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Diário de uma obra de terra
A partir daqui, compartilharei algumas reflexões do processo construtivo do Canto do Uirapuru, resultando numa espécie de “Diário de obra”, sob uma perspectiva técnica, afetiva e crítica do processo.
Essa experiência foi o divisor de águas que me mostrou a importância do envolvimento no canteiro. Foi a partir dela que percebi o quanto pode ser rico e prazeroso o aprendizado durante uma construção para a formação em arquitetura, e foi depois dessa vivência que comecei a visualizar a importância desses espaços na Academia.
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Foram feitos muitos registros fotográficos durante a obra, permitindo que este trabalho, mesmo sendo desenvolvido tempos depois, pudesse ser recheado de exemplos visuais. Outras informações referentes aos traços das massas, por exemplo, não foram minunciosamente guardadas por nós. Mas, de qualquer maneira, meu objetivo ao compartilhar esta experiência é o seu registro, sem o caráter de “receita” ou fórmula de “como se tem que fazer”.
Nesse sentido, por entender que este trabalho se insere num contexto acadêmico, no qual o projeto é, geralmente, o instrumento principal na formação das/os arquitetas/os e que o processo construtivo fica muitas vezes escanteado, acredito que o compartilhamento desta experiência pode enriquecer o canteiro enquanto sala de aula, e os profissionais que o compõem enquanto detentores de Saber.
Além disso, por se tratar de uma obra que utiliza materiais pouco abordados na FAUFBA (terra, palha, esterco, baba de palma, etc), entendo que compartilhar este processo pode incentivar estudos sobre os usos desses recursos como materiais de construção contemporâneos.
Durante a obra, participei de alguns momentos de forma imersiva, evidenciando que muitas escolhas projetuais se dão durante o processo construtivo dentro do canteiro a partir de diálogos com os profissionais envolvidos na obra. Essa experiência me mostra, mais uma vez, o quanto o canteiro de obras pode ser um espaço rico em trocas.
Canto do Uirapuru
O Espaço Canto do Uirapuru é um templo de práticas xamânicas localizado em São Gonçalo dos Campos, Recôncavo baiano e cidade da região metropolitana de Feira de Santana, na Bahia. Janaína e sua mãe, Dona Chica, desejavam construir um espaço no quintal delas para que os rituais, que antes aconteciam na sala de casa, pudessem acontecer apropriadamente no espaço externo.
Nesse contexto, em 2018, meu amigo Marcos Botelho, que é engenheiro civil e bioconstrutor, me chamou para fazer o projeto arquitetônico, cabendo a ele os projetos de engenharia, a gestão e a execução da obra, inclusive toda a análise e execução das técnicas em terra.
O projeto é processo
Em termos de desenhos arquitetônicos, para o Canto do Uirapuru foi desenvolvido um projeto sem nenhum detalhamento, apenas planta, corte e fachadas. Foi meu primeiro projeto construído, e eu não sabia muito bem o que era importante ser detalhado para uma obra. A partir desses desenhos, Botelho desenvolveu os projetos complementares. Por causa dessa falta de amadurecimento da minha parte, eu pude vivenciar uma experiência muito marcante pra mim, que vinha de uma longa formação acadêmica focada em desenhos para uma situação completamente diferente. Nesse caso, ao invés de investir muito tempo produzindo desenhos, eu pude dedicar mais tempo me envolvendo na construção. Eu comecei a perceber que o projeto pode ser mais do que desenho, ele é também processo. E que o projeto não
precisa acabar com a entrega dos desenhos aos clientes.
Algumas decisões executivas foram surgindo conjuntamente ao longo do processo construtivo a partir dos diálogos com os demais profissionais e com a família. Dessa forma, o projeto deixa de ser um documento rigoroso que determina o quê e como fazer, da suposta autoria de um único profissional, para se tornar maleável e passível de interferências dos demais profissionais que compõem o canteiro, onde eles podem contribuir com suas experiências, o que evidencia a natureza coletiva da arquitetura: é um fruto coletivo desde o projeto até a materialização.
A partir dessa vivência com o Canto do Uirapuru, comecei a me envolver ativamente na disciplina ARQ-142 e com ela a aproximação das discussões políticas e sociais ao redor do projeto e canteiro. Sérgio Ferro (2002, p.4) fala que o projeto, como está posto no mercado da construção civil, é um instrumento de dominação do operariado, o qual dita as regras do canteiro e de como cada detalhe deve ser construído tornando o trabalho daqueles que executam, de certa maneira, alienante, porque dessa forma se retira a possibilidade desses profissionais imprimirem suas próprias escolhas estéticas e técnicas.
