Madeline harper flórida ardente (tentação 23)

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Flórida ardente Madeline Harper

Tentação 23

Copyright © 1993 by Madeline Porter & Shannon Harper Publicado originalmente em 1993 pela Harlequin Books, Toronto. Canadá. Título original: THE SUNDOWNER Tradução: Cláudia Sant'Ana Martins Copyright para a língua portuguesa: 1994 círculo dc/livro ltda. EDITORA NOVA CULTURAL uma divisão do Círculo do Livro Ltda. Alameda Ministro Rocha Azevedo. 346 — 9° andar CEP 01410-901 — São Paulo — SP — Br Fotocomposição: Círculo do Livro Impressão e acabamento: Gráfica Círculo

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos, de fãs para fãs. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida. Cultura: um bem universal.

Digitalização: Revisão: Eudna


Ela Conseguia Deixá-lo Fora De Si! Quando Carla Selwyn herdou metade do Sundowner - um bar do Golfo da Flórida -, viajou para lá com o intuito de vendê-lo. Isso até conhecer seu sócio, o rude mas incrivelmente charmoso Nick Fleming… Nick tinha certeza de que Carla surgira para virar sua vida pacata de cabeça para baixo. Primeiro, ela quis demolir o seu adorado bar. Depois, veio com umas idéias de dividir o local em dois. Para piorar tudo, Nick descobriu que estava apaixonado por essa ruiva explosiva. O problema era que… eles só se davam bem na cama!

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CAPÍTULO I

Carla Selwyn estacionou o carro ao lado do Bar e RestauranteSundovvner, tirou os óculos escuros e fitou, pensativa, a antiga construção caindo aos pedaços. Tratava-se de uma espelunca, bem como imaginara, mas seus arredores e a vista para o mar… Pelo menos, eram muito melhores do que esperava! Quando herdara do pai o restaurante na costa oeste da Flórida, pensara ter recebido de presente um verdadeiro presente dos céus. Uma boa propriedade. Um excelente terreno com magnífica vista para o Golfo do México, que ela trataria de converter em dinheiro vivo o mais rápido que pudesse. Agora, ao constatar com os próprios olhos que sua herança realmente não passava de um vetusto bar quase em ruínas, não tinha dúvida alguma sobre o que fazer com ele: vender. Penteou os cabelos e retocou a maquiagem no espelho retrovisor antes de sair do carro. Embora fosse uma manhã de abril, primavera na Flórida, o calor era intenso; Carla desejou estar usando short e camiseta, em vez de um vestido de linho, meias e sapatos de salto alto. Mas sua viagem tinha por objetivo uma transação comercial e ela planejava comportar-se de maneira profissional. Afinal, era a primeira vez que iria acabar com um negocio. Esse pensamento a deixava ansiosa, pois odiava fazer com que alguém perdesse o emprego: esperava, mesmo assim, que os empregados do Sundowner entendessem que, com o falecimento do pai, as mudanças seriam inevitáveis. Além disso, o Sundowner era o “queridinho” de seu pai. Não significava nada para ela. Subiu as escadas que levavam a uma plataforma de madeira que circundava o bar. As mesas eram dispostas ao acaso, embaixo de guarda-sóis desbotados. Havia um certo encanto naquele lugar em ruínas que parecia brotar naturalmente do cenário, como as trepadeiras emaranhadas e as árvores imensas que o cercavam. Gaivotas mergulhavam no céu sem nuvens, e um vento fresco do oeste trazia o aroma inebriante de água salgada. Carla parou um instante para admirar a cena. — É um lugar paradisíaco — murmurou para si mesma. — Bom demais para ser verdade. A propriedade, uma ponta de terra avançando sobre o Golfo do 3


México, era mais extensa do que Carla fora levada a crer. De um lado havia um rio: de outro, além do estacionamento, um bosque de ciprestes, carvalhos e palmeiras. A vista era espetacular. Olhando numa direção, ela via cais de pesca cercados por barcos balançando sobre as ondas e na direção oposta, uma praia em curva, com diversos hotéis. Em frente, um píer avançava para as águas: adiante, apenas o mar e o céu infinitos. Com um sorriso de satisfação, ela abriu a porta desconjuntada do bar onde, às dez horas, deveria encontrar-se com Nick Fleming, o gerente do Sundowner. Saindo do brilho do sol viu-se dentro de um salão frio e escuro, em meio a madeira negra, ventiladores no teto e um cheiro azedo de cerveja misturado ao ar marinho. Havia um homem junto ao balcão, de costas para ela, virando despreocupadamente as páginas de um jornal. Ele não se moveu quando Carla entrou, o que lhe deu um instante para observá-lo em silêncio. Vestia um short caqui, tênis velhos e uma camiseta preta bem apertada. Ela observou os seus músculos rígidos, a pele bronzeada e os densos cabelos castanho-escuros. Cabelos longos num homem nunca haviam lhe chamado a atenção, mas Carla não pôde deixar de lhes notar a bonita textura: eram espessos e levemente ondulados. Afastando de si aquelas sensações levemente sensuais que não tinham nada a ver com um encontro de negócios, ela pigarreou. — Sr. Fleming — chamou, tentando dar um tom ríspido e autoritário à voz — vim para termos aquela conversa. Ele deu um giro sobre o banco e encarou-a, franzindo as sobrancelhas. O nariz imperfeito, que parecia ter sido quebrado mais de uma vez, dava um toque de severidade a seu rosto de beleza clássica. — Está um pouco adiantada, não está? — Não, estou certa de que marcamos o encontro para as dez horas. Costumo me lembrar muito bem dos meus compromissos. — É, e eu costumo me esquecer. — Ele se levantou e aproximou-se dela. Por um momento. Carla ficou perplexa. Nick Fleming era alto, mais de um metro e oitenta, em perfeita forma física. Era também bastante intimidador. Talvez fosse o tamanho, ou a largura do tórax, ou a intensidade de seus olhos escuros. Ou talvez fosse apenas a confiança com que agia que o Fazia parecer perigoso. — Quer uma xícara de café? Acabei de fazer — ofereceu ele. Sua voz era baixa e rouca. 4


— Não, obrigada. Já tomei café da manhã e… Bem, fico meio agitada se tomo mais de um cafezinho… — Carla parou no meio da frase. Estava tagarelando de um jeito que não soava nada profissional, nada adequado à nova e decidida dona do Sundowner. — Eu bebo umas três xícaras todas as manhãs e, mesmo assim, demoro muito para engrenar. — Nick sorriu para ela pela primeira vez, um sorriso que o fazia parecer mais jovem, suavizava as marcas de seu rosto e revelava covinhas em ambos os lados de sua ampla boca. Examinou-a dos pés à cabeça e então, para a surpresa de Carla, começou a andar em volta dela com um jeito arrogante. — Então, tem mesmo experiência? De que tipo? — Como? — Carla perguntou friamente, empertigando-se toda. — Experiência — repetiu ele — neste tipo de negócio. — Como ela não respondesse. Nick falou com impaciência: — Você sabe, bares, restaurantes… — Bem, nenhuma, na verdade. Mas não acho que isso tenha importância, considerando… — Tem, sim — ele a interrompeu. — Mas não é obrigatório, já que você tem boa aparência, bastante saúde e belas pernas, é claro. Nick voltou ao balcão, serviu-se de uma caneca de café e sentou-se num outro banco. Daquele ponto privilegiado, continuou a observá-la, cheio de expectativa. — Boa aparência? Belas pernas? Sr. Fleming, eu acho… Ele ignorou os protestos. — Gosto do que vejo. Belos tornozelos, a barriga da perna bem firme, mas preciso verificar seus joelhos e as coxas. Ficaria surpresa se soubesse quantas mulheres, mesmo na sua idade… uns vinte e cinco, suponho… tem coxas flácidas. — Nick Fleming ergueu as sobrancelhas. — Você deveria ter vindo de short. Carla não acreditava no que estava ouvindo, mas estava perplexa demais para falar. Nick continuou, em tom íntimo: — Imagino que quisesse causar uma boa impressão. O que conseguiu, de qualquer modo. Gosto de ruivas, e os fregueses também. Ruivas normalmente são expansivas, amigáveis. Têm um temperamento explosivo, mas isso acrescenta uma pitada de tempero à atmosfera preguiçosa daqui. Agora me conte: você tem um temperamento explosivo, querida? Carla abriu a boca para responder, procurando uma exclamação que fosse feminina o bastante para não embaraçá-la e, ao mesmo tempo, suficientemente enérgica para que ele soubesse que não toleraria mais 5


aqueles absurdos. Porém, uma vez mais Nick não esperou que ela encontrasse a palavra certa. — Agora, se quiser levantar a saia acima dos joelhos… Carla finalmente explodiu: — Levantar a saia acima dos joelhos? Não acredito! — Estava gritando, sua voz ecoava no bar vazio, mas ela não se importava. — Que tipo de maníaco é você? Deve ser louco! — Ei, senhorita, controle-se. É só um emprego de garçonete. Não precisa perder a cabeça. — Garçonete? — Avançou contra Nick com os punhos cerrados. Parou a alguns metros de distância, postando-se firmemente diante dele. — Não vim aqui procurando emprego de garçonete. Tenho um encontro com o senhor, se é que é mesmo o gerente deste estabelecimento. Meu nome é Carla Selwyn… — Santo Deus! — O rosto de Nick Fleming se iluminou de repente. — Carla! Não acredito… A menininha de Sean! — Ele riu, parecendo não ter se perturbado com a explosão dela. — Bem, parece que não é mais uma menininha. Sei tudo sobre você, Carla. Sean era como um pai para mim e gostava de falar sobre a sua menininha. — Bem, sr. Fleming, a “menininha”“ agora é a dona deste lugar. Como mencionei na minha carta marcando este encontro… — Carta? — Sim, escrevi há duas semanas, avisando que viria aqui às dez horas desta manhã para tratar de negócios com o senhor. Presumo que tenha lido a carta. Ele se inclinou sobre o balcão, sorvendo o café. — Não presuma nada, Carla, porque não li a sua carta. Recolho a minha correspondência uma vez por mês, por volta do dia trinta. Pago as contas, respondo o que for necessário e jogo fora o resto. Portanto, ainda não li a sua carta. — Verificou o calendário atrás do balcão. — Hoje é só vinte de abril. Carla ficou estupefata por um instante, com as mãos ainda cerradas. Nick continuou sua explanação: — Quando você entrou falando em encontro marcado, imaginei que estivesse se referindo à vaga de garçonete. Marquei entrevista para esta manhã, um pouco mais tarde. — Abriu um amplo sorriso. — Pela sua aparência, você se adequava perfeitamente ao cargo, então estou certo de que vai compreender o meu engano. 6


Carla não conseguia nem começar a responder. O que aquele homem tinha na cabeça? Ignorando-lhe a expressão estarrecida, ele prosseguiu: — O uniforme da garçonete é uma saia curta e um top frente única. Estilo marinheiro. Esse tipo de coisa atrai um monte de fregueses. — Oh, tenho certeza de que atrai. Mas agora sabe que não estou aqui pelo emprego. — O sarcasmo escorria de cada sílaba que ela pronunciava. Evitando deliberadamente chamá-lo pelo primeiro nome, acrescentou: — Na verdade, sr. Fleming, estou aqui para liberá-lo de um emprego. — Mesmo? — Ele ergueu as sobrancelhas, intrigado. — Exatamente. Ele ficou um instante a observá-la em silêncio. Carla, por sua vez, ficou satisfeita por sentir que havia recuperado o controle: agora tinha o tom de voz controlado, o pulso quase normal, as mãos relaxadas. Percebeu que o rubor sumira de suas faces e até conseguiu esboçar um sorriso. Declarou, com autoridade: — Como nova proprietária do Sundowner, estou aqui para informá-lo de que vou fechar o bar. — Gostou de ver a boca de Nick Fleming aberta, em surpresa. — Bem, vou dar duas semanas para o senhor e para o resto do pessoal. Assim, terão tempo suficiente para encontrar um outro emprego. Ao final das duas semanas, este lugar será fechado oficialmente. — Ora, vamos! Deve estar brincando. Não pode fechar o bar de Sean. Não é possível… — Ele não se apoiava mais no balcão; estava em pé, bem ereto. Carla, naquele instante, assumia uma pose mais confortável e confiante. — Sou a proprietária e resolvi fechar e vender o Sundowner. É um terreno excelente à beira-mar, não terei nenhuma dificuldade em vendê-lo a uma imobiliária. Aliás, aposto que há dezenas de corretores interessados. É só falar com um deles e voltar para Atlanta. Entretanto, achei que devia ao senhor e ao resto do pessoal a cortesia de uma explicação direta. Toda a sensação de autoridade que adquirira se evaporou quando viu o olhar ameaçador no rosto de Nick. Instintivamente, recuou um passo. — O seu pai entregou o coração e a alma a este bar — declarou ele com fúria. — Era a vida dele, Carla. Você está aqui há apenas dez minutos e já decidiu derrubá-lo para erguer um condomínio em seu lugar? — Não… não estou certa. Talvez não um condomínio. Talvez um hotel. — Ela lutou para recuperar a autoridade. — O certo é que sei que não tenho o 7


que fazer com esta espelunca. Já devia estar fechada há muito tempo. Ergueu o queixo, confiante, mas Nick contra-atacou em questão de segundos: — Então lamento que esteja com tanta pressa de se livrar das lembranças do seu pai. As palavras dele atingiram-na em cheio. — Já chega, sr. Fleming. Não tem o direito… — Tenho todo o direito — replicou ele. — E fico feliz que Sean não esteja aqui para ouvi-la. Aposto que não foi para que você se comportasse dessa forma que ele a educou. Carla sentiu a raiva crescer de novo. — Espere um pouco! Quem diabo pensa que é para falar sobre como meu pai devia ter-me educado? Aliás, esta é uma questão bastante discutível, porque ele nunca ficou em casa o tempo suficiente para me educar. Deixou isso para minha mãe e ela fez um trabalho muito bom. Quanto a meu pai, não o vi por quase quinze anos… — Sentiu os olhos arderem e teve medo de que Nick notasse a sua dor. Mas logo se recobrou: — O senhor não tem nada a ver com isso, de qualquer modo. Então, não se meta nos meus negócios. — Adoraria atender ao seu pedido. — Ótimo — replicou ela com frieza. — Mas acho que não dá para não me meter. — Seus olhos brilhavam de raiva. — Envolver-me numa briga por herança não é o meu esporte favorito, mas creio que não vou ter outra escolha. — Ah, sim! Tem, sim. Pode arrumar as malas e cair fora. Agora. O seu prazo de duas semanas foi cancelado, sr. Fleming. — Ela andou em sua direção, sentindo-o sob controle. — Antes de conhecê-lo eu estava nervosa, até me senti um pouco culpada por fechar o Sundowner, mas o senhor tornou a minha missão mais simples. — Apontou em direção à porta, concluindo: — Pode sair. Nick balançou a cabeça. — Desculpe-me por estragar a sua ceninha dramática, mas receio que não vá conseguir o que quer. Não vou embora. Está faltando uma peça no seu quebra-cabeças. Carla franziu o cenho, sem saber a que ele se referia. — A carta do testamenteiro era muito clara — disse ela, afinal. — Então não falava de tudo. — Talvez não, mas vi uma cópia do testamento. Todos os bens de meu pai me foram legados. Isso inclui o Sundowner e o terreno onde o 8


estabelecimento está construído. O sorriso voltou ao rosto de Nick e Carla não gostou disso. — Tem certeza de que não quer mais café? Oh, esqueci, deixa você agitada. Deus sabe que não quero deixá-la agitada. Isso provocaria mais uma cena. Talvez um drinque? — Não costumo tomar bebidas alcoólicas em plena manhã… — E que manhã! Se há uma manhã que merece um drinque, com certeza é esta. — Ele se reclinou sobre o balcão. — Não quero drinque nenhum — Carla foi taxativa. — O que quero é saber sobre essa tal peça que falta no quebra-cabeças, se é que ela existe mesmo. Na minha opinião, você está só tentando ganhar tempo. Isso o deixou fora de si. — Tudo bem, senhorita. Vamos esquecer os jogos, as ameaças e as cenas. Isto é sério. Alguns anos atrás, seu pai e eu fizemos um acordo: ele me vendeu metade do Sundowner. — Não acredito! — O rosto de Carla ficou vermelho. — Está mentindo! Ao ouvir isso, Nick avançou e agarrou-a pelos ombros. — Entenda isto de uma vez por todas: metade deste bar pertence a mim. Tenho os papéis. Tudo foi solenemente legalizado. Não vou vender o Sundowner a você de forma nenhuma, muito menos permitir que as imobiliárias venham aqui a fim de derrubá-lo. Sendo assim, sugiro que dê o fora e volte para o lugar de onde veio. Seus olhos escuros e severos a imobilizavam com a mesma força das mãos que a agarravam. Carla tentou se livrar, mas ele apertou-lhe os ombros ainda mais. — Seu… seu miserável! — falou ela, com os dentes cerrados. Nick soltou-a, num gesto que indicava seu desejo em afastar de si tudo o que tivesse a ver com aquela mulher intolerável. Então, virou-se e fez menção de sair dali. Carla o seguiu, passou à frente dele, encarou-o furiosa e gritou: — Você está blefando! Ele apanhou o telefone atrás do balcão e folheou uma pilha de cartões até achar o que queria. — Certo, então pague para ver. Fale com meu advogado e descubra por si mesma se é um blefe. — Não confio nem um pouco no seu advogado — retrucou ela, tentando controlar os tremores. — Então falarei eu. — Nick pegou o fone e pôs-se a discar. 9


A raiva de Carla a essa altura era tão intensa que se tivesse algum instrumento contundente ao alcance das mãos, não teria hesitado em atirá-lo contra Nick. Como não houvesse ao menos um vaso, aproximou-se para não perder nem uma palavra do que ele dizia ao telefone. — Gostaria de falar com Tom Melendez, por favor. — Ele virou-se enquanto esperava, e seus olhos encontraram os de Carla. — Alô. Tommy? É Nick Fleming. A filha de Sean está aqui o… Não. Tommy, ela não se parece em nada com Sean, posso lhe garantir. Mas é uma garota interessante… a seu modo. Além de morder o lábio discretamente. Carla não demonstrou nenhuma reação. Ele prosseguiu: — Escute, Tommy, precisamos falar com você sobre aqueles papéis. É, aqueles que lhe entreguei, para você ver depois que Sean morreu. Parece que ela é a única herdeira de Sean, mas não sabe nada sobre o bar. Não, aparentemente não sabe da minha sociedade com o pai dela. — Olhou para Carla e perguntou: — Três horas está bom? — Para mim, tudo bem — falou ela, mal conseguindo controlar a raiva. Só o que queria era esbofetear o rosto sorridente de Nick. Ele recolocou o fone no gancho e dirigiu-se a ela laconicamente: — Três horas no escritório de Melendez, no edifício Palmetto, na rua Um, em Cypress Key. Sem dúvida, você saberá localizar o endereço. Carla tentou replicar no mesmo tom: — Estou hospedada no hotel Palms, na mesma rua. Dou um jeito — Não conseguia evitar a terrível sensação de que Nick Fleming não estava mentindo nem blefando. De algum modo, sabia que não se livraria dele. O sonho se transformava em pesadelo. Respirou fundo, ajeitou o cabelo e disse, tentando demonstrar a maior firmeza possível. — Então nos veremos às três horas. Vou telefonar ao banco antes, é claro, e também verificar os antecedentes desse sr. Melendez. A voz de Nick, baixa e risonha, seguiu Carla enquanto ela se retirava: — Faça isso, Carla. Ah, a propósito: suas pernas são mesmo uma beleza. Ela saiu batendo a porta atrás de si o mais forte que pôde.

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CAPÍTULO II

Carla e Nick saíram juntos do edifício Palmetto. Sem se falarem. O sol era tórrido e a leve brisa que agitava as folhas das palmeiras não chegava a refrescar o ar. Em silêncio, andaram até o estacionamento. Chegando a seu carro, ela não ficou surpresa ao ver Nick parar diante de um jipe marrom. Combinava com ele. Tinha as cicatrizes de guerra de um veículo que trabalhara duro e por muito tempo, mas parecia limpo, robusto e valente. De repente. Carla pegou-se admirando-o. Quando voltou o olhar para Nick, a expressão de simpatia desapareceu de imediato do seu rosto; não queria deixá-lo com a impressão de que alguma coisa ali a agradava. Nem o jipe, nem ele próprio. Nick ainda estava com a camiseta preta, mas trocara o short por um par de calças caqui limpas e bem passadas. Penteara o cabelo comportadamente para trás e escondia os olhos com um par de óculos escuros. Carla desviou os olhos e segurou o trinco da porta de seu carro. — E aí? — perguntou ele. — Aí o quê? Vou voltar ao hotel. — Sem dizer nada? — Tudo bem. Suponho que queira que eu diga que você não estava mentindo, que meu pai realmente lhe vendeu metade do bar. — Não quero que diga isso, se não acreditar. — É óbvio que acredito. Falei com o banco antes deste nosso encontro e soube que o sr. Melendez tem ótimas referências. Os documentos que me mostrou estão todos em ordem. Isso o satisfaz? — Se isso a satisfaz, e se quiser dizer também que vai voltar para Atlanta e deixar a direção do Sundowner comigo… — Espere um instante! — Não se preocupe, vai sair tudo certinho. Esta é a minha proposta: todos os meses eu lhe mando um relatório dos lucros e um cheque. O cheque conterá a sua parte nos lucros e a maior parte da minha. Um dia terei comprado a sua parte. Compraria agora mesmo se tivesse o dinheiro, mas em oito ou dez anos, até menos, se puder, pagarei tudo. Você fica feliz e eu também. E o melhor de tudo: nunca mais nos veremos. Nick apoiou-se no jipe e esperou. A resposta veio imediatamente: 11


— Esse é um jeito de resolver as coisas. O seu jeito. Mas como deve ter notado, sr. Fleming, não gosto do seu jeito. Além disso, há uma peça faltando no seu quebra-cabeças. — Ela adorou devolver-lhe a frase de efeito. — Não estou nem um pouco interessada em receber um pouquinho de dinheiro de vez em quando e, pelo pouco que conheço do senhor, tenho certeza de que seria mesmo muito pouquinho e bem de vez em quando. Estou interessada em muito dinheiro e agora. Não tenho intenção de esperar oito ou dez anos até que compre a sua parte. — Carla puxou os óculos escuros para a testa e fitou-o apertando os olhos devido ao brilho do sol. — Essa é a minha proposta. Entramos em contado com um corretor, vendemos o Sundowner e dividimos os ganhos. O senhor segue o seu caminho, e eu sigo o meu. O final permanece o mesmo: nunca mais nos veremos. Até lhe dou cinco por cento a mais de brinde. Ele sacudiu a cabeça. — Nada feito. Não vou vender e ponto final. Sendo assim, parece que chegamos a um impasse. O que eu gostaria mesmo de saber é por que está com tanta pressa de vender o bar. Precisa de dinheiro ou coisa parecida? — Não é da sua conta, mas preciso da minha parte do dinheiro na venda do Sundowner para um projeto especial que exige capital. — Que projeto especial? — insistiu ele. — Como falei, não e da sua conta. — OK… Tudo bem, então. Ela abriu a porta do carro, disposta a encerrar a conversa. Mas logo mudou de idéia. Contar o plano a Nick não ia lhe fazer nenhum mal. Talvez, ele até se tornasse mais compreensivo. — Na verdade, sou formada em Artes e… Ele a interrompeu: — Ah, não, é pintora! Uma dessas artistas. Eu devia ter adivinhado… Carla captou o desdém em sua voz e censurou-se por ter pensado que ele realmente pudesse entender a sua situação. — Não, sr. Fleming, não sou pintora, mas me formei em História da Arte na faculdade. Trabalho como diretora-assistente numa galeria, há dois anos. Uma ocupação que não me satisfaz em termos criativos. — Não acrescentou que o salário era baixo e que ela e o proprietário divergiam freqüente e veementemente sobre todos os aspectos. — Então me deixe adivinhar. Quer abrir uma galeria sua, não é? Quer ser a dona, fazer a coisa a seu modo. — É mais inteligente do que parece, sr. Fleming… o que, é claro, não 12


quer dizer muito. Quero abrir minha própria galeria, sim. Tenho contatos, experiência e bom gosto. — Entendo. Suponho que planeje promover alguns artistas jovens, bonitos e famintos que, em troca, demonstrariam a sua gratidão… Carla não se preocupou em mostrar-se ofendida diante da observação de mau gosto. — Se eu promover artistas, será por causa do talento deles. Mas o senhor não tem nada com isso. Tudo o que preciso do senhor é que concorde em vender o Sundowner. — Por que não pede dinheiro emprestado ao seu padrasto? — Meu padrasto não tem o hábito de emprestar dinheiro. Além disso, não preciso pedir emprestado. Tenho a metade do Sundowner. — Iria mesmo vendê-lo e jogar fora a sua parte numa aventura dessas? — perguntou ele, fazendo cara de repugnância. — Deve haver dúzias de galerias em Atlanta. — Centenas, na verdade. — Todas batalhando pelas poucas pessoas que gostam de arte. — É óbvio que não entende do assunto, e não vou perder tempo lhe ensinando. Afinal — acrescentou, zombeteira — tenho a vida toda, como seria necessário. A questão é: metade do Sundowner me pertence e quando o vendermos, posso usar o dinheiro como bem entender. Não preciso da sua permissão, preciso? Ficar em pé no estacionamento sob o sol escaldante estava começando a perturbar Carla. Mas Nick não parecia disposto a desistir da batalha. — Não entendeu ainda, não é, Carla? — Havia um toque profundo de raiva em sua voz. — O Sundowner não é só um prédio. É um lar. Para mim e para muitas outras pessoas. — Você não nasceu lá. Provavelmente, foi dar lá por acaso. Pode ir dar por acaso em outro lugar. Com todo o seu talento — acrescentou com sarcasmo — pode encontrar outro bar para dirigir. Ele não respondeu, mas sua expressão ficou ainda mais séria. Isso não deteve Carla: — Estou certa, não? Simplesmente surgiu do nada e deu um jeito de ir se insinuando e ganhando a afeição de meu pai. Ele hesitou um pouco, mas depois respondeu diretamente: — É verdade, cheguei por acaso. Estava desempregado, Sean me contratou e gostou de mim. Aos poucos, fui assumindo cada vez mais responsabilidades. Ele precisava de um sócio que o ajudasse e eu estava ali. 13


Se acha que há algo de desonesto nisso, está errada. Durante sete anos investi todo o meu salário no Sundowner. Trabalhei duro pela minha parte do bar, Carla. — E eu, não. E isso? — retrucou ela, indagando-se por que tudo o que ele dizia a colocava na defensiva. — O Sundowner era mais do que um modo de vida para Sean: era tudo o que ele possuía. E eu nunca o deixei na mão. — Como eu deixei? — É você quem está dizendo isso, não eu. Mas o fato de nem ter aparecido no funeral… Ela ficou furiosa. — Já pensou em perguntar se tive algum motivo? Pois vou lhe falar: eu não estava no país na época. Só soube da morte do meu pai uma semana depois. Se não fosse isso, eu teria vindo. — Teria mesmo? — Isto é ridículo! Você não tem o direito de me interrogar! — Não? — Não tenho de ficar aqui, neste calor, ouvindo as suas perguntas cheias de insinuações, às quais não tenho nenhuma intenção de responder. Vou voltar ao hotel para tomar um banho e pensar na situação. Sugiro que faça o mesmo. Nick deu um sorriso malicioso. — Mesmo? Quer que vá ao seu hotel para tomar um banho? Ora, essa é a melhor idéia que ouvi hoje. Com todo este calor, cair numa banheira com você seria maravilhoso. Ela resolveu não esbofeteá-lo. Não em público. Não no estacionamento do escritório do advogado dele. Em vez disso, colocou os óculos escuros e entrou no carro. Com toda a frieza que conseguiu aparentar, declarou: — Vou para o hotel sozinha, como sabe muito bem. Quando chegar lá. vou pensar numa solução para esta confusão toda. E é isto o que estou sugerindo que faça também. — Vendo o sorriso dele aumentar, continuou: — Vejo-o amanhã. Vamos tentar discutir as coisas com calma e bom senso, e trocar idéias de um jeito civilizado. Agora estava bom. Ela estava começando a soar profissional e eficiente outra vez. Com um ar de quem não se impressionara. Nick deu de ombros. — Tudo bem. Faça como quiser, Carla, mas há apenas uma solução: voltar a Atlanta e deixar-nos em paz, a mim e ao bar. 14


Carla deu partida no carro e arrancou bruscamente. Nick teve de sair rápido do caminho para não ser atropelado. — Errei — ela murmurou. — Maldição. Quando chegou ao seu quarto no hotel Palms. Carla foi direto ao ar condicionado e ligou-o no máximo. Então, saiu para pegar um balde de gelo e um refrigerante. De volta ao quarto, serviu a bebida num copo cheio de gelo e tomou um generoso gole. Estava na hora daquele banho relaxante. Encheu a banheira de água e tirou o vestido de linho azul-claro, deixando-o amontoado no chão. Depois de tirar as roupas intimas e as meias, depositou o refrigerante ao lado da banheira e deslizou para dentro da água fresquinha. Após alguns instantes de total relaxamento, concentrou a mente no assunto em questão. Tinha de pensar num jeito de tudo dar certo, num jeito de convencer Nick a vender o Sundowner. Falara a verdade a ele sobre o que planejava fazer com a sua parte do dinheiro. O que não lhe dissera era que já saíra do antigo emprego. Há meses vinha querendo demitir-se. Depois de saber da herança, finalmente tivera a coragem de dizer ao patrão o que pensava dele: que comprava trabalhos de segunda classe e os vendia a preços exorbitantes, que bajulava fregueses que compravam quadros apenas para decorar suas casas, que nunca tentava educar os clientes e que ignorava os trabalhos realmente fantásticos que estavam sendo produzidos em Atlanta. O nome Galeria Moderna era uma piada. Galeria Antiga seria mais adequado, ela sempre dissera aos amigos. O que lhes diria agora? Suas idéias sobre a galeria e os planos de vencer por conta própria, nada disso importava. Estava desempregada, sem nenhuma possibilidade de conseguir uma carta de recomendação e todos os seus planos haviam sido destruídos por um sujeito grosseiro, cheio de músculos, que chamava um bar em ruínas de lar. Com um suspiro. Carla afundou o corpo na água fresca. Precisava do dinheiro da venda do Sundowner. Era a sua única oportunidade. Sabia muito bem disso, porque já havia esgotado todas as outras possibilidades. Primeiro, fora falar com o padrasto, mas James Selwyn III tinha idéias inflexíveis a respeito de emprestar dinheiro: nunca emprestava, nem mesmo para a enteada. Muito menos para que ela o investisse um plano tão duvidoso como abrir outra galeria de arte numa cidade onde sobravam galerias desse tipo. Ele sempre fora generoso com Carla, pagara todas as suas despesas 15


quando ela era pequena, desde lições de balé até o dentista, tratando-a como verdadeira filha. Mandara-a para a melhor escola particular, pagara a faculdade e um ano de estudos no exterior, na Universidade de Florença. Custeava até mesmo as suas férias: ela estava na Suíça, esquiando, com todas as despesas a cargo de James Selwyn, quando seu pai morreu. Não era difícil entender o padrasto: tratava-se apenas de um homem que gostava de manter o controle sobre tudo e um homem assim não faz empréstimos a ninguém. Por isso, recusara-lhe o dinheiro. E o mesmo havia feito o banco, ao qual ela solicitara auxílio financeiro. Pouco tempo depois. Carla herdara o Sundowner. Era como se suas preces tivessem sido atendidas. Ela bebeu o resto da sua soda e saiu devagar da banheira, enrolandose na pequena toalha do hotel. Parecia-lhe que agora tinha só duas escolhas. A primeira era inaceitável. Simplesmente não podia concordar em voltar para Atlanta e ficar sentada, esperando uma porcentagem mensal dos lucros do Sundowner durante os próximos dez anos… ou mais. Além disso, os reduzidos lucros provavelmente seriam corroídos pelas taxas pagas a advogados e contadores, a fim de que mantivessem vigilância sobre Nick Fleming. Restava a outra possibilidade. Carla tirou a toalha e caminhou, nua, até o guarda-roupas. Trouxera peças só para uns poucos dias, o tempo que imaginara levar para entregar o Sundowner a um corretor imobiliário e cuidar de eventuais imprevistos. Bom, agora havia um problema só… e dos bem grandes. Sua única alternativa era ficar em Cypress Key. Sim, era isso o que ia fazer. Não havia como saber o que aconteceria. Talvez apenas a sua presença já fosse suficiente para fazer com que Nick perdesse a paciência. Talvez ele pegasse um barco, saísse navegando pelo Golfo do México e não voltasse nunca mais. Talvez… Não adiantava nada ficar especulando, ia ficar e ponto final. Na manhã seguinte, Carla chegou ao Sundowner às dez horas em ponto. Nick não estava em parte alguma. Não era de admirar. Sem dúvida, ele não queria repetir a dose do dia anterior. Ela atravessou o bar, saiu ao terraço e então o viu caminhando numa praia de areias brancas, com a forma de uma lua crescente, defronte ao Sundowner. Era um belo dia e Nick chutava as areias como um menino, aparentemente sem ligar para nada no mundo. Um cachorro amarelado, de aspecto estranho, seguia atrás dele. 16


— Nick! — ela chamou. Ele atravessou a praia e subiu as escadas até o terraço. Usava uma camiseta branca, short e estava descalço. Com um sorriso maroto, foi logo perguntando: — Resolveu esquecer as formalidades? — Como assim? — Hoje sou apenas “Nick”… Bem, estamos progredindo. Ele abriu a porta e os dois entraram no Sundowner, sentando-se junto ao balcão. O cachorro amarelo acomodou-se aos pés dele. Carla lançou os olhos pelo bar. Estava todo limpo, sem uma mancha sequer os copos reluziam, as garrafas de bebida estavam arrumadas em fileiras e a pia de aço fora meticulosamente lavada. Ela passou os dedos pelo balcão, notando que havia sido lustrado. Nick, que observara a inspeção, perguntou: — Surpresa? Orgulho-me de cuidar bem das minhas coisas, Carla. — É bom saber — retrucou ela, fingindo não dar importância. — Precisamos conversar, Nick. Ele serviu-se de uma xícara ele café, sem oferecer-lhe uma dessa vez. — Se quer dizer que precisamos brigar, acho que já brigamos bastante. — Também acho. — Então estamos de acordo. Com certeza, durante o seu banho frio no hotel ontem, você chegou à conclusão acertada: que deve aceitar a minha oferta. Ótimo! Tommy pode redigir os papéis. — Estou certa de que pode, mas seria perda de tempo, porque vou ficar. A xícara que Nick levava à boca ficou no meio do caminho, sem ao menos tocar-lhe os lábios. — Você vai o quê? — Vou ficar. Este lugar pertencia ao meu pai e decidi manter a minha metade. Não fique tão espantado, Nick: afinal de contas, você me censurou o tempo todo por querer vendê-lo. Agora, parece que nós dois vamos trabalhar juntos. O cachorro se levantou, lambeu a mão de Nick e começou a abanar a cauda. — Quieto, Top. O cachorro obedeceu. Ou quase. Dessa vez foi sentar-se aos pés de Carla. — Do que é que você está falando? — perguntou Nick. 17


