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Graduação na FAUFBA: contexto e caminhos
Capítulo 1 Graduação na FAUFBA6: contexto e caminhos
Mesmo a Escola de Arquitetura sendo um espaço de referência para muitos estudos, ainda está submetida a uma formação de graduação extremamente mercadológica, modernista e urbana. Essa formação, por muitas vezes, exclui as infinitas outras formas de Ser e habitar a Terra. Infelizmente, essa é a realidade de muitas faculdades de arquitetura do país e do mundo.
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As construções indígenas, quilombolas, ciganas, populares, tradicionais e tantas outras maneiras de habitar ainda têm pouco espaço nas disciplinas que compõem o currículo obrigatório do curso, assim como o estímulo de projetos que estejam integrados com a natureza e seus ciclos ou discussões contemporâneas pautadas na Permacultura e Bioconstrução.
Atividade da Disciplina Práticas em Tecnologias Construtivas na FAUFBA.
O campo de pesquisa e formação de profissionais em construção com terra ainda é tímido, assim como para a utilização de outros recursos naturais como bambu, fibra e outros materiais naturais.
Existem, porém, muitos grupos de pesquisa na FAUFBA que desenvolvem trabalhos de extrema importância, abrangendo inclusive diferentes formas de habitar e se envolver com os materiais. Dentre esses, destaco o ARQPOP, Etnicidades, Lugar Comum, Laboratório Urbano, Tectônica, dentre outros. Os diferentes grupos, inclusive, são responsáveis por organizar eventos com as mais distintas temáticas, sendo muitos deles referência no Brasil.
No entanto, se analisada a relação desses grupos com o currículo da graduação, é possível perceber que fazem parte da fatia minoritária das disciplinas optativas ou das atividades extracurriculares.
A graduação em arquitetura possui uma carga horária total de 4672 horas, que as disciplinas optativas correspondem a apenas 2,2%. Na maioria das vezes, as optativas são disponibilizadas com poucas vagas, poucos horários e oscilam a cada semestre.
Sobre as disciplinas que englobam práticas construtivas, as que existem também fazem parte da pequena porcentagem das disciplinas optativas. São poucas e não existe regularidade na oferta, variando a cada semestre. Com o foco das atividades práticas construtivas, foi ofertada, nos últimos semestres, a disciplina “Práticas em tecnologias inovadoras”, com o professor Sérgio Ekerman; “Tópicos de Arquitetura e Urbanismo”, com o grupo da Tectônica, e “Práticas em tecnologias construtivas”. Voltarei a falar das duas últimas disciplinas com mais detalhes ao longo do trabalho.
Nas disciplinas de História, 5,8% das disciplinas do curso, eventualmente se fala sobre o uso da terra, pedra, cal e etc como materiais usados em construções antigas, sem abordar a perspectiva contemporânea do uso desses materiais.
Há muitas disciplinas de exatas e engenharia, que correspondem a 18,2% das disciplinas do curso, onde são abordados os sistemas construtivos que envolvem, em sua maioria, estruturas de concreto armado e as técnicas construtivas industrializadas que atendem ao mercado da construção civil. Apenas uma dessas disciplinas aborda estruturas em madeira. Nessas disciplinas, pouco se aborda sobre os impactos gerados pela construção civil e como muitos dos seus materiais são tóxicos à saúde.
As disciplinas de ateliê (I ao V) correspondem à maior fatia da carga horária total do curso, de 41,5%. São consideradas as principais disciplinas pois nelas aprendemos e desenvolvemos projetos, porém, há muita ênfase no desenho e pouco olhamos para o processo construtivo, muito menos nos envolvemos com a prática do canteiro. O incentivo à escolha dos materiais naturais é quase inexistente nessas disciplinas, acontecendo somente em raros contextos em que a professora ou professor possui aproximação com o tema.
Carga horária dos componentes curriculares da FAUFBA (diurno) As disciplinas obrigatórias estão indicadas em tons de azul.
