ÍNDICE
PRELÚDIO PREFÁCIO — Seguindo o príncipe da paz CAPÍTULO 1 — «Aquele pregador da paz» CAPITULO 2 — Reparando o mundo CAPÍTULO 3 — Cristo contra a multidão CAPÍTULO 4 — É difícil crer em Jesus CAPÍTULO 5 — Liberdade é apenas uma outra palavra para… CAPÍTULO 6 — «Aquilo que à tua paz pertence» CAPÍTULO 7 — Nuvens, Cristo e venha o reino CAPÍTULO 8 — Diga adeus a Marte CAPÍTULO 9 — Nós e eles NOTAS
PREFÁCIO
SEGUINDO O PRÍNCIPE DA PAZ Embora alguns possam contestar o ponto de partida — e tenho ouvido isso durante muitos anos — há algo de profundamente inconsistente no comportamento daqueles que se dizem discípulos de Jesus, o Príncipe da Paz, quando usam armas de guerra para matar outros e ainda assim estão convictos de que de alguma forma estão a segui-lo. Ao nível mais simples do evangelicalismo — e com isto apenas quero referir-me aos que afirmam o princípio da salvação exclusivamente em Cristo — é impossível para mim compreender como é que um cristão pode matar um não cristão, impossibilitando-o, em definitivo, de ele se voltar para Cristo, tal como está para além da minha compreensão o facto de um cristão poder matar outro cristão, obedecendo às ordens dos líderes militares do Estado. Em qualquer um dos casos, o cristão está a dar a César aquilo que apenas é devido a Cristo. Como Brian Zahnd diz neste estético e corajoso livro, demasiadas vezes a Igreja — e os cristãos, individualmente considerados, são disso cúmplices — tornou-se a capelania do Estado. O papel da Igreja, modelado em Cristo e divinamente ordenado, é assim negado; tornou-se idólatra e traiu o Príncipe da Paz. A nossa responsabilidade não é sermos capelães ou fazermos de capelania do Estado, mas chamá-lo ao arrependimento, para que se renda ao Rei, que é o Senhor. A nossa responsabilidade é ser uma alternativa ao Estado. Os cristãos fariam bem melhor pelo seu país não olhando para Washington, no Distrito de Colúmbia, como o local de onde poderão provir as soluções, mas antes para o glorioso Filho de Deus, que nos ama e deu a sua vida por nós e,
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fazendo isso, nos deu um novo e completo estilo de vida — que não é modelado pelo poder da força, mas pela força do Evangelho. Os líderes como Brian Zahnd estão a multiplicar-se calmamente entre nós, não porque se viraram para o Euro mas porque se voltaram, uma vez mais, para os Evangelhos e para o Novo Testamento, para encontrarem uma visão política alternativa para o nosso mundo. Abandonaram o pragmatismo e as soluções de compromisso para optaram por uma adesão eloquente e sem reservas à visão que Jesus tinha acerca do Reino, que é necessariamente política, mas não uma alternativa política. Esta visão política alternativa para o mundo, a que Stanley Hauerwas chamou de «reino pacífico», recusa-se a brandir a espada de César ou de Constantino, da Alemanha ou dos Estados Unidos da América, e prefere antes brandir a cruz como modo de vida. A cruz é o símbolo da política de Jesus e está a começar a fazer o seu caminho no coração de muitos na igreja do Estados Unidos. Precisamos disso. Muito em especial na igreja dos Estados Unidos da América. Porquê? Porque passado um século, ou mais, daquilo que foi uma simples confusão entre Igreja e Estado, devido ao facto da grande maioria dos americanos se autoproclamarem cristãos, ou pelo menos se sentirem confortáveis com uma espécie de país cristão, os americanos tiveram que acordar para a escolha a fazer no século 20. O século que viu a diminuição gradual da voz da Igreja na vida pública e forçou alguns cristãos a uma espécie de activismo, agarrando de novo aquilo em que já se tinha previamente pensado. Mas nunca tinha sido realizado pelo Estado. Muitos pensaram que a voz da Igreja estava a modelar o Estado ou pelo menos a chamá-lo de volta às suas raízes, mas afinal o que verificámos foi que o Estado tinha agarrado a Igreja pelo pescoço. E é quando o Estado agarra a igreja pelo pescoço que um livro como Diga adeus a Marte, de repente, nos oferece clareza. Talvez o pai de Brian Zahnd esteja certo; talvez a maioria esteja quase sempre errada. ScotMcKnight Professor do Novo Testamento Seminário do Norte