— Decidi ficar aqui e dirigir a minha parte do Sundowner. Assim, conhecerei a fundo os nossos negócios. — Ela jogou aquele “nossos” sem muita ênfase, mas ele empalideceu. — Gostaria de ver os livros contábeis, é claro. — Como Nick não respondesse, encarou-o e perguntou, zombeteira: — Será que o café o está deixando um pouco tenso, Nick? — Você está louca! — ele exclamou, afinal. — Não pode estar talando sério. — Pode acreditar, Nick. É isso mesmo. Possuo a metade deste lugar e tenho todo o direito de ficar aqui. Não precisa pegar o telefone — avisou. — Já falei com Tom Melendez e ele acha que é uma solução perfeita. — Não! Nick bateu com a xícara no balcão, espalhando café na superfície lustrosa e fazendo com que Top se aninhasse ainda mais junto a Carla. Ela, então, pôs-se a afagar o cachorro. Não era justo que o pobre animal sofresse com a falta de educação de seu dono. — Droga, não! Não vou permitir. Diga que não está falando serio. Diga que é uma piada de mau gosto. Mas enquanto falava. Nick sentia que não era piada. Carla tivera tempo para pensar e tecer seu plano: assumir metade do Sundowner, intrometer-se na vida dele e deixá-lo maluco. Seus olhos se estreitaram ao encontrar os dela. Sim, talvez fosse isso mesmo… Aquela mulher achava que poderia enlouquecê-lo e tirá-lo da administração do bar. Pensativo, pegou um pano molhado e limpou o balcão. Então se serviu de outra xícara de café, respirando fundo. Carla Selwyn o estava tirando do sério, como fizera no dia anterior. E ele não gostava nem um pouco disso. Precisava manter a calma e o controle. — Fico bastante surpreso com a sua vontade de ficar por aqui, Carla. — Sorriu de modo simpático. — Achei que não gostava muito de mim. — Ah, não gosto mesmo, mas estou fazendo o que tem de ser feito. Com o tempo, você entenderá que é a decisão certa. Para isso ele não tinha resposta. Então, perguntou: — Não tem emprego, casa, nada em Atlanta que a faça querer voltar para lá? — Nada, nada mesmo. Larguei o emprego quando soube da herança e decidi sublocar meu apartamento pelo tempo em que ficar aqui, dure o quanto durar. — Carla, pelo amor de Deus… — Ele não conseguia acreditar que aquela mulher ia mesmo invadir sua vida. Era absurdo demais. 18


— Acha que estou brincando, não é? Acha que porque tenho um padrasto rico, não preciso deste lugar. — Ela ergueu os braços, abarcando todo o espaço do bar, o que fez Top se levantar de novo. — Mas, apesar do que deve ter ouvido de Sean a respeito do meu padrasto, ele não me deu o mundo numa bandeja de prata. Nick ouvira muitas histórias sobre o tal padrasto. E também sobre como a esposa de Sean o deixara, ao saber que o marido tinha investido toda a sua poupança no Sundowner. Ela levara consigo a filha, ainda um bebê, divorciara-se e casara-se novamente, após um ano, com um homem que era tudo o que Sean nunca fora: sofisticado e bem-sucedido. Aquele tinha sido um episódio repleto de mágoas. Nick soubera, e Sean sempre culpara James Selwyn por não lhe permitir que tivesse contato com a filha. Carla provavelmente contaria uma versão muito diferente. Mas nada daquilo importava agora. O que contava no momento era que, por algum estranho golpe do destino, a filha de Sean planejava ficar em Cypress Key e dirigir o Sundowner. — Isso não faz sentido, Carla — declarou, enfim. — A noite passada você só queria vender o bar. Agora, quer que eu acredite que vai me ajudar a dirigi-lo. Não tem cabimento. — Você não me deixou outra escolha, Nick. Não posso comprar a sua parte, você não quer vendê-la e eu me recuso a ir embora. Oh, eu podia arranjar um advogado, ir ao tribunal, entrar com petições e abrir processos. Assim, talvez conseguisse afastá-lo daqui. Mas, francamente, não tenho recursos. Nick ficou em silêncio. Não via jeito de convencê-la a mudar de idéia. Só sabia que não queria vê-la revirando tudo no Sundowner. — Escute, Carla: Sean e eu construímos algo de bom aqui. Trabalhávamos de uma forma… — Oh, não se preocupe. Por enquanto, só quero observar. Não estou planejando nenhuma mudança. Pelo menos, não de imediato. Nick não se deixou enganar. Se não lutasse com unhas e dentes, ela provavelmente viraria o bar de cabeça para baixo. — Está certo. — Ele parecia cansado. — Então vai ficar. Mas onde vai ficar? Tem algum lugar onde morar? Carla sacudiu a cabeça, aparentando desânimo. Ele, então, lançou a isca: — Existem alguns bons alojamentos junto à praia… — Caros demais — respondeu ela, em tom enfático. — Lembre-se, até 19


sublocar meu apartamento em Atlanta, ainda estou pagando o aluguel. Mas meu pai morava num apartamento aqui, no bar, não? — Sim, lá em cima. — Então, é aqui que vou morar. — Essa não. Eu estou morando lá e não planejo me mudar. Nick odiava ter que admitir que não teria muito controle sobre Carla, se ela se tornasse mesmo sua sócia. Mas uma coisa era certa: aquela mulher nunca o tiraria de seu quarto, de seu lar. Ela hesitou um instante. — Pensei que… Bem, já que sou filha de Sean… — Não. De jeito nenhum. Em noventa por cento dos casos, a lei defende quem tem a posse de determinada propriedade. E eu não saio de lá. — Então, ergueu a sobrancelha com um ar provocante e acrescentou: — É claro que você pode morar comigo, se quiser. Minha cama é grande, larga e tem uma bela vista do Golfo. — Nem sonhando. Seus olhos se encontraram e ele sentiu um terrível choque. Já tinha observado Carla antes, dos pés a cabeça, meticulosamente: e a achara muito atraente, apesar de seu comportamento. Mas nunca havia olhado dentro de seus olhos. Agora olhava. Eram os mesmos olhos de Sean, azuis e um tanto travessos. Jamais soubera com certeza o que havia por trás dos olhos azuis de Sean… E o mesmo acontecia, naquele instante, com a filha dele. — Em último caso, dormirei no carro. — Carla deu de ombros. Nick suspirou. — Acho que terei que lhe oferecer minha velha casa, perto do rio. É pequena, mas quebra o galho. E vou deixá-la ficar lá de graça. Carla sorriu para ele. Seu primeiro sorriso verdadeiro, não aquele arreganhar de dentes forçado que lhe dirigira no dia anterior, mas um sorriso que iluminou todo o seu rosto. Nick viu então, quão atraente ela era. E segurou-se para não ser fisgado pelo contagiante sorriso. — Obrigada, Nick. Fico muito satisfeita. E agora, qual é próximo item na agenda? — Bom, já conheceu um dos componentes do pessoal, como você nos chama. Acho que vou apresentá-la aos outros. Ela deslizou para fora do banco e Nick voltou a examiná-la com minuciosa atenção. O que via agora era fantástico. Carla estava de short, mas não daqueles curtinhos que as garotas usavam no Sundowner: o dela era de linho branco e 20


ia até a metade das coxas. O pouco que ele podia vislumbrar não lhe satisfazia a curiosidade, mas era mais do que o suficiente para seduzir. E, além da aparência sensual, havia nela algo mais que parecia irradiar de dentro do seu ser… algo jovem, vibrante, vivo. Carla se virou um pouco e ele notou o modo como o short aderia ao traseiro dela. A conclusão foi uma só, rápida e indiscutível: aquela mulher era demais, não havia a menor dúvida. Ela percebeu-lhe o olhar e zombou: — Passei na inspeção? Boa o bastante para servir os fregueses do Sundowner? Nick se conteve para não dar um assobio. Em vez disso, tentou ser galante. Se tinha de trabalhar com Carla, ao menos até descobrir um meio de se ver livre dela, era melhor tentar tornar a convivência agradável. — Passou na inspeção com a nota máxima. Na verdade, é boa o suficiente para dirigir o bar. Venha — convidou — O pessoal da cozinha deve estar trabalhando. Vamos até lá.

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CAPÍTULO III

Logo atrás de Nick. Carla passou pela porta de vaivém e atravessou o salão de refeições em direção à cozinha. O que viu pelo caminho não foi muito encorajador: manchas de óleo nas toalhas xadrezinhas que cobriam as mesas, as cadeiras desemparceiradas, as flores de plástico simplesmente ridículas num mundo repleto de vegetação natural. Embora o salão estivesse limpo, a decoração era tão fora de moda que parecia pertencer aos anos trinta. Mas havia um ponto positivo naquele local de depauperada arrumação: a vista do Golfo, que se filtrava através das janelas que iam do chão ao teto. Era um cenário espetacular, que estava ali para o restante da eternidade. Sim, o Sundowner tinha possibilidades. Nick esperava junto à porta da cozinha, enquanto ela atravessava o salão devagarinho. Carla não se importava com os olhares de reprovação que recebia: queria conhecer e analisar os mínimos detalhes do estabelecimento comercial que um dia fora de seu pai. — Então, qual é o veredicto? — perguntou Nick, impaciente. — Reservo meus comentários até ter visto tudo e conversado com todos. — E depois? — Ele estava parado à porta, mas não fez menção de abrila. — Depende. — Mal posso esperar. — Nick finalmente abriu a porta. — Agora por que não entra e fala com Arthur? Creio que ficará impressionada com ele. Curiosa. Carla entrou na cozinha atrás do sócio. Toda equipada com aparelhos de aço inoxidável, a peça impressionoua por ser moderna e prática. Uma boa surpresa, sem dúvida. O cozinheiro-chefe estava em pé num canto. Era um homem de meiaidade, altíssimo, magro, de pele escura. Havia dois aspectos em sua aparência que chamavam a atenção. Estava todo vestido de branco: calças brancas de algodão, camiseta branca, avental branco impecável. E era totalmente careca. — Apresento-lhe nosso chefe, Arthur Lapierre. Arthur, esta é Carla, filha de Sean. Arthur não largou a faca afiada que empunhava, mas olhou para Carla 22


lá de cima e falou, no ritmo cadenciado do Caribe: — Ora, ora, a menininha de Sean. Ela meneou a cabeça, ainda sem conseguir responder. Estava um pouco intimidada com o homem. — Sinto muito pelo seu pai. Era um grande sujeito. — Obrigada, é gentileza sua — respondeu Carla. — Prazer em conhecê-lo… Arthur. Ficaria mais à vontade se o chamasse de sr. Lapierre, mas estava decidida a mostrar autoridade… Se bem que, na presença daquele homem estranho, a última coisa que conseguisse sentir fosse autoridade. Nick, com uma displicência irritante, foi até o refrigerador, abriu-o e deu uma espiada lá dentro. — O camarão parece bom, Art. — É, está bom mesmo — foi a réplica lacônica de Arthur enquanto pegava um linguado, destripava-o e com mais dois movimentos rápidos, tirava a espinha e o jogava sobre outros peixes ao lado da pia. Carla observou, hipnotizada. — Bem, agora que as apresentações já foram feitas… — falou Nick, indicando a porta a Carla. — Foi mesmo um grande prazer — disse Arthur, despedindo-se e voltando ao trabalho. Nick fez menção de sair, mas Carla lhe impediu o movimento: — Espere um minuto. Não devia contar a Arthur o que está acontecendo? — Mais tarde — respondeu Nick, tentando, sem sucesso, levá-la embora. — Acho que esta é uma boa ocasião. — Ela não via motivo para não dar as notícias ao cozinheiro-chefe naquele mesmo instante. Afinal, não lhe parecia que Arthur fosse ser menos amedrontador dali a uma hora. Ou dali a uma semana. — Se fosse você, eu não insistiria, Carla — avisou Nick. Arthur pegou outro peixe, descamou-o rapidamente e então ficou parado, esperando que os dois chegassem a um acordo. A cena deixou Carla um pouco perturbada. O que fazia ali, discutindo com Nick diante do olhar do cozinheiro? Não era assim que havia planejado as coisas. — Como sua sócia, acho que tenho o direito de insistir. — Tudo bem. Você pediu. — Nick dirigiu-se a Arthur: — Carla me 23


trouxe notícias muito interessantes esta manhã. O cozinheiro largou a faca e fez-se todo ouvidos. Ela prendeu a respiração, enquanto Nick detonava a bomba: — Carla Selwyn vai ficar em Cypress Key… e trabalhar conosco aqui, no restaurante. — O que está querendo dizer, Nick? — perguntou Arthur. — Ela é dona de metade do Sundowner e vai assumir alguns encargos. — Não na minha cozinha! Isso é que não! — declarou Arthur, com os profundos olhos castanhos dardejando. Atônita. Carla permaneceu em silencio. Enquanto Nick cruzava os braços sobre o peito. Arthur continuou: — Eu dirijo a cozinha. Sempre dirigi e sempre vou dirigir. Era assim que Sean queria. Eu cuido das coisas aqui dentro: você cuida lá fora. — Sei disso — concordou Nick. — Mas, agora que Carla chegou, nós dois teremos de ceder um pouco. — Você pode ceder um pouco, ou muito. Eu, não. Não na minha cozinha. — Então, ele voltou ao trabalho com uma determinação obstinada. Carla respirou fundo. O cozinheiro havia deixado bem claro que não tinha intenções de ouvir suas argumentações, mas ela resolveu arriscar — Ainda não estou pronta para fazer mudanças, Arthur. Mas, se pudesse dar uma olhadinha no cardápio… Nick suspirou estrepitosamente, enquanto Arthur anunciava: — Os cardápios ficam nas mesas, lá fora. Pode olhar quanto quiser, mas não bagunce minha cozinha. Tenho todo o auxílio de que preciso por aqui: dois garotos que tiram os pratos e me ajudam a manter a cozinha limpa. Além das garçonetes, que servem a comida. A minha comida. — Bom, não penso em interferir em relação aos seus ajudantes — Carla tentou mais uma vez — mas isso não quer dizer que não eu possa fornecer sugestões. Acrescentar algo novo… Arthur largou a faca e cruzou os longos braços. Por um momento permaneceu assim, fitando Carla, com o cenho franzido. Então falou: — Fui chefe em Miami e fui chefe em Nova Orleans. Estudei todos os tipos de cozinha. — Estou certa de que… Nick encostou-se na porta e ficou assistindo à cena. Era evidente que não queria se envolver mais naquele “ajuste de detalhes”. Arthur prosseguiu, sem pausas: — Conheço a nouvelle cuisine francesa, as comidas crioulas e os pratos 24


asiáticos. Agora, vou lhe dizer de uma vez por todas que não vai ver nenhuma massa cozida no vapor com queijo gorgonzola na minha cozinha. — Não, estou certa… — Também não estou interessado em salmão defumado sobre folhas de alface, coberto com um monte de maionese apimentada. — Entendo… — Torta de caranguejo com páprica e molho de limão não faz o meu estilo. — Nem o meu — admitiu Carla, perguntando-se até quando ele iria recitar aquela ladainha. — Aqui fritamos peixe e frango. Não servimos kiwi. — Arthur fez uma pausa, mas antes que Carla pudesse tecer algum comentário, acrescentou: — E conheço a cozinha grega, também. Então, não pense em me sugerir para enrolar tudo com folhas. Não na minha cozinha. Dessa vez, ao ver que Nick estendia a mão para pegar a sua, ela não fez objeções. — Ah, Carla… Por que não vem comigo até o salão um instante? — sugeriu ele. — Preciso falar com você. Ela concordou de imediato. E, ao se virarem para sair, ambos ouviram a voz de Arthur às suas costas: — E também não vai ter nenhuma truta defumada com guarnição de cebolinha por aqui. De volta ao salão, com a porta da cozinha fechada, Nick falou: — Acho que agora você entende o problema. — Oh, entendo, sim… Perfeitamente. — Em outras circunstâncias, Carla teria achado graça. Agora, porém, via o risco que estava correndo. — Antes mesmo que eu tivesse a oportunidade de olhar para o cardápio, o cozinheiro já me avisou, de tudo o que não posso fazer. — Ele está no comando, ali dentro, há muito tempo. — E você, como ele disse, aqui fora. — Exato — concordou Nick. — Mas não há mesmo nada a mudar no bar ou no restaurante. Você mesma disse… — Disse que reservava meus comentários — corrigiu Carla. Ela sabia que, de um jeito diferente, Nick seria tão teimoso quanto Arthur. Só que não iria permitir que aqueles dois a impedissem de levar seus projetos adiante. — Faça-os agora, então — sugeriu ele. — Agora não. Preciso ver mais coisas. Não era hora de brigar com ele. Isso não levaria a lugar algum. Além 25


do mais, já cometera o erro de querer ir muito rápido logo no primeiro dia. Era mais prudente ser sutil e esperar uma oportunidade. Se é que um dia Nick se dispusesse a lhe conceder tal oportunidade… — As pessoas daqui gostam da atmosfera do bar — comentou ele. — Atmosfera? — a palavra escapou. Carla não conseguiu evitar. Não via ”atmosfera” nenhuma por ali, muito menos com aquele vira-latas sentado no meio do salão. — Talvez eu deva andar um pouco mais pelo bar, a fim de captar a atmosfera. — Esteja à vontade. Nick notara o sarcasmo na voz dela. E o brilho frio em seus olhos era a prova concreta de que não o apreciara. — Vou também aceitar a sugestão de Arthur para examinar o cardápio. Parece fascinante. Tantos pratos fritos… quase não se vê mais isso hoje em dia. Nick replicou com um tom tão frio quanto o que ela usara: — Parece uma boa idéia. Enquanto isso, vou verificar o estoque de mantimentos com Art. Não era de admirar. Com certeza, eles tinham muito a conversar. — Vejo-o mais tarde, então. Nick entrou na cozinha e foi logo se desculpando: — Desculpe, amigo. Eu nem podia imaginar que ela resolvesse ficar. O problema é que, pela lei, Carla tem esse direito. É aí que está o drama. — Não me importo com o que ela faça, desde que não venha bagunçar minha cozinha. — Também não gosto muito da idéia de vê-la zanzando lá fora. — Isso é problema seu. Só não a deixe entrar aqui. — Arthur golpeou com mais força do que o necessário com sua faca de desossar. — Fique frio, Arthur. O cozinheiro era famoso pelas explosões temperamentais e suas ameaças de que iria embora se alguém interferisse em seus domínios eram legendárias. Claro que jamais cumprira as ameaças, pois sempre fora leal a Sean. E Nick não sé surpreendia com o fato de que essa lealdade a Sean não se estendesse à filha intrometida dele. — Vou mantê-la longe daqui — prometeu Nick. — Se conseguir. — É bom mesmo. — Olhe, sei muito bem que a presença de Carla é uma amolação, Art. Mas não se preocupe, ela não vai incomodá-lo. — Ele deu um tapinha 26


amistoso no ombro do cozinheiro, e acrescentou, numa atípica demonstração de emoção: — O Sundowner não sobreviveria sem você. — Não quero ir embora — Arthur admitiu. — Este velho lugar é um lar para mim, também. Gosto da vida que levo aqui. É confortável para mim. Espero que a gente possa manter tudo como está. — Não se preocupe, amigo. Vamos pensar numa solução. — De que tipo? — Arthur desistira de fingir trabalhar despreocupadamente. Agora, de braços cruzados, observava Nick. — Por enquanto, acho que teremos de deixar o barco correr. Deixar ela pensar que tem o controle aqui. Entretê-la com trabalhinhos triviais. Quem sabe assim ela se canse. — Sou todo ouvidos, patrão. — Arthur deu uma risada. — Carla parece interessada em culinária, então talvez você possa encontrar algo inofensivo para mantê-la ocupada. — Vou pensar nisso, mas tenho a sensação de que ela não desiste fácil. Acho que é uma mulher teimosa. — Mas veja só contra quem ela está lutando! Arthur riu de novo. — Lá isso é verdade. — Então, a sua missão é distraí-la. Eu faço o resto. E acredite, Arthur, posso vencê-la. É só uma menina mimada, querendo que a gente sofra porque não pode fazer com que as coisas sejam a seu modo. Em duas semanas, ela vai querer voltar correndo para a mamãe, o padrasto e os amiguinhos artistas lá de Atlanta. E tudo vai voltar ao normal por aqui. — Espero que esteja certo, patrão. — Confie em mim. Carla não vai gostar de trabalhar no restaurante, nem de Cypress Key. Vou tratar de cuidar para que ela não goste. Nick encontrou Carla na varanda. O cachorro, que não o seguira até a cozinha, estava deitado aos pés dela. — Top gosta de você. — Parece que sim. — Ele não vai com qualquer um. — Estou lisonjeada — retrucou Carla. A julgar pela frieza do olhar que Nick lhe dirigia, certamente havia captado o sarcasmo dela. Ótimo! Então ele a apanhou totalmente desprevenida: — É uma bela manhã, não? Que tal se eu a levasse ao seu novo lar? — Está quase na hora do almoço. Você não tem de trabalhar? — Não. Buck, nosso barman, vem mais cedo hoje. Ele pode se arranjar 27


sem mim. E eu gostaria de mostrar-lhe tudo com tempo. Carla se levantou. — Então, estou pronta. Gostaria de ver meu novo lar… Meu lar temporário — acrescentou, ao ver a expressão dele. — Assim, começo a arrumar as minhas coisas imediatamente. — É uma boa idéia. Andaram pelo terraço lado a lado, com as folhagens suspensas criando uma abóbada verde sobre suas cabeças. — Bonito, não é? — perguntou ele. — É como estar perto do paraíso. — É, e agradável. Posso entender por que os turistas escolhem esta parte do mundo para passar as férias. Mas achei que um nativo como você já devesse estar acostumado. — Talvez um nativo teria se acostumado. Mas vim de um lugar que não se parece nem um pouco com este: as minas de carvão da Pensilvânia. Aquilo a surpreendeu. Minas de carvão da Pensilvânia? Nick, porém, não deixou tempo para comentários: — Por que não me segue com o seu carro? Mas fique perto, para não se perder. — Tudo bem — falou Carla, enquanto ele rumava para o jipe. — Mal posso esperar para ver a casa. Andaram em fila ao longo da costa por alguns minutos, para depois pegarem uma estrada suja, cheia de buracos, morrinhos e sulcos. Carla começava a ficar apreensiva quanto a seu novo lar quando viu um trailer à frente, sob um bosque de palmeiras. Então, as apreensões ficaram mais sérias. Nem sonhando! Não iria morar num trailer naquele fim de mundo! Estava escolhendo as palavras para jogar isso na cara de Nick de modo irrefutável, quando percebeu que não era o trailer o seu destino. O jipe desacelerou apenas o suficiente para que ele gritasse saudações ao casal de idosos que trabalhava no jardim ao redor do veículo. Após a troca de cumprimentos. Nick prosseguiu por mais cerca de meio quilômetro. Finalmente, parou embaixo de uns carvalhos imensos e pulou fora do jipe. Perplexa. Caria saiu do carro e juntou-se a ele. Não havia nenhuma casa à vista, apenas um rio vagaroso, profundo e escuro que parecia um abrigo perfeito para crocodilos. Isso, sem mencionar mosquitos e cobras. Meio desconfiada, pôs-se a pensar no que diabo Nick estaria planejando. — Lá está. — Ele apontou para o rio. Ela espiou através da densa folhagem de bananeiras selvagens, não viu nada. 28


— Onde? — perguntou, olhando de um lado para o outro da margem do rio. — No rio. — No rio?! Avançando um pouco. Carla olhou de novo e viu algo branco sobre as águas. Balançava para cima e para baixo. Um barco… bem pequeno e precisando desesperadamente de uma nova pintura. — Aquilo ali? Aquilo ali é a minha casa? Não espera que eu more num barco, espera? Nick conteve um riso. — Bem-vinda ao lar, Carla. — Você não pode estar falando serio. Não dá para morar aqui. — Por que não? É uma casa flutuante, afinal de contas. — Mas dê só uma olhada nela! — Olhar o quê? — É tão… tão… — Confortável — completou ele. — Ei, é da minha velha casa que você está falando, viu? Passei bons momentos lá. Ora, se acha que não está à sua altura… Então talvez deva pensar em voltar para Atlanta. — De jeito nenhum — falou Carla por entre os dentes cerrados. Sabia agora qual era o plano dele. Queria chocá-la, desencorajá-la, fazer com que fosse embora. Queria que ela desistisse. Agora conhecia o jogo de Nick e estava pronta a jogá-lo… Mas com suas regras. — E então? — ele perguntou, ansioso. — Uma casa flutuante — falou Carla, devagar. — Que engenhoso. Que original. Que… ora, as palavras me faltam. Vamos dar uma olhada. — Siga-me. Nick guiou-a do bananal até o barco por uma trilha de conchas esmagagas. Aproximaram-se da doca onde o barco estava ancorado e só então ela voltou a falar: — Só tenho uma pergunta, Nick: é seguro aqui? — Fez um gesto abrangendo as vizinhanças escuras e desertas e olhou para ele, com olhos arregalados e inocentes. — Para uma mulher sozinha? Talvez o golpe da mulher desamparada funcionasse. Ele, contudo, não parecia nem um pouco preocupado. — Claro que é seguro. — Claro? — Claro. Dificilmente alguém vem aqui. 29


— Mas, e se alguém vier? — Agora ela ficara séria. — Não se preocupe, você tem Kyle — Em resposta ao olhar intrigado, ele explicou: — Kyle e Eileen, que moram no trailer. Vigiam todo mundo e se vêem algum carro estranho, Kyle investiga… com sua espingarda. — Oh, que ótimo. — É ótimo, sim. Kyle será a sua proteção. Eles também têm um telefone, que você pode usar. No fim das contas, deve ser mais seguro do que viver em Atlanta. Mas, se esses arranjos a deixam muito nervosa — ele deu de ombros — talvez Cypress Key não seja um lugar adequado a você. — Não estou nem um pouco nervosa — mentiu Carla. — Você aquietou todos os meus temores. Seguiu-o até a casa. Havia um pequeno convés coberto na proa, com uma escada que levava ao convés superior. Embora estivesse precisando de pintura, o barco tinha lá o seu encanto. Nick pegou a chave, escondida na cornija de uma janela alta. Enquanto abria a porta de tela, deu uma pancada rápida com a mão. — O que foi isso? — perguntou Carla, surpresa. — Só uma lagartixa — explicou. — Há muitas por aqui. Na verdade, é provável que descubra que algumas delas tenham tomado conta da cozinha. Mas não precisa se preocupar, pois elas não mordem. — Obrigada. Fico mais animada. Nick começou a abrir as janelas para arejar a cabine. Uma medida tomada na hora certa, já que Carla estava prestes a reclamar do cheiro de mofo que dominava todo o compartimento. Havia apenas um quarto, bastante acanhado, equipado com um beliche embutido que também fazia as vezes de um sofá, uma mesa desarmável presa à parede e várias cadeiras. Havia também uma estante ao lado da cama e gavetas embaixo do beliche. Nos fundos, ficava uma cozinha bem estreita com fogão de duas bocas, um minúsculo refrigerador e a pia, tudo enfileirado. Na parede oposta, junto ao diminuto banheiro, havia algo que lembrava remotamente um condicionador de ar. — Aconchegante — disse ela, saindo da cozinha para o convés traseiro. A popa do barco não possuía cobertura e proporcionava uma bela vista do rio, que se estendia ate o horizonte. Carla sentiu um calafrio diante da beleza primitiva que a cercava. Uma sensação diferente de tudo o que já experimentara e que, de certa forma, a deixava inquieta. Bem, talvez isso fosse resultado da proximidade de Nick, que a tinha seguido e agora 30


encontrava-se bem junto a ela. Um peixe saltou na água, causando-lhe um sobressalto. Ele pôs a mão em seu ombro, para tranqüilizá-la. Mais agitada ainda. Carla afastou-se. — Foi só um peixe, não um crocodilo… Embora existam alguns por aí. Você sabe, é típico da região. — Ao ver que ela não reagia. Nick acrescentou: — Faz tempo que não ouvimos falar de nenhum que tenha devorado homens. — Que notícia boa… Abrindo uma escotilha no convés, ele prosseguiu com as explicações: — Estou conectando a embarcação ao poste da estrada, a fim de que tenhamos eletricidade a bordo. Há também baterias auxiliares, se você quiser dar um passeio com o barco pelo rio. — Isso não está nos meus planos — replicou Carla. — E quanto à água? — Pode dar uma gorjeta a Kyle, para que ele mantenha os tanques da cobertura cheios. E, pensando em um pouco mais de comodidade, instalei um aparelhinho de ar condicionado na cozinha. — Eu vi. Parece bem velho. Nick replicou, enquanto voltavam à cabine: — Oh, funciona muito bem. Não dá problemas, garanto. Há lençóis e toalhas embaixo da cama, louça e talheres no armário. — Atirou-se na cama, testando o conforto. — Precisa de mais alguma coisa? Estou aqui para servila. Ela percebeu a insinuação e mais do que depressa, respondeu: — Se precisar, compro no armazém. — Tenho certeza de que ficará bem. É confortável aqui e… muito romântico. As ondas lambendo as laterais do barco, o vento sussurrando nas árvores. Traz lembranças maravilhosas. — É claro — falou Carla, fingindo desinteresse e tentando passar diante dele. As longas pernas de Nick bloqueavam-lhe o caminho. Ele estava tão perto que podia facilmente alcançá-la e tocá-la, puxá-la para junto de si na cama. Nick, porém, nem se moveu. Apenas fitou-a com intensidade, correndo os olhos ao longo de seu corpo. Então, os lábios dele se curvaram num meio sorriso. Carla estremeceu. Maldição! Mesmo sabendo que a deixava extremamente desconfortável, ele insistia nas provocações. Nervosa, ela 31


umedeceu os lábios com a língua e preparou-se para falar. Nick não lhe deu tempo: — Quer que a ajude a arrumar a cama? — Posso fazer isso sozinha, muito obrigada — declarou ela, tentando soar o mais formal que podia. Então, decidindo que a cabine era pequena demais para ambos, sugeriu: — Por que não vai trabalhar e me deixa organizar as coisas aqui? — Está me mandando embora, Carla? Ele aproximou o pé e esfregou-o no pé dela. Carla deu-lhe um chute. — Sim, Nick, estou mandando você embora. Esse seu estratagema… — Que estratagema? — perguntou Nick com ar inocente, reclinandose. Carla tentou não reparar nos músculos de seu peito por trás da camiseta apertada. E ele… Bem, ele insistiu: — Que estratagema? — Vários. Todos eles. Primeiro, você me traz até aqui, até este lugar, esperando que eu trema de horror e vá embora correndo. Ora, isso não vai acontecer, porque encaro a estadia neste barco como um arranjo temporário. Agora, vem com as suas insinuações sexuais. Acho que pensa que se tentar me seduzir, eu vou… eu vou… — Sucumbir? — ele se antecipou. — Não você, Carla. É uma mulher sofisticada demais, que veio da cidade grande. E eu sou apenas um caipira. Carla detestou o tom zombeteiro e irônico que ele usara, e teve uma vontade repentina de se afastar daquele homem. Só queria ficar longe dele. Afastou-se sem dizer nada, mas Nick se levantou e foi atrás dela. — Tem razão, não vou cair na sua cantada — falou ela, encarando-o. Aquilo foi um erro, pois seu gesto obrigou-a, pela primeira vez a realmente prestar atenção nos olhos dele. Não eram tão escuros quanto ela pensara: tinham reflexos de verde e dourado. Reparou também que Nick tinha uma cicatriz numa das faces e outra, menor, junto à boca. Uma boca muito, muito bonita… Ele ergueu a mão e passou-lhe a ponta dos dedos pelo contorno do rosto. — Não sei por que acha que estou tentando seduzi-la, Carla. Mas, se estiver interessada e quiser experimentar os meus carinhos… Sentindo que enrubescia, ela amaldiçoou as emoções que lhe provocavam aquele constrangimento. E afastou a mão dele com um tapa. — Nem sonhando, Nick Fleming. Quero mesmo é arrumar minhas 32


coisas. Por isso, por que não trata de voltar ao trabalho? Tenho certeza de que estão precisando de você no Sundowner. Afinal, não tem que vestir o uniformezinho na nova garçonete? Nick recuou, com um sorriso. — Tem razão. Há trabalho a fazer e eu estou adiando minhas tarefas desde que você chegou aqui. Nos veremos no jantar? — Estarei lá, sim — Ela o acompanhou até o convés. — Pronta para trabalhar. A meio caminho, antes de chegar ao jipe. Nick se voltou e gritou: — Carla, sobre esse negocio de sedução… Por que não vai em frente e tenta? Não sou fácil de conquistar, querida, mas vale a pena tentar. Carla olhou em volta, mas não conseguiu achar nada que pudesse atirar nele.