Nessas disciplinas, é bastante comum termos exercícios onde nos é indicado algum edifício de algum star architect para análise. Não tive, em nenhum momento, uma atividade que se voltasse para a arquitetura indígena, por exemplo, como fonte de estudo nas disciplinas de atelier.
A partir dessa aproximação, é possível perceber, no contexto de disciplinas obrigatórias da FAUFBA, bem como no ensino de arquitetura no Brasil de um modo geral, uma intensa valorização da arquitetura com materiais e técnicas industrializadas, com padrões importados do “primeiro mundo” e que atendem principalmente ao mercado e que nem sempre se encaixam com a nossa realidade local. Essa arquitetura, considerada como erudita e eurocêntrica, produzida pelas “estrelas” da arquitetura pós-moderna, nos impede de olhar para nossa própria formação cultural e popular (WEIMER, 2008).
Essa intensa valorização da arquitetura erudita, bem como os resquícios de uma arquitetura modernista, pós-modernista ou qualquer outra caixinha que utilizemos para denominar, reverencia uma monumentalidade dos edifícios que muitas vezes está dissociada de um contexto local, e por contexto local me refiro a pessoas, cultura, modos de fazer e pensar distintos.
Esse modo de fazer arquitetura colabora com rupturas de quem projeta e de quem constrói, para além das rupturas culturais. O elogio acrítico dos Star Architects – “Arquitetos-estrela” – como gênios isolados que produzem
genialidades e os trabalhadores enquanto força braçal exclusivamente, colabora com a ideia equivocada de que a arquitetura é feita isoladamente por um único profissional arquiteto (DURAN, 2017).
Enquanto insiste-se na angústia de esperar pela oportunidade de construir uma obra prima, as moradias nas periferias das cidades brasileiras estão sendo construídas informalmente, com quase nenhuma ajuda de profissionais, ou por meio de programas habitacionais focados na produção de moradias em larga escala sem a preocupação com a qualidade arquitetônica da edificação e a indispensável estruturação com o espaço público. (LOTUFO, 2014, p. 17)
A partir disso, é promovida a formação de profissionais alheios às questões sociais e ambientais, que não se envolvem nos canteiros e pouco conhecem dos processos construtivos. Esse alheamento contribui para uma cisão de projeto e construção, entre os profissionais que desenham e os profissionais que constroem quando, na verdade, essa cisão não deveria existir. O espaço construtivo pode ser um espaço rico em trocas e aprendizados, como nos ensina Sérgio Ferro, um dos primeiros críticos de arquitetura a escrever sobre as relações de trabalho no canteiro de obras.
Um exemplo que me marcou muito, e que acredito que possa ilustrar um pouco a ideia que desejo transmitir neste trabalho, ocorreu nos meus anos iniciais de graduação. Com uma visão certamente menos amadurecida do que a de agora, tivemos que realizar, no Atelier, um projeto de um Pavilhão em um terreno localizado no centro histórico de Salvador. Esse terreno fica ao lado da praça Castro Alves, entre a rua do Sodré e a ladeira da Montanha, onde hoje funciona um estacionamento.
Com a turma, fizemos uma breve visita ao local, mas nos envolvemos pouco com o território e com a população. No nosso projeto, Mari e eu, amiga e dupla de trabalho, exploramos bem a forma, resultando em algo plasticamente interessante. Hoje percebo que se tivesse sido construído, nosso projeto teria resultado um ambiente bastante quente, pois indicamos estrutura e vedação metálica, pouco condizente com a paisagem local que é uma das mais visitadas na cidade.
Não refletimos sobre como seria sua execução, se havia a disponibilidade do material na cidade, como seria disposto o saneamento, como o espaço construído impactaria a dinâmica da população local, bem como outras discussões fundamentais para o desenvolvimento de um projeto. O trabalho foi bem recebido e tiramos nota 10.
