo. — Vamos nos casar. — Mas não temos nada em comum — ela objetou incomodada pelo tom autoritário de Lucas. — Isso é o que você pensa. Dito isso, desceu as mãos pelas costas de Natalie e apertou o traseiro. — Um casamento não se sustenta só com sexo, por melhor que ele seja. — Ah, quer dizer que você gostou? Natalie franziu a testa. — Não mude de assunto. Estou falando sério. — Eu também. Vamos nos casar, e ponto final — Lucas declarou, usando e abusando de sua costumeira arbitrariedade — Agora, em vez de contestar tudo que eu digo, que tal me dar mais um beijo? Em consideração ao estado em que Lucas se encontrava, todo dolorido e sujo de sangue, Natalie resolveu ceder. Mas só dessa vez. 108


Terei inúmeras oportunidades para provar que tanta arrogância não o levará a parte alguma comigo, pensou enquanto o beijava, com sofreguidão e deleite. Ainda mais agora que vamos nos casar.

EPÍLOGO — Aonde você pensa que vai? — Lucas perguntou para a esposa. Natalie fingiu que não ouvira e abriu a porta de vidro em que se lia o nome das três empresas que funcionavam naquele conjunto de escritórios, "Galaxies Vídeo", "Top Secret Investigações Confidenciais" e "Sistemas de Segurança Sinclair". — Natalie — Lucas chamou, segurando-a pelo ombro — Quero saber aonde você vai. Ela virou-se afinal e encarou-o, exasperada. — Acho que já discutimos esse assunto hoje cedo.

109


— E decidimos que você não iria — Lucas completou. — Você decidiu. O que não significa que eu tenha concordado. Agora, se me dá licença — olhou para a mão ainda segurando o ombro — preciso investigar um incêndio suspeito de ser culposo. — Eu a proíbo. Natalie arregalou os olhos e repetiu sarcástica, — Proíbe? — Oh, que inferno! — Lucas retirou a mão e tentou parecer menos ameaçador. Coisa difícil para um homem do seu tamanho — É para seu próprio bem. Em seguida voltou-se em busca de ajuda para a mulher vestida de azul, que assistia à cena parada na frente de um arquivo. — Diga a ela que é para seu próprio bem — pediu. Mas Sherri Peyton sorriu e balançou a cabeça. — Me deixe fora dessa. Lucas. Estou estudando administração financeira, não aconselhamento familiar — Fechou a gaveta do arquivo com o quadril — Sinto muito, mas você está sozinho agora, amigão. Lucas tomou a olhar a esposa. — Maldição, Natalie você não está em condições de ir atrás daquele pobre coitado para perguntar se botou fogo na própria casa. Sabe que tem se cansado à toa ultimamente. Apesar de impaciente, Natalie tentou compreender a preocupação de Lucas. — Prometo que fico sentada o tempo todo, está bem? Sem se deixar convencer, ele lançou-lhe um olhar obstinado. — Lucas — disse ela, suspirando — só estou grávida, não aleijada. — E se você entrar em trabalho de parto ou algo assim? — No sétimo mês? — Às vezes acontece. — Quando a mulher tem algum problema. O que não é o meu caso. Você ouviu o que o médico disse, "Senhora Natalie Sinclair, a Senhora está forte como um cavalo!" — Mas e se você torcer o pé e cair? — Lucas argumentou, apontando o reluzente par de sapatos vermelhos que ela calçava. Percebendo onde ele queria chegar, Natalie protestou, — Os saltos deste sapato têm a metade do tamanho daqueles que estou acostumada a usar. E se acontecer uma fatalidade dessas, eu grito pedindo ajuda. — Mesmo assim, não gosto da idéia de vê-la andando por aí sozinha — ele insistiu, cruzando os braços. — Sei disso. — Mas não vai fazer o que estou pedindo. — Lucas, seja razoável... — Balançou a cabeça, desanimada — Está bem. Vamos fazer um trato? 110


— Depende. — Prometo demorar a metade do tempo do que pretendia. Depois de três horas, no máximo, vou para casa e passo o resto do dia com os pés para cima. — Em troca do que? — Lucas perguntou. Se tinha aprendido alguma coisa naqueles dois anos de casamento era que a esposa jamais comprometia sua enervante independência por nada. — Quero que me leve ao coquetel de sua mãe amanhã à noite. — Ah, não — disse ele, erguendo os braços — Já conversamos sobre isso. Minha mãe e eu não temos nada a dizer um ao outro. Nunca tivemos, nunca vamos ter. — Parece que Barbara não é da mesma opinião — Natalie estendeu a mão para tocar no braço do marido — Essa é a terceira tentativa dela de restabelecer o contato com você, Lucas. Mais de uma vez eu o ouvi dizer que podia ter exagerado no julgamento que fez de sua própria mãe. Talvez ela se sinta da mesma maneira com relação a você — Apertou o braço com carinho — Imagine como deve ser difícil para uma mulher tão autoritária e orgulhosa como Barbara tomar esse tipo de atitude. Não custa nada você tentar ajudá-la. — Me corrija se estiver errado — disse Lucas — mas tenho a impressão de que há um certo tom maternal em sua voz. Natalie sorriu e levou as mãos ao ventre enorme e redondo. — Acertou em cheio. — Isso é jogo sujo — ele brincou, aproximando-se para também acariciar o filho que ainda nem nascera. — Vai fazer o que pedi? Lucas suspirou e cedeu. — Só se você cortar mais uma hora da entrevista com aquele sujeito. — Duas horas, então — ela concordou mais que depressa. — Está bem — Abriu a porta para ela — Mas vou com você. — Não preciso de guarda-costas, Lucas. — É pegar ou largar. — Você é o homem mais teimoso, cabeça-dura... A porta se fechou atrás deles. Continuaram brigando, trocando críticas e acusações, enquanto caminhavam até o carro. Mas seguravam-se as mãos com firmeza, e Lucas curvou-se para dar um beijo longo e apaixonado na esposa, antes de ajudá-la a subir no Jipe preto.

Fim 111


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.