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CAPÍTULO IV

Carla não voltou ao Sundowner. Depois de deixar o hotel, fez algumas compras e foi se apresentar aos vizinhos: quando terminou essas tarefas, já eram seis horas. Cansada como estava, a idéia de ter outro confronto com Nick era tão atraente quanto entrar num ringue de boxe com o campeão dos peso-pesados. Preferiu voltar à casa dos vizinhos, a fim de deixar um recado para Nick no Sundowner dizendo que só voltaria ao bar no dia seguinte. Tinha certeza de que ele iria adorar a notícia. — Querida, pode usar o telefone quando quiser — assegurou Kyle. — Estamos contentes em saber que alguém está morando no barco de novo. — Estamos mesmo — concordou Eileen, sua robusta esposa. — E é muito bom ter companhia também. Com a permissão do casal, Carla fez mais duas ligações. Uma para o advogado, Tom Melendez e outra para um contador recomendado por Tommy. Marcou um encontro com o contador para a manhã seguinte. Depois de conversar um pouco com os vizinhos, estava pronta para partir. Mas Kyle e Eileen não facilitavam as coisas. Eileen acabara de fritar pedaços de galinha. — Aceite um pedaço. — ofereceu ela. — Não, obrigada, comprei algumas coisas no armazém e um pouco de camarão fresco. — Como planeja prepará-lo? — Pensei em cozinhar na água e… — Espere, vou lhe dar um pouco de molho. — Eileen tirou uma grande tigela da geladeira. — É uma receita especial minha e vai bem quando só se cozinha o camarão na água. — Oh, aposto que e uma delícia. Muito obrigada. — Carla ia andando em direção ao carro. — Volte logo, hein? — disse Kyle, com o seu melodioso sotaque sulino. — Voltarei, sim. Começava a escurecer quando ela chegou ao barco. A noite não lhe pareceu tão amistosa quanto Eileen e Kyle. Tendo sido criada num ambiente 34


urbano, Carla sabia que seria difícil acostumar se com o lugar. Mas se aquele ia ser o seu lar temporário, teria de aprender os princípios básicos da sobrevivência na selva. Depois de cozinhar o camarão, abrir uma salada de batatas que comprara pronta e servir um copo de vinho, ela levou seu prato para o convés. As estrelas principiavam a despontar no céu, enquanto ela mergulhava o camarão tenro no delicioso molho de Eileen, pondo-se a observar duas grandes garças percorrerem as margens em busca de peixes. Foram momentos agradáveis até a noite cair de repente, com sua escuridão e seus ruídos. Ruídos de água saltando no rio denso e vagaroso: rosnados e miados vindos da pesada vegetação rasteira junto aos arbustos da margem e o bater de asas nos céus. Tudo agora era sinistro e ameaçador aos ouvidos de Carla. Ela teve um calafrio e foi para dentro, à luz do dia seria mais fácil acostumar-se ao novo lar. Trancou a porta, ligou o ar condicionado e deixou uma luz acesa para se sentir um pouco mais segura. Bem, não havia saída: aquele era mesmo o seu lar. Pelo menos, por enquanto. Não podia vender o Sundowner sem a aprovação de Nick… Carla adormeceu pensando em como conseguiria isso. — A menininha de Sean! Puxa, que Deus a abençoe! Você é um colírio para os meus olhos! Assim Buck, o barman, saudou-a quando ela entrou no Sundowner na manhã seguinte. O homem barrigudo e grisalho levou cervejas para alguns pescadores numa mesa de canto, depois voltou para trás do balcão, estendendo a mão enorme para cumprimentá-la: — Nick me contou que você estava aqui. Prazer em conhecê-la! — É tão bom quando nos recebem bem! Não é sempre que isso acontece… Carla sentou-se num banco de couro gasto e olhou em torno, apreensiva. Não havia sinal de Nick. Buck franziu o cenho: — Nick está lhe tratando mal? — Mais ou menos. — Carla olhou em volta mais uma vez. — Arthur também não morreu de amores por mim. — Ora, isso vai mudar quando se acostumarem — afirmou Buck em tom apaziguador. — Você só tem de dar um tempinho para eles esfriarem a cabeça e a aceitarem. — Daqui a uns mil anos? 35


— É brava como seu pai, pelo que estou vendo. — Buck inclinou-se sobre o balcão. — Sean era um grande homem. Fazia trinta anos que eu estava aposentado da Marinha, quando o conheci. Vivia com a minha pensão, mas não me sentia satisfeito. Tédio. Ah, eu morria de tédio… Viúvo e sem filhos. Um cara solitário. Então, ele me ofereceu este emprego. Foi como um presente de Deus. — Com certeza, foi bom para Sean também. Carla não queria falar sobre o pai naquele momento. Não queria que seus pensamentos se dirigissem aos caminhos tortuosos do passado. Começara a formular um plano para o Sundowner e não queria distrações. Mudou de assunto e tentando fingir que falava de qualquer coisa sem importância, fez a pergunta crucial: — O que acontece por aqui na hora do almoço? Buck riu. — O bar se enche de famintos! — O bar, aqui? — Sim. Aqui mesmo. Em geral, quem almoça aqui são os pescadores e outros fregueses que pedem o comercial. Alguns ficam por aí, à tarde, assistindo jogos na TV. — Apontou para a tela grande num canto do bar. — O pessoal da Flórida é louco por beisebol. Sabe quantos times profissionais passam o inverno aqui? — Vários, com certeza — respondeu ela vagamente. — E quanto ao salão de refeições? — Fica lotado à noite. Sexta e sábado o lugar fica abarrotado mesmo. Uma multidão de jovens vem aqui. Nick é o responsável por isso. Uma vez por mês, ele contrata um conjunto local: de vez em quando, uns rapazes trazem uma dessas máquinas de karaokê para as pessoas poderem cantar junto. Elas levantam e vão lá na frente, fazer papel de bobas. — Buck deu uma risada. — Até eu já cantei algumas vezes. — E como é a freqüência no salão durante o dia? — Fica vazio como um túmulo. — Daria para servir almoço para alguém ali? — Bem… — Para mim, por exemplo? — Você? — O rosto de Buck se abriu num amplo sorriso. — Querida, você é a patroa. Pode ser servida em qualquer lugar. — Então, eu gostaria de almoçar mais cedo — disse Carla, olhando em volta ainda outra vez, só para certificar-se de que Nick não aparecera. 36


— Vá para lá e sente-se. Vou chamar uma garçonete. Ela acabara de sentar-se a uma das mesas do salão, quando uma voz suave falou sobre seu ombro: — Srta. Selwyn? Buck mandou perguntar o que vai querer para o almoço. Carla virou-se e viu uma moça alta vestida com um uniforme ultrajante, composto de uma saia branca curtíssima e blusa frente-única azul com uma imensa gola branca. Na cabeça, um ridículo boné de marinheiro. A jovem ergueu a mão para ajeitar o boné, constrangida. — É o nosso uniforme de garçonete. Os fregueses adoram. — Bem… — Eu também não gostei, quando comecei a trabalhar aqui, mas a gente se acostuma com qualquer coisa, srta. Selwyn. — De qualquer modo, você está bonita — falou Carla, com sinceridade. — Oh, obrigada. A garota era tão bonita que o traje não conseguia ofuscá-la. Era realmente bastante alta, com os cabelos castanhos presos num rabo-de-cavalo. Seus olhos possuíam um tom castanho-claro que se harmonizava com o bronzeado perfeito da pele. — E por favor, me chame de Carla, sim? — Eu me chamo Melissa. Melissa Myers. E gostaria de lhe dizer que senti muito pelo falecimento de seu pai. Ele era uma ótima pessoa. — Obrigada por essas belas palavras. — É verdade. Ele e Nick acertaram os meus turnos de modo que eu pudesse continuar com meus estudos. Jamais encontraria esse tipo de flexibilidade em outro lugar. Então, para mim, usar um uniforme idiota é um preço pequeno a pagar. Aquele dia parecia dedicado a grandes louvores a seu pai. E a Nick. Carla não podia responder as belas palavras a respeito do pai, simplesmente porque nunca o conhecera de verdade. Mas com Nick era diferente. Na sua opinião, ele era uma serpente venenosa e por isso, tratou de mudar de assunto: — Acho estranho que ninguém almoce aqui. Nenhum grupo de moças, mães ou crianças, nenhuma das mulheres que trabalha na cidade ou nos hotéis ao longo da praia, nem mesmo turistas. Melissa riu. — Acho que pensam que, ao meio-dia, este é um mundo só para 37


homens. Sabe como é, os bons e velhos camaradas trocando histórias sobre aquele que já se foi. — Seu comentário foi interrompido por uma explosão de risos masculinos vinda do bar. Ela tirou do bolso o bloco de anotações. — Bem, o que deseja? Carla examinou o cardápio surrado. Os pratos dariam pesadelos em qualquer nutricionista. Quase tudo era frito: bagres, garoupas, camarões e frango. Salsichas e batatas fritas eram oferecidas como acompanhamentos, junto com anéis de cebola… fritos. Ao pé da folha de papel, com letras miúdas, havia um aviso de que algumas das entradas podiam ser grelhadas a pedido, mas ela duvidava de que algum pescador tivesse sido incentivado a provar da opção. — Hum… A salada de camarão parece bastante boa… — Oh, estamos em falta — disse Melissa. — Arthur falou que não estava com vontade de prepará-la hoje. Mas o camarão frito é ótimo. — Nenhuma salada? — perguntou Carla. As saladas eram a base de sua dieta. — Arthur não gosta de preparar saladas — explicou Melissa. — Diz que repolho cru combina melhor com o nosso cardápio. — Hum, interessante. E o coquetel de camarão? — É do cardápio do jantar, mas posso pedir a ele que o prepare para você — ofereceu a garçonete, sem muita convicção. — Não, tudo bem. Traga o camarão frito, repolho e uma soda diet, se tiver. — Temos, sim — respondeu Melissa, com orgulho. — E temos água mineral também. — Prefiro a soda — disse Carla, distraída. Assim que Melissa se retirou com seu pedido, ela pôs-se a refletir. Estava na hora de organizar os pensamentos. Na noite anterior, sua cabeça fervilhara com idéias, ainda nebulosas, que haviam tomado forma enquanto ela conversara com o contador naquela manhã. Era hora de relembrá-las. Carla tirou um caderno espiral da bolsa, pegou uma caneta e começou a escrever. O salão ficava vazio na hora do almoço e quase não era usado à noite, exceto para resolver o problema de superlotação do bar. Uns poucos fregueses já dariam algum lucro; uns poucos mais e seria uma mina de ouro. Ela observou a peça com atenção. Antes de servir refeições para alguém ali, teria de haver mudanças. Primeiro, a decoração. Livrar-se daqueles oleados horrorosos. Pintar as velhas cadeiras e mesas de madeira 38


com cores vivas. Colocar vasos com plantas nas vigas. Quadros nas paredes nuas. Com certeza, haveria artistas em Cyprcss Key que gostariam de ver seu trabalho exposto. Tomou nota das idéias. Nick não poderia argumentar contra um gesto de relações-públicas como aquele. Nick… O que ele diria? Carla não fazia a menor idéia, mas tinha certeza de que ele colocaria obstáculos as suas idéias, nem que fosse pelo simples fato de ela as ter sugerido. Mas iria dar um jeito naquilo, apesar de Nick. Elaboraria não só os pratos do cardápio, mas o próprio cardápio. Ia torná-lo mais alegre e fácil de ler. Livrar-se do tema náutico vulgar e introduzir algo sofisticado e tropical. Carla rabiscou uma palmeira em seu caderno e quando Melissa retornou com o almoço, guardou rapidamente o caderno na bolsa. Antes de fazer qualquer plano, tinha de conversar com Nick. Conversar? Brigar soava melhor. Bem, então iriam brigar. Não estava disposta a se deixar intimidar por ele. Nick tinha duas escolhas àquela altura e ambas lhe serviam: permitir que ela fizesse as coisas a seu modo ou deixar o Sundowner. Carla preferia a última alternativa, mas estava preparada para ambas. Comeu o camarão frito, tendo de admitir que estava delicioso, então saiu ao terraço e sentou-se a uma mesa protegida por um guarda-sol. Top veio pira junto dela. Distraída, esfregou-lhe as costas com o pé e o velho cachorro rosnou de prazer. Ela se reclinou, espreguiçou-se e entregou-se por um momento à beleza da manhã. Tudo calmo, o céu azul, a brisa suave. Gaivotas e pelicanos circulavam preguiçosamente pelo céu, mergulhando as vezes em busca de peixes na superfície do plácido Golfo. Mas a sua paz não iria durar. Se Top estava ali. Nick não devia estar muito longe. Ainda assim, não via sinal dele. Em meio a uma certa balbúrdia os fregueses começavam a sair do bar. Como Melissa lhe dissera, a maioria era de homens de meia-idade. Cumprimentaram-na com um amistoso “olá”, antes de descerem ao cais e entrarem em barcos. Alguns casais, talvez aposentados, trouxeram seus cafés ao terraço e sentaram-se ao sol por algum tempo. Não mais do que duas dúzias de pessoas haviam almoçado no Sundowner, e Carla queria mudar isso. Parecia tão simples, que se perguntava por que Nick e seu pai jamais haviam pensado naquilo. Bem, logo teria a oportunidade de perguntar a Nick, porque ele vinha subindo a escada, vindo do estacionamento. Parecia um boxeador indo atrás 39


de seu adversário no ringue. Só havia um problema: ela era o adversário. Top levantou a cabeça, bateu o rabo preguiçosamente no piso e então retornou à sua sesta. Nick veio imediatamente na direção de Carla. Ela tentou afetar tanta despreocupação quanto Top. — Por que diabos esteve com o meu contador esta manhã? Carla fez uma pequena correção: — Nosso contador. — Então sorriu. — Boa tarde para você também, Nick. Ele tinha educação suficiente para ficar um pouco embaraçado, mas isso não o impediu de fulminá-la com uma bateria de perguntas. — Por que foi lá? O que está acontecendo? Como soube… — Tommy me deu o telefone do nosso contador e marquei um encontro. Simples, não? Precisava ter uma idéia de como nós estamos financeiramente. — Carla percebeu que o uso contínuo de palavras como “nosso” e “nós“ não agradava a Nick. Pior para ele — Vamos indo muito bem. Fiquei surpresa. Nick se acalmara um pouco e apoiara-se no parapeito do terraço. Mas ainda parecia um boxeador, recuperando as forças antes de partir para o nocaute. Finalmente, falou com frieza: — Sei quão bem o Sundowner está indo, Carla. Não preciso que me diga. Na verdade, não preciso de você para nada. — Pode não precisar de mim, mas estou aqui e não há nada que nenhum de nós possa fazer a respeito. Também sei o que estou fazendo, e vou fazer muito mais. — Porque foi ao banco? Um dos caixas me contou que passou por lá. — Devia ser óbvio. Fui registrar meu nome nas contas, nos cartões, e assim por diante. Fui fazer o que qualquer sócio faria. — Devia ter falado comigo primeiro. Nick cruzou os braços diante do peito, gesto que irritou-a ainda mais, sobretudo porque salientava de modo perturbador seus bíceps e seu amplo tórax. Ele podia ao menos se vestir de modo mais formal, pensou, já que tinha ido ao banco. Mas usava short, uma camiseta vermelha esfarrapada e cinto de couro. Carla estava elegante, de saia e blusa. Por que então, se sentia em desvantagem? — Só levei os documentos necessários para provar que sou sócia do Sundowner. Não achei que precisasse da sua permissão. — Talvez não, mas não gosto de saber por um caixa de banco do que 40


está acontecendo em meu próprio bar. — Nosso bar — salientou Carla. — Se já se acalmou o bastante para sentar, gostaria de conversar um pouco com você. Nick grunhiu, tombou sobre uma cadeira e gritou para Melissa: — Traga uma cerveja, por favor. — Então, comentou com Carla: — Tenho a impressão de que não vou gostar dessa conversa. — Como não gosta de nada que diga respeito a mim, isso não seria surpresa. — Ela respirou fundo, pegou a bolsa e retirou o caderno. — Tenho um plano. — Estou certo de que tem. Ignorando o comentário. Carla continuou: — Vou reformar o salão. Nick deu um pulo da cadeira. — Não, não vai, não! — Vou, sim! — devolveu ela e encarou-o. — O salão está muito bem assim. — É… vulgar. — É a sua opinião. — Pergunte a qualquer outra pessoa — desafiou Carla. Naquele instante, Melissa chegou com a cerveja de Nick e depositou-a cuidadosamente sobre a mesa. — Obrigada — falou Carla, já que ele estava nitidamente distraído. — De nada — replicou Melissa, retirando-se às pressas. Nick realmente não notara que a cerveja havia chegado e foi logo argumentando: — O salão fica cheio todas as noites. — E vazio na hora do almoço. — Isso não tem nada a ver com a aparência do lugar. — Claro que tem. — Não tem, não — retrucou ele por entre os dentes cerrados. — Tem, sim. — Então, por que o bar fica lotado? — Porque os velhinhos não se importam com o ambiente — respondeu ela. — Certo. Vêm pela comida. — Não, não é por isso. — É sim. — Não, eles… 41


De repente, Carla percebeu o que estavam fazendo. Estavam frente a frente, aos gritos por causa da falta de classe do salão do Sundowner. E isso era simplesmente ridículo. Sentou-se novamente. Nick voltou devagar à sua cadeira — Não quero brigar com você, mas por favor, me escute — pediu ela, mantendo a voz baixa. Tomou fôlego e continuou. — Na hora do almoço, o pessoal vem aqui porque o bar é familiar e a comida é agradável. Mas há outras pessoas que poderiam lotar o local, se o salão tivesse boa aparência e um cardápio mais atraente. — E quem são essas pessoas? — perguntou Nick com polidez. — As garotas que almoçam fora. Turistas. Famílias. Tudo de que precisamos para atraí-los é um novo cardápio e um novo visual. — Você é louca? Sem energia para recomeçar a discussão. Carla permaneceu em silencio. — Não, não precisa responder. Você é louca. Depois de vinte e quatro horas num lugar, acha que pode mudá-lo por inteiro, sem mais nem menos? Carla suspirou. — Inteiro, não. Só o salão. Mais uma vez, Nick deu um salto e ficou de pé. — Nunca! — Nick, por favor, fique quieto e me deixe explicar. Parece que somos dois sapos, pulando para cima e para baixo. Ele respirou fundo e sentou-se de novo. Ao ver a garrafa sobre a mesa, tomou um gole de cerveja. — Tudo bem. Vou ouvir com calma, se é que é possível haver calma perto de você. Lembre-se porém, de que me falou que não queria mudar nada, só observar. Carla concordou. — Falei, sim. Mas isso foi ontem, antes de ter mil idéias. Antes também de pedir ao contador para ver os livros contábeis. — Poderia ter visto toda a papelada comigo. Mas teve de ir sozinha… Você quer tomar conta de tudo sozinha. — Não foi essa a minha intenção — disse ela, em voz branda. — Bem, mas é o que parece. Diabos, Carla, os livros não interessam! É o lugar que interessa. O Sundowner funciona bem deste jeito há anos. Não pode deixá-lo assim? Ela respondeu com teimosia: 42


— Não. Possuo a metade do Sundowner, Nick. Tenho o direito legal de fazer o que quiser. Podemos ir ao tribunal, mas as taxas legais vão lhe custar duas vezes mais do que o que pretendo gastar. Veja. — Empurrou o caderno para ele. — Veja esses desenhos. Dê uma espiada nas minhas idéias. De má vontade. Nick pegou o caderno e deu uma olhada superficial. — As cifras são muito baixas. Não vai conseguir reformar o salão por esse preço. — Farei a maior parte do trabalho, nas segundas-feiras, quando estivermos fechados. E também durante o dia, já que ninguém vai ao salão nesse horário. Depois que reabrirmos, recupero os gastos com a reforma em um mês. Garanto. — Carla não tinha certeza, disso, mas seu tom era seguro. Nick ficou em silêncio por um momento. Então seus olhos brilharam em desafio. — Arthur jamais concordará com isso. Vai odiar o cardápio, com pratos leves, saladas e sanduíches com nomes engraçadinhos. Não irá aceitálo nem em um milhão de anos. — Deixe Arthur comigo. Carla não queria admitir, mas Nick podia estar certo. Arthur era um obstáculo em potencial… Mas iria enfrentá-lo quando chegasse o momento adequado. Naquele instante. Nick Fleming era o problema. — Não aprovo — declarou ele, ríspido. — Embora suspeite de que você vai fazer isso de qualquer jeito, não vai? — A não ser que me impeça fisicamente — Carla desafiou. A expressão do rosto de Nick se alterou. Seus olhos, que brilhavam de raiva durante toda a conversa, se estreitaram. A boca se curvou num riso sensual. Até a textura de sua voz mudou, tornando-se mais baixa e sugestiva. — Até que não é má idéia… Fisicamente, não? — Nada disso. Eu quis dizer que… — Ouvi o que disse, Carla. Talvez um contato físico seja do que precisemos a esta altura. Não faria mal… Talvez, até ajudasse. — Passou a mão no braço dela devagar, mas com ousadia. Insinuante, como sempre. — Não. Nunca. De jeito nenhum. Ela retirou o braço. Nick sempre dava um jeito de colocar a conversa num contexto sexual. Isso a deixava inquieta, insegura. E como detestasse aquela sensação, Carla decidiu ignorá-la. E ignorá-lo também. — Vou começar a trabalhar amanhã — declarou de modo brusco. — E acho que vai se surpreender bastante. — Como quiser — murmurou Nick, virando-se. — Venha Top, preciso 43


caminhar um pouco. Com relutância, o cachorro levantou e com um olhar de desculpas a Carla, seguiu o dono rumo à praia. Carla se indagava se iria danificar para sempre suas costas com todo o trabalho de pintura que estava fazendo. Devagar ficou em pé e se espreguiçou. Três dias de trabalho sem interrupção haviam mudado bastante o salão. Pelo menos, era o que esperava. Nick era de outra opinião. Andava distante e desinteressado como quase todo o pessoal. Mas Melissa ajudara-a a pintar nas horas de folga. E Buck ajudara a pendurar vasos de orquídeas e samambaias nos ganchos das traves do teto. Só as plantas já tornavam o lugar mais atraente. Agora ela estava dando os toques finais nas mesas e cadeiras, pintando-as de vivas cores caribenhas: turquesa e fúcsia, lilás e verdepapagaio. Planejava acrescentar guardanapos coloridos, centros de mesa e redecorar o cardápio, a fim de dar aos fregueses a sensação de estarem numa ilha tropical. Tomara que o efeito funcionasse! Apoiando-se contra a parede, pensou no que faria a seguir. — Está bonito. Perplexa. Carla se virou e viu Arthur, impecável em seu uniforme branco, observando o salão. — Obrigada — conseguiu dizer, apesar da surpresa. Arthur também ausentara-se do salão nos últimos três dias. — Esta nova decoração me traz recordações da minha terra — ele falou, em tom brando. — As cores vivas, as plantas… Carla deu um longo suspiro de alívio. — Era o que eu esperava, Arthur. A atmosfera de uma ilha. — Vai ter também uma banda de metais? — O quê? Não, eu não… — Então Carla percebeu que ele estava brincando. — Não, o som da máquina automática do bar serve. E você, tem alguma outra idéia para me dar? Arthur sentou-se numa das cadeiras fúcsias e olhou para o teto. — Está se referindo ao cardápio? — perguntou, enfim. — Também — admitiu Carla. — Bem, não vou alimentá-la com fantasias caribenhas. Nada de sanduíches das Bahamas e saladas de Barbados. Meu cardápio continua o mesmo. Carla percebeu de imediato contra o que lutava e em seu íntimo, 44


resolveu não se sentir intimidada pelo empregado. Apostara muito naquilo. Estava na hora de mostrar isso ao cozinheiro-chefe. — Vou abrir o salão para almoços, Arthur — anunciou com firmeza: — A fim de atrair fregueses, eu quero melhorar o cardápio, e nós vamos fazer isso. Ele permaneceu num silêncio estóico. Enchendo-se de coragem, ela prosseguiu: — Se não cozinhar para mim, vou ter de contratar mais alguém como assistente para fazer sanduíches e saladas. É claro que essa pessoa vai ocupar espaço em sua cozinha… — Chantagem, hein? — Pode chamar como quiser. Mesmo assim, me parece que o mais lógico seria você fazer isso por nós dois. Carla pôs-se em pé e Arthur finalmente se levantou para encará-la. — Seu pai foi muito bom para mim… Creio que devo algo à família. — Então…? — Tudo bem — concluiu ele. — Pode contratar alguém para trabalhar algumas horas por dia em minha cozinha, fazendo comida para as damas… se for alguém que sabe o que faz. Vou continuar com os meus cardápios. E, de vez em quando, se você tiver sorte, talvez eu lhe faça uma salada de camarões. Para Carla, era uma vitória. — Oh, obrigada, Arthur! Está ótimo! — Mas não vá ficando muito entusiasmada. Estou concordando com você porque acho que esse plano do tal almoço não vai dar certo. Assim, posso me permitir ser generoso. Por algum tempo. — Só preciso de algum tempo mesmo — replicou Carla enquanto Arthur se afastava. Não ia deixar que aquelas palavras pessimistas a derrubassem. Pelo contrário: iria provar para ele e para Nick que ambos estavam errados quanto ao seu projeto. Bem mais confiante, decidiu não avisar o cozinheiro-chefe de que seu uniforme, antes imaculadamente branco, estava agora marcado com a tinta fúcsia da cadeira em que ele se sentara. Logo, logo, o pessoal da cozinha se encarregaria da tarefa. E das gozações.

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CAPÍTULO V

— Não acredito que você tenha tanta experiência! Puxa, é exatamente a pessoa de quem preciso! — falou Carla à mulher sentada diante de si. — Então nós duas estamos com sorte — replicou Betty Jacobs com uma risada musical. Tinha o ar exótico do Caribe misturado ao estilo europeu da moda. Carla concordou com um gesto de cabeça. Depois de entrevistar meia dúzia de candidatas para a função de assistente, vira em Betty a empregada perfeita para ajudar a colocar o Sundowner em forma. Com trinta e tantos anos, tratava-se de uma mulher alta e magra, com olhos escuros brilhantes e um leve sotaque estrangeiro. Além da vasta experiência, possuía uma sensibilidade incrível. — Trabalhou em todo o país e no Caribe também, pelo que vejo — acrescentou Carla, passando os olhos pelo currículo de Betty. — Sim. Viajei muito. Havia algo que preocupava Carla. Se Betty Jacobs trabalhara em tantos locais fantásticos, porque estava querendo aquele emprego? Franzindo o cenho, examinou o currículo de novo e fitou a mulher a sua frente. Seu cabelo escuro estava puxado para trás num coque elegante. O vestido era esportivo e realçado por acessórios ousados que só uma pessoa com especial estilo poderia usar: presilhas entalhadas, brincos e braceletes de cores. A pergunta tinha de ser feita, portanto Carla decidiu liquidar logo com aquela dúvida: — Afinal, por que quer trabalhar no Sundowner? O riso melodioso de Betty se tez ouvir novamente. — Prefiro a costa oeste da Flórida a qualquer outro lugar onde estive. Gosto especialmente de Cypress Key e, se quer mesmo saber, não há muitos empregos disponíveis no momento. — Você foi recepcionista de restaurantes e hotéis… — Fui, sim. — Cozinheira-chefe… — Auxiliar, na verdade. Nunca cursei nenhuma escola de culinária. E nem todos os meus empregos eram de nível tão alto assim, como pode ver pelo meu currículo. Também trabalhei como garçonete e balconista de bar. 46


— Em lugares bastante exóticos — Carla não pôde deixar de salientar. — Prefiro ficar aqui por razões pessoais. — Família? — Mais ou menos isso. Betty sorriu de modo esquisito, e Carla decidiu não fazer mais perguntas. Precisava encontrar a pessoa certa para o trabalho. E essa pessoa certamente, era Betty Jacobs. — Está contratada! Quando começa? Hoje mesmo, se possível? — Gosto do seu entusiasmo. Você e como seu pai nesse aspecto… — Conhecia Sean, também? — Todo mundo na cidade conhecia Sean. E, respondendo à outra pergunta: sim, posso começar agora mesmo. Se me mostrar o cardápio, verei do que preciso e quando. Carla estendeu-lhe a lista que havia preparado. Betty deu uma olhada rápida. — Parece ótimo. Posso fazer os sanduíches e as saladas, claro. E podemos conversar sobre como gostaria que esses outros pratos fossem preparados. — Tenho certeza de que sabe melhor do que eu. Vou cuidar da recepção e do caixa. Não é preciso ser especialista para isso, então acho que posso me arranjar. Vou contratar uns dois garçons para o salão. — Então uma idéia lhe ocorreu. — Homens. Jovens. — Jovens e bonitos? — Exatamente. — Vestindo calças curtas e justas? — Betty piscou o olho. — Vejo que você joga no meu time. E estou bastante contente de tê-la encontrado. — Então Carla se lembrou da parte menos atraente da negociação. — Antes de entrarmos nos detalhes do cardápio, é melhor que conheça o lado masculino do Sundowner. Nick e Arthur. Se conhecia Sean, deve conhecer Nick, mas duvido que conheça Arthur, nosso cozinheiro-chefe. E precisa saber que ele pode ser um pouco… Bem, um pouco mal-humorado de vez em quando. Betty exibiu seu riso arrasador. — Querida, está para nascer o homem com o qual eu não consiga lidar. Carla desejou ter a mesma confiança em relação a Nick. — Você é ótima. Betty! Nesse instante, ouviu-se o eco de um latido no terraço. 47


— Parece um cachorro acuando alguém — talou Betty. — Deve ser Top. — Carla ergueu-se, intrigada. O velho cachorro costumava ser preguiçoso demais para latir para quem quer que fosse. — Quer ir lá ver? — perguntou Betty. — Talvez seja melhor. Se não se importa que adiemos o encontro com os homens… — Querida, está para nascer o homem com quem eu não possa adiar um encontro. Carla riu. — Cada vez gosto mais de você! — Vá ver o que está acontecendo. Vou examinar o cardápio outra vez. — Já volto. Carla tirou os sapatos e desceu correndo até a praia. A maré estava baixa e ela sentiu a areia úmida e fria sob seus pés. Encontrou Top sob as estacas do terraço, furioso. O pêlo das costas do animal se eriçou e o seu latido ficou mais feroz ao vê-la aproximar-se. — Quieto, rapaz — falou Carla, sem muita convicção. Segurando a coleira do cachorro, penetrou na escuridão embaixo da plataforma. O objeto da fúria de Top parecia uma grande pilha de penas. Mas só quando o monte de penas estremeceu e bateu as asas. Carla compreendeu que se tratava de algum tipo de pássaro gigante. Tentou levar Top embora, mas ele fincou as patas com firmeza na areia. O latido transformou-se num rosnado baixo e ameaçador. — Droga — ela murmurou, sabendo que teria de chamar Nick. — Fique aí. Top — ordenou, sem forças. Afinal, suas ordens não surtiriam muito efeito, pois o cão parecia disposto a fazer o que bem entendesse. Entretanto, Top demonstrava um certo temor em aproximar-se do estranho bicho. Era evidente que seu latido era pior que a sua mordida. Bem, isso lhe daria tempo de localizar Nick. Carla subiu correndo as escadas e entrou no bar, onde ele conversava com seus amigos pescadores. — Me desculpe incomodá-lo, mas Top está rosnando para uma espécie de ave, presa embaixo da plataforma do terraço… — Aposto que é outro pelicano — sussurrou um pescador de rosto avermelhado. — Vá ver, filho. — Não parece um pelicano — disse Carla enquanto seguia Nick até o balcão do bar, lembrando-se dos graciosos pássaros que vira voando pelos céus azuis da Flórida. — É um bicho bem grande e… 48


Ele ignorou-a, enquanto apanhava uma rede escorada no balcão, abria uma gaveta e pegava algo parecido com um alicate. — Você vem comigo? — perguntou Nick, por fim. — Claro. — Então, vamos. Saiu porta afora, com Carla em seu encalço. Top não se movera, mas o pássaro, se é que era mesmo um pássaro, se debatia loucamente. — Muito bem, Top. Agora quieto — ordenou Nick. O cachorro se agachou, sem tirar os olhos da presa. — O que é? — ela quis saber. — Qual é o problema? — É um pelicano preso numa linha de pescar. O anzol provavelmente está em sua asa. — E o que você está fazendo? — perguntou ela, ao vê-lo estender a rede num vasto círculo. Nick respondeu sarcasticamente: — Tentando pegá-lo na rede, a fim de assá-lo para o jantar. — Nick! — Pelo amor de Deus, Carla, que diabo acha que estou fazendo? — Com a rede, ele cobriu o pássaro que se debatia e emitia guinchos de dar dó. — Vai ajudar ou só ficar aí, olhando com essa cara de horror? Carla deu um passo à frente. — Claro que ajudo… Se me disser o que devo fazer. — Segure-o firme, enquanto procuro o anzol. O pássaro agora ficara imóvel, paralisado pelo medo. Carla segurou-o, hesitante a princípio, depois mais firme. Prendia-lhe o corpo com uma das mãos e com a outra, lhe imobilizava o grande bico. Nick passou as mãos pelas penas da ave, até encontrar o anzol. — Aqui está. Na asa. Segure bem firme agora! Com a ponta do alicate, ele prendeu a curva do anzol; depois, num movimento rápido e ágil, puxou a pequena peça metálica para fora. O pássaro estremeceu, acalmando-se logo em seguida. — Não creio que a asa esteja infectada, mas é preciso cortar toda esta linha de pesca em que ele se enrascou. Começou a cortá-la com o alicate, livrando o pássaro do incômodo fio que o enredava e o mantinha prisioneiro. Suas mãos eram bem fortes e os dedos longos trabalhavam com eficácia suavidade, no intuito de libertar o pelicano. Deixando as mãos robustas, o olhar de Carla dirigiu-se para o seu 49


rosto, e percebeu que ele tinha uma expressão de profunda concentração. Aquele riso sarcástico, que Nick parecia reservar especialmente para ela desaparecera. Em seu lugar havia um olhar terno, repleto de preocupação. De repente, constatou que aquele homem rude e autoritário demonstrava uma incrível compaixão por um pobre pássaro indefeso. Foi uma surpresa. As mãos dela doíam, devido ao esforço para manter a ave naquela posição: à medida que se sentia mais e mais livre da linha de pesca, o grande pássaro se inquietava e ameaçava debater-se a fim de escapulir. Mesmo assim, Carla estava decidida a agüentar firme, até que a dificultosa tarefa chegasse ao fim. — Assim está bem — disse Nick afinal, deixando-a sem saber se aquelas palavras eram para ela ou para o pelicano. — Acho que consegui. — Pela primeira vez, desde que iniciara a operação de “salvamento”, ele dirigiulhe o olhar. — Pode soltá-lo. Vamos ver se ele consegue voar. Nick levantou e carregou o pássaro até a beira da água com Carla e Top, bastante interessado, seguindo logo atrás. Livrando-se da rede, ergueu os braços com grande esforço e jogou o pelicano para cima. As vigorosas asas se abriram de imediato e começaram a bater. O pássaro manteve-se no ar, circulou e então rumou em direção ao céu infinito. Top, latindo com entusiasmo, se atirou na água correndo atrás dele. Nick e Carla ficaram olhando, até a grande ave desaparecer de vista. — Obrigada — disse Carla, enfim. — Foi uma experiência… emocionante. — Acontece muito — explicou Nick. — Os pelicanos ficam enredados nas linhas de pescar. Nem todos têm a sorte do nosso amigo de hoje. A infecção causada pelo anzol se espalha rapidamente e eles acabam morrendo. Ou então o gancho prende em seu olho… — Que horrível! — Carla estremeceu. — Um pelicano caolho não pode competir pelos peixes com seus companheiros saudáveis. A maré mudara e a água batia em seus tornozelos. — Não há o que se fazer para evitar esses incidentes? — ela perguntou, visivelmente preocupada com a sorte dos pobres bichinhos. — Muito pouco. Tentamos educar os pescadores que vão ao Sundowner para que tomem cuidado com os pelicanos e os peixes-bois. Muitos deles se arrebentam de encontro aos hélices dos barcos. — Eu nunca havia pensado nisso. — Pois é… Temos de ser mais cuidadosos. Afinal, o oceano pertencia a 50


eles antes de aparecermos. Carla olhou para ele de um jeito engraçado, com a cabeça inclinada para um lado e a testa levemente franzida. — Não é muito lisonjeiro — falou Nick. — O que? — O modo como me olha… Estou me sentindo um ser do outro mundo. — Desculpe. É que… — Ela ainda não conseguira organizar os pensamentos. — Fiquei surpresa ao ver que você… que você parecia tão interessado… — Interessado em quê? — Os olhos dele brilharam. — Em salvar o pelicano, é claro. No que mais poderia ser, pensou Carla. Ele desviou o olhar. — Surpresa porque eu demonstrei um pouco de afeto e decência? Seria mais típico de um cara como eu ter batido no pássaro com uma enxada? — Não, claro que não! Quero dizer… — A voz dela foi sumindo. Não estava certa se gostara de ver esse lado-humano e vulnerável de Nick. Aquilo interferia fortemente na imagem que tinha dele. — Faz isso com freqüência? — Isso? — Essa espécie de resgate — explicou ela, na falta de outra coisa a dizer. — Sempre que possível. — É… é… — O que, Carla? Nick chegou mais perto, fitando-a. O ar estava quente e úmido, sem vestígios da brisa marinha. Carla notou o suor brotar na testa dele e sentiulhe o calor da respiração contra a sua pele. — É uma bela ação — ela falou, enfim. Nick riu. Ela tentou desviar o olhar, mas os olhos dele a hipnotizavam. Top voltou e deitou-se a seus pés. Carla mais sentiu a presença do cachorro do que o viu. Na verdade, só conseguia ver Nick. — Sou um cara legal. — Ele ergueu a mão, passando-a suavemente no rosto dela. — Não sabia disso, não é? — Carla sacudiu a cabeça numa negativa, dando-lhe a chance de acrescentar: — No fundo, você não sabe nada sobre mim. Mas eu sei muito a seu respeito. Sei o que pensa de mim, por exemplo. — Não, não sabe. Eu… — Sei, sim. 51


