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A prática como pedagogia
“Porque nós só entendemos realmente quando o conhecimento é construído como ponte, passo a passo. Conhecer é construir pontes entre o sonho, estrela distante, e o lugar onde me encontro.” Rubem Alves (2018)
A minha trajetória com a arquitetura e construção de terra se deu no contexto da Bioconstrução e, desde o início, com o envolvimento da prática construtiva e assim vem se desenrolando nesses breves anos no qual venho mergulhando no assunto. A partir desse meu envolvimento, pude compreender a importância do tema para minha formação e compreensão da arquitetura. No tópico “Diário de uma obra de terra” compartilho minha primeira experiência mais profunda nesse sentido.
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Temos trabalhos de autores que se aprofundam no tema da importância do fazer prático em arquitetura, desde a graduação até a vida profissional, e aqui citarei alguns. O acesso à produção desses autores foi de fundamental importância para o desenvolvimento deste trabalho e, claro, o próprio vínculo com meus orientadores, entusiastas da prática de fazer arquitetura com as próprias mãos.
Porém, no desenvolver do TFG, antes deste trabalho tomar a presente forma, eu me aproximei do tema a partir de um contexto diferente… Como mencionei no tópico “Sobre desenvolver um TFG”, eu estava envolvida no projeto do Espaço Educativo de Permacultura Águas do Ipitanga (EEPAI). Nesse processo, conheci o Movimento para uma Educação Viva e Consciente, no qual as crianças são incentivadas a serem protagonistas da própria aprendizagem, e o adulto se torna um observador atento e não o protagonista do processo.
Como resultado desse vínculo, também me aproximei da obra do grande Mestre da educação brasileira (e também do mundo), que é Paulo Freire. Essas duas linhas de pensamento norteiam o trabalho de educação crítica e comunitária do EEPAI.
Durante esse processo, visitei com as educadoras algumas escolas e me chamou a atenção a existência de espaços que estimulavam as crianças a “fazer”: sala de costura, de artesanato, de marcenaria, de artes, etc. A prática, estimulada pela busca autônoma de seus próprios interesses individuais de cada criança e jovem, geralmente é um caminho potente para o processo de aprendizado. Para as educadoras do EEPAI, era muito importante que o projeto do espaço educativo estimulasse a curiosidade que, segundo Paulo Freire, é um ingrediente que deve ser respeitado no processo ensinar-aprender:
A curiosidade que silencia a outra se nega a si mesma também. O bom clima pedagógico democrático é o em que o educando vai aprendendo, à custa de sua prática mesma, que sua curiosidade, como sua liberdade, deve estar sujeita a limites, mas em permanente exercício. Limites eticamente assumidos por ele. Minha curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô-la aos demais. (FREIRE, 2019, p. 82)
E essa curiosidade pode ser estimulada a partir da ação. Segundo a educadora e entusiasta do Movimento para uma Educação Viva e Consciente, Ivana Jáuregui , para a efetivação do aprendizado é muito importante que haja movimento, ação, brincadeira, tudo junto. Apesar de se existir a noção de que para aprender é necessário estar “parado pensando” e que a vida está separada, na realidade, os processos estão completamente interligados, aprendemos nos desenvolvendo, em ação e em movimento. (JÁUREGUI, 2020)
A educadora se referia ao processo de alfabetização das crianças, mas acredito que essa ideia pode se aplicar a qualquer processo de aprendizado e para qualquer idade. Aprender fazendo é muito mais eficaz, pois nos coloca no lugar de agentes principais do nosso aprendizado. Acho interessante que, mesmo em faixas etárias diferentes, seja na formação das crianças, seja na formação de adultos, a busca por envolver o “fazer” na educação é presente.
Num contexto formal de aprendizado, se normalizou o “depósito” de informações por parte dos docentes na mente dos estudantes, que supostamente absorvem esses conhecimentos, o que Paulo Freire chama de educação bancária. Quando acontece dessa maneira, é transferência de informações sem garantia de recebimento delas pelos “receptores”, e isso pode acontecer do ensino infantil à graduação. “Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 2019, p.47)
O espaço construtivo permite essa produção de saberes aos quais Freire (2019) se referiu. Quando estão dentro da Universidade, alguns autores os chamam de Canteiros Experimentais. Neles, os estudantes são coautores do próprio aprendizado, tendo a guiança dos professores. Os estudantes também ensinam aos professores bem como aos demais estudantes. Os técnicos e funcionários da faculdade, quando participam, também são professores e estudantes ao mesmo tempo. A cada nova experiência, todos aprendem.
Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE, 2019, p. 25)
Eu achei muito interessante como os temas da prática na educação, pau-
tadas pelo trabalho de Paulo Freire, surgiram em diferentes contextos para mim. No primeiro momento, a partir do desenvolvimento do projeto do EEPAI e no segundo momento, ao desenvolver este trabalho especificamente. Nos mostrando o quanto o assunto da prática é importante para a formação do ser humano, independente de sua idade.
Sérgio Ferro (2006), quando perguntado se eles [grupo Arquitetura Nova] “usavam Paulo Freire no canteiro” ele responde que “O Rodrigo [Lefèvre] usava muito. O Rodrigo gostava muito do Paulo Freire.” Alguns autores já relacionaram os ensinamentos de Paulo Freire a uma prática de ensino na Arquitetura. Na dissertação “A experimentação prática construtiva na formação do Arquiteto” temos:
Outra temática que é insistentemente tratada por Paulo Freire, é a necessidade de se ensinar a forma de evoluir do pensamento ingênuo para o pensamento crítico, ou como o próprio autor define, para o pensamento epistemológico. Para o pedagogo, é muito mais importante o exercício do livre pensar ao invés do simples treinamento do estudante. Admitindo que esta visão de abrangência geral na formação também se aplica ao arquiteto e urbanista, o que se verifica é a falta e a necessidade de espaços que criem a curiosidade do aluno desconfiar, questionar, criticar. (MINTO, 2009, p. 99)
Léo Bahia, professora Akemi Tahara e estudante durante prática no canteiro com a disciplina Práticas em Tecnologias Construtivas. Professora e estudantes aprendem juntos.