PRELÚDIO
Querido livrinho, Eu tinha que te escrever. Não me deixarias dormir até que fosses escrito. Foste rude na tua persistência. Tinha pensado em esperar para escrever-te, quando fosse mais velhote, quando já tivesse menos a perder. Mas foi então que Jude, Mercy e Finn chegaram e tu insististe em ser escrito para eles. Assim, fiz aquilo para que me intimaste. Agora estás escrito. Em breve verás a divulgação que vais ter, onde chegarás e com quem falarás. Procura não me causar muitos problemas. Pelo menos, sê suficientemente amável para lembrares aos teus leitores que, escrevendo-te, apenas contei a verdade. Desejo-te o melhor. O teu autor algo relutante, Brian Zahnd
CAPÍTULO 1
«AQUELE PREGADOR DA PAZ»
Foi o meu pior pecado. É o que creio, profundamente, acerca do assunto e tenho vergonha. Mas, de qualquer maneira, vou contar o que se passou em relação a isso. Não faço esta confissão porque tenha qualquer inclinação para o sensacionalismo ou a auto-condenação (que não tenho), mas porque quero escrever honestamente. E espero que, dizendo a verdade, aquilo que eu tenho para dizer — especialmente acerca da minha própria caminhada naquilo que se relaciona com realidades como a guerra e a paz — possa trazer ainda mais algum peso. Enfim, eis a história. Estávamos no dia 16 de Janeiro de 1991. Eu estava ocupado e animado. Como pastor de uma igreja não denominacional, em rápido crescimento, estava ocupado com toda a sorte de coisas que os pastores fazem. Mas naquele dia deixei o rádio do meu escritório ligado para estar a par das grandes notícias: a América ia para a guerra! Era por isso que eu estava excitado. A verdadeira Guerra do Golfo estava prestes a começar — a Operação Tempestade no Deserto. O bombardeamento de Bagdade. Uma guerra com tiros a sério. E ia poder ser vista na televisão! Naquela tarde, despachei-me para ir para casa, muito, muito excitado. Isto ia ser uma novidade — uma guerra ao vivo e a CNN iria transmiti-la directamente para a minha sala de estar! Como se fosse o jogo para decidir o campeão de futebol da temporada! E foi assim que considerei o acontecimento. Convidei amigos para a festa. Pedimos pizza e vimos uma guerra na televisão. A América ganhou. A CNN teve uma audiência fenomenal. O jornalista da estação televisiva, Wolf Blitzer, tornou-se famoso. Eu estava entusiasmado. Claro que eu não tinha quaisquer escrúpulos sobre o facto de a América ir para a guerra. Foi isso que a América sempre fez. A América foi
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sempre para a guerra para manter o mundo «salvo para a democracia». Saddam Hussein tinha invadido o Kuwait. As Nações Unidas tinham emitido uma resolução. «O pastor da América» tinha orado com o presidente da América. De qualquer modo, não era o Iraque a nefanda Babilónia da profecia bíblica? Despejar bombas sobre a Babilónia teve um efeito absolutamente apocalíptico e isso fez-me sentir bem. A América está sempre bem quando vai para a guerra — sempre soube isso em toda a minha vida. Como muitos americanos, nasci crendo que a guerra era não só inevitável na vida como também compatível com o Cristianismo. Então, enquanto «o pastor da América» orava com o presidente da América na Casa Branca e Wolf Blitzer nos dava a actualização momento a momento, hora a hora, eu comia pizza e via a guerra na TV, na minha sala de estar. Era melhor que o Seinfeld, série cómica de TV! E durante quinze anos não pensei mais no assunto. Digo-vos: durante quinze anos, nunca mais aquele momento — comer a pizza, ver a guerra à tardinha, como entretenimento — nunca mais isso atravessou a minha mente. Então, certo dia, em 2006, estando em oração, sem qualquer razão aparente, esta cena de uma década e meia atrás veio de novo à minha mente. Eu já tinha esquecido tudo acerca disso. Mas ali estava tudo, de novo, passando pela minha memória como um vídeo incriminador. Então ouvi Deus, num sussurro, falar-me: «Esse foi o teu pior pecado.» E esse sussurro foi um estrondo devastador. Eu chorei — arrependi-me e chorei. Havia eu sido tão imprudente, tão insensível, com