— Bem, eu lhe disse… — Isso não interessa, Carla. O que se diz e o que se pensa, muitas vezes, são coisas completamente diferentes. Ela tentou dar uma resposta rápida, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Nick estava tão perto… perto demais. A mão dele tocou seu ombro, depois deslizou-lhe pelo braço. Então, ele sussurrou em voz rouca: — Neste exato momento, está pensando que não sou um sujeito tão ruim quanto posso parecer. Está se perguntando se me julgou mal. Está se perguntando se não poderíamos ser amigos. — Bom… — Ela não conseguia articular um pensamento. — Esta pensando se não poderíamos ser mais do que amigos. — A voz dele era hipnótica. — Não, não estou — Carla conseguiu dizer. — Sim, está. Sempre acabavam negando o que o outro dizia. Mas uma coisa era negar palavras ou afirmações: outra, muito mais perigosa, era negar sentimentos. — Talvez até esteja pensando em como seria se eu a beijasse. Carla se pôs em estado de alerta. — De jeito nenhum. Recuou um passo. Infelizmente, recuar implicava em adentrar o mar ou afundar ainda mais na areia. Ela não teve escolha, senão voltar para onde Nick estava, num terreno mais firme. Sem perda de tempo, ele a tomou nos braços e procurou-lhe a boca com lábios gulosos. O efeito foi eletrizante. O beijo atingiu Nick como um raio. A pele de Carla, o seu gosto, o seu perfume… Toda a ironia com que a vinha desafiando desapareceu, perdendo por completo o significado. Agora, era só a presença suave e feminina que importava. Os lábios dela eram macios, doces, saborosos… Nick sentiu-lhe a boca úmida, o calor do corpo e os seios firmes contra si. Seus braços a apertaram com força e de repente, ele experimentou a sensação de estar perdido. Carla não encontrou disposição para resistir. No momento em que a língua de Nick encontrou a sua, abriu ainda mais os lábios, entregando-se e retribuindo o beijo. Nenhum dos dois notou a água batendo em seus tornozelos. Top se esfregava em suas pernas e mesmo assim, ambos só tinham atenção para 52


aquele beijo arrebatador. Passando a perna em torno das pernas dela. Nick fez com que seus quadris se encontrassem num contato atrevido. Depois, abraçou-a com força e tez menção de intensificar os carinhos com os lábios e as mãos. — Não! — gritou Carla de repente. Desvencilhou-se e firmou o pé como pôde na areia instável. — Não, não quero beijá-lo! Mesmo antes de terminar a frase, percebeu que esperara tempo demais para um protesto tão veemente. Nick balançou a cabeça e sorriu. — Querida, você já me beijou, e acho que gostou tanto quanto eu. Na verdade, acho que gostou até mais — zombou. — Você é um aproveitador, Nick Fleming. Pegou-me de surpresa, só isso — replicou ela, afastando-se em busca de um maior apoio para o pé. — Eu não tinha para onde escapar, exceto o oceano. E não ia me afogar por sua causa, certo? Ele riu. — Quanto ao beijo… Bem, eu é que sei o que senti ou deixei de sentir! — acrescentou, furiosa. — Claro, você é quem sabe. Carla estava finalmente recuperando o fôlego, e seu coração parara de bater loucamente. Notou que Nick também respirava com uma certa dificuldade, além de ter o rosto corado. Com certeza, isso não era resultado, somente do calor da tarde. Dando-lhe as costas, ela seguiu em direção ao Sundowner, chutando com raiva a areia antes de pisá-la. Top ia atrás. Ao perceber que Nick também a seguia, comentou entre dentes: — De qualquer modo, esse beijo é irrelevante. — Irrelevante? — Ele tentou agarrar-lhe o braço e impedir-lhe a caminhada, mas não conseguiu. — Não significou nada. Não tem importância. — Achei que foi quente, Carla. Para falar a verdade, você me surpreendeu. Beija muito bem, sabia? Ela parou abruptamente e o cachorro trombou de encontro a seus pés. Começava a perder a calma. — Não estou disposta a ouvir suas opiniões, Nick. Nem hoje, nem nunca. O único relacionamento que vai existir entre nós — acrescentou, agitando o dedo diante de seu rosto irônico — será de negócios. E isso só enquanto você insistir em ficar zanzando por aqui. 53


— É você quem está zanzando por aqui. Eu moro aqui, lembra-se? Carla se virou e continuou a chutar a areia. — Estou aqui para ficar — ele acrescentou. — Também tenho forças para ficar, Nick. É imaginação… algo que nem todo mundo tem. — Do que está falando? — Estou talando que certas pessoas só pensam com seus corpos. Irritada, reiniciou a caminhada rumo ao bar. Não tinha a intenção de dizer aquilo, mas a frase simplesmente fugiu de sua boca. — E você não é assim? — indagou Nick. — Não. Penso com a cabeça. — E em que estava pensando, enquanto me beijava? — perguntou ele, provocante. Haviam chegado à escada do terraço. Carla subiu dois degraus e parou para encará-lo. — Contratei uma nova assistente. Ela é incrível. Nem você vai encontrar defeito nela. — É? — Bom, talvez eu me engane a esse respeito. Você dá jeito de achar defeito em tudo e todos. Mas ela é uma cozinheira experiente, uma mulher de muita competência. Vai cuidar do cardápio do salão, fazer as compras… — E quem é esse modelo de virtude? — Chama-se Betty Jacobs e… — Maldição! — berrou Nick. — Contratou Betty Jacobs? Oh, Carla, não posso acreditar. Carla subiu ao terceiro degrau para fugir à força da reação dele. — Qual é o problema com ela? Conhecia meu pai e achei que… — Que me conhecia? — Conhece? — indagou Carla, timidamente. — Conhece. E conhece Arthur também. — Eu não sabia… — Carla sentia que algo mais estava por vir, mas não tinha muita certeza. — Pois é. Ela o conhece muito bem. Foram casados. — Oh, não — gemeu Carla. — Oh, sim. — Bem… Carla precisava de tempo para pensar. Só que Nick não estava disposto a lhe dar esse tempinho. 54


— Divorciaram-se há alguns anos — ele explicou. — A briga foi feia e ela saiu da cidade. — Bem — repetiu Carla. — Tenho certeza de que isso não tem nada a ver com o restaurante… — Claro que tem, Carla. — É possível que ela nem saiba que Arthur ainda está aqui. — Duvido! Terminaram de subir as escadas. Betty não estava em parte alguma. — Bem — disse Carla pela terceira vez. — Ela se foi. Com certeza, mudou de idéia quando soube que Arthur estava aqui. Então, como vê, está tudo certo. Vou contratar outra pessoa e… — Não é dela a bolsa aí, em cima da mesa, com essa flor enorme? — perguntou Nick. — Betty ainda está aqui e tem um motivo para isso. E eu aposto que esse motivo não tem nada a ver com sanduíches e saladas. — Nick, contratei a melhor pessoa para a função. Admito que fiquei um pouco intrigada ao ver alguém com tanta experiência querer trabalhar aqui, num restaurante tão modesto, mas achei que isso não era da minha conta. E continua não sendo. Ela preenche todas as minhas exigências. — O que está querendo dizer, Carla? — Que Betty fica. Não tinha certeza se era mesmo o que queria. Afinal, tudo acontecera com muita rapidez. Porém, já havia se comprometido e não tinha outra escolha, senão se aferrar à decisão inicial. Meio sem graça, procurou tranqüilizá-lo: — Tudo acabará bem, você vai ver. Eles vão se entender… na cozinha. Nick duvidava. — Não os viu juntos antes. Este lugar não é grande o bastante para aqueles dois. Não era antes e não será agora. — Está exagerando, Nick. — Pelo contrário. É impossível exagerar a animosidade existente entre os dois. Por que acha que ela voltou? — Não tenho a menor idéia — declarou Carla com firmeza —, só sei que Betty queria um emprego e eu dei um emprego a ela. Carla se atirou numa cadeira do terraço e Nick ficou em pé diante dela. — Acho que nunca vi teimosia maior do que a sua em toda a minha vida. Primeiro, vem aqui e começa a mudar tudo contra a opinião de todos… — “Todos” quer dizer você e Arthur — observou Carla. 55


Ele ignorou o comentário. — Aí contrata a ex-mulher de Arthur para trabalhar ao lado dele na cozinha. E quando descobre o que fez, diz que ela fica e ponto final. Não dá para acreditar! — Quem sabe ele fica contente ao vê-la de volta — sugeriu Carla. — Oh, sem dúvida. Tão feliz quanto se visse um enorme tubarão branco na sua sopa de mariscos. — Arthur não faz sopa de mariscos, mas coloquei o prato no cardápio e Betty vai prepará-lo. — Sabe muito bem do que estou falando. Não tente ser espertinha comigo. — Não tente você ser espertinho comigo — retrucou. — Contratei a melhor pessoa para o serviço. Como ia saber que fora casada com o cozinheiro-chefe? — Você mesma disse que teve suspeitas. Talvez devesse ter-lhe perguntado por que ela veio aqui. — Perguntei. Betty falou que gostava da costa do Golfo. — E você aceitou essa resposta? — perguntou Nick, sem acreditar. — Não acha que seria um pouco estranho se eu perguntasse a todas as candidatas se elas haviam sido casadas com o cozinheiro-chefe? — Carla tinha dificuldades para se defender. — Estou certa de que quando perceber que ninguém a quer aqui, Betty irá embora. — Você não conhece Betty Jacobs! — Talvez Arthur fique contente em revê-la — tentou ela de novo. — Você não conhece Arthur! — Vou explicar a situação a ambos separadamente. Você verá, Nick. Tudo se resolverá. — Claro. Tudo se resolverá. Ele mal completara a frase, quando ouviram uma algazarra terrível vinda da cozinha. Parecia que panelas e vasilhas estavam sendo varridas e derrubadas por uma rajada de vento. O rosto de Nick adquiriu um ar de superioridade. — Tenho a ligeira impressão de que Betty e Arthur estão reatando seu bom e velho relacionamento.

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CAPÍTULO VI

Nick e Carla correram para a cozinha. Betty e Arthur situavam-se em lados opostos da reluzente peça. Havia dezenas de panelas jogadas ao chão entre eles. Por um longo instante, o quarteto ficou se entreolhando. Betty rompeu o silêncio: — Arthur ficou tão entusiasmado ao me ver aqui que derrubou toda uma fileira de panelas de cobre — explicou, antes de se virar para Nick com um largo sorriso. — Olá, Nick querido! Venha me dar um abraço. Ele abriu caminho por entre os destroços e abraçou-a. — Faz um tempão, Betty. Você não mudou nem um pouco. Carla sentiu uma estranha inquietação ante aquelas palavras, mas Betty não pareceu perturbar-se. — Você também não, querido. Fico contente em vê-lo de novo. Enquanto os dois se abraçavam, Carla ousou dar uma espiada no rosto de Arthur. O cozinheiro parecia se esconder atrás de um escudo de cautela, com olhos atentos e vigilantes, a boca em linha reta, impassível. Arthur se mexeu e outra panela da fileira deslocada veio ao chão. Os outros olharam para ele, na espera do que viria a seguir. Veio apenas uma pergunta, dirigida a Betty: — Então, o que está fazendo aqui? — Sua voz retumbante soava estranhamente desafinada. — Começando em meu novo emprego — afirmou ela, evasiva. — Em Cypress Key? — Ora, sim. — Onde? Nick e Carla apenas observavam, em completo silencio. — Aqui — arriscou Betty. — Aqui onde? — Aqui. No Sundowner. — Ah, não… — a voz explosiva de Arthur agora era inaudível. — Ah, sim. Carla me contratou como sua assistente. Era evidente que Belty estava satisfeita consigo mesma e queria que todos, Arthur em especial, soubessem disso. O olhar dele passou da ex-esposa a Carla. Seus olhos castanhos, 57


dardejantes, pediam uma explicação. De repente, Carla também resolveu ousar. — Betty era perfeita para o cargo — explicou. — E eu não tinha a menor idéia de que… — Não vai dar certo. — As palavras de Arthur agora se dirigiam a Nick. — Não vai dar certo de jeito nenhum. Esta cozinha não é grande o bastante para nós dois. Cypress Key não é grande o bastante para nós dois. — Como ninguém negasse sua afirmação, ele exigiu: — Você tem de fazer algo a respeito disso, Nick. Agora. Carla prendeu a respiração, aguardando a reação de Nick. Esperava que ele apoiasse o cozinheiro e que a mandasse escolher entre Arthur e Betty. Nick, com todos os olhos sobre si, foi até o refrigerador, abriu a porta e retirou um jarro de chá gelado. — Alguém quer um pouquinho? — ofereceu. Todos sacudiram a cabeça ao mesmo tempo. Ele foi até o armário, pegou um copo, serviu o chá e deu um grande gole. Carla desconfiava de que Nick gostava de ser o centro das atenções. Mas logo percebeu que ele estava era tendo dificuldades em tomar uma decisão. — Nick… — arriscou ela, sem saber depois como prosseguir. Ele encarou-a por um longo instante, para então declarar. — Vou deixar uma coisa bem clara, Carla: isto não é um problema meu. Arthur fez menção de protestar, mas Nick ergueu a mão, silenciandoo. — Em primeiro lugar, minha política é não me meter nos negócios de Carla. Se ela falhar, vai falhar por conta própria. — Olhou para Arthur: — Acho que já conversamos sobre isso. — E se eu for bem-sucedida? — perguntou Carla. Ele fingiu não ouvir a pergunta e ela insistiu: — Creio que as mesmas regras se aplicam, quer eu seja bem-sucedida, quer fracasse. — Como já disse, não tenho nada a ver com isso — Nick também insistiu. — Nem Arthur. — Mas essa mulher — Arthur apontou para Betty com uma colher de pau — vai invadir a minha cozinha. — Certo. É a sua cozinha — concordou Nick. — Precisamos deixar isso 58


bem claro. Arthur trabalha aqui em tempo integral. Pelo que entendi, você vai trabalhar meio-período, não é, Betty? — Claro. E não tenho nada a ver com os cardápios de Arthur. Isso é com ele. Vou fazer as compras e preparar os meus pratos. Podemos até colocar uma divisória, para não vermos um ao outro. Afinal, preciso muito deste emprego. Nick fez cara de espanto. — Achei que você podia escolher qualquer lugar que quisesse para trabalhar. — Carla me contratou, não foi? — perguntou Betty, fugindo à pergunta dele. — Contratei — confirmou Carla, lembrando-se de seu entusiasmo quando entrevistara Betty. Pena que a empolgação havia durado tão pouco… — Está vendo? — Betty perseverou. — O contrato já está assinado? — arriscou Arthur. — Ainda não — admitiu Carla. — Bom, então… Arthur olhou para Nick, que olhou para Carla, que olhou para Betty. Em vão. Betty Jacobs estava determinada a enfrentar o desafio: — Não sou o tipo de pessoa que fica se queixando porque é admitida num emprego e depois demitida no mesmo dia por causa de discordâncias pessoais fora de meu controle. — Não, estou certa de que não — falou Carla. — Ou é? — Bem, Carla, você me prometeu o emprego. — O contrato ainda não foi assinado — arriscou Arthur outra vez. — Que fazemos, então? — perguntou Betty. Nick acabou o chá e seguiu rumo à porta, pronto a sair de cena. Antes, porém, deu uma idéia: — Minha opinião é que podemos insistir em que Betty seja… hã, dispensada, o que poderia fazer com que ela se queixasse a… — À Câmara do Comércio — sugeriu Betty. — Ou à Secretaria do Trabalho da Flórida, ou ao Comitê de Defesa dos Direitos Civis, ou… — Ótimo! Vá em frente e reclame — ordenou Arthur. — Não! — falaram Carla e Nick em coro. Então Nick deu uma risada. — É a primeira vez em que concordamos com alguma coisa, desde que você chegou ao Sundowner. 59


— Tinha de acontecer — observou Betty jovialmente. — Não queremos magoar ninguém. — Nick, severo, fitou Arthur. — Vamos entrar em acordo. — Que tipo de acordo? — perguntou Arthur. — Um período de experiência, a contar da abertura do salão para os almoços. Duas semanas, digamos. — Duas semanas! — O cozinheiro ficou desconsolado. — Não é uma vida, Arthur — disse Betty. — Dois dias pareceriam uma vida com você na minha cozinha — retrucou Arthur. — Duas semanas com Arthur comandando a cozinha e Betty trabalhando para Carla. — Nick olhou para seu ajudante. — Você pode encarar essa. Arthur rosnou em resposta: — É… Talvez, daqui a duas semanas, o almoço no “Salão do Caribe” seja apenas uma lembrança. Carla manteve a boca fechada. Não era hora de discutir com o cozinheiro-chefe. — Tudo bem. Concordo, se essa mulher — Arthur apontou a colher para Betty — prometer não bagunçar minha cozinha e ficar fora do meu caminho. — Apontou, então, para uma mesa nos fundos da peça. — Ela pode trabalhar lá. Mas não pode usar o meu refrigerador. Estou falando sério. Se eu der uma prateleira a ela, vai logo querer a cozinha toda só para si. — Existe outro refrigerador? — Carla perguntou a Nick. — O das cervejas — respondeu ele. — Podemos reservar uma prateleira para Betty. — Dê-lhe uma prateleira e ela… — o cozinheiro começou a argumentar. — Arthur… — Nick chamou-lhe a atenção. Carla continuou: — Vou arranjar uma churrasqueira elétrica ou coisa parecida para Betty cozinhar. Seremos totalmente autônomas. Você vai ver, Arthur. Como dizem por aqui nas ilhas: sem problemas. Nick deu uma risadinha. — Agora que tudo está resolvido… — Com essas palavras, ele empurrou a porta de vaivém e saiu. Carla não estava certa de que tudo estivesse resolvido, mas pelo menos ganhara uma trégua temporária. Talvez isso permitisse que seus 60


planos para o salão decolassem. — Muito bem… Tudo parece estar entrando nos eixos — comentou. — Você não me perguntou como me sinto a respeito disso, Carla — falou Betty. — Oh, eu… É, acho que não. Carla esperava pela deflagração da terceira guerra mundial, mas Betty abriu o maior sorriso, exclamando: — Maravilhosa! Mal posso esperar para voltar a trabalhar no Sundowner. E Arthur, querido, não se preocupe. Vou fazer o que quiser que eu faça. Vai ser como nos velhos tempos. Carla gemeu baixinho e fitou Arthur de relance. Ele ainda empunhava a colher, como se fosse uma arma. — Só que melhor — continuou Betty — porque você e eu nem vamos nos ver. — Como imagina fazer isso? — Arthur parecia escolher as palavras. — Vamos colocar uma divisória. — Não acho que seja necessário, só por duas semanas. Podemos ignorar um ao outro. — Um fingir que o outro não existe? — perguntou Betty. — Não… Quero dizer, sim. — Grande! — Betty concordou de imediato. — Você fica na sua e eu fico na minha. — Oh… ótimo — falou Arthur. — Agora acho que já é hora de voltar ao cardápio. Rebolando os quadris, Betty saiu da cozinha, deixando Carla e Arthur compartilharem um silêncio inquieto. Vários dias depois, o salão do Sundowner foi inaugurado com um almoço solene, encomendado por um grupo de senhoras. Ao final do dia, Betty encontrou Carla no terraço, atirada numa cadeira como uma boneca de pano. — Está vendo? Você sobreviveu! — Quase não consegui — replicou Carla, exausta, os olhos fixos no chão. Betty pôs a mão em seu ombro para reconfortá-la. — Considerando tratar-se da primeira vez, as coisas até que foram bem. Dentro do esperado, pelo menos. Enfim, Carla ergueu a cabeça e deu um suspiro. 61


— Com isso você quer dizer que foi natural confundir pedidos e derramar chá nos fregueses e… — E ouvir um freguês irado fazer um discurso sobre a idiotice de se colocar nozes na salada de galinha… — Betty afundou numa cadeira ao lado de Carla. — Como é que eu ia saber que a mulher não podia comer nozes? — Carla estava inconformada. — Creio que, num grupo grande de mulheres, sempre se encontra pelo menos uma com problemas digestivos. Em especial num grupo chamado Clube das Sexagenárias Felizes. — Afinal, de quem foi a idéia de acrescentar as nozes? — Sua — respondeu Betty. — Ah… Bem, a salada estava deliciosa. Todos os outros gostaram. — Não há dúvida. Carla lançou os olhos pelo Golfo, pensativa. — Talvez não devêssemos ter começado com um almoço para trinta mulheres. Talvez fosse melhor abrir somente para almoços de rotina, sem muito alarde, duas ou três vezes por semana para ver o que acontecia. — Bobagem. Foi um batismo de fogo e é assim que tem de ser, acredite em mim. A gente tem de erguer a cabeça e enfrentar os desafios. Além do mais, escolhemos o dia perfeito: uma segunda-feira, quando, normalmente, o Sundowner fecha e não há nenhum homem por perto para se intrometer e dar palpites. Foi bom e vai ficar melhor, Carla. — Espero que sim. Eu estava tão embaraçada e confusa, que não conseguia me lembrar quem tinha pedido salada de camarão, quem tinha pedido frango, quem queria molho diet e quem… Ora, não preciso ficar relembrando essas coisas. Você foi testemunha do desastre. — Bem, digamos que você não nasceu para ser garçonete. — Está tentando dourar a pílula, Betty. Estou me perguntando se tenho condições de dirigir o novo salão, isso sim. Betty inclinou-se para frente e olhou nos olhos de Carla. — Claro que tem. O almoço foi muito bem planejado. Quando o negócio pegar, pode contratar garçons e alguém para trabalhar no caixa… que você operou muito bem, aliás. Carla já colocara as rendas do dia num envelope, que carregava consigo. — É, tivemos um bom lucro, mesmo se descontarmos os custos da limpeza do vestido da Sra. Perry. 62


— Uns respingos de chá. Nada mais. — Sorte que não foi café quente, só chá gelado. E ainda bem que não caiu no colo dela, só respingou em seu busto. As duas riram. — Faz parte do jogo. — Betty se espreguiçou. — Agora, se não precisa mais de mim, vou tomar um bom banho. Carla olhou para o relógio. — Quase seis horas… Você trabalhou em tempo integral hoje, Betty. Obrigada por ficar para a limpeza. Não sabia que ia demorar tanto. — Sei como Arthur gosta de sua cozinha e se tudo não estivesse impecável, ficaríamos em maus lençóis. — Você e Arthur… — Carla hesitou um pouco. — Está tudo bem na cozinha? Por favor, diga que sim. Preciso de boas notícias. — Está tudo bem, querida. Enquanto eu não lhe disser como fritar os frutos do mar e ele não me disser que verduras colocar na salada, vamos em frente. Arthur é um homem encantador quando quer. — Não há dúvida de que é um homem atraente. — Lá isso é — Betty concordou com um suspiro. — Quase havia me esquecido de como ele era atraente. E parece mais calmo agora. — Mais calmo? Arthur? — Nos velhos tempos, não podíamos ficar dois minutos na cozinha sem brigar. Se eu dizia “ponha alecrim”, ele colocava tomilho. Brigar com Arthur a respeito dos temperos me parece bobagem agora. Há outras formas de atrair a atenção dele. — Betty, você e Arthur… Quero dizer, vocês são divorciados, mas você parece… — Tivemos tempos ruins, mas tivemos tempos maravilhosos também. No momento, nossas relações são estritamente profissionais. — Hum… Foi por isso que ele fez a salada para nós? Betty deu uma risadinha. — Não posso falar mais nada a respeito de Arthur… por enquanto. Está na hora de ir para casa. Você trabalhou direto, sem parar, arrumando o salão e anunciando a inauguração. — Deu uma batidinha no ombro de Carla. — É um gênio da propaganda, e uma decoradora de primeira. Trabalhou duro para chegarmos a este dia. Carla reclinou-se na cadeira e sorriu. — E agora todos sabem que o salão vai funcionar como um restaurante de verdade. E classe é o que não falta ao lugar, não é? 63


Betty olhou do terraço para o salão brilhantemente decorado. — E está milhares de anos-luz à frente da espelunca que era antes. Estamos só começando, Carla. Aposto que você terá tanto sucesso quanto Nick tem tido. — Nick? — Ele tem tido muito sucesso, garota, ainda que seu gosto em termos de decoração seja abominável. Nick sabe como manter os fregueses. Ele e Arthur. De má vontade. Carla teve de admitir que Betty tinha razão. Nick dava um toque mágico ao bar. — Mesmo assim, há mais de uma maneira de dirigir o Sundowner — ela comentou. — Não precisa provar tudo isso num dia. Agora, feche o salão e vá para casa — ordenou Betty. — Num instante. Só quero verificar mais alguns detalhes… — Bom, eu desisto — Betty se levantou. — Até amanhã. — Boa noite, Betty. E muito obrigada. Sem você, eu… — Não teria conseguido. — Betty piscou um olho. — Eu sei. Carla passou mais meia hora no salão, calculando os rendimentos do almoço. Faltavam só dois dólares, o que considerava um milagre em vista do pesadelo que fora arranjar troco para trinta pessoas. Mas sobrevivera e algumas das mulheres até tinham falado em voltar, quando o Sundowner abrisse diariamente para o almoço. Contudo, nunca imaginara que fosse tão estafante trabalhar num restaurante, tanto física quanto emocionalmente. Ela e Betty haviam trabalhado na cozinha desde as oito da manhã. Para a surpresa de Carla, Arthur deixara uma travessa gigante de salada de camarão na prateleira de Betty, no refrigerador das cervejas. Betty apenas sorrira misteriosamente diante do presente dele, passando depois a instruir Carla como limpar e preparar os ingredientes que utilizariam. Carla desfiara peitos de frango, picara aipo e cebolas, cortara tomates e abacates em fatias e alfaces em tiras. Depois arrumara as mesas, recebera os fregueses, anotara os pedidos, servira os pratos, as bebidas e o café, além de apresentar o bolo de aniversário que Betty havia preparado. Graças a Deus, Nick não estivera presente para vê-la correndo de um lado para o outro, como Top atrás de uma gaivota. Graças a Deus, não a vira derramar chá na sra. Perry. Graças a Deus… — Quem se importa com o que Nick Fleming pensa a respeito de alguma coisa? — perguntou a si mesma em voz alta. 64


Saiu do salão com o envelope na bolsa. Pararia no caixa automático a caminho de casa. Depois, seguiria o conselho de Betty e tomaria um bom banho e um copo de vinho antes de uma longa noite de sono. Trancou a porta do salão ao sair e parou um momento no terraço. O céu estava rajado com tons de laranja, rosa e fúcsia que emanavam da bola vermelha representada pelo sol, pairando à superfície das águas. — Uau! — exclamou, apreciando o espetáculo. Deveria reservar alguns minutos por dia para assistir ao pôr-do-sol no Golfo. — É de graça. E é também o mais belo espetáculo do Golfo. Espantada, Carla se virou ao som da voz de Nick. Ele subiu devagar a escada e ficou ao lado dela, junto ao parapeito. Estava de pés descalços e só de short. — Não o ouvi chegar. — O tom era acusatório. — Vim da praia. Andei pescando com uns amigos, do outro lado do cabo. — Pegou algum peixe? — perguntou ela, evitando admirar-lhe o peito bronzeado. — Duas caranhas vermelhas de bom tamanho. Estão no gelo, lá embaixo, para que Arthur as cozinhe logo cedo. São ótimas no café da manhã, sabia? — Não, não sabia. — Quer experimentar? — Peixes não fazem parte do que considero um bom desjejum. — Já tentou alguma vez? — Bom, na verdade… Nick riu. — O convite está de pé. Então, como é que foi o almoço? — A pergunta soou normal, despreocupada. — Ótimo. Sem problemas — mentiu ela. — É bom saber. Ainda acha que vai ter sucesso? — Pode apostar — replicou Carla, com mais fervor do que sentia no momento. — Espero que os nativos sejam mais tolerantes, pelo fato de você ser filha de Sean. Ela o fitou com severidade. Aquela expressão de estudada indiferença a deixava nervosa. E o fato de Nick estar praticamente nu também não ajudava. Seus olhos não conseguiam se fixar no rosto dele. Notou, fascinada, como os pelos escuros do peito bronzeado iam-se afilando, formando uma 65


linha na altura do abdômen, e desapareciam dentro do short. Seu olhar curioso e admirado deslizou para as coxas e panturrilhas. Estremecia à lembrança do beijo e da sensação daquele corpo musculoso contra o seu. Forçando os olhos a se fixarem no rosto dele, Carla respondeu: — O que quer dizer exatamente com “mais tolerantes”? — O chá no vestido de seda novo de Mary Beth Perry. — Como soube? — Estava pescando com Ned Perry e depois parei na casa dele para uma cerveja. Mary Beth me contou tudo o que ocorreu no almoço. Carla sentiu um peso no estômago. — Não foi nada, na verdade. Uma dessas coisas que acontecem de vez em quando. O que a sra. Perry disse? — Disse que você se ofereceu para limpar o vestido e como é filha de Sean e minha sócia, ela não a processaria. Carla notou que ele estava com vontade de rir. — Está mentindo, Nick Fleming. — Sobre o processo, sim. Mas não sobre a amizade que a velha senhora dedicava a Sean e que dedica a mim. É provável que tenha sido por isso que Mary Beth encomendou o almoço a você. — Por acaso, perguntou o que ela achou da comida e da decoração? — Não, para falar a verdade. — Muito obrigada. O Sundowner é nosso, Nick. Podia demonstrar um pouco de interesse. — Esses almoços para mulheres não foram idéia minha, Carla. — Mas estão acontecendo. São um fato. Creio que, como sócio, deveria mostrar entusiasmo em vez de me tratar como uma coitadinha. — Não fiz perguntas. Só ouvi e o que ouvi é que todo mundo está curioso para saber por que você ainda está aqui. — Ora, pergunte a Mary Beth Perry. Estou dirigindo um restaurante e fazendo um bom trabalho — falou Carla por entre os dentes cerrados. — Tendo em vista que já existe um restaurante popular aqui, fazendo um bom trabalho, as pessoas ficam imaginando que há outros motivos. Carla encarou-o, ignorando o modo como o sol criava reflexos dourados em sua pele nua. — Ah, é mesmo? — É. Então, tive que lhes contar o verdadeiro motivo pelo qual você decidiu ficar em Cypress Key. Carla viu o riso perverso pairando nos lábios dele e manteve sua 66


própria boca firmemente cerrada. Nick seguiu em frente: — Contei-lhes que o negócio do restaurante é secundário. E que você só permanece aqui porque está louca por mim. — Você lhes disse isso? — A voz de Carla se elevou. — É a verdade, não é? — sussurrou Nick, cruzando os braços sobre o peito. — Claro que não! — Claro que é, Carla. Só que você ainda não sabe. — Vou fingir acreditar que você esteja brincando, Nick. — Brincando? Não se lembra do nosso beijo, bem aqui, na praia? — Ele apontou para a água. — As faíscas daquele beijo poderiam ter incendiado este velho lugar e reduzido-o a cinzas. Ela fitou o Golfo, tentando se recompor. — Não estou falando de beijos! O que acontece é que… Oh, Nick, você me contunde tanto! Nem sei dizer o que acontece de verdade… Nick passou ternamente os dedos ao longo do braço dela. Carla sentiu um arrepio vindo da nuca e descendo, como um raio, pela espinha. — É o magnetismo que nos envolve, Carla. Nós. Ela teve a sensação de que tudo havia parado: sua respiração, o vento nas palmeiras, as ondas no mar. Seus olhos encontraram os de Nick. brincalhões, sensuais e donos de uma força hipnótica. Mais um instante perto dele e estenderia o braço para passar a mão sobre a pele macia do tórax largo. Mais um instante e… Isso não devia estar acontecendo. Odiava Nick. Não odiava? Carla lutou para acordar do transe. — Nós? Não existe nós, Nick. É você de um lado e eu do outro. E esta falsa parceria. — Lutava para controlar a voz, amaldiçoando-se por estar confusa e trêmula quando mais precisava ser fria e imperativa. Nick deu um sorriso atrevido. — Tudo entre nós é bem real, Carla. Venha, vamos lá para cima onde é mais agradável. Vamos tomar um drinque, conversar um pouco… — A única coisa que tenho a lhe dizer é boa noite. Carla sabia que tinha de ir embora, colocar distância entre ela e Nick antes que algo de perigoso acontecesse. Agarrou a bolsa e começou a atravessar o terraço, quase correndo. A voz dele ressoou languidamente no ar quente tropical. — Isso quer dizer que o nosso encontro para o café da manhã foi cancelado? 67


Por que, pensava Carla, Nick sempre tinha a última palavra? A caminho do barco, relembrou aquela última cena. Era típico dele: zombar de suas reações e confundi-la. Queria ter dito tantas coisas a Nick ali mesmo, no terraço; mas ao vê-lo seminu, tocando-a, falando em beijos, dera-lhe um branco. Mesmo agora, que estava longe, não conseguia tirá-lo da cabeça. Faíscas, ele dissera. Magnetismo. Podia lidar com Nick, disse para si própria, e repetiu em voz alta: — Posso lidar com Nick Fleming. Mas… Qual Nick? O arrogante, machão, o homem que tentava lhe dar ordens em relação ao Sundowner, ou o homem de negócios respeitado pelos empregados e pela comunidade? O Nick brincalhão, que parecia adorar enervá-la, ou o Nick terno, gentil, que cuidava de pássaros feridos? Ou, o que mais a confundia, o Nick que olhava para ela com tanto desejo que tivera de fugir correndo? Maldito. Enfim, viu o barco a sua frente, balançando nas águas, e deu um suspiro de alívio. Mesmo que não fosse exatamente o lar de seus sonhos, pelo menos era um porto de chegada depois de um longo dia. Deitaria e tentaria tirar da cabeça tudo o que se referisse a Nick Fleming. Abriu a porta e entrou, pronta para ser saudada por uma corrente de ar frio. Não foi. Em vez disso, foi recebida por um calor sufocante. Uma sauna seria mais refrescante. Carla tinha certeza de que deixara o ar condicionado ligado de manhã, mas talvez, na pressa de chegar ao Sundowner; houvesse esquecido. Acendeu a luz e verificou os controles. O botão estava ligado. Nervosa, desligou e ligou o aparelho de novo. Não fez nenhum ruído, não resfriou nem um pouquinho. O ar condicionado pifara. Praguejando em voz baixa, ela escancarou as janelas e as portas. Inútil. O ar sobre o rio também estava quente e pesado, nenhuma brisa agitava a noite úmida. O suor brotou em seu pescoço. Carla pegou uma toalha e enxugou-o. Examinou outra vez o condicionador de ar. Era bem coisa de Nick Fleming… Empurrar-lhe um aparelho decrépito como aquele! Provavelmente, ele sabia que aquela porcaria iria pifar mais cedo ou mais tarde, pensou ela, enquanto virava todos os botões, ligava e desligava a tomada e, por fim, socava a máquina com o punho. Frustrada, Carla livrou-se das roupas e entrou debaixo do chuveiro. Deixou a água fria espalhar-se por todo o seu corpo, até se sentir melhor. 68


Então se secou e, ainda envolta na toalha, serviu-se de um copo de limonada. Encolhida na cama, bebeu sua limonada e logo sentiu o calor envolvê-la de novo, pior do que antes. De certa forma, o fato de haver se refrescado tornava o calor ambiente ainda mais opressivo agora. Refletiu sobre as alternativas de que dispunha. Dormir no barco seria impossível: ficaria acordada a noite toda, banhada em sua própria transpiração. Menos atraente ainda era a idéia de levar o colchão para o convés, onde os mosquitos a comeriam viva. Acalorada e frustrada, caiu na cama de novo. A imagem de Nick veio-lhe de súbito a mente. Nick, desfrutando do conforto do ar condicionado do apartamento do andar de cima do Sundowner. O apartamento de seu pai, os quartos que deveriam ser dela! Ele dormiria lá confortavelmente aquela noite, enquanto ela permaneceria acordada numa sauna, rezando para que o dia amanhecesse logo. Ele escutaria música, leria, assistiria à televisão, faria tudo o que qualquer pessoa normal faz. Ela ficaria acordada num barco num rio tenebroso, esperando que uma leve brisa agitasse as cortinas esfarrapadas… Era absurdo! Não aceitaria aquela situação! Ficou de pé, decidida a pôr um fim àquele martírio. Não ia ficar num barco em ruínas longe de toda a civilização, enquanto Nick Fleming desfrutava de uma vida de confortos. De jeito nenhum. Tremendo de raiva e indignação, Carla abriu com violência a gaveta sob cama, tirou um short limpo, uma camiseta e roupas intimas. Depois de vestir-se, agarrou a bolsa e saiu batendo a porta. Já era mais do que tempo de Nick e ela acertarem as contas.