O envolvimento com o canteiro, além de proporcionar um aprendizado efetivo, pois permite que a prática dialogue com a teoria, estimulando assim a curiosidade e intuição, proporciona também o espaço de questionamento e todo tipo de crítica. Nesse sentido, o canteiro experimental se torna também um espaço possível de debate a respeito das relações sociais alienantes existentes nos canteiros de obra de um modo geral, que geralmente oferecem péssimas condições de trabalho, debate bastante trazido por Sérgio Ferro em suas referências. Segundo o autor:
(...) o canteiro de obras é um dos lugares privilegiados da exploração, da violência. Os operários até hoje têm os menores salários, as maiores jornadas de trabalho, as piores doenças do mundo do trabalho (a silicose, que vem do cimento, por exemplo), a maior quantidade de acidentes. Isto continua e é válido praticamente no mundo inteiro até hoje. (FERRO, 2002)
Os Canteiros Experimentais nas escolas de arquitetura são temas abordados por alguns autores. Na dissertação “Um novo ensino para outra prática Rural Studio e Canteiro Experimental: Contribuições para o ensino de arquitetura no Brasil” temos:
As transformações que o Canteiro Experimental trouxe ao ensino de arquitetura e o desenvolvimento gerado nos estudantes entre o pensar e o fazer têm sido amplamente relatados ao longo dos anos. Ronconi (2002) ressalta que não se trata de um espaço para aprender técnicas de construção e sim um ambiente de formação que, por meio da prática construtiva, permite ao aluno enfrentar problemáticas de diversas disciplinas. Sendo assim, acredita-se que com essa metodologia de ensino prático o aluno tem a oportunidade de uma educação mais integral. (LOTUFO, 2014, p. 62)
Quando o assunto é formação de profissionais aptos a trabalhar com materiais naturais, a prática e aproximação com o material é fundamental. O espaço do Canteiro Experimental é um espaço possível para esta formação. Diferente do ferro e do cimento, que são materiais padronizados pela indústria, a terra, por exemplo, varia de acordo com o lugar que for colhida, exigindo conhecimento por parte de quem irá construir de como utilizá-la para a construção. Segundo Daniel Marostegan e Carneiro, no seu artigo intitulado “A abordagem prática na disseminação de técnicas e saberes da construção com terra”:
Especificamente no ensino tecnológico para a ACT7 nas escolas de arquitetura e urbanismo percebe-se que os ganhos de aprendizagem da abordagem prática parecem alcançar ainda mais importância, isso se dá em função daquela caracterização apresentada anteriormente nesse texto, na qual se percebe uma
quantidade pouco significativa de construções com terra e de conhecimentos técnicos disseminados nos meios da construção. Nessas condições, os arquitetos que pretendem construir com terra necessitam minimamente conhecer e experimentar o material e as técnicas, de forma que possam se apropriar desses saberes e técnicas para adotá-los em suas obras, visto que dificilmente encontrarão no mercado oportunidades de interagir com esses saberes, como muitas vezes ocorre no uso dos materiais industrializados mais disseminados. (CARNEIRO, 2018, p. 6)
Como diz Gernot Minke (2015, p. 11), “Nenhum livro de teoria pode substituir a experiência prática que envolve a construção com terra”. Minke é arquiteto, e foi professor e pesquisador durante décadas na Universidade de Kassel, na Alemanha, sendo considerado uma grande referência científica no assunto das construções de terra e outros materiais naturais. Desenvolveu pesquisas no Laboratório de Construções Experimentais, fundado por ele, bem como projetou e construiu diversos tipos de construções com estes materiais ao redor do mundo. Em um de seus livros, o “Manual de construção com terra”, bastante usado como referência para este trabalho, ele transmite seus estudos teóricos e exemplifica com fotos a aplicação prática de seus estudos nas construções.
Nesse sentido, as Universidades ainda têm muito o que construir. Segundo a engenheira civil e pesquisadora Célia Neves, ex-coordenadora da Rede Iberoamericana Proterra:
Na sua grande maioria, os centros educativos e universidades não contemplam a arquitetura e construção contemporânea de terra como uma disciplina regular, o que impede a generalização da formação neste tema, a qual permitiria a postura correta dos profissionais atuando em seus postos de trabalho, quando necessitassem emitir uma avaliação, aprovar um projeto ou até mesmo projetar e construir com terra. (NEVES, 2011, p. 10)
O espaço do Canteiro dentro da universidade é um espaço potente em aprendizado. Ele pode servir como um laboratório, ofertar disciplinas, atividades de extensão, grupos de pesquisa, propor novas tecnologias, desenvolver protótipos de habitação de interesse social, bem como ter suas atividades relacionadas às dos ateliês de projeto, promovendo discussões entre o fazer e o projetar a partir de aprendizados in loco.
Para além da infinidade de experiências que ele pode proporcionar, o canteiro se torna ainda mais necessário se desejamos que as Universidades sejam capazes de formar profissionais aptos a projetar e construir com terra e outros materiais naturais. Eu acredito que a implementação de Canteiros Experimentais nas escolas de arquitetura podem ser caminhos potentes de transformação.
Atividades de marcenaria do grupo Tectônica.