tanta falta da semelhança de Cristo que até conseguira pensar na guerra e na morte violenta como uma espécie de entretenimento? Claro que essa era uma parte do problema: uma guerra televisionada, com o cruzar dos mísseis de cruzeiro e das bombas inteligentes, lançados duma distância perfeitamente segura, parecendo um jogo de vídeo… excepto que os «pontos somados» correspondiam à perda de vidas humanas em consequência dos lançamentos. Nas poucas ocasiões em que compartilhei esta história houve sempre aqueles que me disseram e asseguraram que possivelmente esse não foi o meu pior pecado. O que posso dizer é que conheço o sussurro que ouvi
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na minha oração. Contudo, algum do conforto que encontro é no facto de Janeiro de 1991 ter sido há tanto tempo que eu já não sou mais essa pessoa. Como é que cheguei ao ponto de chorar sobre a guerra e me arrepender do meu fascínio com a parte de que este livro fala — essa é a história de como eu abandonei os paradigmas do nacionalismo, do militarismo e da violência como meios legítimos de conformar o mundo, para abraçar a alternativa radical do evangelho da paz. Mas este livro é muito mais acerca de Jesus de Nazaré e das ideias revolucionárias que Ele pregou — especialmente as suas ideias sobre a paz. Este Judeu do primeiro século, de cujo nascimento vem a nossa era comum. Este que se tornou o herdeiro da antiga premonição do profeta Isaías acerca do Príncipe da Paz pregou uma nova forma de se ser humano e uma forma alternativa de construir a sociedade a que chamou o Reino de Deus. Era (e é!) um reino de paz. A minha proclamação, que muitos dizem audaciosa e outros dizem ingénua, é apenas esta: Jesus Cristo e o seu reino de paz são a esperança do mundo. Então deixem-me dizer-lhes isto, desde já: Eu creio em Jesus Cristo! Eu creio no que os evangelhos canónicos nos contam e no que os credos históricos confessam acerca de Cristo crucificado e ressurecto. E isso faz de mim um cristão ortodoxo. Mas também creio nas ideias de Jesus — as ideias que Ele pregou sobre o reino pacífico de Deus. E é isso que faz de mim um cristão radical. Crer na divindade de Jesus é o coração da ortodoxia cristã. Mas crer na viabilidade das suas ideias faz com que o Cristianismo seja mesmo radical. Divorciarmos Jesus das suas ideias — e divorciarmo-lo especialmente das suas ideias políticas — tem sido um enorme problema, que tem atormentado a Igreja desde o quarto século até agora. O problema é este: quando separamos Jesus das suas ideias para a criação de uma estrutura social alternativa, sucumbimos inevitavelmente à tentação de querer compatibilizar Jesus com as nossas ideias — conferindo, assim, às nossas ideias políticas humanas uma espécie de autorização ou endosso divino. Tendo pouca consciência do que estamos a fazer, encontramo-nos a nós próprios em coligação com os principados e potestades
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para mantermos este nosso mundo trancado na velha coreografia da violência, da guerra e da morte. Fazemos isto muito inconscientemente, é verdade, mas fazemo-lo. Eu tenho-o feito. E o resultado tem sido reduzirmos Jesus a um Salvador que garante e prepara a nossa morada no Céu, enquanto o usamos para caucionar as nossas próprias ideias acerca de como governar o mundo. Isto alimenta uma narrativa nacionalista do evangelho e leva-nos a um Jesus de que o Estado se apropriou. Então, a nossa compreensão de Cristo tem-se alterado: do Jesus romano para o Jesus bizantino, para o Jesus germânico, para o Jesus americano, etc. Circunscrevendo Jesus a uma agenda nacionalista, criamos uma caricatura grotesca de Cristo que a Igreja tem de rejeitar — agora mais do que nunca! Compreender Jesus como o Príncipe da Paz, que ultrapassa e transcende a idolatria nacionalista e vence as formas arcaicas de guerra, é um imperativo que a Igreja deve, finalmente, começar a considerar muito seriamente. Muito bem. Vamos voltar atrás e tentar recordar por momentos aonde nós estamos — como povo e como planeta. É fácil imaginar que o mundo de facto não muda — e que apenas gira à volta