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CAPÍTULO VII

Carla entrou no apartamento de Nick aos empurrões, sem notar a surpresa dele e sem se importar com suas observações. A única coisa que lhe chamou a atenção foi o friozinho delicioso do ar condicionado. — Carla, que diabo… Ela parou no meio da sala e olhou pela janela que ia do chão ao teto. — Bela vista do Golfo — comentou, antes de se virar para observar o restante das acomodações. Era um apartamento amplo e arejado, com móveis interessantes: algumas peças em carvalho branco, um sofá estofado e cadeiras de aparência confortável. As paredes eram azul-marinho, com remates em branco. Irônica, ela anunciou: — As cores são náuticas demais para mim, mas sem dúvida alguma, é fresco. Acho que dá para o gasto. — Quer me dizer o que… Numa das extremidades da sala, Carla avistou uma pequena cozinha e uma porta aberta, que dava para o quarto de dormir. — É, parece bom — ela interrompeu o que Nick ia falando. — Obrigado pelo elogio à decoração. Tem mais alguma coisa a declarar? — Tenho muitas coisas a declarar, Nick. A primeira é que você vai sair daqui e eu vou me instalar. Pode pegar as suas roupas amanhã. — De que diabo está falando? Não vou a lugar algum! Ele ainda estava de pés descalços, com seu short caqui. Os músculos do tórax brilhavam com a luminosidade bronze da lâmpada. Carla, então, sugeriu: — Talvez queira vestir outra roupa antes de sair. — Não vou sair. — Odeio discordar de você, mas vou tomar posse deste apartamento agora mesmo. Se quiser saber o porquê, vou lhe contar com todo o prazer: o ar condicionado do barco pifou. Puf… Morreu. “Sua casa” está uma verdadeira sauna e não vou dormir lá. Nem hoje, nem nunca mais! Nick balançou a cabeça. — E é um aparelho bem velho. Achei que você teria de trocá-lo, mais 70


cedo ou mais tarde. — Eu teria? — perguntou, estupefata. — Você o instalou, e você vai trocá-lo. O barco é seu… — E você está morando lá de graça, Carla. Precisa assumir alguma responsabilidade, não acha? O tom calmo e racional de Nick não acalmava Carla nem um pouco. Na verdade, irritava-a ainda mais. — Estou assumindo responsabilidades. Estou assumindo a responsabilidade sobre o apartamento do meu pai. Do meu pai — repetiu. — E onde sugere que eu durma? Na praia? Ela notou que Nick não estava levando sua exigência a sério. — Vá para um hotel. Para a casa de Arthur. Para a casa dos Perry. Vá para qualquer lugar, mas saia agora mesmo, Nick. Estou cansada. Foi um longo dia e estou louca por uma boa noite de sono. Nick ficou em silêncio por um longo instante antes de dar um passo na direção dela. Devagar, com calma. — Carla, você está exausta e nervosa. Vamos tomar um drinque e conversar. Vou dar um jeito, tudo vai ficar bem. O tom gentil de sua voz não a acalmou. — Ficar bem? Nós dois nunca vamos ficar bem, Nick. Não há mais nada a dizer. — Carla… — Nem tente, Nick. Não estou com a menor disposição. Você já fez todo o estrago que podia fazer. — Que estrago? — Vou lhe dizer que estrago! — ela gritou. — Primeiro, fica com o apartamento do meu pai e me enfia num barco com um condicionador de ar da década de vinte: depois, conta mentiras sobre mim para os Perry e… — Ah, é isso? Não se preocupe, Carla. Na verdade, eu não lhes disse que… — Não perca seu precioso tempo em explicações, Nick. Não me importa mais. Só quero que vá embora. — Apontou-lhe a porta. — Estou cheia de você! Nick deu de ombros, virou-se e sentou numa das cadeiras confortáveis que Carla cobiçara desde o instante em que entrara no apartamento. — Não vou sair de jeito nenhum — avisou. — Não sei qual é o problema, mas se não está confortável no barco e quer passar a noite aqui, fique à vontade. Seja como for, saiba que não vou abrir mão da minha cama… 71


nem mesmo para você. — Quero este lugar! Já! Neste instante! Carla percebeu que estava sendo irracional: queria parar com aquela briga tola, mas não conseguia. A onda de emoções coléricas que a invadira no barco havia se transformado numa torrente incontrolável. Dessa vez, a última palavra seria dela. — Me desculpe, Carla, mas você está agindo como uma maluca. — Se fiquei maluca, a culpa é sua! E está mais do que na hora de acertarmos as contas, sr. Fleming! — Ela notou que sua histeria aumentava, mas não fez nada para retomar o autocontrole. Talvez aquele fosse o único jeito de lidar com o turbilhão que havia dentro de si. — Finalmente, estou dizendo o que penso. Se não gosta, saia. Ou melhor, gostando ou não, saia. Saia! — Carla, venha cá… Sente-se ao meu lado e se acalme, sim? — tentou Nick de novo. — Vou lhe servir um copo de vinho, vamos relaxar e conversar como pessoas civilizadas. — Não me trate desse jeito, Nick. Sou perfeitamente civilizada e não gosto de ser tratada como uma criança histérica! — Então não se comporte como tal. — Não ouse… — Chega, Carla. Aja como adulta ou vá para casa. — Não vou voltar para aquela sauna! — Então, volte para Atlanta! — Nunca! Nick se levantou e deu um passo na direção dela. — Que tal tentarmos nos acalmar, hein? — Ao perceber que Carla reagia à mão que lhe estendia com um gesto de autodefesa, ele exclamou: — Pelo amor de Deus, Carla, não vou bater em você! — Quem me garante? — perguntou ela, quase berrando. — Carla… Nick estendeu a mão de novo. Rápida como um raio, ela recuou e pegou um vaso de cima da mesa, erguendo-o com as duas mãos e mirando diretamente a cabeça dele. — Não me toque! Estou cheia de você! — Deus do céu, você só pode estar maluca mesmo… Antes que Carla pudesse reagir, ele segurou-lhe o braço e arrancou-lhe o vaso das mãos, colocando-o no chão. Então, agarrou-a pelos ombros, impedindo-lhe os movimentos. 72


— Poderia ter me matado, mocinha. — Era a minha intenção! — Carla se contorcia e batia nele, tentando se libertar. Nick puxou-a mais para perto e passou os braços em torno dela com firmeza. — Carla, você está errada a meu respeito. Eu não sou o inimigo… — Ah, não? E quem mais poderia ser? — Talvez você seja seu próprio inimigo. — Isso é ridículo! — ela gritou, tentando acertar-lhe um bom chute. Segurando-a contra o próprio peito. Nick ergueu-a do chão para evitar os golpes. — Sua atitude mostra que não me enganei, Carla. Ela sentiu-se presa e isso foi o bastante para fazê-la debater-se com desespero ainda maior. Ao perceber que seus esforços eram inúteis, empurrou os ombros dele com as duas mãos. E, como suas palmas estivessem úmidas, suadas, deslizaram pela pele morena até alojarem-se de encontro ao peito musculoso. Por algum estranho motivo, o embate tinha adquirido um contexto erótico. Carla tentou ignorar o fato de que Nick estivesse tremendamente excitado, mas foi impossível manter-se alheia a pressão causada pelo volume que se formara na parte dianteira do short dele. Essa constatação aumentou-lhe a aflição. — Solte-me! — Não… Carla mirou um pontapé na barriga da perna dele e sorriu de satisfação, quando Nick gemeu e a largou. Num instante, escapou e fugiu em direção ao quarto. Se conseguisse entrar e se trancar lá dentro, o quarto seria seu. Em noventa por cento dos casos, a lei defende quem tem aposse, dissera Nick. Agora, usaria aquelas palavras contra ele! O plano, porém, acabou falhando. Muito rápido e ágil, Nick arremessou o corpo de encontro à porta, impedindo-a de fechá-la. Na pressa, ele calculou mal o potencial de sua força e o imprevisto aconteceu: o impacto impulsionou Carla para trás, fazendo com que ela caísse de costas sobre a cama; Nick, que perdera o equilíbrio quando a porta se escancarou, foi precipitar-se bem em cima dela. Por um instante, Carla ficou sem respirar. Então, começou a lutar novamente. — Levante, seu tonto! — ela gritou. — Saia de cima de mim! 73


— Só quando você parar de agir como uma louca varrida. A respiração de ambos estava acelerada e seus corações, tão próximos, batiam com violenta intensidade. — Louca é… — O que é isso, Carla? O que esta acontecendo com você? — Não sou eu, é você! É você quem está arruinando a minha vida, dizendo às pessoas que não resisto ao seu charme, dizendo que é por sua causa que ainda estou aqui… Nick ergueu a cabeça e fitou-a. Seus olhos brilhavam com a luz fraca do quarto. — Nunca falei isso, Carla. — Mas você disse… — E você deveria saber que eu estava brincando. — Então por que… — Porque é verdade. — A voz dele agora era baixa e rouca. — Não falei a ninguém, mas estou falando para você. A atração que existe entre nós é o motivo pelo qual estamos aqui. Agora. Deste jeito… Não é, Carla? Ela não conseguia responder. Sentia como se os pulmões ardessem por falta de oxigênio. Queria gritar que estava tudo errado, que não desejava nada daquilo que estava acontecendo entre ambos… Mas seria uma mentira. Desde o momento em que Nick a beijara na praia, era exatamente aquilo o que ela queria. Nick Fleming a perturbava. Ele a levava à loucura. Era o homem mais atraente que já conhecera. — Carla… — Nick tocou em seu rosto. Ela não conseguia articular uma palavra sequer. Tudo o que podia fazer era sentir. Sentir o peso do corpo másculo, a curva sensual da boca tão próxima a sua, o hálito quente dele em seu rosto, o toque da ponta dos longos dedos sobre sua face e sobre seus lábios. E essas sensações libertavam todas as emoções que lutara tanto para conter. Passando os braços em torno das costas musculosas, colocou a ponta do dedo de Nick na boca e provou o gosto salgado de sua pele com a língua. Quando viu o olhar de desejo que transformara a expressão de Nick, deixou que seu corpo respondesse inteiramente ao dele. O tórax nu comprimia-se contra ela e Carla percebeu que seus mamilos tiniam e endureciam sob a blusa. Os olhos de Nick lhe diziam que ele também já havia se dado conta disso. Com um gemido de satisfação, ele tirou-lhe o dedo da boca e juntou seus lábios aos dela. Carla fechou os olhos. Nick beijou-a com ardor. 74


A língua dele invadiu-lhe prazerosamente. Ela sentiu um calor crescendo lentamente dentro de si: seu corpo parecia pesado e fraco, como se todos os ossos e tendões estivessem se derretendo com o calor do abraço. Aquele calor se espalhou por todo o seu ser. Nick beijou-a no pescoço, escorregando os lábios pelo maxilar até a orelha. A respiração dele, quente, junto à sua pele, provocava-lhe pontadas de desejo por todos os terminais nervosos. — Não falei aos Perry que você estava aqui por minha causa — murmurou ele. — Menti, Carla. Essa era a minha fantasia secreta, porque desejava que me quisesse tanto quanto eu te queria. Ela sabia disso. Sempre soubera, mas tocou-a profundamente ouvir isso dele. A fantasia de seu desejo mútuo se tornara realidade. A língua de Nick fazia cadeias enlouquecedoras dentro da concha de seu ouvido. Retesando-se, Carla apertou os braços ao redor das costas dele. Sentia a pele de Nick úmida e flexível em suas mãos. Então, ele insinuou uma das pernas musculosas entre as dela, transmitindo-lhe ondas de calor. O coração de Carla batia descontrolado e sua respiração se acelerou como se tivesse corrido quilômetros. Os lábios de Nick juntaram-se aos dela novamente, num beijo longo, completo e profundo. Dessa vez Carla explorou a boca máscula com a língua, prendendo a dele com os dentes. Tudo aquilo podia ser uma fantasia irracional, mas ela não queria que tivesse fim. Nick enfiou a mão dentro da sua blusa e procurou o fecho do sutiã. Depois de abri-lo, cobriu-lhe os seios com as mãos, esfregando a palma contra o mamilo até Carla sentir um desejo torturante percorrê-la dos pés à cabeça. — Oh, Carla — ele sussurrou. — Como é bom sentir seu corpo assim… Oh, é tão bom! — Tirou-lhe a blusa pela cabeça e jogou o sutiã no chão. — Quero vê-la inteirinha… Tocá-la inteirinha. Ela gemeu de prazer quando Nick colocou o mamilo rígido na boca. Passou os dedos pelo cabelo dele e puxou-o mais para perto. Despindo-lhe o short, Nick passou a mão pela pele sensível da parte de dentro de suas coxas. — Sabia que você tinha belas coxas — murmurou em voz rouca. Então encontrou a calcinha e tirou-a com um puxão. Carla estava toda úmida e quente, e os dedos dele a acariciaram até ela gritar de desejo. A tensão interior crescia e transbordava, criando ondas de indescritível excitação. Carla experimentava um intenso desejo por ele, uma febre imperiosa, uma necessidade que precisava ser saciada. 75


— Sente como é bom estarmos juntos, Carla? — Nick sussurrou. — Sei que pode ficar melhor ainda. Quero lhe mostrar, quero… Ela estava sem voz para responder. Com as mãos trêmulas, lutava para abrir o zíper do short dele. Finalmente, conseguiu dizer: — Nick, me ajude… Ele tirou o short, chutou-o para o chão e segurou as mãos de Carla entre as suas. — Toque-me, Carla… Toque-me, por favor! Ela pôs a mão onde ele mais queria, acariciou-o e sentiu-o enrijecer. — Oh, Carla! O que faz comigo… Você me deixa louco! Carla continuou a lhe acariciar o membro ereto, enquanto baixava a cabeça e tocava os mamilos dele com a ponta da língua. Era lasciva e selvagem, não era mais ela mesma e ao mesmo tempo, era mais ela do que jamais pensara poder ser. Cobriu os lábios de Nick com os seus para um longo beijo, então afastou um pouco o rosto. — Você tem uma linda boca — sussurrou. — Mesmo quando eu o odiava, reparava na sua boca… adorava a sua boca. — E você tem lindos seios. — Nick beijou um, depois o outro. — E sua pele é linda, também. — Passou a língua levemente pela barriga dela. — Mesmo quando achava que a odiava, reparei nos seus seios e na sua pele. Mas nunca imaginei como seria bonita aqui. — Os lábios de Nick encontraram a suave umidade entre suas pernas. — Nunca imaginei que seria doce assim. A língua dele era mágica e transportava-a para fora de si até não restar nada além de um desejo arrebatador, que a deixava sem fôlego. A tensão era insuportável: Carla queria gritar, mas só conseguiu murmurar. — Oh, Nick, eu te quero tanto… Devagar, suavemente, ele a penetrou. O calor e a robustez de seu membro preencheram-na e ela o envolveu com um sexo ardente e receptivo, cravando-lhe os dedos nos músculos das costas. Entrelaçados, seus corpos se moviam em harmonia, num ritmo lento e perfeito. Nick parou de se mover para tirar uma mecha de cabelos do rosto dela. — Você está bem? — ele sussurrou. Carla sorriu para ele com olhos sonhadores e distantes. — Estou mais do que bem… Oh, Nick, estou no paraíso! — Eu também. 76


Penetrou-a com mais força, seu coração disparou e o sangue pulsou com violência. Carla enrolou as pernas em torno dele e ergueu os quadris para unir ainda mais seus corpos. Estavam totalmente concentrados no ato de amor, cada movimento os aproximava mais e mais da satisfação. Em poucos minutos, era chegado momento pelo qual tanto ansiavam. O clímax veio com tamanha intensidade que fez o tempo parar, atravessou espaços e alcançou a eternidade. Nick e Carla continuaram agarrados, quentes e molhados, unidos numa felicidade além de tudo o que poderiam ter imaginado. — Nick… — murmurou ela, depois de algum tempo. — Eu sei — ele sussurrou. — Eu sei. Estavam imóveis, quietos, em perfeita paz. — Ah, Nick… — Ainda tenho de sair? — ele brincou. — Sair? — Não se lembra? — Não — respondeu ela com sinceridade, porque naquele estado de delicioso torpor não conseguia se lembrar de nada. — Que bom. Vamos esquecer tudo e preservar este momento. — Sim — concordou ela, sem saber muito bem o que Nick queria dizer. O tempo, naquele instante mágico, parecia não ter começo nem fim. Carla estremeceu levemente e Nick puxou as cobertas para que pudessem se aninhar entre os lençóis. Antes de adormecer, ela sentiu-o passar os braços ao redor de seu corpo, num abraço repleto de ternura. Com um sorriso. Nick ajeitou-a de encontro ao peito, tentando prolongar ao máximo aquele prazeroso contato físico. O ato de amor entre os dois fora tão inesperado, tão milagroso que ele tinha medo de deixar o momento passar. Afastou as mechas de cabelo que teimavam em cair sobre o rosto dela. Sentia afeição e desejo, mesclados a uma estranha confusão. Desejava-a desde a primeira vez em que a vira: agora que tinham feito amor, esperava que tudo fosse ser diferente entre eles… embora não soubesse muito bem como essa mudança iria ocorrer. Adormecida, Carla parecia jovial e vulnerável, completamente diferente da megera alucinada que invadira seu apartamento. Ela o tirava do sério, em todos os sentidos. Nick riu para si mesmo. Ajeitando-se melhor sobre o colchão, fez com que a cabeça de Carla repousasse em seu ombro. Não tinha a menor idéia de 77


como ela iria reagir quando chegasse a manhã. Afinal, tratava-se de uma mulher geniosa e imprevisível. Assim, só lhe restava aguardar. Quando Carla acordou, a perna de Nick descansava possessivamente sobre a sua e o braço dele lhe envolvia a cintura. Ficou imóvel, contendo a respiração e rezando para que ele não abrisse os olhos, rezando para poder escapar sem ter de encará-lo à luz do dia. Por fim, ele se mexeu e virou. Como um caranguejo, Carla recuou para a beirada da cama, escorregou para o chão e apanhou suas roupas. Cada peça que recolhia aumentava sua sensação de embaraço: o sutiã, a calcinha, a blusa que ele lhe arrancara pela cabeça, o short amarrotado. Relembrou intensamente o momento em que tinham feito amor. Podia sentir o calor da boca de Nick em seu seio e as mãos dele acariciando-a. Sentiu a cabeça rodar enquanto as imagens iam passando. Que demônio havia se apossado dela, para que fosse parar na cama de Nick Fleming? Atravessou o quarto na ponta dos pés. Ela e Nick teriam de conversar sobre o que acontecera, mas não agora. Precisava de algum tempo sozinha para pensar que diabo iria fazer. Duas horas mais tarde, depois de um banho, várias xícaras de café e uma troca de roupas no barco, Carla seguiu a caminho de Cypress Key. Felizmente, o barco ficara mais fresco no começo da manhã e assim, pudera pensar com calma, fazer um diagnóstico do problema e chegar a uma solução, Nick despertara nela uma anomalia latente que só podia ser um tipo de insanidade. Ele lhe dissera que estava agindo como uma maluca quando chegara ao seu apartamento, e era verdade. Só que essas “crises de loucura” somente se manifestaram depois que ela conhecera Nick Fleming. Uma maluquice que a fizera permanecer em Cypress Key para dirigir um restaurante caindo aos pedaços. E então a empurrara para a cama dele. Insanidade. Só podia ser. Somente um ataque de loucura a deixaria naquele estado de abandono sensual que experimentara na noite anterior. Carla sentiu um frio no estômago ao pensar em todas as carícias íntimas e eróticas que havia trocado com Nick na cama. Mas o fato de ele ser um amante maravilhoso não era motivo para que se esquecesse do que a levara à Flórida. Nick tinha de sair da sua vida, ou não atingiria seus objetivos. Carla foi a primeira cliente a chegar ao escritório da Imobiliária Hartwell. Teve sorte, a secretária lhe informou, porque o sr. Hartwell também chegara cedo e tinha tempo para atendê-la antes do encontro marcado para as nove horas. Ela podia entrar. 78


— Bom dia, srta. Selwyn. Sou Larry Hartwell. Aceita uma xícara de café? — Não, obrigada. Carla sentou-se na cadeira de couro que ele indicara e observou o escritório. O carpete espesso, as cortinas pesadas, a escrivaninha de mogno e os quadros originais a óleo sugeriam dinheiro e prestígio. — Bem, em que posso ajudá-la? A aparência de Larry Hartwell, com seu terno feito sob medida, a camisa azul-claro, a gravata listrada à antiga e sapatos reluzentes, combinava perfeitamente com o escritório. Ele era jovem, com cerca de trinta anos de idade, cabelos loiros penteados para trás e testa larga. Era o tipo de homem que a mãe dela sempre quisera que namorasse: gentil, educado e provavelmente muito bem relacionado. Carla respirou fundo e começou: — Vim procurá-lo porque vi os seus anúncios no jornal e os cartazes na estrada. Sabia que a sua companhia era grande… — A maior do município — declarou Larry, com um brilho de orgulho nos penetrantes olhos azuis. — Espero que possa me dar algum conselho — arriscou ela. Agora que estava lá, não sabia ao certo como proceder. — Sobre o Sundowner? — Como sabe que tenho ligações com o Sundowner? Os lábios de Larry se curvaram de leve. Ele ajeitou com a mão o cabelo loiro, de corte impecável. — Srta. Selwyn, estamos em Cypress Key. Todo mundo conhece todo mundo. Ou, falando em outras palavras: todo mundo sabe o que acontece com os inovadores que aparecem por aqui. Ouvi falar a seu respeito assim que a senhorita chegou à cidade. — Não sou nenhuma inovadora. — O Sundowner é um local popular e a senhorita anda fazendo algumas mudanças por lá. Isso a faz entrar nessa categoria. — Ah… — A senhorita e Nick Fleming não estão de acordo a respeito do lugar, não é? — Sabe disso também? — Como Larry acenasse afirmativamente, com a cabeça, ela prosseguiu: — Bem, isso me poupa muitas explicações. Nick… Quero dizer, o sr. Fleming e eu possuímos o Sundowner em sociedade. Meu pai deixou o bar para nós dois e o advogado afirma que o testamento é legal. 79


Larry bateu com o lápis impecavelmente apontado no mata-borrão da escrivaninha. — Achei um fato bastante incomum… — Como assim? — Sean ter deixado o lugar para Fleming também… Ele chegou sabese lá de onde, foi se intrometendo nos negócios de seu pai e acabou dono do bar, não é? Carla presumiu que a pergunta fosse retórica e não se deu ao trabalho de responder. Larry, contudo, insistiu no assunto: — O que sabe sobre os antecedentes de Fleming? — Quase nada. Ele disse que nasceu no norte, na Pensilvânia, creio. — Hum… Talvez devêssemos verificar isso. Ele pode ter armado um golpe contra o seu pai. — Oh, não! Isto é, creio que não. Nick… isto é, o sr. Fleming pode até ter um passado irregular, mas pelo que todos dizem, meu pai o amava como a um filho. Larry ergueu uma sobrancelha. — Um charlatão com dons artísticos pode armar um belo golpe. — É… Talvez. — Uma rápida pesquisa por aí, a respeito do Sundowner, não nos faria mal algum. Talvez se descubra algo que a ajude a tirá-lo do seu caminho. — É o que desejo. Nick Fleming fora do meu caminho, para poder vender o restaurante. Foi para isso que vim a Cypress Key. Para vendê-lo. Estão tentando me desviar dos meus propósitos e não gosto disso. Ele reclinou-se na cadeira e alisou o cabelo mais uma vez. — Bem, então temos muito a fazer. — Quero tentar tudo — declarou Carla. — Muito bem. Podemos começar desenterrando alguma sujeira de Nick Fleming. Checar o passado dele. — Hesitou e a seguir, acrescentou: — Mas vejo pela sua expressão que não gostou da idéia. Imagino que poderia ser desconfortável, com vocês trabalhando juntos. “E dormindo juntos”, pensou Carla. Esperava não ter corado. — O que posso fazer é verificar a papelada sobre o bar, o título, as inspeções, a licença. Podemos encontrar algo que nos dê influência sobre Fleming. — O que, por exemplo? — Não sei com certeza. Vamos xeretar por aí. A gente nunca sabe. Carla concordou. Não poderia haver nada de errado nisso. 80


— Outra coisa que farei é ver quanto dinheiro dá para obter com a propriedade, que tipo de investidores se interessariam pelo local. Sei que Fleming não quer vender o estabelecimento, mas, se recebesse uma proposta milionária, talvez mudasse de idéia. — Talvez. Afinal, estamos falando de modo abstrato: no caso de uma proposta concreta, talvez ele escute. — O dinheiro sempre fala mais alto, srta. Selwyn. — Pode me chamar de Carla. — Me chame de Larry, então. Vou começar imediatamente, Carla. E enquanto não começamos, gostaria de convidá-la para almoçar comigo hoje. Ou para jantar. A resposta dela foi rápida: — Muito obrigada, Larry, mas vou estar ocupadíssima o dia todo, organizando o almoço e o jantar no Sundowner. Aconteça o que acontecer, tenho de continuar com meus planos de administrar a minha parte no negócio. — Entendo. Talvez outro dia. — Talvez. Ele a acompanhou até a porta. — Entrarei em contato, Carla, e aguardo ansiosamente o dia de revê-la, tanto profissional quanto pessoalmente. — Ele lançou-lhe um sorriso insinuante. Ela fingiu não notar a insinuação. — Sem dúvida nos veremos logo. Mas, se eu não estiver no Sundowner quando me telefonar, não deixe recado. Nick não precisa saber que conversamos. — Falarei com você e mais ninguém — prometeu Larry. — E espero vê-la em breve. Carla voltou ligeiro para o carro, esperando que Larry Hartwell fosse tão persistente como corretor quanto como paquerador. Era óbvio que ele conhecia o negócio e era competente. Talvez fizera mal em não tê-lo procurado duas semanas atrás, antes que sua vida saísse de controle. Agora, lutava contra uma sensação de culpa quanto a levar adiante o seu plano original de vender o Sundowner. Tentou convencer-se de que não havia razões lógicas para a culpa. Afinal, tinha todo o direito de explorar as possibilidades que pudessem levar à venda do imóvel… Ou não? Ao dar a partida rio carro e seguir rumo ao restaurante, ela tomou uma resolução: não iria se encontrar novamente com Larry. Nada de se 81


envolver outra vez com os homens de Cypress Key. A experiência com Nick Fleming lhe bastara. Errar era humano, persistir no erra seria burrice. Além disso, o que acontecera entre ambos a deixara profundamente abalada. Não confiava mais em seu próprio discernimento, e seu comportamento era irracional. Perigoso, até. Perigoso… Aquela fora a primeira impressão que tivera de Nick Fleming. E acertara.

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CAPÍTULO VIII

Carla não tinha a menor idéia do que faria ao encontrar Nick. Assim, adiou o encontro temporariamente, entrando no Sundowner sem que ninguém a visse. Escutou Nick e Buck conversando no bar enquanto seguia, ligeiro, para o salão. Olhou em volta. Betty não estava lá, o que não era problema. Não sentia vontade de conversar com ela também. Mas havia trabalho a ser feito, então foi até a mesa do canto oposto, que não era visível do bar e pegou seu caderno. Mesmo se Larry achasse um meio de fazer Nick vender o Sundowner, a transação levaria semanas ou meses para ser concretizada. Até lá, a vida prosseguiria. Foi pensando nisso que Carla retomou seus planos. Primeiro, um anúncio no jornal da cidade divulgando os almoços do salão, incluindo um cupom de dez por cento de desconto para os fregueses na primeira semana. A seguir, um anúncio classificado para contratar um garçom. Era indispensável. Ela havia descoberto, no almoço do Clube das Sexagenárias Felizes, que não dava para o serviço. Quando começou a elaborar o texto do anúncio, pôs-se a devanear e as anotações transformaram-se em rabiscos. Nick estava no bar, a menos de quinze metros de distância. Evitara encontrá-lo ou conversar com ele, mas não conseguia evitar as lembranças da noite anterior. Fazer amor com ele tinha sido maravilhoso… E isso a deixava morta de pavor. Parecia-lhe impossível ter chegado a sentir tal arrebatamento em relação a Nick. Mas sentira, e tão forte que chegava a doer. Para o seu próprio bem, precisava tirar aquelas lembranças da cabeça. Com grande determinação, Carla tratou de voltar ao trabalho. Os anúncios tinham de ser redigidos, e sem perda de tempo. Não podia deixar que a imagem de Nick Fleming a impedisse de cumprir suas tarefas. Estava quase terminando o serviço, quando sentiu uma mão em seu ombro. O toque sobressaltou-a. Ergueu os olhos e viu Nick diante de si. — Não se aproxime mais desse jeito sorrateiro — reclamou ela. — Mal-humorada, hein? — Nick puxou uma cadeira e se sentou ao 83


lado dela. — Você foi sorrateira esta manhã, quando saiu do meu quarto. Ela sentiu o rosto ficar quente. — Não queria acordá-lo — falou, sem muita convicção. — Estava embaraçada, não é? Seus olhos se encontraram. Nick estava sério, mas ela não conseguia ler o que se passava em sua cabeça. — Sim, estava embaraçada… e envergonhada pelo meu comportamento. — Envergonhada? — Ele parecia sinceramente surpreso — Envergonhada porque fizemos amor? — Psiu! Alguém pode escutar. — Hesitou por um longo momento, então explicou: — Não fui ao seu apartamento para… para aquilo. Não queria que acontecesse. Eu só… — Só se deixou levar? — perguntou Nick em tom suave. — É, isso é um tipo de… loucura. Você mesmo disse que eu estava agindo como uma maluca. Uma expressão de perplexidade passou pelo rosto de Nick e logo foi substituída por um olhar tão frio e duro quanto suas palavras: — Então fazer amor comigo foi um ato de loucura, algo que jamais queria que acontecesse, algo que não desejava de verdade? — É… isto é… mais ou menos — gaguejou ela. Ele se inclinou em sua direção. — Para mim não foi assim, Carla. Foi excitante e espontâneo. Eu gostei de cada minuto. Não me arrependo nem um pouco, mas você parece que sim. — Gostaria de poder explicar, mas não consigo. Quero dizer, não consigo colocar em palavras. — Mas sabe que se sente envergonhada e embaraçada. Que lisonjeiro… — O sorriso em seus lábios não era de alegria. Suas palavras eram afiadas como punhais. — Por que tem que tornar tudo tão complicado, Carla? Ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas e esforçou-se para não chorar na frente dele. — Desculpe, Nick. Desculpe por ter acontecido, desculpe por estarmos brigando… Sempre acabamos brigando, não é? Acho que este é o nosso relacionamento verdadeiro. — Talvez você esteja certa. Brigar não é nenhuma novidade para nós. Talvez o único lugar em que a gente se dê bem seja a cama. — Será que não entende? — perguntou ela, reprimindo suas emoções. 84


— É impossível ficar brigando o dia todo, para depois pular na cama e fingir que nada importa. — Tenho outro modo de encarar as coisas… Enfim, você é quem sabe. — É, eu é que sei. Temos de enfrentar o problema e admitir que nosso acordo não está funcionando. Eu nunca quis ficar no Sundowner e você não me queria aqui. Isso não mudou. — Mas quero que você fique aqui… — Só na cama, Nick — lembrou Carla. — Não me quer como sócia no restaurante, não quer que eu faça melhorias… — Vamos chamar de mudanças, por enquanto. Não sabemos se houve alguma melhora. — Está vendo? Nunca concordamos em nada. É por isso que devemos desistir de trabalharmos juntos, vender o lugar e dividir a renda. Só assim vai funcionar. Nick se levantou. — Vamos ter de passar por tudo isso de novo? Já falei: o Sundowner não está à venda. E quanto ao nosso relacionamento, ou à falta dele, acho que está certa. Misturar negócios com prazer dá problema. Betty e Arthur eram a prova disso quando estavam casados. — Com certeza, nenhum de nós queria o que aconteceu ontem. Mas aconteceu, e só o que podemos fazer é tentar esquecer. Apagar da memória. Achar um modo de resolvermos tudo em… — Paz e harmonia. Soa muito bem, mas não é muito prático — comentou ele, sarcástico. — Tem algum plano? — Não pensei nisso ainda, na verdade — murmurou ela. — Bem, sugiro que comece a pensar. — Nick agarrou a borda da mesa com ambas as mãos e se inclinou na direção dela. — Pense nos seus termos, por exemplo. Nas suas condições. — Termos? Condições? — Carla recuou. Nunca vira Nick tão ríspido. — Os termos do nosso relacionamento de trabalho. Presumo que vá continuar com a sua pequena experiência aqui, no salão. — Vou, sim. Ao menos por enquanto. “Até Larry Hartwell aparecer com alguma novidade”, pensou ela. — E então? — Então… — Carla procurou desesperadamente por uma resposta e suspirou de alívio quando o óbvio lhe ocorreu. — Nossos caminhos não precisam se cruzar. Não há necessidade de nos falarmos, a não ser quando temos de tomar decisões conjuntas. Como Betty disse a Arthur, você fica na 85


sua e eu fico na minha. É um bom conselho e acho que podemos dar um jeito. — Sempre posso dar um jeito, em qualquer coisa. Carla notou que ele a estudava com um olhar agudo. Um arrepio brotou de sua nuca e começou a descer pela espinha. Sentia-se como um inseto ao microscópio. — Afinal de contas — ele continuou —, dei um jeito em todas que você me aprontou desde o começo. — Do que está falando? — Vamos ser sinceros, Carla. Você transformou todos os nossos encontros em conflitos e quando percebeu o que causava todas essas explosões, deu para trás. — As explosões, como você diz, só queriam dizer que não gostamos um do outro. — Não, Carla, querem dizer exatamente o oposto. Você é que não quer admitir. — Que direito tem você de analisar meus sentimentos? Acha que sabe tudo sobre mim, mas não sabe. Não sabe nada, nada! Nick ignorou a fúria dela. — Como estava dizendo, agora que sabe o que significam as explosões, você está mais decidida do que nunca a manter-me a distância. Por que não pode ser honesta a respeito de seus sentimentos, Carla? Ela sentiu a garganta sufocar e não conseguiu responder. Lembrou-se das suspeitas de Larry em relação a Nick. E agora Nick estava questionando a honestidade dela. Engoliu em seco. — Estou sendo honesta quando digo que a melhor solução para nós é manter um relacionamento profissional, comercial e… — Distante — completou Nick. — Como quiser, Carla. Estou disposto a aceitar a sua versão da noite passada. Vamos fingir que jamais aconteceu. — Remexeu nos bolsos, sacou um cheque e depositou-o sobre a mesa. — Para você. — O que e isso? — Não se ofenda. Não é em pagamento pelos serviços prestados. É um cheque para o novo condicionador de ar. — Não quero. Eu mesma compro. — Pegue — grunhiu Nick. — Como você disse a noite passada, o barco é meu. Sou o responsável pelos reparos. — Sinto-me constrangida… — Ora, não se preocupe. Você se recupera. 86


Não sabendo mais o que fazer, Carla respondeu a esse sarcasmo recolhendo o cheque. Nick voltou à carga: — Muito bem. Isso torna tudo mais fácil já que, aceitando o cheque, você demonstra que planeja ficar no barco e que desistiu da idéia de me expulsar do apartamento de Sean. Do meu apartamento — ele se corrigiu. — Sim. Continua sendo seu. — A lembrança de tudo o que tentava esquecer voltou à memória de Carla. Sabia que estava corada. — Não vai mais haver visitas noturnas. — Uma grande perda para nós dois — disse ele com a voz rouca. Antes que ela reagisse, a conversa foi interrompida por uma discussão muito mais violenta na cozinha. — Mulher, onde você pôs a minha faca de limpar camarão? Aposto que a escondeu! — gritou Arthur. — Seu estúpido, ela está na gaveta onde você a deixou! Será que é tão teimoso, a ponto de sequer admitir que não a viu? — replicou Betty. — Como vou ver, se não está aqui? — Saia do caminho, vou lhe mostrar onde está! As palavras de Betty foram seguidas pelo barulho de talheres indo ao chão. Nick deu de ombros e seguiu para o bar. Depois de alguns passos, parou e voltou-se para Carla. — Funciona muito bem, não? — O quê? — Essa filosofia sua e de Betty: você na sua e eu na minha. — Como Carla não responde acrescentou: — Bom, deixo Betty e Arthur por sua conta. Você a contratou, então cuide das confusões que ela criar. Já tenho problemas demais. Carla se levantou e foi para a cozinha, aliviada. Pelo menos por enquanto, iria tirar da cabeça seus próprios problemas. — O que está acontecendo? — perguntou, entrando na cozinha. E a primeira coisa que viu foi uma gaveta virada, tombada ao lado de um monte de facas, colheres e conchas. — Arthur estava demonstrando sua força e tirou a gaveta do armário — explicou Betty. — Agora vai ter de arrumar a confusão. — Essa mulher — falou ele, apontando para Betty — anda mexendo nas minhas coisas. Ela é quem terá de arrumar tudo. — Eu… — principiou Betty. — Mas só depois de encontrar minha faca de limpar camarão. 87