Segundo o autor, antigamente, os projetos de arquitetura nasciam nos canteiros de obra, muitas vezes sem arquiteto, mas através dos construtores que dominavam totalmente seus ofícios. Hoje, o contexto no canteiro é de cisão entre arquitetos e os profissionais da construção civil, geralmente pedreiros e ajudantes. Canteiro esse que, muitas vezes, o arquiteto nem visita. Em entrevista, Sérgio Ferro fala sobre a dificuldade de promover um canteiro realmente participativo:
Mas eu acho que é utopia pensar em experiências de liberdade participativa no meio da não-liberdade, no meio da sociedade em que a gente vive. Entretanto, eu acho que hoje em dia, em certos bolsões de liberdade que começam a se criar – junto ao Movimento Sem Terra, o Movimento Sem Teto ou da auto-gestão participativa, etc. – muito mais do que no meu tempo, é possível avançar nessa experiência. Aí há realmente um chão menos destruído, menos corrompido do que era o nosso chão, no nosso tempo. (FERRO, 2006, p. 2)
No canteiro, um instrumento de comunicação entre arquiteto e obra é o desenho. Muitos dos profissionais de obra não possuem nem mesmo aproximação com a leitura de desenhos técnicos de arquitetura e engenharia. Plantas, cortes, detalhes e desenhos técnicos não são amplamente lidos por pedreiros, aumentando ainda mais a cisão e tornando ainda mais alienante a relação desses profissionais com o trabalho.
Passamos anos na graduação tendo uma formação intensa de desenhos técnicos e quando saímos do espaço universitário, nos deparamos com um cenário onde os profissionais da construção civil muitas vezes não têm aproximação com essa linguagem dos desenhos. Tal fato nos mostra o quanto estamos, na Academia, descolados da realidade construtiva, assim como a falta de formação dos profissionais da construção civil colabora para a precarização de suas condições de trabalho.
Sobre o espaço
Compartilho neste tópico o desenho do Canto do Uirapuru. Porém, como foi dito, muitas alterações foram feitas durante a obra. Muitas dessas alterações, inclusive, os desenhos das plantas e cortes são incapazes de mostrar. Mesmo assim, busquei diferenciar com cores o antes e o depois. Em laranja está o que havia sido desenvolvido previamente, mas foi alterado. Em azul, as adições que foram acontecendo ao longo da obra. Em preto, o que se manteve.
Em relação ao uso, o projeto contempla o espaço dos rituais xamânicos, que chamamos de templo, e um sanitário externo, ambos no fundo da casa preexistente. O templo possui estrutura com formato hexagonal indicada pelas proprietárias: o formato faz referência à Oxóssi, Caçador das Matas, de uma flecha só. O espaço hexagonal também faz referência ao Santo Daime.
Para o espaço dos rituais, as proprietárias desejavam que fosse possível atender 20 a 25 pessoas deitadas ou 35 a 45 pessoas sentadas. A partir dessa informação, estabelecemos uma área capaz de abrigar confortavelmente os rituais. O diâmetro total é de 9m, resultando em 47,7 m² de área útil e aproximadamente 52,50 m² de área total sem contar com beiral.
Visando conectar o espaço interno com o verde das matas do lado de fora, as paredes não são totalmente fechadas. Assim, o Vento tem livre passagem. Na cobertura, há uma abertura hexagonal fruto do encontro das vigas recíprocas, com cerca de 60cm de diâmetro. Essa abertura fica exatamente no centro da cobertura. O ar quente, que tende a subir, tem a saída facilitada dessa maneira.
No piso, foi indicado um círculo de contato com a Terra, exatamente embaixo da abertura na cobertura, estabelecendo conexão entre céu e terra. Esse círculo possui um diâmetro de 1m. Antes seria maior, para poder garantir que a Água da chuva que entrasse pela abertura da cobertura fosse absorvida pela parte permeável de terra. Porém, Botelho trouxe uma solução interessante: instalar pentes de piaçava na abertura da cobertura, para que a água da chuva que entrasse na diagonal, pudesse escorrer pelos cabelos da piaçava e ser direcionada ao centro. Dessa forma, reduzimos o tamanho do círculo do piso.