deste vasto turbilhão de violência, espezinhando as vítimas no lamaçal da violência como sempre tem acontecido. Mas como é certo que isso aconteceu, também é que algo mudou. Nós somos pós-qualquer coisa. Se nada mais formos, somos pós-1945 quando o sonho luminoso da utopia atingível se esfumou — se tornou em fumo, literalmente! — nas chaminés dos crematórios de Auschwitz e no cogumelo atómico sobre Hiroxima. Depois de 1945, perdemos a nossa fé cega na inevitabilidade do progresso humano. Foi quebrada uma barreira e algo de importante aconteceu, quando a humanidade tomou posse daquilo que apenas Deus possuía: a capacidade para a nossa completa aniquilação. Não será que ao ceder à tentação de nos apropriarmos das leis fundamentais da física do universo, com o propósito de fabricar bombas que destroem cidades, mais uma vez demos ouvidos ao murmúrio da serpente: «Sereis como Deus»? Quando J. Robert Oppenheimer, o pai da bomba atómica, testemunhou a primeira detonação atómica em Los Alamos, em 16 de
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Julho de 1945, recordou as palavras de Vishnu, do Bhagavad Gita: «Agora, tornei-me a Morte, a destruidora dos mundos.» Será que, quando a nuvem daquele monstruoso cogumelo atómico cor-de-rosa se elevou sobre o deserto do Novo México, isso fez com que a raça humana se tivesse, de facto, tornado a Morte, a destruidora dos mundos? É mais do que uma questão legítima. Já há mais de uma geração que vivemos com esta tremenda incerteza do pós-holocausto/Hiroxima: Pode a humanidade possuir a capacidade de autodestruição e não utilizá-la? A decisão ainda está em aberto. Mas isto é certo — se pensamos que as ideias de Jesus sobre a paz são irrelevantes na era do genocídio e das armas nucleares, a verdade é que inventámos, então, um cristianismo absolutamente irrelevante! E porque os níveis agora estão tão intoleravelmente altos, as pessoas com o mínimo de senso comum já chegaram à conclusão de que temos de falar muito seriamente sobre como vivermos juntos, pacificamente, no nosso pequeno planeta azul. A nossa capacidade para a autodestruição exige isto. Mas as pessoas comprometidas com a ideia da paz, como real alternativa ao paradigma do poder e da violência, frequentemente vêem Jesus e os seus seguidores como periféricos, ou mesmo irrelevantes, na causa da paz. Não vêem que haja necessidade de ligar a uma figura religiosa um assunto tão sério como o da pacificação no nosso mundo — especialmente quando a Religião que Ele inspirou foi tantas vezes associada à violência e à guerra. Por outro lado, muito frequentemente, também parece que aqueles que estão comprometidos com a pessoa de Jesus Cristo vêem pouca necessidade de misturar Jesus neste mundo real dos pacificadores (o que, de qualquer modo, também é visto como algo suspeito). A verdade é que a visão evangélica da pacificação no mundo real tem sido vista como isto: «Será que Jesus não tem algo mais importante para fazer?» De acordo com esta visão, o Cristianismo trata muito mais acerca do trabalho espiritual de salvar as almas para uma outra vida no Céu; e assim sendo, as ideias de Jesus sobre a paz podem ficar em suspenso para os tempos vindouros. E é esta a argumentação recorrente. Mas eu penso de outra maneira. Jesus Cristo e os eventos históricos da sua crucificação e ressurreição não são para ser separados das ideias que
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Ele pregou sobre um reino de paz. Ou deixem-me dizer isto de outra maneira: Eu creio no Nazareno a quem certo escritor chamou «aquele pregador da paz». Na sua fascinante novela The Master and Margarita, o escritor russo Mikhail Bulgakov criou uma conversa imaginária entre o governador Romano, Pôncio Pilatos e o profeta galileu, Yeshua. E quando foi interrogado acerca do seu ponto-de-vista quanto ao governo, o Yeshua de Bulgakov respondeu: «Todo o poder é uma forma de violência sobre as pessoas.» Assim, o pregador camponês da novela de Bulgakov estabeleceu o contraste entre governos de poder e violência e um reino pacífico de verdade e justiça. Na resposta, Pôncio Pilatos reagiu, irado: «Nunca houve