— Nunca mexi nas suas coisas — Betty conseguiu falar. — Carla e eu passamos duas horas limpando a cozinha depois da festa, ontem, e coloquei tudo no seu devido lugar. — Então, onde está a minha faca? — Bem, estava na gaveta: agora deve estar no chão. — Betty foi até a pilha de talheres e observou com cuidado. — Trate de encontrá-la — exigiu Arthur. Ela se inclinou elegantemente com um gesto dramático. Agitando os ruidosos braceletes em seus pulsos, pescou a faca da pilha e estendeu-a a Arthur. Ele a pegou sem dizer nada e evitou os olhos da ex-esposa. Um silêncio desconfortável invadiu a cozinha. Carla pigarreou. — Hã… Acho que tudo acabou bem, não? Arthur está com a faca de limpar camarão, e Betty e eu escapamos da forca. O mestre-cuca cruzou os braços sobre o peito, em absoluto silêncio. Carla tentou de novo: — A salada de camarão estava deliciosa, Arthur. Apreciamos muito, não é, Betty? Betty concordou com um gesto de cabeça. — Senti vontade de fazê-la. Às vezes tenho vontade. Outras vezes, não — disse ele. — Eu sei, eu sei, todos nós temos nossos dias — falou Carla, conciliadora. Ela dirigiu-se para a porta. Iria aproveitar aquele momento de paz para fazer uma retirada estratégica. Uma outra observação de Betty, porém, a fez parar no meio do caminho: — A salada de camarão do restaurante de Ben Crowley é muito boa, também. — Como sabe disso? — perguntou Arthur. — Passei por lá para comprar uma e levar para casa, ontem à noite. — Eu fiz salada de camarão no Sundowner e você foi comprar a do Crowley? — perguntou Arthur em tom ameaçador. — A sua havia acabado. — As mulheres que vieram à festa adoraram, Arthur — interveio Carla. — Comeram tudo num piscar de olhos. — E aí você decidiu experimentar a do Crowley? — Ele não tirava os olhos da ex-esposa. 88


— É, decidi — respondeu Betty. — Mesmo sabendo que aquele fulano não distingue coentro de manjericão? — Bem, Crowley pode não ser um especialista em temperos, mas no fim das contas, a comida dele não é nada ruim. E ele é um cavalheiro, um homem muito gentil. Enquanto eu esperava, serviu-me um copo de vinho. Falou que eu parecia cansada. Falou que eu parecia estar precisando de uma boa massagem. — Deixou aquele sujeito lhe fazer massagem? — rosnou Arthur. — Eu disse isso? Carla, eu disse isso? Carla decidiu ficar de fora da batalha que se anunciava. — Ben Crowley é um perfeito cavalheiro em todas as ocasiões. Falou que eu parecia estar precisando de uma massagem. Aqui, onde meus músculos costumam ficar muito tensos. — Betty esfregou o pescoço, o tempo todo observando a reação de Arthur. — Sei tudo sobre os seus músculos — ele grunhiu. — Ora, claro que sabe — falou ela, em tom afetuoso. — E se precisar de massagem, você… — O que, Arthur? — Você… fique longe de Ben Crowley. — Ficar longe? — Betty gritou, incrédula, aproximando-se de Arthur com as mãos nos quadris. — Está me dizendo o que fazer? Não me diga o que fazer, e não é da sua conta se… Arthur ficou plantado do outro lado da pilha de talheres. — Certas pessoas simplesmente não sabem o que é melhor para elas. — Ora, se está se referindo à minha pessoa, sei muito bem o que é melhor para mim. Não preciso de seus conselhos. — Betty chegou até a pilha e olhou para Carla como se nada pudesse detê-la, nem os talheres nem Arthur. Carla percebeu que era hora de interceder: — Lembrei de uma coisa, Betty. Temos um prazo a cumprir e não há um minuto a perder. — Aproximou-se e agarrou o braço da amiga. — Espere — ordenou Arthur. — Temos de levar o anúncio classificado ao jornal — continuou Carla, afastando Betty do adversário. — O balcão de anúncios fica aberto só até as quatro horas: se não formos hoje, o aviso não vai sair na edição desta semana. — Espere — repetiu Betty, imitando Arthur. Carla não estava disposta a obedecer a nenhum dos dois: 89


— Vamos. Agora. Enquanto Arthur as observava, imóvel e calado, ela guiou Betty para fora da cozinha. — O que está fazendo? — Carla perguntou a Betty, enquanto atravessavam o salão. — Tentando tirá-lo do sério com essa história de Crowley? Betty sorriu. Sua irritação anterior desaparecera. — É mesmo um homem muito ciumento, não? — E você o está provocando deliberadamente. — Não preciso me esforçar. Ele é assim. — Betty, sei que está acontecendo algo entre você e Arthur. Você o quer de volta, não é? Foi por isso que retornou a Cypress Key. Ela sentou-se a uma mesa no meio do salão. Betty se sentou ao seu lado, ainda sorrindo. — Digamos que, no que se refere a mim e ao meu ex-marido, a esperança vence a experiência. Mas, o que estamos fazendo aqui? E essa história de prazo? Carla desistiu de tentar entender aquela situação impossível entre Betty e Arthur. — É sobre o anúncio classificado. Para contratarmos um garçom. — Ah, sim. Um garçom. — Betty deu um riso malicioso. — Como planejamos, um garçom jovem e bonito… Pena que não dá para escrever isso no jornal. — Não, mas você deverá ser bem rigorosa na entrevista. Carla mostrou o anúncio a Betty. — Parece bom. — Ótimo. Podemos incluí-lo no próximo número. Agora precisamos pensar na melhor maneira de anunciar que vamos abrir o Salão do Caribe para almoços. Eis a minha idéia. — Carla estendeu o caderno a Betty. — Só algumas palavrinhas em negrito. Sem ilustrações. Barato, mas atraente. Acho que vamos fisgar uma boa clientela, não acha? — Querida, você é um gênio da publicidade. Agora, precisaríamos de um cupom de desconto… — Aqui está. — Quando fez tudo isso? — Bem, as idéias já estavam na minha cabeça, mas coloquei-as no papel hoje. — Uau! Sua habilidade é espantosa. Posso levar tudo isso ao jornal e 90


eles imprimem como está. Você anotou até mesmo o tamanho do tipo a ser usado. — É, incluí todas as especificações. Acho que não terão problemas. — Ora, ora… Você tem talento, garota! Enquanto Betty analisava o anúncio, Carla tinha a cabeça bem longe dali. Ainda pensava na cena que acabara de testemunhar. Nick dissera que as explosões entre duas pessoas podiam significar mais do que um conflito. Segundo Betty, as explosões que tinha com o ex-marido significavam paixão. Mas, e quanto a Nick e ela própria? A relação deles era explosiva, mas a afeição que existia entre Betty e Arthur não existia entre ela e Nick. Aqueles dois tinham entre eles uma história de relacionamento amoroso. Ela e Nick, ao contrário, haviam sido adversários desde o princípio. E agora, pensou, mesmo a paixão se fora. Sabia que o verdadeiro oposto do amor não era o ódio, mas a indiferença. E fora o que vira no rosto de Nick ao se afastar dela naquela manhã: fria indiferença. Betty interrompeu-lhe os pensamentos: — Acho ótimo. Quer que eu leve o anúncio ao jornal? — Boa idéia, Betty. Acho que eles não terão problemas, mas se tiverem, e só me telefonar. Depois que Betty saiu. Carla achou que deveria ter ido pessoalmente ao jornal, aproveitando a oportunidade de se afastar do Sundowner e de Nick. Mas não fora; escolhera ficar no meio do que considerava um verdadeiro turbilhão. Não importava. Do salão, tinha visto Nick sair para uma caminhada na praia com Top. E, quando ela chegara ao terraço e fitara a praia, os dois já estavam fora de vista. Que ironia! Embora tivesse sido ela quem sugerira que cada um seguisse o seu caminho, Nick Fleming fora o primeiro a fazê-lo. Ótimo. Ótimo mesmo. Podia cuidar sozinha do Salão do Caribe e, mesmo com alguns devaneios ocasionais, fazer tudo o que precisava ser feito. Betty tinha razão: os anúncios haviam ficado muito bons e ela conseguira elaborá-los apesar de seu estado emocional instável. Era evidente que Nick não a perturbava tanto quanto imaginara. Sentindo-se mais segura de si, dirigiu-se ao bar, onde sabia que encontraria Buck. Estava na hora de testar o clima, ver o que ele e o pessoal do bar pensavam a respeito de seus planos. — Venha, Carla, tome um drinque. É por conta da casa — saudou Buck, com o bom humor de sempre. Ela sentou-se ao balcão e pediu a costumeira água mineral. 91


— Ouvi dizer que anda muito atarefada — comentou ele, depois de lhe servir a bebida, acrescentando uma rodela de limão. — Hã? — perguntou Carla. Como esperara, eles andavam comentando no bar sobre a festa do dia anterior. — Pois é. Soube que inaugurou o salão e trouxe um bando de mulheres para cá. Carla não gostou do modo como ele disse aquilo, mas tentou ignorálo. — Então, deve saber também do incidente com o vestido da sra. Perry. A esta altura, a cidade toda deve estar sabendo que derrubei chá gelado em seu peito. — falou ela, após uma pausa. — Um alvo difícil de errar. — Buck fez uma careta. — Não comente com ninguém, mas a velha bem que podia fazer um pouco de regime. — Ele pôs-se a polir o balcão com seu pano limpíssimo. — Fora isso, foi tudo bem. — Carla tentou mostrar-se orgulhosa. — Planeja dar outro almoço na segunda-feira que vem? — Claro, se houver encomenda. De qualquer modo, vamos abrir para o almoço todos os dias. — É, alguns homens andam falando que logo vai haver uma porção de mulheres por aqui. — E daí? — Ah, nada. Buck poliu o balcão com mais vigor. — Ora, Buck. O que é que eles falam? — Que… que todas essas mulheres talvez… sabe como é, tolham a liberdade deles. — Ah, é? — Carla quase derrubou o copo no balcão. — E o que acontecerá, se a liberdade deles for tolhida? — Ora, eles podem simplesmente ir almoçar em outro lugar. — Buck olhou de soslaio para Carla, esperando pela reação. Uma reação que aliás, surpreendeu a si mesma. Com toda a calma, ela retrucou: — Isso é ótimo! Se forem embora, então as mulheres podem tomar todo o lugar, o salão e o bar também. Vamos fazer destiles de moda e demonstrações de cosméticos. Talvez, até chás de Panela. — O sarcasmo jorrava de suas palavras. — Ah, teríamos inúmeras atividades aqui na hora do almoço, se não houvesse homens por perto! — Eu não quis irritá-la, Carla. Só estava prevenindo você a respeito de 92


como os homens se sentem. — Quem disse que fiquei irritada? — Ela sabia que não poderia sustentar aquilo por mais tempo, porque as lágrimas começavam a brotar de seus olhos. Por sorte, um dos remanescentes do almoço pediu outra cerveja e Buck foi servi-lo. Carla respirou fundo. Nick não a queria por perto. Agora parecia que Buck e seus camaradas sentiam o mesmo. Lideradas pela sra. Perry, as mulheres provavelmente assinariam uma petição para expulsá-la da cidade! Ela tomou outro gole da água e tentou não pensar nas últimas vinte e quatro horas, as piores de sua vida. E não havia nenhum sinal de que o dia fosse melhorar. Nem chegou a notar que Melissa se sentara a seu lado. — Qual é o problema, Carla? Parece um pouco deprimida. — Quem, eu? — Carla tentou sorrir. — É. Acho que as coisas não vão indo muito bem. E eu não gostaria de acrescentar outro problema aos que você já tem, mas… — Oh, vá em frente, Melissa. Acrescente outro, sim — insistiu Carla. — Bom, algumas das garçonetes me pediram que falasse com você. Carla não tinha a mínima idéia do que viria a seguir, mas algo lhe dizia que não eram boas notícias. — Não gosto nem um pouco de lhe dizer isso… — Já ouvi isso hoje… Todo mundo chega e diz que não quer me falar alguma coisa, mas acaba falando. Vá em frente, Melissa. — Soubemos que vai contratar garçons para o almoço e algumas de nós… algumas das garçonetes… acham que isso não seria correto. — E era correto Nick encher o lugar de mulheres bonitas? — Creio que isso não vem ao caso agora. Estamos aqui, e ninguém jamais reclamou. Mas, como você sabe, não é legal especificar o sexo dos candidatos em anúncios que oferecem emprego, Carla. — Para grandes empresas, talvez, mas não para o Sundowner — argumentou Carla. — Para qualquer negócio com mais de quinze empregados. E estamos perto desse número. Estou fazendo um curso de direito comercial, e tento me manter informada. Carla começou a se sentir completamente derrotada. — Então Nick pode contratar mulheres para usar esses uniformes ridículos sem nenhum problema, mas eu não posso contratar um homem para servir os fregueses no salão? — Ela ergueu os olhos para o teto. — Não 93


existe justiça no mundo? — Não é assim tão importante, Carla, mas achei que devia saber. — Oh, é muito importante, Melissa, como todo o resto que acontece por aqui. Imagino que se eu contratar um homem, alguém vai me processar. — Não falei isso. Não creio que ninguém vá realmente processá-la, mas as garotas estão descontentes. Uma das garçonetes falou em fazer piquete e outra disse que escreveria uma carta ao jornal… — Não acredito! Tudo o que faço se volta contra mim! — Sei que trabalha duro, mas há certos aspectos envolvidos na direção de um restaurante que… — E hoje estou trombando com os “aspectos”. — Carla deslizou para fora do banco. Pensava num jeito de se recuperar do último desastre. A idéia lhe ocorreu antes que seus pés tocassem o chão. — Nos dias de hoje, creio que concordará que a palavra “garçom” pode se aplicar a uma pessoa de qualquer sexo. Estamos anunciando no jornal que precisamos de um garçom. Vou entrevistar qualquer um que apareça, inclusive qualquer uma das mulheres que queira trocar de turno. Depois, então, tomarei a decisão. — Oh, sei que tomará a decisão certa, Carla. Detestaria que você desanimasse e fosse embora. — Desanimar? — Carla deu um riso sem graça. — Acho que essa não é a palavra mais adequada… Mas não se preocupe. Vou ficar, Melissa. — Ao se virar para sair do bar, gritou por cima do ombro: — E se alguém perguntar por mim, vou à cidade comprar um condicionador de ar. Depois vou para casa ligar o aparelho e tomar um pouco de ar fresco. Carla saiu ao terraço. Havia prometido reservar um tempo todas as tardes para ver o pôr-do-sol. Forçou-se a fazer isso, mas os belos matizes não a atraíam naquela tarde. Só serviam para lembrá-la do que acontecera no curto espaço de tempo desde o último pôr-do-sol. Desceu as escadas, atravessou o estacionamento e chegou ao carro. Fizera só uma coisa sábia entre aqueles dois entardeceres: falara com Larry Hartwell. De certo modo, isso equilibrava a balança.

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CAPÍTULO IX

— Os negócios estão melhorando, hein, Nick? — comentou Buck. Nick passou os olhos pelo bar, depois fitou Buck. — Parece igual para mim. Como sempre. — Talvez. Mas não igual a algumas semanas atrás, quando Carla abriu o salão para aquela reunião de senhoras. — Hã… — Sabe do que estou falando. Quando ela começou a servir seus almoços, a gente podia dar um tiro de canhão aqui que não ia pegar em ninguém. Alguns dos nossos amigos começaram a nos boicotar. Você achou que não voltariam mais, não foi? — Antes que Nick respondesse, Buck acrescentou: — Eu também, para falar a verdade. Andava inquieto naqueles dias. Então, os fregueses habituais começaram a voltar. Agora os negócios estão como sempre, talvez até um pouco melhor. Acho que eles viram que as mulheres não iam lhes tomar o espaço, afinal. Nick se apoiou no balcão e encarou Buck. — Tudo bem, Buck, aonde quer chegar? — A lugar nenhum. — Buck pegou um copo de vinho e começou a esfregá-lo com um pano. — Estou só puxando conversa. — Sobre ela. — Não pode continuar ignorando-a, Nick. — Tenho feito isso muito bem. E já faz tempo. — Isso é verdade. Nick conseguira evitar Carla dizendo a si mesmo que ela era o tipo de mulher perigosa à sua saúde mental. O tipo que torna a vida tremendamente complicada, que não consegue desfrutar de uma grande noite de amor sem transformar tudo em drama no dia seguinte. As mulheres eram complicadas… especialmente aquela. — Quanto mais longe ficarmos um do outro, melhor. Carla dirige o restaurante, eu dirijo o bar. — Talvez. Mas, ainda assim, você fica o tempo todo olhando para ela — replicou Buck. Nick serviu uma xícara de café para si. — Você está começando a me irritar, Buck. Não quero falar sobre 95


Carla. — Talvez. Mas, ainda assim, fica pensando nela. — Como diabo sabe em que estou pensando? — Está na cara. Provavelmente ela também nota. Claro, também posso dizer que ela fica pensando em você. Porque fica mesmo. — O velho e sábio filósofo e leitor de mentes… Este e o problema com os barmen: sempre querem dar opinião sobre tudo. — Mesmo? Sempre achei que os barmen tinham fama de serem bons ouvintes. — Você é uma exceção à regra. — Oh, eu escuto bastante, Nick. Quando alguém fala. Nos últimos tempos você não tem falado muito. Então, tenho de falar por você. Creio que não preciso lhe dizer como Carla está se saindo bem com os almoços. Há um clube de mulheres no salão hoje. Vão virar freguesas assíduas, ouvi dizer. E vai haver uma festa de aniversário de dezesseis anos… Nick grunhiu. — Sean se viraria no túmulo se soubesse disso. — Talvez, mas não se aborreceria com os lucros que o Salão do Caribe tem obtido. — Acharia ridículo esse nome. — E o modo como Carla e Betty têm se vestido, com aquelas saias coloridas? Ele iria gostar disso. Até eu gosto daquelas blusas que deixam o ombro descoberto. E os fregueses adoram. Ela criou uma atmosfera, Nick. Nick tomou seu café em silêncio. — E o garçom também. — Também criou uma atmosfera? — perguntou Nick. — Claro. Os fregueses o adoram, assim como as garçonetes. Você nunca pensou que isso fosse acontecer, não é? — Francamente, não. Esperava uma revolução. — Elas o adoram. Além disso, como o moço só trabalha nos dias úteis, duas garçonetes o substituem nos fins de semana, e todos ficam felizes. — Bom, ele parece ser um bom rapaz e pelo menos, é casado. A última coisa de que precisamos aqui é de mais envolvimentos emocionais entre as pessoas. Buck parou de esfregar os copos e encarou Nick. — Está falando de quem agora? De você e Carla? — Estou falando de Betty e Arthur, e você sabe disso. Não se envolvera com Carla, pensou Nick. Fora um caso de uma noite 96


só e que não significara muito em todo o seu esquema de vida. O irritante é que não conseguia tirá-la da cabeça. Pensava nela quase todo o tempo. Buck estava certo quanto a isso. Pensava em como tinha sido quando a abraçara e beijara… — Claro. — O quê? — Nick se perdera em devaneios. — Claro que você se referia a Betty e Arthur… — Este café está velho, Buck. É melhor fazer outro bule. — Certo. Oh, lá vem o seu criador de atmosfera — acrescentou, vendo Michael entrar no bar. — Tome uma cerveja, Michael — ofereceu, assim que o rapaz se aproximou. — Não, obrigado — respondeu o garçom. — Estou fazendo uma pausa para um cigarro. — Acabou a correria do almoço? — perguntou Buck. — Acabou — disse Michael. — O pessoal da última mesa está pagando a conta e a patroa me disse para tirar uns minutos de folga. — A patroa — murmurou Nick. — Parece que o salão lotou hoje — comentou Buck em tom informal. — É, foi um dia ótimo. Muitos elogios para a comida. Nick permanecia em silêncio, enquanto os dois conversavam. — Betty fez algo de especial? — Betty não, Arthur. Apareceu com um novo prato. Chamou-o de “Garoupa Jamaicana à Arturo”. Os fregueses acharam uma delícia. Ele assa o peixe na grelha e depois acrescenta um molho de tomate bem temperado. — Arthur está cozinhando para o almoço? — Buck tinha um ar perplexo. — Uma ou duas vezes por semana ele nos faz uma surpresa. Nós o apresentamos como o prato recomendado do dia. Os fregueses adoram. Por fim, Nick entrou na conversa com um comentário tão surpreso quanto o de Buck: — Arthur cozinhando para Carla… Como ela o convenceu? Michael depositou o cigano no cinzeiro. — Não creio que esteja fazendo isso por Carla. Acho que é por Betty. Ela e Arthur… Bem, parecem bastante envolvidos um com o outro. Estão começando a trabalhar juntos. Mas creio que há algo mais do que isso. Nick gemeu. Mais complicações. Alguma coisa estava acontecendo de novo entre Betty e Arthur. Os sinais eram evidentes, mesmo que tentasse a todo custo ignorá-los. Mesmo que, nos últimos tempos, tornara-se um 97


especialista em ignorar emoções… sobretudo as próprias. Os últimos fregueses do almoço estavam saindo do restaurante, quando Betty chamou pelo garçom: — Venha aqui um pouquinho, Michael. — Estão me chamando ao trabalho. — Michael foi para o salão. — Você também, Buck — a voz de Betty soava ansiosa. — Que diabos… — Buck olhou para Nick, que deu de ombros. — Nick, você está aí? — chamou Betty. — Estou. — Então venham, vocês todos. Um mau pressentimento assaltou Nick, enquanto seguia Buck rumo ao salão. Estavam todos ali: Michael, Carla, os dois ajudantes diurnos da cozinha e uma garçonete do bar, agrupados em torno de Betty e Arthur. — O que acha que é, algum tipo de greve geral? — Buck perguntou a Nick ao se aproximarem do grupo. — Sei tanto quanto você, mas estou preparado para o pior. — Tenderia a concordar com você, se não fosse um certo dado: Betty e Arthur. Olhe para eles. Veja se não parecem dois pombinhos. O barman tinha razão. Os dois estavam bem juntinhos e, quando ele e Buck se juntaram ao círculo, Nick viu que estavam de mãos dadas. Fitou Arthur bem nos olhos, com ar de quem não acreditava no que via. Arthur balançou a cabeça afirmativamente para ele e então corou. — Estamos todos aqui. Agora pode lhes dizer, querido — pediu Betty. Apertou de leve a mão de Arthur e empurrou-o para a frente. Arthur pigarreou dramaticamente. — Bem, amigos, gostaria de dizer... Betty não o deixou hesitar muito tempo. — Continue, querido. — Quero dizer, tenho orgulho de lhes dizer que Betty me deu a honra de… Todos os olhos concentravam-se em Arthur. Até Top, que fora ver o que estava acontecendo, aproximou-se do cozinheiro. — Ela concordou em ser minha esposa — despejou Arthur, por fim. — Outra vez. Carla puxou o aplauso e Buck gritou um vigoroso “hurra”. Só Nick ficou quieto, ainda estupefato. — E, como adoro ser uma noiva de junho — falou Betty, rindo — 98


vamos repetir o nosso primeiro casamento, que foi em junho, na semana que vem. Aqui, no Sundowner, se todos concordarem. Olhava para Nick, mas Carla foi quem respondeu: — Concordar? É fantástico! O Sundowner é perfeito para um casamento. Pode ser aqui no salão. Ou talvez lá fora, no terraço. — No terraço seria maravilhoso! — exclamou Betty. — Adoro casamentos ao ar livre. — Perfeito. Vamos decorá-lo com flores, contratar uma banda, comprar champanhe, fogos ele artifício. Arthur se virou para Nick. — Tudo bem para você? — perguntou. — Tudo bem, claro. Somos todos uma grande família. — Bateu nas costas de Arthur e abraçou Betty. — Vamos fechar o Sundowner, convidar todos os amigos e fazer a maior festa do ano. Todos gritaram ”viva” e se juntaram em torno de Arthur e Betty. Todos, exceto Nick, que ficou à parte. Carla notou que ele não olhava para o casal feliz. Olhava para ela. Deliberadamente, virou a cabeça e olhou para o outro lado. Nick praguejou e ajeitou a gravata-borboleta. — Sei que é o dia do seu casamento, Arthur. Mas tinha de sugerir traje a rigor? — Foi idéia de Betty, que queria um casamento formal. Também não gosto destas frescuras. — Podíamos usar só terno preto. — Nick, você não tem terno preto. Nem eu. — Arthur riu. — É melhor nos rendermos ao formal do que sair para comprar um terno. — Isso é verdade. Mas, com um terno simples, eu poderia usar uma gravata normal. Não consigo ajeitar esta coisa direito. — Parou em frente ao espelho, tentou de novo e falhou. — Vocês não podiam se casar no cartório? — Foi o que fizemos da primeira vez. Acho que Betty pensa que se fizermos algo diferente hoje, vai durar para sempre. — E o que está achando, Arthur? Somos amigos há bastante tempo. Qual é a verdadeira história? — Olhe aqui, deixe que ajeite isso para você. Vai ficar aí o dia todo. — Arthur afrouxou a gravata-borboleta de Nick e deu um nó perfeito. — Pronto. — Recuou e admirou o seu trabalho. — Quer mesmo saber o que acho? — Foi o que lhe perguntei, amigão — confirmou Nick. 99


— Bem, uma mulher como Betty é como uma droga para um viciado. Não dá para viver com ela, mas também não dá para viver sem ela. Ela me deixa louco. — Não parece muito recomendável. — Mas é, Nick. É o tipo de loucura de que preciso. Sou louco por ela. Sou perdidamente apaixonado por essa mulher. — Talvez os dois devessem tentar viver junto por uns tempos. — De jeito nenhum. Para Betty é casamento ou nada. E para falar a verdade, para mim também. — Arthur estendeu a Nick um cravo vermelho. — Você é o meu padrinho. Ponha isto na lapela. — Ah. Tudo bem. Nick tentou enrolar o cabo da flor no falso botão da lapela, sem sucesso. Arthur correu ajudá-lo novamente. — Ainda bem que é o meu último casamento. Arrumar você não é fácil. Isso se chama bontonnière e é assim que se coloca. — Fixou-a na lapela de Nick. — Ainda parece preocupado, o que é? — Nada. — Acha que vai haver problemas na cozinha entre mim e Betty? Esqueça. Ela faz o almoço e eu faço o jantar. Não vai mais haver desentendimentos. — Espero que esteja certo. As coisas têm andado já bem agitadas desde que… Bem, neste último mês. Ou melhor, nos últimos dois meses. Mas não é isso o que me preocupa, na verdade. — Mesmo? — Não, estou preocupado com algo muito mais sério. — O que é, Nick? — Durante a cerimônia, quando chegar a hora de eu lhe entregar a aliança, o que acontecerá se eu a derrubar? Arthur soltou uma risada melodiosa. — Oh, nada. Eu apenas o mataria. — Veio um som de piano lá de baixo. — Vamos descer. Estou pronto para me casar. Carla escutou a música com um arrepio de ansiedade. Com os dedos trêmulos, ajeitou a grinalda de flores de seda nos cabelos escuros de Betty pela décima vez. — Está ótimo, Carla. Não fique remexendo. — Não posso evitar. Estou tão nervosa. — Carla deu uma risada. — Você é quem vai casar e eu é que estou nervosa! 100


— Nunca estive tão calma. — Não é possível! — É sim, querida, porque desta vez sei o que estou fazendo. Estou me casando com o homem que amo e não poderia me sentir mais segura. Nunca devia ter me divorciado de Arthur. Senti falta dele desde o primeiro dia de separação. É o que acontece com alguns homens e mulheres: nasceram para viver juntos. — Com mãos notavelmente firmes, Betty tocou na grinalda. Depois, deu um sorriso tímido. — É o que acontece com você e Nick. — O quê? Não seja ridícula, Betty. Nick e eu nem devíamos ser mencionados numa situação destas. Agora vire-se e deixe-me ver as costas. — Minhas costas estão ótimas, não mude de assunto. Vejo como ele olha para você. Vejo como você olha para ele. — Não é o que parece. Nick e eu somos parceiros comerciais. Não, nem mesmo parceiros. Somos sócios e, se eu fico observando-o, é para ver se não me rouba às escondidas. Ele fica na dele e eu fico na minha. O riso de Betty transformou-se numa sonora gargalhada. — É, eu sei. Exatamente como Arthur e eu. — Escutaram o pianista iniciar a marcha nupcial. — Vamos lá, madrinha. Estão tocando a minha canção. O sol brilhava e uma pálida brisa acariciava o cabelo de Carla. Ela caminhava solenemente pelo tapete vermelho colocado sobre o terraço, e os convidados se viravam para admirá-la. A distância, as ondas lambiam calmamente as areias da praia. Arthur parecia muito sério ao lado do padre. Um leve sorriso pairava em seus lábios, e Carla pensou ver-lhe no rosto um ar de aprovação quando ela chegou ao fim do terraço e tomou lugar ao lado de Nick. Durante toda a caminhada, esforçara-se para acompanhar o ritmo da música e não olhar para Nick. Mas agora precisava cumprimentá-lo. Dirigiu-lhe um sorriso, ao qual ele retribuiu meio contra a vontade. Betty dissera que ele a observava o tempo todo e isso lhe pareceu verdade naquele momento. A intensidade daquele olhar a deixava desconfortável; mesmo assim, não conseguia tirar os olhos dele. Tentou sorrir de novo. Seus lábios estavam secos e trêmulos. Seria absurdo imaginar, como Betty havia afirmado, que tinham nascido um para o outro. Nick realmente a observava com atenção. Notou o azul-cobalto de seu vestido, a seda suave roçando-lhe as pernas, as flores em seu cabelo. Carla estava tão bonita, jovial e vibrante que chegava a lhe doer. De perto, quase 101


podia sentir a energia que emanava dela. Atraía-o como um imã. Só desviou os olhos dela quando a música mudou de ritmo e Betty surgiu. Todos se viraram para vê-la sair do Sundowner de braços com Buck, solene e sofisticada em seu vestido rosa-claro de renda. Buck nem tentava esconder o entusiasmo. Parecia um pai orgulhoso. O padre deu um passo à frente. Betty, deslumbrante, sorriu para Arthur e a cerimônia começou. Horas mais tarde. Nick tirou o paletó, afrouxou o nó da gravata e apoiou-se no balcão com uma taça de champanhe na mão. — Que diabo fez com o meu cachorro? Top estava sentado nas patas traseiras, com a língua cor-de-rosa de fora. Em volta do pescoço do cachorro havia um vistoso buquê de flores. Carla enrolou cuidadosamente o resto do bolo de casamento em papel alumínio. Todos os outros restos tinham sido jogados no lixo, os pratos empilhados para o pessoal da limpeza lavar na manhã seguinte, e os últimos convidados haviam partido. — Refere-se a esse colar? Achei que seria bem festivo. — Parece um maricas. Como fez isso? Ela guardou o bolo no refrigerador. — Flores artificiais e um pouco de cola. Gracinha, não é? — Top é muito macho, não é nenhuma gracinha. Carla notou o ar zombeteiro no rosto de Nick e relaxou um pouco. Era a primeira vez em que ficavam sozinhos nas últimas três semanas. Ela ainda vibrava de euforia pela cerimônia de casamento e via que Nick também estava de bom humor, talvez porque finalmente pudera tirar o paletó e afrouxar a gravata-borboleta. O que era uma pena, porque ele, que era do tipo short-e-camiseta, fazia uma bela figura de paletó, calças pretas, gravataborboleta e boutonnière. Quem sabe, mas quem sabe mesmo, não brigassem dessa vez. — Tome um pouco de champanhe comigo — ofereceu ele. — Não há mais nada a fazer por aqui. — Bem… — Vamos, Carla. Não tem motivo para voltar ao barco, a não ser que queira ver o rio correr. Além disso, precisamos brindar aos recém-casados. — Já brindamos. — Este é um brinde especial, mais pessoal. — Mas eles nem estão aqui para apreciar. 102


— Não tem problema. — Nick serviu-lhe uma taça de champanhe. — Sabem que estamos pensando neles. — Fez com que ela tocasse sua taça na dele e anunciou: — A Betty e Arthur! — E ao verdadeiro amor… — Pela segunda vez. Nick esvaziou a taça num gole. Carla se apoiou no balcão e sorveu o seu champanhe devagar, comentando: — Este é o meu primeiro momento de descanso desde a cerimônia. — Você esteve mesmo muito ocupada. Ocupada demais para dançar. — Dancei uma vez com Arthur. Não, duas vezes. E dancei com Buck. — Mas não comigo. — Você não me convidou. Carla imitou o tom dele, leve e brincalhão. Ambos estavam cansados demais para manterem a guarda levantada, pensou ela. Talvez ainda estivessem envoltos na aura de felicidade que irradiara dos recém-casados. — É, não convidei — concordou Nick. — Mas pensei nisso. Carla riu. — Não posso ler a sua mente. — E eu não sabia se você ia querer dançar, não sabia nem se ia gostar que eu me aproximasse. Além disso, tive medo de que meu convite a deixasse de mau humor. E sei como isso é perigoso. Carla se lembrou, com um pouco de remorsos. — Não atiro vasos em público, principalmente em casamentos. — Foi o que pensei, mas não quis arriscar. Agora, entretanto, como não há ninguém por perto… — Nick foi até a máquina de música, procurou uma moedinha e enfiou-a no aparelho. Então voltou-se para ela, estendendolhe a mão. — Venha. Uma dança. Para Betty e Arthur. Pelo espírito do amor e do perdão. — Bem… — Pense nisso, Carla. Se aqueles dois podem se casar, então com certeza podemos dançar juntos. Venha, não há nenhum vaso no bar. — E eu não o atiraria em você, se houvesse — retrucou Carla. Ninguém iria morrer por causa de uma dança: na verdade, seria bom para varrer as mágoas para longe. Ele já dera um passo nessa direção com seu jeito jovial. A dança faria o resto. Aproximou-se dele e segurou sua mão. — Vamos aproveitar o clima bom do casamento. A música que ele escolhera era suave e romântica, um saxofone com acompanhamento de cordas e sopros numa melodia sensual. Mas, quando 103


encostou em Nick, Carla percebeu que cometera um erro. Seria muito difícil não se deixar envolver pelo calor do corpo dele, pelo olhar penetrante, pelo tom suave da voz que pronunciava seu nome com intensa delicadeza. Ficaram frente a frente, e Nick pôs a mão livre nas costas dela, enquanto começava a mover-se ao som da música. Os seios firmes encostaram-lhe no tórax, seus quadris se tocaram. Começaram a dançar, muito juntos, quase agarrados. Carla recuou um passo abruptamente. — Oh, esqueci — murmurou ele, brincalhão. — Um braço de distância. Carla tomou fôlego e tentou relaxar. — Desculpe. — Foi assim que lhe ensinaram na escola de danças em Atlanta, srta. Selwyn? — O professor insistia, de fato, em que houvesse um espaço prudente entre os parceiros — Carla admitiu. — Eu sabia. Continuaram a dançar, seus corpos um pouco mais separados. — Mas agora você cresceu, Carla. E está dançando comigo, não com o seu parceiro de doze anos. Ela sorriu e chegou mais perto. Então, como aprendera na aula de dança, tentou manter uma conversa polida. — E você, aprendeu onde? No colégio? — Não. Nunca fui a bailes de colégio. — Nem mesmo o de formatura da classe? — Larguei a escola bem cedo, não sou um intelectual. — Nick ficou em silêncio por um instante, antes de continuar: — A vida era dura quando eu era pequeno. Tinha de trabalhar, ajudar em casa. Não havia muito tempo para bailes de formatura. Carla sentia a respiração dele de encontro aos cabelos e, quando apoiou a cabeça em seu ombro, ouviu a batida firme de seu coração. — Você perdeu um monte de coisas que todos os outros garotos têm. — Algumas, sim. Fiquei sozinho quando era ainda bem pequeno e tive de cuidar de mim mesmo. Ela se deixava guiar por Nick e um calor delicioso começou a envolvêla. Ele a puxou mais para perto, apertando-a firme com os braços. Era como se fossem as duas únicas pessoas no mundo. Carla se rendeu àquele belo momento. 104