Anos depois, tive a experiência de participar do minicurso “Ofícios e Saberes tradicionais dos Mestres Artífices da Ladeira da Conceição”, que fica parale-
lamente embaixo da Ladeira da Montanha. A atividade foi organizada pelo grupo de Pesquisa Lugar Comum, Ideas Assessoria Popular e coordenado pela professora Gabriela Leandro Pereira e André Luiz de A. Oliveira.
A atividade promoveu uma oficina ministrada pelos Mestres, e os estudantes e professores da faculdade puderam aprender um pouco sobre os seus ofícios, principalmente os de marmorista, ferreiro e mecânico. No livreto “Mestres artífices da ladeira da conceição da praia” produzido pelo grupo supramencionado, há a seguinte passagem:
Regidas por saberes que subvertem a lógica e o tempo das relações produtivistas, as oficinas são guardiãs de uma relação com o labor que quase não existe mais.
Comprometimento, preciosismo, conhecimento da materialidade e suas propriedades, tudo isso vai contra qualquer processo de alienação da força produtiva. Nas oficinas estão verdadeiras relíquias em máquinas e ferramentas que datam do início do século passado e estão, em sua maioria, ainda em uso, contrariando qualquer lógica de descarte e substituição gratuita na qual respalda-se a contemporaneidade. São também as oficinas potentes espaços de criação e invenção de utensílios inexistentes no mercado, cuja fabricação torna o trabalho executado ainda mais primoroso. Embora quase anônimos, as peças produzidas por esses mestres são únicas, autorais e carregadas de toda ordem de sentido, simbolismo, domínio, técnica e criação.
No entanto, apesar dessa inegável relevância, em 2014 os Artífices foram alvo de tentativa de expulsão que
Oficinas nos Arcos ocupados historicamente pelos Mestres Artífices da Ladeira da Conceição. Foto do Google Street View. Acessada em outubro de 2020.
visava deslocá-los dos arcos, transformando seu local de trabalho em “residências artísticas” destinadas à artistas e pesquisadores da indústria cultural, o que denota um total desrespeito à história, aos sujeitos e à vida do povo negro. (OLIVEIRA; PEREIRA 2017, p. 8 e 9)
Esses Mestres, cada um com sua especialidade, representam gerações que trabalham na Ladeira e resistem contra a especulação imobiliária da região, que há muito tempo ameaça retirá-los de lá através de projetos espetaculosos que servem a um turismo excludente para o qual, ironicamente, nosso Pavilhão poderia colaborar caso tivesse sido construído.
Eu acho interessante como um mesmo perímetro urbano pode promover experiências distintas: tudo depende do estímulo à criticidade das pessoas envolvidas, bem como da guiança dos professores. Sem dúvida, a atividade do ateliê trouxe muitos aprendizados, porém é preciso ir além da forma do espaço, mesmo estando nos anos iniciais da formação. Os projetos de arquitetura precisam dialogar com a cidade e a população.
O envolvimento com os Mestres locais poderia ter gerado discussões importantes com a turma durante o ateliê, temas como especulação imobiliária, marginalização de saberes, violências e racismos urbanos, dentre tantas outras pautas fundamentais para uma formação crítica. A partir desse envolvimento, poderíamos ter aprendido sobre a história, os ofícios, e projetar um pavilhão que envolvesse as técnicas desses artistas locais, promovendo reflexões sobre um fazer arquitetônico mais inclusivo e democrático.
A partir de uma mesma instituição de ensino podemos ter distintas experiências.
No exemplo que eu trouxe, a experiência do Ateliê compõe o currículo obrigatório, já a experiência do minicurso fez parte de uma atividade optativa extracurricular.
O envolvimento com o local bem como entender como se dará o processo construtivo é muito importante para o desenvolvimento crítico de um projeto. E esses são pré-requisitos para quem pretende construir com terra e materiais naturais. Abordarei esse tema com mais profundidade no tópico Diário de uma obra de terra.