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Introdução: desconstruindo estigmas

Certa ocasião, fui chamada por uma empresa de gestão socioambiental para propor algo relativo às construções com terra em dois povoados próximos, no semiárido baiano. Algumas casas desses povoados eram de adobe e taipa5, como são muitas casas no interior nordestino. Em um desses povoados, tive a oportunidade de conhecer dona Marlene, que tinha sua moradia feita de adobes. Perguntei a ela sobre sua casa e ela me respondeu, com descontentamento, que seu pai a havia construído 35 anos antes, mas que algum dia ainda teria o orgulho de vê-la com bloco e cimento.

Dona Marlene, em sua casa de adobe, abrindo o saco de ráfia para me mostrar a produção de feijão no povoado. Da terra se tira o alimento e se constrói moradia.

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Exemplos como o de Dona Marlene ainda são, infelizmente, bastante frequentes. Muitas pessoas habitam casas de terra em situação precária. Parte da sociedade deslegitima estas construções pela sua precariedade mas sem levar em conta que o problema está na precariedade, e não no material.

O potencial da terra enquanto material de construção pode ser comprovado de muitas maneiras, porém, esse potencial não tem sido bem aproveitado quando olhamos a pequena porcentagem de construções feitas com este material atualmente (CARNEIRO, 2018).

Os interesses políticos e econômicos no grande montante de capital que gira em torno da venda dessas tecnologias industrializadas é um dos principais entraves que encontramos na difusão das técnicas construtivas em terra pois colaboram para o imaginário de que boa construção é aquela que utiliza materiais industrializados (PORTELLA apud CARNEIRO, 2018). Outro entrave seria a lacuna de mão de obra capacitada para construir com terra e a pouca aproximação dos arquitetos em trabalhar com o material (CARNEIRO, 2018, p. 3 ).

E é assim, mesmo quando temos uma realidade em que a indústria da construção civil é responsável por um alto índice de impacto ambiental:

Segundo Barreto (2005), a construção civil é uma indústria que produz grandes impactos ambientais, desde a extração das matérias-primas necessárias à produção de materiais, passando pela execução dos serviços nos canteiros de obra até a destinação final dada aos resíduos gerados, ocasionando grandes alterações na paisagem urbana, acompanhadas de áreas degradadas (BARRETO apud ROTH e GARCIAS, 2009, p. 115).

E para piorar, a associação das casas de terra à miséria e doenças está ainda bastante presente no imaginário popular. Num contexto de escassez e direitos não garantidos, casas de terra se constituem como a única forma de materializar um abrigo. Segundo Vieira (2018), mais da metade das habitações precárias no Brasil são feitas de taipa. Essa, porém, não deve ser a única realidade a ser tomada no que diz respeito a essas técnicas construtivas com terra, reconhecidamente perenes (SILVA, 2000) e saudáveis.

A associação é também fruto de uma construção histórica colonizadora a qual, segundo Vieira (2018), legitima as técnicas europeias como habitus primário e a taipa enquanto habitus precário. Segundo a autora, o uso do conhecimento científico atingiu diretamente a taipa de mão, a tratando enquanto técnica ultrapassada diante das novas tecnologias construtivas trazidas pelos europeus e possuidores do habitus primário, sendo essa realidade legitimada pelo saber acadêmico, que chega ao final do século XIX no Brasil de forma expansiva e disseminada.

A partir disso, é possível perceber como o conhecimento científico pode ser utilizado pelos grandes interesses econômicos e ser conduzido por uma perspectiva bastante enviesada e influenciada pelos moldes europeus de colonização. Em certa maneira, perspectivas que visam precarizar essas técnicas continuam sendo perpetuadas por programas de melhoria habitacional do Governo (VIEIRA, 2018).

Hoje em dia, um dos principais argumentos para a deslegitimação da taipa é a associação dessa técnica à propagação da doença de Chagas, cujo vetor de transmissão é um inseto, o barbeiro. Apesar de termos, infelizmente, muitos casos de infecção da doença em um contexto construtivo com a técnica, isso só acontece pelas frestas da estrutura da construção (SILVA, 2000). Essas frestas podem existir com casas de bloco e cimento, não estando restritas ao ambiente da taipa. O problema se encontra na precariedade da realização dessas taipas e na falta de acabamento nas paredes, e não na técnica em si.

A necessidade de melhoria das casas de taipa em situação precária é definitivamente necessária: o que as autoras argumentam em seus trabalhos é que essa melhoria pode ser feita a partir da própria massa de pau-a-pique, não necessitando, necessariamente, derrubar e construir uma casa nova de bloco e cimento. Acontece que, dessa forma, ao se construir uma falsa verdade segundo a qual o problema está na construção de terra, se retira a autonomia das pessoas de escolher as formas de solução dos problemas de suas próprias casas.

As Universidades brasileiras, enquanto espaços acadêmicos e científicos, possuem um papel de extrema importância na luta pela desmistificação desses saberes populares reconhecidamente bons e que um dia o próprio saber acadêmico já deslegitimou. Esses espaços acadêmicos, além de possibilitarem pesquisas que contribuem para a desmistificação do tema, possibilitam a formação de profissionais atentos a essa temática e capazes de trabalhar com esses materiais.

Havendo demanda de projetos com terra e outros materiais naturais, é possível que haja um fortalecimento da mão de obra capacitada para isso, o que tornaria mais acessível construir dessa maneira, inclusive nos contextos urbanos.

Contudo, é muito importante estarmos atentas e atentos para que a produção acadêmica sobre a utilização de terra e recursos naturais na construção possa dialogar com os saberes e Mestres populares, de modo que não ocorra uma elitização de informações, mas sim a sua democratização, o que resultará em avanços para todos.

Saliento que, neste trabalho, não há a intenção de romper com as técnicas construtivas industrializadas. É evidente que elas trazem aspectos positivos, afinal de contas, nada é totalmente ruim ou totalmente bom. O importante é buscar o ponto de equilíbrio, sem excessos de um lado ou escassez do outro.

Existe, na realidade, um incentivo à redução do uso de produtos industrializados para que, quem sabe um dia, com o fomento da pesquisa, possamos construir em grande escala com produtos não nocivos a qualquer forma de vida. Aceitar o padrão construtivo que está posto é

perpetuar inúmeros erros. Questionar o padrão construtivo não consiste necessariamente em encontrar respostas, mas em buscar caminhos.

Ao longo deste trabalho, é possível perceber que são muitos os conceitos precisam ser continuamente revisitados e, para começar, falarei do espaço acadêmico onde convivi desde o ano de 2013.

Vista lateral da casa de Dona Marlene.

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