Nick fitou-a com os olhos semicerrados. — Estamos indo bem, não é? — Parecia um pouco surpreso. — Podemos conseguir, se tentarmos. Mesmo que você nunca tenha tido lições de dança — brincou Carla. — Aliás, você dança muito bem. — Há mais coisas que nos separam além da escola de dança, Carla. Temos histórias totalmente diferentes, viemos de mundos diferentes. — Não é por isso que brigamos. Nossos desentendimentos não tem nada a ver com a nossa formação. Começamos com o pé errado, só isso. — Eu que o diga! — Não é bom para os negócios. — Nem para o prazer. — Agora é hora de nos desculparmos e começar tudo de novo — A expressão de Carla estava séria, decidida. Nick parou de dançar e ficou imóvel. Passou os dedos pelo cabelo dela de um jeito distraído, terno. — Gostaria que isso acontecesse. Queria que nos beijássemos e fizéssemos as pazes. — Não quis dizer… — Mas disse. Ela sabia que Nick tinha razão e isso lhe dava um arrepio na espinha. Olhou para ele. Seu rosto estava muito próximo e parecia vulnerável. Queria beijá-lo, lançar uma ponte de conciliação entre eles. Nick a envolveu com os braços. A música terminara e o silêncio tomou o bar. As portas estavam fechadas e nem mesmo o murmúrio das ondas invadia a sua privacidade. Havia apenas um som: a batida dual, irregular, frenética, de seus corações. Carla tocou na face dele, preparando-se para dizer que queria aquele beijo, que queria os lábios dele sobre os seus. — Nick… Não precisava pronunciar as palavras. Nick sabia. O coração dele se precipitara ao toque da mão dela, ao seu cheiro e à sua proximidade. Tê-la tão perto deixava-o louco. Talvez tivesse sido um tolo em convidá-la para dançar. Talvez fosse loucura abraçá-la. Mas era uma loucura da qual não conseguia escapar. Os lábios dela estavam apenas a alguns centímetros de distância. Tinha de beijála. Nervosa, ela roçou a ponta da língua no lábio superior: esse ato inconsciente excitou-o a tal ponto, que Nick não podia mais se conter. 105


— Carla… Seus lábios uniram-se num beijo estonteante, faminto. Ela derreteu em seus braços, abriu-se como uma flor. Ele sentiu o calor das curvas delicadas contra si, os seios macios, os quadris redondos, as coxas firmes. Passou-lhe as mãos pelo corpo todo, puxando-a ainda mais para perto. O beijo foi ficando mais arrebatado até Carla sentir que ia enlouquecer de desejo. A visão dela e de Nick na cama, de seus corpos úmidos fazendo amor, perseguia-a, cheia de promessas de prazer. A única maneira de realizar aquele desejo seria essa visão tornar-se realidade. Nick interrompeu o beijo bruscamente. Ela sentiu o coração disparar e a respiração vir em arquejos rápidos e fortes. — Diga-me agora, Carla, se quer que eu pare. Se não me disser agora, não serei capaz… — Não… Não pare. Nick abraçou-a com força. — Quero você tanto… Não posso esperar até chegarmos lá em cima. — Não precisa. Olhe atrás de nós. Junto ao balcão, havia uma tapeçaria colorida. Num gesto rápido, Nick arrancou-a da parede, colocou-a no chão e deitou Carla sobre o algodão macio. Depois sorriu, admirando-a. — Você tem um maravilhoso espírito de aventura. Eu… Carla interrompeu a frase com um beijo. Beijava-o de modo ousado, como ele a beijara. A barba dele por fazer, roçava-lhe no rosto. Sentiu a doçura úmida de sua língua. As mãos percorriam os corpos, abrindo botões e zíperes até as roupas serem jogadas ao chão, amontoadas. O corpo nu e quente de Carla vibrava, febril, enquanto as mãos de Nick o exploravam. Sentia a respiração quente em seu pescoço, seios, quadris. A língua dele acendeu o fogo do desejo entre suas pernas. Quase não podendo mais se controlar, ela arremessou a cabeça para trás e gritou o nome de Nick. Os carinhos dele inflamaram todo o seu corpo e criavam um calor insuportável. — Nick… — Eu sei… Eu sei. — Ele ergueu a cabeça e seus olhos se encontraram. — Quero entrar em você, possuí-la por completo, torná-la toda minha… — Sim… Oh, sim! Nick se ergueu, ajoelhando-se sobre ela. Então a tocou entre as pernas e separou-as, preparando-a para a penetração. Quando esta ocorreu, Carla 106


arquejou de prazer. Assim que seu sexo envolveu o membro dele, sentiu-o crescer ainda mais em suas entranhas. Quentes e úmidos, moviam-se juntos. Ela não se continha. Do fundo da sua garganta, pequenos gemidos escapavam cada vez que Nick a penetrava, recuava e penetrava de novo. Os gemidos transformaram-se em gritos de êxtase. Sentiu-o bem dentro de si, segurou-o ali e depois soltou-o, certa de que nada poderia igualar-se àquele instante de paixão. Mas esse momento delicioso repetia-se a cada segundo, a cada espasmo de desejo e excitação. Nick a observava. Todo o corpo de Carla parecia tomado pelo calor da paixão. Os grandes olhos azuis brilhavam de prazer, o cabelo ruivo parecia arder em chamas. O êxtase no rosto dela refletia o que ele próprio sentia. Então mergulhou dentro dela uma vez mais, excitado pela sua resposta. Carla reagiu como nunca fizera antes, arqueando as costas e apertando-o com tanta força, que os seus dedos se cravaram nas costas dele. Rendeu-se então, ao espasmo de prazer que a atravessou, explodindo a seguir em mil fragmentos incandescentes. — Oh, Nick! — sussurrou. Tombou trêmula em seus braços, sem querer largá-lo. Ele apertou-lhe o corpo molhado de encontro ao seu. Tentava acalmarlhe os tremores, ao mesmo tempo em que seu próprio corpo tremia todo devido à intensidade do ato de amor. Por fim, a respiração de ambos começou a se normalizar. Nick ergueuse devagar e tomou-a nos braços. — Para onde estamos indo? — ela perguntou num fio de voz. — Lá para cima — sussurrou ele. — Para a minha cama. Nossa cama. Quero fazer amor com você a noite toda, Carla. Quero fazer amor até não conseguirmos mais nos mover, nem falar, nem mesmo pensar. — Estava na metade do caminho quando parou. — A não ser que esteja… envergonhada. Fora isso o que ela lhe dissera depois da primeira vez, aquela única vez em que haviam feito amor. Seu rosto estava sério e ansioso. Carla fitou-o, com lágrimas cintilando em seus olhos. — Nunca fiquei envergonhada, Nick. Estava… estava assustada. — Assustada? — Ele a beijou na testa, com ternura. — Por que, Carla? — Seu tonto, porque estou apaixonada por você! Um olhar de assombro transfigurou o rosto de Nick. — Apaixonada? Você… — Já chega de conversa, Nick Fleming. — Mas, eu… 107


— Agora é o momento de agir. Ele deu um sorriso largo e rumou para a escada que levava ao seu quarto. — Como preferir, querida. Não quero que tenha queixas do seu sócio.

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CAPÍTULO X

Nick olhava pela janela de seu quarto, vestido só com um short. Depois virou-se e olhou para Carla, que acabara de despertar. — Você não fugiu. — Havia um indisfarçável alívio em sua voz. Carla se sentou, cobrindo-se com o lençol. O sol que entrava pela janela estampava um padrão colorido no chão e realçava os cabelos revoltos dela. — Eu estava… Estava… satisfeita demais para fugir. — Abraçou-se ao lençol para ter certeza de que lhe cobria completamente os seios. — Não precisa se esconder — Nick falou, com ternura. — Acho que fico tímida à luz do dia. Além do mais, você está em pé e vestido… — Ora, é o mesmo short. E continuo sem camisa e sem sapatos, como antes. — De qualquer jeito, ao menos está… apresentável. Eu ainda estou aqui, nua e sem fazer nada. — Carla ajeitou os travesseiros atrás de si e refugiou-se neles alegremente. — É assim que gosto de você. — Nick se sentou na borda da cama. Mais uma vez, notou que ela puxava o lençol para se cobrir. — Carla, não pode ficar envergonhada na minha frente. Não depois da noite passada. Ele se inclinou e beijou-lhe o ombro nu. Carla era encantadora. Chegara a dizer que o amava na noite anterior. Sim, era uma mulher bela e apaixonada… que não devia se apaixonar assim, tão cegamente. Não sabia nada sobre ele. E havia muito a saber. Nick virou a mão dela e beijou-lhe a palma. Então se lembrou: — Trouxe o café da manhã. — Na mesinha-de-cabeceira havia uma bandeja. — Café. E bolo do casamento. Carla riu. — Claro! Por que não comer bolo de casamento no café da manhã? — Coloquei açúcar e um pouco de leite no seu café. — Ele estendeulhe a xícara. — Foi um palpite. Talvez prefira preto. — Não. Gosto assim mesmo, com “açúcar e um pouco de leite”. — Abriu a boca, enquanto ele lhe levava uma garfada de bolo aos lábios. — Você bem que podia estar sempre comigo, para servir o café na cama. 109


— Gostei da idéia. — Nick ficou observando-a saborear o café da manhã. — E você, não come nada? — perguntou ela, entre duas garfadas. — Já tomei um cafezinho. Por enquanto, é o suficiente. — Você parece saber muito sobre mim. — Carla deu um gole no café. — Como gosto do meu desjejum, por exemplo. — Sean me contou muita coisa a seu respeito. Isso não inclui bolo no café da manhã, é claro, mas sinto como se a conhecesse. Com certeza, bem melhor do que você me conhece. Carla viu algo em seu rosto que não compreendia. — Qual é o problema, Nick? — Precisamos conversar. O maxilar dele cerrou-se e seu rosto pareceu contrair-se. Levantou-se de súbito e foi até uma cadeira ao pé da cama. Ela largou a xícara na mesa, com uma expressão preocupada. — A noite passada… houve algo de errado? Nick sacudiu a cabeça com veemência. — Não. Carla, não houve nada de errado. Tudo foi muito bem. Esse é o problema. Carla sentiu uma pontada no estômago. Ele não lhe falara de amor naquela manhã e nem mesmo na noite anterior, quando estavam tão envolvidos um com o outro. Mas ela lhe falara da sua paixão e agora tinha medo de que Nick não a quisesse mais por causa disso. — Estou assustada, Nick. Por favor, me diga o que está pensando. — Estou pensando... — Ele hesitou, mas em seguida as palavras irromperam: — Estou pensando que você não sabe nada sobre mim, Carla. Não sou o tipo de cara pelo qual você deveria se apaixonar. — Não ligo para o seu passado, Nick. Isso não importa. — Meu passado é parte de mim, como o seu é parte de você. O passado atua sobre o presente, e algumas sombras do meu lado negro ainda são visíveis. Não quero que as veja. — Oh, Nick, é claro que posso conviver com o seu passado. Ele não tem nada a ver com o momento que estamos vivendo. Venha, venha até aqui para que eu possa segurar sua mão. Nick sacudiu a cabeça. — Acho que a distância me dará mais coragem. Carla o observou. Os cabelos negros, ainda molhados do banho, caíam-lhe sobre a testa e a pele bronzeada parecia reluzir sob o sol da manhã. 110


Para ela, Nick era um homem especial. Amava-o demais, independentemente do que ele estava a ponto de lhe contar. — Meu pai saiu de casa quando eu tinha três anos. — Nick reclinou-se na cadeira, de olhos fechados. — Minha mãe ficou muito magoada, e acho que descarregava o ressentimento sobre mim, às vezes. Ela vivia doente, com problemas respiratórios e quando eu tinha treze anos, morreu de pneumonia. As coisas já eram bem ruins antes disso. Ficaram piores. Ninguém na família me queria, porque eu era um arruaceiro. Então fugi. Comecei a trabalhar em ginásios de boxe, primeiro na limpeza, depois como assistente dos lutadores pesos-leves. Deixavam-me dormir num quartinho nos fundos. Comecei a lutar profissionalmente aos dezessete anos. — Você era boxeador? Achei que o seu nariz parecia ter sido quebrado, mas não imaginei… Nick abriu os olhos e olhou para Carla. — Aconteceu no ringue. Tive sorte de sair só com o nariz quebrado, porque não era mesmo um grande lutador. Terminei minha carreira em Miami, disputando lutas preliminares de categorias inferiores. Um fracassado, que aceitava suborno para perder. Não é um passado muito glorioso, Carla. — Tenho certeza de que dava o melhor de si — sugeriu ela. — Não, acho que não dava. É provável que eu nem soubesse qual era o meu melhor. Finalmente, viajei para a costa oeste da Flórida e certa noite, vim dar no Sundowner. Comecei a conversar com o seu pai enquanto tomava cerveja. De repente, sem mais nem menos, ele me ofereceu um emprego como barman e quando necessário, leão-de-chácara. Este lugar era violento naquela época. De qualquer modo, aceitei o emprego. Acho que Sean reconheceu em mim um “sundowner” como ele próprio. — Um “sundowner”? — Carla estava intrigada. — O que quer dizer? — É uma gíria que Sean usava para se referir a si próprio. Foi assim que o barganhou esse nome. Quer dizer um vagabundo, um andarilho. Um cara que chega ao pôr-do-sol, querendo hospedagem. Sean viu isso em mim, mas felizmente, viu mais do que isso. Inclinando-se para a frente enquanto ouvia com atenção as palavras de Nick, Carla não ligou para o lençol que caíra de seu peito. — Sean era tudo para mim, Carla. Aprendi tanto com seu pai… Ele me ensinou a ler. — Nick notou a expressão dela e explicou: — Claro, eu sabia como ler, mas não sabia o que ler. Comecei a ler o jornal da primeira à última página, para saber o que se passava no mundo e poder comentar com as 111


pessoas. Passava meu tempo de folga na biblioteca municipal e tirei o diploma do segundo grau. Nada disso teria acontecido sem Sean. — Eu não sabia… — a voz de Carla era suave. — Isso não é tudo. O mais importante foi que ele confiou em mim e me deixou assumir algumas responsabilidades. Acabou deixando que eu comprasse parte do negócio. Fiquei satisfeito, não só pela possibilidade de possuir alguma coisa minha, mas porque alguém acreditava em mim. Ele me ofereceu a sociedade. Ninguém jamais me dera uma oportunidade dessas. Sean era mais do que um pai para mim, Carla: era toda a minha família. Ele me salvou. Sem o seu pai, eu estaria na cadeia ou mesmo morto. Ele me queria como parceiro… mas duvido de que me quisesse como genro. — Nick… — Não, Carla, é verdade. Ele a chamava de “minha menininha” e sempre quis o melhor para você. Sean gostava de mim, mas sabia quem eu era, de onde viera e não creio que quisesse isso para você. Iria querer alguém à sua altura. — À minha altura? — Carla esqueceu que estava nua, saiu da cama e atravessou o espaço que havia entre eles. — Nick, está falando como alguém do século passado! — Sentou no colo dele, e os braços de Nick a envolveram instintivamente. — Não, não estou. Eu… Ela pôs o dedo nos lábios dele. — Escute. Sean era meu pai, então deixe que eu julgue o que ele iria querer para mim. Certo? — Eu o conhecia melhor do que você, Carla. — Então sabe que ele queria me ver feliz. — Claro! Foi o que acabei de falar. — Estou feliz, Nick. E isso é tudo o que importa. Estou feliz a seu lado. — Aconchegou-se em seus braços, no calor de seu corpo. — Além disso. Sean não conhecia a magia. — Magia? — Nick beijou o pescoço dela. Estava começando a esquecer seus argumentos. — Sim, a magia que existe entre duas pessoas que se pertencem. — Beijou Nick na boca. — Meu pai não sabia como gosto de beijá-lo. Ou abraçálo… — Envolveu-lhe as costas nuas com os braços, apertou seu rosto contra o dele. — Sean não sabia nada disso. Não sabia como foi maravilhoso passar esta noite com você. — Ouviu-o prender a respiração. — Nem como é maravilhoso para você também. É maravilhoso, não é? 112


— Sim, maravilhoso. — Então me diga, Nick — ela sussurrou, abraçando-o com força. — Fale. Ele segurou o rosto dela nas mãos e olhou bem dentro de seus olhos. — Eu a amo, Carla. Amo você mais do que tudo no mundo. Carla sorriu e pulou fora de seu colo. — Nesse caso… — Quer que eu prove? — perguntou Nick. — É o que eu tinha em mente. — Carla puxou-o pela mão até a cama. — O Sundowner está fechado… Ele a beijou com força. — Então nós temos o dia todo. A noite seguiu-se ao dia e, da próxima vez em que acordaram, o sol nascia novamente. Despertaram nos braços um do outro. Nick foi o primeiro a levantar. — Tenho de abrir o bar. — Depositou um beijo no rosto dela. — Os fregueses chegam cedo. — Hum… — Carla se virou para vê-lo vestir o short. — Vou me levantar logo. — Mesmo? — Nick parou à porta e a mensagem que havia em seus olhos ficaria com Carla por muito tempo. Era uma mensagem de amor. — Nick, já vou — insistiu ela. — Sinto muita falta de você aqui, sozinha. Além disso, hoje é o dia daquela festa de dezesseis anos. — Ah-ha! Então a pressa é por isso? — Em parte. — Carla se sentou na cama. — Não vai ser fácil, sem Arthur e Betty. — Bem, tenho uma surpresa para você. Eles voltaram. — O quê? — Ouvi quando chegaram de manhã cedo, durante aquele breve intervalo em que você parou de me seduzir o tempo suficiente para eu dar uma cochilada. — Nick, seu… — Carla jogou o travesseiro nele, mas errou ele longe. Nick começou a rir e não conseguia parar. — Nick, qual é a graça? — Você podia até ter jogado o vaso em cima de mim naquela noite, sem nenhum problema. Sua pontaria é horrível! Outro travesseiro voou pelos ares, mas não chegou nem perto do alvo. 113


Carla ainda o ouvia rir no corredor. Levantou e começou a se vestir. Haviam tomado banho juntos no meio da noite e ela se sentia refrescada, embora um pouco tensa e dolorida. Desceu as escadas, sorrindo consigo mesma, pensando no dia e noite maravilhosos que haviam passado juntos, esperando ansiosa a próxima noite, pois não a conseguia imaginar sem ele. Betty saudou-a quando ela entrou no salão, dirigindo-lhe uma piscada de olhos toda especial. Carla teve a sensação de que o que acontecia entre ela e Nick não era segredo, mas resolveu não no assunto. — Que diabo está fazendo aqui, Betty? — Mas que bela saudação! — Ora, você e Arthur não deveriam estar em lua-de-mel? — Meu marido e eu ficaremos em lua-de-mel pelo resto de nossas vidas. — Betty saboreava cada palavra que dizia. — Por isso, decidimos voltar para casa. Além do mais, fiquei preocupada ao imaginar você e Michael tentando lidar com todas aquelas adolescentes. Num impulso, Carla deu um grande abraço em Betty. — Você é um amor e tem toda a razão! Precisamos de ajuda, sim. Onde está Arthur? — Reclamando lá na cozinha. — Oh, não! — Bom, Carla, o que esperava? O pessoal da limpeza colocou tudo no lugar errado. Pelo menos, é o que ele diz e foi por isso que quis voltar. Arthur simplesmente não agüenta não estar no comando. E não gosta quando Nick contrata um substituto. Diz que o padrão cai do dia para a noite. Betty e Carla começaram a arrumar as flores para a festa. — Sobras do seu casamento — comentou Carla. — E que casamento! Você e Nick prepararam uma recepção maravilhosa. — Era o que queríamos. Afinal, vocês são da família. — O Sundowner é como um lar para mim. Acho que teve muito a ver com a minha volta a Cypress Key. Claro, Arthur também desempenhou seu papel. — Deu outra de suas risadinhas. — Mas é importante estar com a família, sentir que há um lugar que é nosso. Carla entendeu perfeitamente o que Betty queria dizer. Lar e família eram tão importantes… De repente, percebeu que também tinha encontrado o seu lar. Ao lado de Nick. Naquele momento, decidiu que tinha de entrar em contato com Larry 114


Hartwell e impedi-lo de colocar qualquer plano em ação. O Sundowner não estava mais à venda. Depois que as adolescentes da festa partiram num redemoinho de serpentinas cor-de-rosa e papel de embrulho. Carla foi direto para a imobiliária. Chegou ao escritório de Larry sem avisar, no meio da tarde, provavelmente na hora mais movimentada, mas estava disposta a esperar. Não demorou muito. Assim que a viu, Larry fez sinal para que ela entrasse. — Falarei com o senhor em um minuto — anunciou ao homem que aguardava na sala de espera. Depois falou para a secretária: — Diga aos que telefonarem nos próximos minutos que não posso atender agora, tudo bem, querida? Constrangida com os olhares que o cliente e a secretária lhe lançavam, Carla seguiu Larry até sua sala. — Larry, não precisava… — Não se preocupe com isso. Eu estava mesmo pretendendo ligar para você e lhe contar o que está acontecendo. E levá-la para jantar, finalmente. — Larry, mudei de idéia. — Sobre o jantar? — Não, Larry, sobre o Sundowner. Houve uma longa pausa. Carla sentou-se na cadeira de couro defronte à escrivaninha de mogno. Larry continuou em pé. — Não quer mais vendê-lo? — Não. Tudo está indo tão bem… O novo salão é o maior sucesso e todos os antigos fregueses voltaram ao bar. Estou começando a entender por que meu pai gostava tanto do Sundowner. As pessoas lá são como uma família para mim agora. Acabamos de promover um casamento e… — Espere um pouco. Vamos começar do começo. — Larry se apoiou na escrivaninha. — Estou um tanto confuso com essa história de casamento e família. Da última vez em que conversamos, você queria se livrar do lugar. — Queria. Ou pensava que queria. Mas meu coração não me deixaria fazer isso. — Coração? — Larry falava como se nunca tivesse ouvido aquela palavra. — Não pode deixar seu coração lhe ditar as regras em questões que envolvem dinheiro, Carla. — Minha cabeça me diz o mesmo — declarou ela, inabalável. 115


— Estamos ganhando dinheiro, e podemos ganhar mais. Quero transformar o Sundowner no restaurante mais famoso da costa oeste da Flórida. E quero me divertir fazendo isso. Larry contornou a escrivaninha e sentou-se na cadeira giratória. Vários minutos se passaram antes que replicasse: — Sei… Gostaria que você tivesse vindo antes, Carla. Coloquei algumas coisas em ação, e acho que não dá mais para pará-las. — Que coisas? — perguntou ela, inquieta. Suas palmas ficaram úmidas de suor. — Como havíamos conversado, dei alguns telefonemas. — Ora, alguns telefonemas. Se isso é tudo… — E desencavei alguns detalhes interessantes. Detalhes que não podemos ignorar, Carla. — Como… como assim? — Parece que da última vez em que o Sundowner foi inspecionado pela administração municipal, havia algumas violações ao código que precisavam ser reparadas. Na cozinha, haviam sido instalados equipamentos novos que ultrapassavam a capacidade de carga do sistema elétrico. Seria preciso refazer toda a fiação. — Bom, isso não é tão grave. — Em si, não. Mas isso é só o começo. Há um grave problema com o encanamento. E o departamento de segurança contra incêndios arquivou infrações referentes à falta de saídas de emergência adequadas. Juntando tudo, o quadro e bem desfavorável, Carla. — Mas… Larry apanhou uma pasta, abriu-a e folheou alguns papéis. — Só para refrescar minha memória… Oh, sim! A prefeitura enviou um engenheiro para verificar as estruturas. Parte das estruturas da ala sudeste precisam ser reforçadas, o que implica erguer toda essa parte da construção. Isso pode causar um dano estrutural ao prédio. A garganta de Carla estava comprimida e seca. Suas palavras eram quase inaudíveis. — Quando… quando isso tudo aconteceu? — Logo antes da morte do seu pai, creio. Como Sean fosse tão popular, parece que várias repartições lhe concederam uma prorrogação. Mas o tempo está acabando, Carla. Logo irão vistoriar o lugar e, se as irregularidades não tiverem sido corrigidas, é muito provável que o restaurante seja fechado. 116


— Fechado? — É provável. O lugar não vale nada para as imobiliárias: o que conta é o terreno, onde poderá ser construído um condomínio, um hotel, ou qualquer coisa do gênero. Já conversamos sobre isso antes, lembra-se? Carla fez que sim com a cabeça. Sentia-se como se houvesse levado um soco no estômago. Sem perceber a reação dela. Larry continuou a explanação: — Então, quando o estabelecimento for condenado, entramos em cena e convencemos Fleming a vender o restaurante. — Por favor, Larry… — Carla pigarreou. — Quero que os faça parar. — Uma vez que os técnicos e fiscais entram em ação, é muito difícil pará-los, Carla. — Precisa tentar! — Bom, vou dar uns telefonemas, mas receio que seja tudo o que posso fazer. Como disse, é muito difícil… — Faça o possível, Larry. Você começou isso e agora quero que encerre o assunto. Carla levantou-se e Larry fez o mesmo. — Deixe-me lembrá-la de que comecei isso por insistência sua. — Sei disso. — Ela tentava ocultar seu desespero. — Cometi um erro. Nick e eu possuímos o Sundowner em conjunto, e queremos ficar com ele. Sem dizer mais nada, Carla atravessou a porta. Sabia que seus sentimentos não deviam se voltar contra Larry: ele só fizera o que lhe pedira. Mas não esperara que o corretor agisse tão rápido, nem com tal veemência. Ele até parecia deleitar-se com os problemas que descobrira no Sundowner! Rumou para o carro, ciente de que tudo fora culpa sua. Pensou em sumir dali o mais depressa possível, mas logo deu-se conta de que fugir não era a resposta. Tinha de procurar Nick e contar-lhe o que fizera. Juntos, achariam um jeito de salvar o Sundowner. Talvez as infrações não fossem assim tão graves. Talvez pudessem repará-las a tempo. Talvez não saísse tão caro. Talvez. Talvez. A ilusão durou pouco. Afinal, as irregularidades que Larry enumerara eram graves. Muito, muito graves. Afundada atrás do volante. Carla sentiu um calafrio. Nick teria de saber o que acontecera e contar-lhe aquilo seria a coisa mais difícil que ela já fizera na vida. Carla estava sentada no convés do barco. A fumaça de velas de 117


citronela mantinha os mosquitos afastados. Uma leve brisa agitava as folhas das árvores do carvalho junto às águas. Um raio de luar atravessava as profundas sombras do rio. O cenário era tranqüilo e pacífico. Agora, ela sentia-se feliz ali. Isso teria parecido impossível algumas semanas atrás. Mas logo aprendera a tornar o barco confortável e a sentir-se em perfeita harmonia com o ambiente. Naquela noite, porém, a tranqüilidade fora abalada pelo turbilhão que tinha dentro de si, enquanto esperava a chegada de Nick Fleming. Os faróis do jipe dele não tardaram a surgir a distância. Minutos depois Nick subia a bordo, assobiando despreocupadamente. Ela sentiu o coração saltar-lhe à boca. — Carla! — Estou aqui, no convés. Nick cumprimentou-a com um sorriso largo: — Olá, garota do rio. — Beijou-a na boca e abraçou-a, para depois enfiar a mão dentro de seu roupão. — Ótimo! Quase nua e esperando por mim. — Nick… Eu preciso… preciso… — Eu sei. Eu também preciso. Carla percebeu que Nick não a entendera. Contudo, todos os pensamentos que se agitavam em sua cabeça pararam quando ele voltou a beijá-la e abraçá-la com indisfarçável desejo. De repente, só conseguia pensar em Nick. E nada mais. Ele a levou para dentro. O ar frio da cabine contrastava de modo delicioso com a noite úmida e pesada. Carla sentiu a borda da cama de encontro às pernas e numa fração de segundo, afundava no colchão. Nick desamarrou-lhe o cinto e o roupão escorregou de seu corpo. As mãos dele pousaram sobre seus seios, as palmas esfregando os mamilos que enrijeciam e inchavam. Por um breve instante, um alarme soou na cabeça de Carla. Ela porém, não conseguiu se concentrar no pensamento. Ouviu as roupas de Nick caírem ao chão e então sentiu o corpo dele rígido e forte a seu lado. A boca gulosa mordia-lhe o seio e naquele momento, Carla renunciou a qualquer intenção que houvesse restado de racionalidade. Ela e Nick estavam fazendo amor e nada mais importava. Não queria que aquilo acabasse jamais… Nick penetrou-a com avidez e ela deslocou o corpo, para que o membro rijo entrasse mais fundo. Queria mais dele, sempre mais. Devagar, com ritmo, Nick se movia dentro do corpo que o recebia com 118


extremo ardor. Carla retribuía às investidas dele, arqueando-se toda, envolvendo-o com seus braços e pernas. O barquinho pôs-se a balançar ao ritmo dos apaixonados amantes, com as ondas lambendo as laterais. — Eu a amo, Carla — sussurrou Nick. — Eu a amo muito. Carla queria responder, dizer-lhe que precisava dele, que o queria e que o amava também. Mas estavam tão próximos do clímax que as palavras não importavam mais. Lá de dentro, ondas de excitação cresceram e incharam até inundaremna com uma torrente de êxtase. Tudo o que ela pôde fazer foi se entregar àquela sensação divina e deixar-se tragar completamente, enquanto Nick também era levado. Aquela onda de prazer os tornava um só, de corpo e espírito. Era um momento perfeito e se repetia indefinidas vezes, muito mais do que esperavam. Ele a estreitava nos braços, os corpos nus apertados um contra o outro. — Como isso é possível? — O que, Nick? — O jeito como fazemos amor. Cada vez e melhor que a anterior. Em cinqüenta anos… Carla ficou tensa. Não podia deixar Nick ir falando do futuro quando tudo era tão incerto. Ele levantou a cabeça e se apoiou sobre o cotovelo. — Ei, o que foi? Não quer passar os próximos cinqüenta anos comigo? Ou é do tipo de mulher que prefere os casos de uma noite só? Era brincadeira, mas Carla notou a ansiedade que havia nas palavras dele. Tateou em busca do roupão e saiu da cama. Estava escuro. Ela acendeu a lâmpada, que envolveu o quarto num brilho cheio de sombras. Viu-o então franzir o cenho. — Está me deixando preocupado, Carla. Estou me perguntando se resolveu desistir de tudo, voltar para Atlanta… Lágrimas começaram a correr pelo rosto dela. Nick pôs o pé no chão e aproximou-se. — O que foi? Por que está chorando? Ela afundou na cama e tentou inutilmente enxugar as lágrimas. — É o Sundowner… Fiz uma coisa horrível, Nick! Talvez, por minha causa, o percamos. Nick balançou a cabeça, aturdido. — Perder o Sundowner? Do que está falando? Não é possível! — Espero que não, mas Larry Hartwell… 119


— Hartwell, aquele porco! Um homem que faz qualquer coisa por um tostão! O que ele tem a ver com isso, Carla? — Fui procurá-lo… — O que? — Já faz algumas semanas. Eu queria vender o Sundowner… Oh, você sabia das minhas intenções! Mas não fiz nada até… Nick esperou, em silêncio. E visivelmente desconfiado. Ela continuou: — Até termos aquela briga e depois fazermos amor. Eu estava muito confusa naquele momento, e com medo. Principalmente com medo. Larry disse que ia dar uma olhada e ver o que podia fazer para convencer você a vender o bar… — Sei. O que mais? — Então tudo mudou e acho que nem pensei mais em nada disso, até Betty e Arthur voltarem. Estávamos falando em família e… — Vá direto ao ponto, Carla. — Fui falar com Larry de novo, para lhe dizer que tinha mudado de idéia. — Isso foi depois que percebeu que me amava? — Sempre o amei, Nick. Só que não entendia isso. — Sim… Me conte a respeito de Hartwell agora. — Ao que parece, ele verificou os papéis do restaurante e localizou um relatório da administração municipal. Há sérias irregularidades no Sundowner. — Irregularidades? — Nas instalações elétricas, encanamentos e algo a respeito das estruturas… — Oh, não. — Ele se levantou e apanhou o short. — Estou me lembrando… Sean me falou desse relatório e disse para eu não me preocupar. Disse que nunca iriam aplicar sanções contra nós. Depois que ele morreu, ninguém me falou mais nada… Droga! — Tenho certeza de que juntos, conseguiremos resolver as coisas, Nick. — Mas havia dúvida na voz dela. — Ah, é? Como? — Há um prazo de seis meses. Larry falou. Já está se esgotando, mas sei que… — Não quero ouvir mais essas suas previsões idiotas, Carla! O que você não entende é que um prazo de seis meses pode durar a vida toda em 120


Cypress Key… a não ser que algum manda-chuva sabichão de uma agência imobiliária comece a mexer seus pauzinhos! — Eu não sabia disso. — Claro que não sabia! Nick atravessou o quarto em três passadas e se virou para encará-la. Carla apertou o roupão bem firme em torno de si. Estava começando a tremer. — Mais cedo ou mais tarde, eles não voltariam para outra inspeção? — ela arriscou. — Virão mais cedo agora, graças a você e à sua cobiça! Que droga! Era isso o que você queria o tempo todo, não é? Arruinar o Sundowner e livrar-se de mim! — Não! Quero dizer, era, mas não é mais. Também estou preocupada, Nick… E não esperava que seria essa a sua reação. — O que esperava que eu fizesse, Carla? — Não sei… Achei que conversaríamos sobre isso com calma e pensaríamos no que fazer a seguir. — A seguir? — Nick vociferou. — Depois que você arruinou tudo? — Tudo bem. Talvez eu tenha feito isso, mas estou tão aborrecida quanto você. — Tão aborrecida que foi para a cama comigo! — Não é justo, Nick. Você queria tanto quanto eu. Não me acuse de seduzi-lo. — Desculpe — falou ele, esgotado. — Foi uma grosseria da minha parte. É que estou furioso mesmo, Carla. — Eu podia ficar furiosa também. Podia até acusá-lo. Afinal, você nunca se preocupou em ir verificar as licenças e as irregularidades. Tem mania de deixar as coisas para mais tarde. — Tem razão. Isso é culpa minha, e estou furioso comigo mesmo. Isso a faz sentir-se melhor? — Nada vai fazer com que me sinta melhor, a não ser achar um jeito de salvar o Sundowner. A expressão de Nick era de descrença. — É tarde demais para isso, Carla. — Pedi a Larry para falar com a administração municipal. Ele disse que ia fazer o possível. — Ah, claro! Será que você não entende como ele age? Hartwell está atrás de uma alta comissão: se o bar não for vendido, ele não ganha um 121


centavo. Não me surpreenderia se ele mexesse mais alguns pauzinhos para complicar ainda mais a nossa situação. Estamos perdidos, isso sim! Carla levantou-se para se aproximar de Nick, mas o brilho sombrio e intenso dos olhos dele a deteve. Sentou-se de novo, derrotada momentaneamente, mas ainda não vencida. — Deve haver algo que eu possa fazer, Nick! — Não acha que já fez o bastante? Ela desanimou. Sabia que havia cometido um erro terrível, mas acreditara que poderiam resolvê-lo juntos. Não esperara que Nick se voltasse contra ela. Ele calçou as sandálias e pegou as chaves do carro. — Há algo a ser feito. Vou telefonar para Tommy Melendez. — É meia-noite, Nick. — Ele ganha para isso. Carla começou a se vestir. — Vou com você. Nós… — Esqueça essa história de “nós”, Carla. — Mas o Sundowner também pertence a mim! — Devia ter pensado nisso quando foi procurar Larry Hartwell… — Cometi um erro, Nick. Você também. Isso já foi, já e passado. Temos de recomeçar deste ponto. — É exatamente o que estou fazendo. Sem você. Com essas palavras, Nick desapareceu na escuridão da noite.

