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Construir com a terra

Capítulo 2 Construir com a terra

Neste capítulo do trabalho compartilharei algumas percepções que envolvem Construir com a terra a partir do “Diário de uma obra de terra”, minha primeira experiência profunda em um canteiro de obras. Antes, trarei alguns aspectos sobre construir com esse material tão valioso que é a terra...

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A terra é muito mais do que qualquer descrição, muito mais do que apenas um material de construção: a terra é vida. É um dos materiais mais abundantes neste planeta Terra: da terra nascemos e, quando morrermos, para ela retornaremos. A terra tem o poder de fazer nascer. Da semente que brota à folha que morre, todos têm espaço no seio da Mãe.

Da dissertação de Denis Alex Barboza De Matos intitulada “A casa do “velho”: o significado da matéria no candomblé” , desenvolvida em nossa faculdade9 , destaco as seguintes passagens:

Em diversas culturas a terra é considerada como a “Grande Mãe”, que contém em seu ventre os subsídios mantenedores da vida, servindo também como abrigo. Além de nutrir o corpo, ela também o protege, seja das intempéries, dos animais selvagens ou do ataque de outros homens. (...)

O ser feminino, matéria representante da “Grande Mãe”, é o principal detentor do poder de concepção, ente mutável, dotado de princípio dinâmico e capaz de conceber gestação e metamorfose. O corpo da fêmea está sempre em processo de transformação, vertendo sangue, contendo existência em seu

ventre-abrigo, receptáculo da vida, parindo, amamentando e expondo para este mundo o profundo enigma da vida e da morte.

O ato de concepção, na fêmea, o procriar, gerar, parir, não é mais que uma imitação da “Mãe Terra”, que realiza a gestação em grande escala. Cabaça, ovo, útero, todos são símbolos representantes deste poder numa escala menor, que enfatizam o preceito da existência. (DE MATOS, 2017, p. 32 e 34)

E por ela ser vida, para construir com ela é necessário muito mais do que cálculos. Os cálculos nos ajudam muito, mas são um meio e não o fim. A terra nos pede envolvimento, nos pede tato mais apurado, ouvidos atentos, visão treinada. Podemos sentir no tato se ela é argilosa ou arenosa, trazendo para perto ouvimos se os grãos de areia se atritam entre si, olhando atentamente vemos se há fissuras ou não. O corpo e o espírito também aprendem, não é só o intelecto. Testamos. Adicionamos aquele outro ingrediente. Voltamos atrás. Intuímos.

Uma casa de terra é quase como uma escultura. As mãos se tornam ferramentas muitas vezes, dando forma e sendo fôrma. Esse envolvimento com a materialidade é incrível e com certeza não cabe em palavras, mas pode ser estimulado. E não é com uma aula teórica de slide que é possível compartilhar essa experiência sensorial: é com a prática que vamos entrando em contato com esse infinito de possibilidades que é se envolver com a terra.

O professor que mostra a coisa ao discípulo e sorri enquanto aponta, Que diz: “Preste atenção! Ouça como essa música é bonita!”, Que toca mansamente com as mãos, Que lê um poema para seus alunos e se sente possuído, Está ligando o seu rosto, como memória poética, à coisa. E assim ele é o alquimista que opera a transubstanciação dos sentidos. E o mundo se enche de alegrias ausentes. (ALVES, 2018, p. 50)

Ao mesmo tempo que a terra permite esse envolvimento empírico, ela também possibilita uma aproximação teórica e, a partir dessa aproximação, conseguimos caracterizá-la e aprimorar cada vez mais as formas de sua utilização. Assim, é possível otimizar as experiências construtivas, criar métodos a serem replicados e difundir cada vez mais as técnicas.

A partir do aprofundamento teórico, podemos, na prática, avaliar como a terra obtida localmente se comporta. Ou seja, não basta o conhecimento teórico, o envolvimento prático se faz sempre necessário, pois cada porção de terra obtida localmente é diferente da outra.

Eu percebo que o espaço do canteiro e das práticas construtivas permitem esses aprendizados. Quando aliados, o aprendizado prático, o teórico e a pesquisa, potencializam as experiências educacionais, um complementando o outro.

Na Academia, valorizamos muito a pesquisa associada ao intelecto, e temos pouco espaço para o saber prático que envolve o corpo. Essa ruptura do corpo e mente não existe, uma parte depende da outra. É só olharmos para nossa estrutura física. Somos inteiros, não somos pela metade.

É por isso que compartilho minhas experiências práticas neste trabalho acadêmico: meu intuito é valorizar o envolvimento corporal que o saber prático proporciona sem perder de vista os aspectos técnicos para que possamos, cada vez mais, nos apropriar dos métodos construtivos em terra.

Vantagens de construir com terra

Nos países industrializados, a exploração descuidada de recursos e capital, combinados com a produção intensiva de energia, não é apenas um desperdício, acaba por poluir o ambiente e aumenta o desemprego. Nestes países, a terra está voltando a ser usada como material de construção. Cada vez mais as pessoas que constroem suas casas procuram edificações eficientes econômica e energeticamente, dando maior valor à saúde e à temperatura interior equilibrada. Estão começando a perceber que a terra, como material de construção natural, é superior aos materiais de construção industriais como o concreto, tijolo e cal-arenito. Gernot Minke (2015)

A terra sempre foi um dos principais materiais de construção dos mais diversos povos ancestrais em praticamente todos os continentes. E não à toa, quando bem utilizada, ela é realmente um excelente material de construção. Durável e boa para a saúde, seguindo princípios básicos de proteção, construções de terra podem durar muito tempo, às vezes até milênios.