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CAPÍTULO XI

— Isto está parecendo um funeral — proclamou Michael, carrancudo. Carla não gostou de ouvir aquilo, mas sabia que ele tinha razão. Estavam todos reunidos no Sundowner: Carla, Michael, Melissa e Betty, atirados em cadeiras, no salão; Buck, Arthur e Nick no balcão do bar, conversando em voz baixa, expressões sinistras em seus rostos. Por todo o Sundowner, no andar de cima e no de baixo, no terraço e embaixo da construção, inspetores representando várias empresas públicas, conselhos e repartições bisbilhotavam em todos os cantos como se examinassem um paciente terminal. — Creio que devemos agradecer a Larry Hartwell por programar esta invasão — continuou Michael. — Como será que conseguiu que todos os inspetores chegassem no mesmo dia? — Ele tem influência e poder junto à administração do município. Quer nos intimidar e nos fazer crer que qualquer esforço da nossa parte será inútil… O que provavelmente, é verdade. — Os olhos de Melissa estavam vermelhos de tanto chorar. — Se fecharmos, acho que vou ter de largar a escola por uns tempos. — Talvez não — falou Carla. Estava cheia de preocupação e exausta de tentar conservar o otimismo. — Não há muitas alternativas. — De todo o grupo. Melissa era a mais abatida e a que mais falava. — Procurei por toda a cidade antes de começar a trabalhar aqui. Não há nada, só emprego em lanchonetes que pagam saláriomínimo e sem gorjeta. Não posso pagar o aluguel e a escola com isso. Se perder este emprego… — Nada está perdido ainda — interveio Betty. Carla fitou-a, agradecida. Durante os últimos dias, Betty não se cansava de lhe fornecer apoio, carinho e compreensão. Michael não era menos pessimista do que Melissa: — Se bem conheço esse pessoal da prefeitura, este é o nosso fim. Eles faziam vista grossa para o Sundowner por causa de Sean. Agora foram apanhados em negligência no cumprimento do dever e Hartwell está de olho neles: então, precisam compensar o tempo perdido sendo durões. Vão fechar o restaurante em uma semana. 123


Carla se sentia enjoada. Não conseguia comer nem dormir e a lembrança do rosto de Nick, tão severo e tão frio, despedaçava-lhe o coração. — Sinto muito — falou, pela milésima vez. — O que está feito, está feito — Betty era mais realista. — Devíamos fazer alguma coisa! — gritou Melissa. — O quê? — perguntou Michael. — Não sei. Você pode sobreviver com o salário de sua esposa. Mas e quanto a Buck? — Melissa estava prestes a chorar de novo. — Ele não tem casa nem família. O Sundowner é toda a sua vida. — Ele vai encontrar alguma coisa — falou Betty. — Todos nós vamos. Se for preciso. — E quanto a você e Arthur? — perguntou Michael. — A gente se vira. — Vocês têm qualificações. Este emprego é o melhor que posso conseguir até me formar — disse Melissa. — É o melhor que posso conseguir, ponto final. — Michael estava entrando no baixo astral de Melissa. Carla não agüentava mais. — Vou sair para tomar um pouco de ar. Ao sair, escutou Betty repreendendo os outros: — Deixem a garota em paz. Não vêem que ela está um caco? Carla parou junto ao parapeito do terraço. A madeira velha dava-lhe uma sensação de estabilidade, algo a que se agarrar quando tudo em torno desmoronava. E tudo era culpa dela, não havia a menor dúvida. Fora ela quem atraíra aquele desastre para cima de todos, apesar das palavras de Betty em sua defesa. Era seu dever salvar o lugar para seus assistentes, todos eles. Mas, como? Nick saiu ao terraço, permaneceu distante, do outro lado. Top, obediente, seguiu-o e sentou-se a seus pés, observando-o. — O que está havendo? — perguntou Carla. Nick fitava o mar. — Pior do que você previu. Más instalações elétricas, saídas de emergência insuficientes, madeira podre nas estruturas. Tudo isso mais os canos de ferro, que têm de ser substituídos por outros de cobre. E precisamos também de um sistema automático de extinção de incêndio. — O quê? — O prédio é muito velho e, em caso de incêndio… Oh, deixe para lá! — Como assim, “deixe para lá”? Este lugar é meu também, Nick. 124


— É, e é por isso que estamos aqui hoje, vendo o machado cair sobre nossas cabeças. Durante todo o dia, Carla fora alvo de acusações. Agora chegara a hora de responder, apresentando propostas para a solução do problema. — Estive pensando em como levantar o dinheiro para os reparos. Se vendermos o barco e meu carro… — Ambos usados e em condições não muito boas — replicou Nick. — Daria uns poucos milhares. Precisamos de muito dinheiro, Carla. Muito. Cansada de falar de um extremo ao outro do terraço, ela se aproximou do local onde Nick se postava. Top foi para o seu lado. — Vamos recorrer ao banco. Nosso negócio é lucrativo, vamos conseguir um empréstimo para a reforma. — Pena que o pai de Larry Hartwell seja o dono do maldito banco… — Eu não sabia disso… Bem, existem outras cidades e outros bancos. Podemos tentar em outra cidade da costa. — Pensei nessa hipótese. Iriam dizer que não temos garantias suficientes, o que é uma verdade irrefutável. Carla odiava vê-lo tão amargurado, mas sabia que ele tinha razão. Havia ainda uma alternativa. — Vou a Atlanta, falar com meu padrasto. — Pensei que ele não emprestasse dinheiro. — Desta vez terá de emprestar. — Carla sentia-se determinada e tentava converter aquela sensação em esperança. — Ah, claro. — Descrente, Nick virou-se a fim de voltar ao restaurante. — Nick… — Tudo bem, Carla. Tente. Ela o viu afastar-se. Sentindo-se mais sozinha do que nunca, sentou-se no chão do terraço, com os braços em torno dos joelhos. Logo sentiu uma língua quente lambendo seu rosto. Top se aninhou junto a ela e enquanto Carla o abraçava, lágrimas caíam suavemente sobre o pelo do velho vira-lata. Buck estava atrás do balcão, com um sorriso forçado, quando Nick voltou para o bar. — Um drinque duplo, Buck. — É cedo ainda, hein? — Não nestas circunstâncias: E, como você me falou que era um bom ouvinte, prepare seus ouvidos. 125


— Vá em frente, chefe. — Você sabe que não temos muitas possibilidades de enfrentar a lei, não sabe? — Acho que sim. — Não temos dinheiro. — Nick tomou um gole de seu drinque. — E não temos garantias para arranjar dinheiro emprestado. — Então…? — Então Carla vai voltar a Atlanta, para ver se consegue um empréstimo com o padrasto. — Ótimo, não? — Só tem um problema, Buck. Tenho medo de que, se ela for, não volte nunca mais. As coisas estão ficando difíceis aqui, difíceis demais para Carla. A festa acabou, está na hora de ir para casa. — Talvez, chefe. — É. Talvez. — Nick tomou outro gole. — Só tive duas pessoas realmente íntimas em minha vida. Sean foi a primeira e a filha dele, a segunda. Sean me deixou. — Ele morreu, Nick. Não o deixou por querer. — Depois que ele se foi, Carla apareceu. Pensei que poderia viver com ela para sempre. Agora ela vai embora. Parece que a história sempre se repete comigo, hein, Buck? Buck encheu o copo de Nick outra vez, em silêncio. Carla ficou dois dias em Atlanta, dormindo no quarto de hóspedes da residência dos Selwyn, numa missão que acabou se revelando infrutífera. — Querida, gostaria que não partisse tão cedo. Carla ergueu os olhos da mala que estava arrumando. — Já sei o que queria saber, mamãe. James não vai me dar o empréstimo. O padrasto fora inflexível como sempre em sua política de não conceder empréstimos, mesmo que Carla tivesse feito um pedido estritamente comercial, prometendo-lhe altos lucros. Ele não se comovera. — Não é que ele não a ame, Carla. Janet Selwyn afundou na cama. Bem arrumada como sempre, os cabelos muito bem penteados, a blusa de seda e a saia de linho impecáveis. — Sei disso. — Carla dobrou um vestido e enfiou-o na mala. — Só não entendo essa sua obsessão por um boteco velho na Flórida. Pensei que você quisesse dirigir uma galeria de arte, minha filha. Achei que 126


esse era o objetivo de sua ida à Flórida: vender o tal lugar. Mas, agora que pode vendê-lo, não quer. — Descobri que o Sundowner é o que eu quero, e tenho uma espécie de galeria lá. Comecei a expor o trabalho de artistas locais e alguns são excelentes. Tudo virá a seu tempo: primeiro, precisamos salvar o prédio. — E o que me diz do convite de Deena Caldwell, para que você gerencie o pequeno antiquário que ela vai abrir em Decatur? Carla fechou a mala. — Não estou disposta a administrar o antiquário de Deena. Tenho um emprego como gerente do Sundowner… quero dizer, espero que ainda tenha. De qualquer modo, vou sublocar meu apartamento aqui e me estabelecer em Cypress Key. — Num barco? — Janet arqueou as sobrancelhas. — Que talvez tenha de ser vendido — admitiu Carla. — Por falar nisso… Fui até o banco e retirei as pérolas que vovó me deu do cofre de segurança. Sinto muito, mamãe, mas acho que vou ter que vendê-las também. — Oh, Carla… — Preciso do dinheiro. — Ela deu um beijo no rosto tristonho da mãe. — Nick e eu precisamos do dinheiro. — Nem sabemos nada desse tal Nick, de onde vem, quem são seus pais… — Estou certa de que irão gostar dele. — Carla lançou os olhos em volta do quarto. — Esqueci alguma coisa? — Não tente mudar de assunto, querida. Parece estar falando a sério a respeito desse homem. Sério demais. — Sim, é sério. Mas não o despreze assim de cara, antes de conhecê-lo. — Sei que ele dirige um bar, como seu pai. Não é vida para alguém como você, viver com o dinheiro contado. O avião de Carla partiria em duas horas: aquele não era o momento adequado para uma conversa franca com a mãe. Mas haviam evitado aquela conversa durante anos e talvez, nunca mais houvesse uma oportunidade. Ela sentou-se na cama e colocou o braço em torno dos ombros eretos da velha mulher. — Você e eu somos diferentes, mamãe. Queremos coisas diferentes da vida. Você sempre quis segurança… — Um teto em cima da cabeça, pelo menos. E quem poderia se sentir segura ao lado de Sean Gallagher? — Aprendi muito sobre Sean através das pessoas que conviveram com 127


ele. Era um bom homem, mamãe. Talvez não fosse o homem certo para você, mas era leal e bondoso. Sinto não tê-lo conhecido melhor. Janet se levantou e foi até a janela, de costas para Carla. — Eu sempre me senti culpada por isso, por mantê-lo afastado de você: mas James temia, e eu também, que ficaria confusa se dividíssemos o seu tempo dessa forma. James queria tanto ser seu pai… Ficou todo orgulhoso quando você adotou o sobrenome dele. — Virou-se para Carla. — Espero que não fique magoada com seu padrasto por causa do empréstimo. Sabe que ele lhe daria o dinheiro se achasse que fosse para o seu bem, que fosse um bom investimento para você. — Conheço James e seus investimentos. Têm de ser sólidos como uma rocha. — Ele é cuidadoso, mas sempre foi muito generoso com você, Carla. É nossa única filha. — Sou filha de Sean, mamãe — falou Carla, com brandura. — Às vezes, fico pensando como seria se o tivesse conhecido de verdade. Os olhos de Janet se encheram de lágrimas. — Entendo isso. Também me pego pensando como seria se você tivesse ficado com Sean. Carla se aproximou da mãe e as duas se abraçaram. Então, inesperadamente, Janet sussurrou: — Sean Gallagher era um homem fascinante, sabe? Nunca me esqueci disso. O seu Nick também deve ser fascinante. Volte para ele, querida. Espero que com você dê certo. — Este vôo foi cancelado — declarou o funcionário, quando Carla colocou sua bagagem no balcão de check-in. — Cancelado, por quê? — Condições climáticas. — Mas o tempo está bom. — Há um furacão aproximando-se da área de destino. Carla lembrou-se de algo que ouvira de manhã, no rádio, a respeito de um furacão. Não prestara muita atenção, porque não parecia ameaçador. — Estava indo para o mar — argumentou ela. — Derivou para leste, e cancelamos todos os vôos para a costa da Flórida. Gostaria de mudar de rota? — Para onde? — Para onde gostaria de ir? 128


— Gostaria de ir para Cypress Key. — Carla estava se desesperando. — Senhorita, acabei de lhe dizer que… — Eu sei. Quero chegar o mais perto possível. O funcionário verificou no computador. — Há um vôo para Miami em meia hora, mas está lotado. Se quiser ficar na lista de espera… — Ótimo. — Ela estendeu a passagem e esperou, impaciente, enquanto o agente a reescalonava no outro vôo. Apanhou então a passagem e seguiu em direção ao portão. Foi a última da lista de espera a ser chamada e só quando o avião decolou, teve tempo para pensar sobre a ameaça que pairava sobre Cypress Key. Era cedo demais para se preocupar. Furacões tinham o hábito de mudar de curso ou de se transformarem em meras tempestades tropicais. O furacão Ada, o primeiro da estação, não saiu de curso. Quando o avião de Carla aterrissou em Miami, os ventos haviam acelerado e começara a chover. Todos os vôos na região estavam cancelados. Não tinha escolha, precisava ir para um hotel. Durante as doze horas que se seguiram, ela ficou grudada à televisão, assistindo à destruição causada pelo furacão que assolava a costa oeste da Flórida. O quadro era devastador: ondas derrubavam diques, barcos eram virados, casas viravam escombros. Os jornalistas acorriam ao litoral para cobrir a tempestade, mas não havia notícias diretamente de Cypress Key, o local mais atingido pelo furacão. Desesperada, Carla telefonou para todos os números que conhecia na cidade. As linhas pareciam desconectadas. Estava louca de preocupação, não só por Nick, mas por todo o pessoal do Sundowner. Tudo acontecera tão rápido: só podia torcer que eles tivessem sido avisados a tempo de irem para o interior, em busca de segurança. Quando compreendeu que não havia nada a fazer além de esperar, ela tentou se acalmar, pediu um sanduíche ao serviço de quarto e telefonou para a mãe. Antes de desligar, confortou a velha senhora: — Eu a amo também, mamãe. E a papai. Não se preocupe. Telefono quando chegar lá. Carla descansou a cabeça no travesseiro e olhou para o teto. Amava seus pais e os entendia. De certa forma, não voltara a Atlanta só pelo dinheiro, mas pela sensação de segurança que sempre a cercara naquele lugar. Mesmo assim, descobrira que não queria mais viver daquela forma. Também sabia que os pais a tinham mantido longe de Sean não porque 129


o odiassem, mas porque tinham medo de perdê-la para ele. James e Janet tinham passado toda a vida com medo: de Sean Gallagher, de perderem dinheiro, de competirem pelo amor e respeito da filha, de ficarem inseguros financeiramente. Eles não mudariam, mas isso não queria dizer que ela não pudesse mudar. Não era mais uma menininha e não tinha medo. Estava a caminho de construir sua própria vida, com seus próprios valores e objetivos. E Nick estava no centro daquilo tudo. Ela queria aproveitar as oportunidades, lutar pela felicidade e abraçar a vida. Com Nick a seu lado, iria conseguir tudo isso. Voltar a Cypress Key daquele jeito louco e precipitado era apenas o primeiro passo. Pela manhã, o pior havia passado, mas a chuva continuava. Até em Miami havia sinais de estragos, telhas arrancadas e galhos quebrados bloqueando as ruas. Carla decidiu não esperar mais. Se não houvesse vôos, alugaria um carro para chegar a Cypress Key. Já passava do meio-dia quando ela saiu da cidade e, no meio da viagem, desejou ter ouvido os conselhos do recepcionista do hotel e do gerente da agência locadora de automóveis, que lhe haviam dito que esperasse até o dia seguinte. A Everglades Parkway, estrada que ligava a costa leste à costa oeste da Flórida, era uma longa pista de duas mãos apelidada de Estrada dos Crocodilos. Com rios lamacentos de ambos os lados e várias placas avisando do cruzamento de ursos e pumas, não era fácil dirigir por ali nem com o melhor dos climas. Numa tempestade, era um verdadeiro pesadelo. Com as palmas suadas, o pescoço duro e o coração em disparada, Carla finalmente chegou a Naples, o fim da Estrada dos Crocodilos. Entrou numa lanchonete para tomar um café, comer um sanduíche e descansar um pouco. Conseguira chegar até ali, mas ainda havia muita estrada pela frente. Embora o tráfego da Interestadual do Norte se apresentasse tranqüilo, ela estava a quilômetros de seu destino. Saiu da lanchonete e dirigiu de modo mecânico, com os faróis dianteiros se refletindo na estrada molhada pela chuva. Imaginava mil cenários de desastre envolvendo Nick e o Sundowner. Só quando se aproximou do acesso a Cypress Key é que tomou consciência da extensão dos estragos provocados pelo temporal. A palavra “furacão” nunca significara muito para Carla: evocava-lhe imagens de marés altas em praias varridas pelo vento, trailers virados de cabeça para baixo e, de vez em quando, um carro esmagado por uma árvore 130


caída. À sua frente, agora, havia isso tudo e muito mais. Ficou estarrecida diante da terrível força dos ventos que tinham assolado a costa oeste da Flórida. Fileiras inteiras de pinheiros haviam sido destruídas, os troncos arrancados do solo como se tossem palitos. Imensos carvalhos arrancados jaziam no solo, inertes como cadáveres. Quanto mais perto chegava de casa, mais assustada ela ficava. Então viu os carros da polícia, com as luzes vermelhas piscando. Era um bloqueio que se estendia por toda a estrada de acesso a Cypress Key. Carla baixou o vidro da janela. — Desculpe, senhorita, vai ter de voltar. — A chuva escorria pela capa impermeável do exausto policial. — Voltar? Não posso! Tenho de prosseguir! — Está tudo fechado na costa, devido aos estragos do vento e das ondas. Há fios elétricos por toda a estrada. É perigoso demais para turistas. — Mas não sou turista! Estou indo para casa. Sou dona do Sundowner. — Do Sundowner, é? — Sim, sou Carla Selwyn, sócia de Nick Fleming. Tem alguma notícia do Sundowner? — Não tenho notícias detalhadas sobre nenhum dos prédios da costa, mas a situação está preta por lá. Não deveria deixá-la passar… — Por favor! Tenho de ir para casa. Meu… minha família depende de mim. — Bem, já que mora lá… Mas prometa-me que dirigirá com cuidado. Há uma equipe de limpeza na estrada da costa e talvez a façam parar de novo. O fato é que, mesmo que chegue perto do Sundowner, talvez não consiga passar. — Então irei a pé! — Está certo, mas tenha cuidado e fique longe dos fios, certo? Carla agradeceu e seguiu devagar rumo à cidade. Perplexa, notou que quadras inteiras continuavam intactas. Então, a alguns metros de distância, terrenos baldios cheios de entulho surgiram onde antes havia prédios. O banco fora poupado, assim como a igreja do outro lado da rua, embora a torre tivesse ruído: mas o Hotel Palms, onde passara as primeiras noites em Cypress Key, não era mais que uma pilha de vidros estilhaçados e madeira lascada. A rota de destruição do furacão não parecia fazer nenhum sentido. Esperava que o Sundowner tivesse sido poupado pelos ventos avassaladores. Mesmo sem o aviso do policial, Carla teria guiado com a máxima cautela, atenta aos fios de eletricidade e às árvores caídas: estava apavorada 131


demais para agir de outro modo. Ao se aproximar do Golfo, viu os barcos, não ancorados no porto, mas espalhados pela praia como se uma criança tivesse jogado seus brinquedos no chão ao acaso: Havia um barco a vela na varanda de uma casa e uma lancha no alto do que sobrara de uma loja. Nada restara do cais de pesca, exceto algumas estacas. Os postes de telefone tombavam sobre a estrada. Sentiu o estômago apertar e o coração bater acelerado. Enquanto atravessava aquela devastação, Carla movia os lábios murmurando uma prece: — Que Nick esteja bem. Por favor, meu Deus, que ele tenha sobrevivido a este horror. Ela parou o carro e avaliou a estrada a sua frente: completamente bloqueada e uma equipe de limpeza trabalhando. Mas não precisava ir mais adiante. Chegara ao Sundowner. Ou ao que restara dele. Carla saltou do carro. Imediatamente seus sapatos afundaram na areia molhada e a chuva chicoteou-lhe o rosto. O Sundowner era uma confusão de destroços espalhados na areia. Ela conteve um grito e caminhou sobre o cascalho. Embora fosse fim de tarde, o céu estava escuro e mal podia enxergar devido à chuva e a neblina. Procurou em vão por algum sinal de vida. Não havia nada. Então uma sombra apareceu por trás de uma pilha de tábuas destroçadas. Carla deu um pulo, o coração batendo rápido enquanto ele corria em sua direção, quase derrubando-a. Caiu de joelhos e agarrou o cachorro molhado e sujo. — Top! Você está bem! Onde está Nick? Ache-o para mim! Teve uma premonição repentina, louca. Via Nick preso sob os escombros. Com as pernas trêmulas, seguiu o cachorro, pisando em cima do que um dia havia sido o balcão reluzente, caminhando sobre os restos do freezer de Arthur, atravessando um mar de cadeiras e mesas quebradas. — Nick, onde você está? — As palavras eram levadas pelo vento. Algo se moveu a distância. Carla forçou os olhos para ver através do vento e da chuva, e avistou uma silhueta agachada, curvada, como se procurasse algo no chão. — Nick! Ele se endireitou, olhou para ela e começou a correr, chutando os destroços à sua frente. — Carla, você voltou! Você está aqui! — Havia alivio e alegria em sua 132


voz. Ela se precipitou de encontro ao peito forte, com Top latindo e pulando ao seu redor. Os braços de Nick a envolveram, com força. Carla agarrou-se a ele, beijando-o sem parar. — Você está bem! — gritou. — Graças a Deus que está bem! Fiquei tão apavorada! — Sim, estou bem. — Ele segurou a cabeça dela entre as mãos e fitou-a em meio à chuva. — Você voltou, voltou de verdade! — Voltei, Nick, querido. Teria voltado antes, se tivesse conseguido. Onde ficou durante a tempestade? O que aconteceu com os outros? — Estão todos bem. Avisaram-nos a tempo e fomos para o interior. — Nick apontou para os destroços encharcados e patéticos do Sundowner. — Nunca imaginei que isso pudesse acontecer. — O que importa é que todos estão bem. Podemos recomeçar tudo, Nick. Ele se inclinou e recolheu um caco de louça. — Minha xícara, ou melhor, um pedaço dela. Foi o que fiz o dia inteiro hoje: andei por aí, tentando achar algo para guardar de lembrança. — Encontrou algo. Eu. Ele a abraçou com força. — Mas não posso levá-la para casa comigo, querida. Isso foi tudo o que restou da minha casa. — Temos o barco. — Mal acabara de dizer isso, entrou em pânico. — Ainda temos o barco, não temos? Nick começou a rir alto, jogando a cabeça para trás. Atônita, Carla perguntou: — Nick, o que foi? Qual é o problema? Pare com isso, está me deixando assustada. — Temos o barco, mas há um pequeno problema — respondeu ele, rindo ainda. — Qual? — Está no meio do jardim de Kyle. Ele ficou um pouco aborrecido, pois sua plantação de tomates jamais será a mesma! — Nick caiu na gargalhada outra vez. Diante do absurdo e do desespero da situação, Carla uniu-se a ele na gargalhada. Juntos, caíram no chão molhado, abraçados, rindo para o vento e para a chuva até lágrimas correrem por seus rostos. — Não fale, Carla — avisou ele, enxugando as lágrimas e os pingos da 133


chuva em seu rosto. — Não fale que temos tudo de que precisamos: temos um ao outro, o sol de manhã, a lua à noite. Acho que eu não ia suportar uma dessas agora. — Mas é verdade! Temos um ao outro e isso é tudo o que importa. Nossos amigos estão bem e temos um cachorro, molhado e sujo, mas com saúde. Podemos viver no barco até reconstruirmos o Sundowner e… — Viu a rápida mudança de expressão no rosto de Nick. — Vamos reconstruí-lo, não vamos? Nick não respondeu. — De certa forma, esse furacão foi a resposta às nossas preces, não foi? — ela insistiu. Nenhuma resposta ainda. — Podemos reconstruí-lo de acordo com as normas de segurança e mandarmos Larry Hartwell passear. Tenho certeza de que o seguro… Oh, não! — Ela respirou fundo, estremecendo. — Você não se esqueceu de pagar o seguro, esqueceu? — Não, não esqueci. Não precisava. Sean pagou todo o seguro e deixou as apólices com Tommy. Verificamos esta tarde. Temos o seguro, mas não chega nem perto do valor que precisamos para a reconstrução. Sean tinha uma teoria de que as companhias de seguro cobravam demais, então escolheu a taxa mais baixa e com maiores descontos. E eu fui na onda. — Vamos receber algum dinheiro? Por favor, me diga! — Um pouco. — Ele a estreitou nos braços. — Agora estou começando a me sentir feliz só com o sol, a lua e você. Podemos reconstruir, Carla, mas terá de ser algo do tamanho de uma barraca. Uma barraca para vender os camarões fritos de Arthur. Não há como reconstruir nada parecido com o que tínhamos. Carla afastou o cabelo molhado de Nick da testa. Apesar de todas as más notícias, de repente se sentiu como se eles tivessem vencido. — Talvez seja bom. Talvez seja melhor nós pegarmos o dinheiro e tentarmos algo diferente. — Nós? — Nick olhou em volta, sob o brilho sombrio do crepúsculo chuvoso. — Consegue olhar para isso… para esse lixo… e ainda dizer “nós”? Cheguei aqui há dez anos sem nada, Carla. E aqui estou novamente, sem nada. — Não vou deixá-lo, Nick Fleming, nunca mais. Vou grudar em você feito cola. O que acha disso? Ele se inclinou e beijou seus lábios molhados. 134


— Acho que você é louca. — Bem, pelo menos não sou louca a ponto de rir histericamente porque um barco está no meio de uma horta. — É tão louca que quer viver com um indigente. Num barco no meio de uma horta. — Pode apostar que sim! Nick abraçou-a e após um longo beijo, pôs-se a levá-la para longe dos destroços. Então parou e assobiou bem alto. — Venha, Top! Vamos para casa!

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EPÍLOGO

Dois dias se passaram. O sol de junho brilhava ofuscantemente sobre as águas azul-turquesa do Golfo. Carla protegia os olhos fazendo sombra com a mão, admirando um trio de gaivotas circulando no céu sem nuvens. Passara a manhã com Nick e Tommy Melendez, discutindo as alternativas para o Sundowner. Tommy, otimista, achava que os prédios destruídos na cidade seriam reconstruídos, deixando o local ainda mais aprazível. Era também realista o bastante para prevenir Carla e Nick de que o dinheiro do seguro não seria suficiente para recuperar o Sundowner. Sugeriu que vendessem o terreno a uma imobiliária e transferissem o bar para outro local, mais barato. Carla dizia a si mesma que não seria a mesma coisa, enquanto retornava à tarefa de recolher uma gaveta de pratarias e talheres que havia encontrado. A maior parte dos empregados do Sundowner juntara-se a eles na busca entre os destroços, a fim de salvar o que pudessem antes que a equipe de demolição municipal chegasse para limpar o terreno. A fúria do ciclone havia sido estranhamente seletiva. As roupas de Nick tinham-se ido, mas os sapatos, que ele raramente usava, permaneceram em perfeitas condições. Livros e discos estavam arruinados, mas todo um conjunto de porcelana chinesa sobrevivera, assim como uma lata de azeitonas, que Betty abriu com um floreio e serviu junto com os sanduíches que fizera para o último dia no local. Ao final da tarde, o grupo se reduzira a três: Nick, Carla e Arthur. Os outros tinham ido para casa, tomar banho e trocar de roupa. Top, que começara com muita disposição, cansara de escavar os escombros e agora cochilava à sombra de uma estaca tombada. De repente, Carla ouviu Arthur gritar: — Ei, Nick. Carla! Venham ver o que encontrei! Ele segurava uma caixa de aço amassada, com uma fechadura de segurança. — O que é isto? — perguntou a Nick. — É o cofre de Sean. — Nick tomou-lhe a caixa. — Anos atrás ele me levou ao depósito e mostrou-o para mim. — E você nunca o abriu? — perguntou Carla. 136


— Esqueci completamente. Engraçado… — Nick examinou a caixa. — Ele me deu a chave e disse que chegaria o dia em que o cofre teria de ser aberto. — Onde está a chave? — perguntou Arthur. Nick deu de ombros. — Com o resto das minhas coisas, em algum lugar deste monte de lixo É bem do meu feitio: adiar ou esquecer coisas relativas à sociedade comercial no Sundowner — falou ele, dirigindo-se a Carla. — Sean também não ligava muito para essas coisas — lembrou Arthur. — Mas ele disse que ia chegar o dia e acho que esse dia é hoje. Cala estava impaciente. — Chega de conversa. Vamos abrir e ver o que tem dentro. — Pegou uma pedra e estendeu-a a Nick. — Pode quebrar essa fechadura? — Claro que posso — falou ele, colocando a caixa de aço no chão com certa hesitação. — Vá em frente, Nick. Não agüento mais o suspense — insistiu ela. — Quebre você, Arthur — ordenou Nick. O cozinheiro não hesitou. Pegou a pedra e começou a bater na fechadura até despedaçá-la. Retirou a fechadura e levantou-se. — Você é que tem de abrir — falou a Nick. — Não, eu… — Nick, vá em frente! — insistiu Carla. — Ele lhe falou que esse dia chegaria. — Eu sei, mas… — Qual é o problema? — perguntou Carla. — Não está curioso? — acrescentou Arthur. Carla e Arthur o encorajavam, mas Nick resistia. — Não deve haver nada de importante aí. Provavelmente só coisas pessoais. — Mas ele lhe falou que… — Eu sei, Carla, mas não acho correto. Sean era seu pai. — E seu amigo. — Ele não sabia que você estaria aqui, quando chegasse a hora de abrir o cofre. Arthur se abaixou e pegou o cofre. — Talvez soubesse. — Ofereceu-o a Carla, que o recebeu de mãos trêmulas. De repente, ela entendeu como Nick se sentia. Era algo tão pessoal, a 137


última relíquia de seu pai. Finalmente, abriu o cofre. Havia um envelope de manilha em cima, amarrado com um cordão. Carla o desatou e retirou o conteúdo. — São fotos. De quando eu era um bebê. — Deu uma olhada nelas. — Eu e minha mãe… Oh, Nick, veja! Cartas que eu escrevi para ele quando era pequena! — Há mais alguns papéis aqui — anunciou Nick, remexendo, enfim, no cofre. Puxou para fora várias folhas e outro envelope, que entregou a Carla. — Este aqui está endereçado a você. Nesse instante, Arthur deu um grito abafado: — Vejam! — O que diabos… — Nick empalideceu. — Não acredito — sussurrou Carla. O fundo da caixa estava recheado de dinheiro, maços de notas de cem dólares. Carla, Nick e Arthur trocaram olhares num silêncio atônito. Carla se deixou cair sobre uma pilha de tijolos, ainda segurando a carta, enquanto Nick e Arthur pegavam as notas. — Nunca vi tanto dinheiro. — Arthur fez uns cálculos aproximados. — Nick, devem ser milhões! — Isso é típico de Sean. Ele jamais confiou em bancos. — De onde veio isso tudo? Acha que Sean assaltou um banco sem nos contar? — Arthur brincou. Carla rasgou o envelope. — É uma carta. — Leia, Carla. — Nick colocou o braço em torno do ombro dela enquanto Arthur se mantinha à parte, ainda segurando a caixa cheia de dinheiro. Ela desdobrou a carta com cuidado. “Querida Carla, não estarei por perto quando abrir esta, mas quero que saiba que sempre a amei e quis o melhor para você. Foi por isso que cedi à sua mãe e ao seu padrasto. Eles podiam fazer muito mais pela minha menininha do que um velho num bar caindo aos pedaços. Foi o que pensei na época. Agora, vejo que estava errado. Gostaria de ter lutado mais por você. Gostaria que tudo tivesse sido diferente, mas a sabedoria só vem com a idade.” Carla parou de ler e olhou para Nick. — Eu disse o mesmo à mamãe… que gostaria que Sean e eu 138


tivéssemos passado mais tempo juntos. Nick escorregou o braço até a cintura dela e puxou-a mais para perto. — Continue. Vamos ouvir o resto. — É sobre você, Nick. Lágrimas inundaram-lhe os olhos, enquanto ela lia: “Alguns anos atrás, um jovem chegou aqui e fez do Sundowner o seu lar. Acho que nós dois éramos solitários e queríamos uma família. Nick precisava ter algo de seu e eu queria dar a ele uma participação no Sundowner, mas dessa forma, ele não teria aceitado. Então, começou a me pagar. Eu não tinha o que fazer com o dinheiro. Dinheiro nunca significou muito para mim, como sua mãe deve ter-lhe dito. Guardei a maior parte… Guardei-o para você, Carla. Houve um tempo em que pensei em dá-lo a você no dia do seu casamento. Talvez você até deixasse o seu velho pai conduzi-la pelo corredor da igreja.” A voz de Carla falhou, e ela se agarrou a Nick. Ele pegou a carta e terminou a leitura numa voz nada firme. Arthur chorava abertamente. “Assim, menininha, gostaria que você usasse o dinheiro como bem entender. Nunca se esqueça de que seu velho pai a amava muito.” Por um longo tempo, ninguém falou. Arthur chorava em silêncio. Carla, enfim, disse em voz rouca, quase para si mesma: — É um milagre… Não só encontrar o dinheiro, mas encontrá-lo agora. Se eu tivesse aberto essa caixa quando cheguei ao Sundowner, quem sabe o que teria acontecido? — O que vai acontecer agora, Carla? — Arthur perguntou. — Ela não precisa decidir nada ainda. Nick se afastara, a fim de não pressioná-la. O dinheiro era dela: não tinha nada a ver com ele e Arthur. Os olhos de Carla brilharam com algo mais do que lágrimas. — Oh, já decidi! Quer saber, Arthur? — Claro que quero. — O cozinheiro estendeu-lhe a caixa. Carla olhou para o dinheiro. — Eu vou, ou melhor, nós vamos, reconstruir o Sundowner. — Novo e moderno? — perguntou Arthur. — Todo reluzente? — Nada disso! — Carla foi enfática. — Exatamente como era antes! Quero que nosso bar fique como era, em homenagem a Sean e a todas as 139


pessoas que amaram meu pai e o Sundowner por todos estes anos. Terá de haver uma mudança, contudo: o apartamento do andar de cima precisará ser um pouco maior, para acomodar um velho cachorro e duas pessoas que vão morar lá. — Ela olhou para Nick. — Se você estiver disposto a dividi-lo comigo. — Sean não aprovaria que a filha dele morasse no apartamento comigo… — Nick, já discutimos isso antes… — …a não ser que nos casássemos. Carla se jogou nos braços dele. — Acho que podemos dar um jeito nisso! Arthur riu, deliciado. — Puxa, ficamos peritos em promover casamentos no Sundowner! Mal posso esperar para chegar em casa e contar a Betty! E o velho Sean ficaria feliz da vida se soubesse das novidades! Mas as palavras do cozinheiro não foram ouvidas por seus acompanhantes, que estavam ocupados num longo e apaixonado beijo. O sol que pairava sobre a orla do Golfo começou a desaparecer no horizonte. O céu se tingiu de vermelho, dourado e púrpura, envolvendo Carla e Nick num clarão reluzente. — Vamos, Top — falou Arthur. — Está na hora de darmos uma caminhada na praia. Acho que Nick e Carla não vão se importar se nós os deixarmos a sós. E não se importaram mesmo.

Fim MADELINE HARPER é o nome que representa uma dupla de escritoras: Shannon Harper, que mora na ensolarada Flórida, cenário deste excitante romance da coleção Tentação, e Madeline Porter, que reside na Califórnia. Como vocês podem imaginar, essa dupla dinâmica paga contas telefônicas astronômicas… Mas respeitam muito o correio, que só extraviou uma de suas correspondências em dezessete anos! 140


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