O melhor de tudo: a terra não é tóxica para a saúde humana, muito pelo contrário: as construções de terra são excelentes reguladoras térmicas e acústicas. O barro, por ser denso, absorve o calor ajudando a equilibrar o clima interior de um ambiente, tornando os espaços mais agradáveis termicamente. Ajuda a regular também a umidade dos ambientes, colaborando para a não proliferação de bactérias e ácaros.

Isso acontece porque o barro é capaz de absorver e desabsorver a umidade mais rápido e numa maior extensão do que qualquer outro material de con-

strução, o que lhe permite equilibrar o índice de umidade em seu interior (MINKE, 2015). Vale ressaltar que a umidade interfere diretamente na saúde dos ambientes e de seus usuários e usuárias. A umidade mínima de um ambiente é de 40% e máxima de 70%.

Um ambiente muito seco pode promover mucosas secas, diminuindo a resistência aos resfriados e às doenças relacionadas, inclusive problemas de pulmão. Já um ambiente muito úmido é considerado desagradável provavelmente devido à redução e ingestão de oxigênio pelo sangue em condições de quente-úmido. Em condições de ar úmido e frio, as dores reumáticas aumentam. A formação de fungos aumenta significativamente em salas fechadas, quando a umidade sobe acima de 70% ou 80%. Os esporos de fungos em grandes quantidades podem causar vários tipos de dor e alergias (MINKE, 2015).

A terra nos permite construir espaços saudáveis.

Outro aspecto interessante é o baixo impacto ambiental ao se utilizar a terra para construir, uma vez que ela requer apenas 1% da energia necessária para a produção, transporte de tijolos cozidos ou concreto armado (MINKE, 2015)

Além disso, a construção de paredes de terra não gera resíduos: toda massa que eventualmente cai na aplicação de um reboco, por exemplo, pode ser reaproveitada, diferente de uma argamassa de cimento que seca rapidamente e se torna resíduo. Se derrubamos uma parede de terra crua, temos poucos prejuízos: ela se reintegra ao solo, não gerando entulho.

Em uma palavra, se a terra amassada é ecologicamente limpa, é porque o tempo pode destruí-la completamente e pode-se tornar a usá-la tantas vezes como se deseja. Não deixar resíduos nem rastros indeléveis talvez será uma nova ambição da arquitetura. (BARDOU apud WEIMER, 2005, p. 115)

Como [a terra] pode ser reaproveitada depois de seu uso, obteve a pecha de ser pouco durável. E, no entanto, aldeias erguidas dois mil anos antes da pirâmide de Quéops ainda estão em bom estado de conservação na Núbia. Os arautos da industrialização desde longa data vêm procurando desqualificá-la como material de construção e, exatamente o contrário, os graves problemas ecológicos criados pela industrialização é que estão ressuscitando as velhas técnicas de antanho - as quais têm se mostrado como as mais viáveis em um mundo ecologicamente equilibrado. (WEIMER, 2005, p. 250)

Historicamente, técnicas como o adobe e a taipa foram usadas por diferentes povos na formação da humanidade e ainda hoje são bastante

utilizadas. Existem ainda as técnicas ancestrais como a taipa de pilão que, a partir de grandes maquinários, resultam em construções totalmente inovadoras, como é o caso desta construção de 2019 no centro da cidade de Lyon, na França, que abriga um centro multiuso. O projeto é de Clément Vergely Architectes, Diener & Diener Architekten, Michel Desvigne e a execução da Le Pisé. Para a materialização deste espaço, foram formadas peças pré-moldadas de terra compactada, colocadas uma por uma através de guindastes.

Na foto ao lado, construção em Lyon, na França, construída a partir da técnica da taipa de pilão através de métodos inovadores.

Nas fotos abaixo, registros do processo construtivo onde peças pré-moldadas de terra compactada são colocadas, uma por uma, através de guindastes.

Templo do Canto do Uirapuru recém inaugurado. Essa, para mim, é uma das belezas das construções de terra: daquela que exige complexos e tecnológicos maquinários para sua materialização à pequena casa que demanda poucos recursos, a terra pode ser usada nos diversos contextos construtivos.

Ao comparar as técnicas de construção empregadas nos tempos antigos e as praticadas hoje, constata-se que elas evoluíram, passando por transformações e adaptações próprias do conhecimento adquirido através das investigações, das práticas e do meio socioeconômico e cultural onde elas são executadas. Assim, a força de trabalho do homem vai sendo substituída por equipamentos e ocorre a introdução de materiais regionais e de materiais sintéticos. (NEVES, 2011, p.10)

Por isso, eu acredito que o retorno às técnicas construtivas com terra não é, de forma nenhuma, um retrocesso, mas sim um resgate de um material amplamente usado e que pode, aliado a novas técnicas e pesquisas, ter cada vez mais aprimoradas suas formas de uso na construção civil.

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