nem irá haver um governo maior ou mais perfeito do que o regime do imperador Tibério!» Quando Pilatos perguntou a Yeshua se ele acreditava que esse reino de verdade iria chegar, Yeshua respondeu com convicção: «Irá chegar.» Pilatos não aguentaria nem se conformaria com isso. Numa passagem memorável, o Pilatos de Bulgakov reagiu contra a possibilidade do reino de Deus alguma vez chegar e suplantar o império de César. «“Nunca virá!” Gritou Pilatos, subitamente, numa voz tão terrível que Yeshua cambaleou para trás. Muitos anos antes, no Vale das Virgens, Pilatos tinha gritado com a mesma voz para os seus cavaleiros: “Cortem-nos! Cortem-nos!”… E mais uma vez ele levantou a sua voz forte de comando, rosnando as palavras para que fossem audíveis no jardim: “Criminoso! Criminoso! Criminoso!... Vocês imaginam, miseráveis criaturas, que o Procurador Romano libertaria um homem que disse aquilo que vocês me disseram? Eu não acredito nas vossas ideias!”» (ênfase do autor)1
Assim, no The Master and Margarita, o Yeshua de Bulgakov é consideravelmente mais fraco e uma figura muito menos apelativa do que o Jesus dos Evangelhos. (Acho interessante que, na literatura, as tentativas em descrever Jesus Cristo parecem estar sempre muito mais aquém do que aquilo de que Mateus, Marcos, Lucas e João se aperceberam, ao apre-
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sentarem Jesus — quer como historicamente único quer como inteiramente credível.) Mas eu penso que Bulgakov retrata Pôncio Pilatos de forma correcta. O pragmático e, por vezes, brutal governador Romano pertencia a um sistema de poder que produziu a maior superpotência económica e militar que o mundo alguma vez tinha conhecido. E é claro que um pregador itinerante, de uma província lá dos confins do Império, não constituía nenhuma ameaça ao poder imperial de Roma. Mas, ainda assim, Pilatos viu uma potencial ameaça nas ideias revolucionárias do Galileu. Assim, não foi tanto o homem que preocupou o governador Romano, mas as suas ideias. Pilatos percebeu a natureza das ideias. As ideias são poderosas porque elas são os motores potenciais da mudança — e a mudança pode ser perigosa. Quando uma mudança gradual é entendida como positiva e, em geral, mantém o status quo nós chamamos a isso progresso. Mas uma mudança radical e paradigmática é algo mais, é algo mais perigoso. Chamamos a isso revolução. A mudança revolucionária é precisamente aquilo em que as pessoas que estão em situações de privilégio e poder — pessoas como Pilatos — se sentem mais ameaçadas. E foi por isso que Yeshua e as suas ideias foram consideradas como perigosas. Em The Master and Margarita, Pôncio Pilatos não parece ter alguma animosidade pessoal contra aquele pregador Galileu; o que Pilatos odiava era as suas ideias. Por fim, o que força o procurador a condenar Yeshua à crucificação são as ideias revolucionárias deste acerca do poder, da verdade e da violência. Se Yeshua se tivesse confinado apenas àquele mundo sonhado das expectativas após a vida e não tivesse dado corpo a ideias revolucionárias acerca da estrutura social e humana, Pilatos teria tido poucos motivos para se incomodar com Yeshua — e muito menos motivos para o crucificar. Mas Yeshua tinha ideias revolucionárias. E estas ideias de Yeshua sobre uma forma de organização alternativa do mundo — uma forma alternativa de organização a que melhor assenta a designação de paz — tiveram como resultado a sua eliminação física numa execução promovida pelo próprio Estado. Enfim, é assim que a imaginativa novela de Mikhail Bulgakov trata desta questão (muito da qual está de acordo com a narrativa que encon-
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tramos no evangelho de João). Um pregador de paz foi executado pelas suas ideias revolucionárias. Mas será que as ideias de Jesus de alguma forma se tornaram menos radicais desde que um governador romano o sentenciou à crucificação, durante a Páscoa da Primavera do ano 30 da nossa Era? Não. Dois mil anos não fizeram as ideias ensinadas por Jesus de Nazaré menos radicais do que aquelas que ameaçaram Pôncio Pilatos e a ideologia imperial com a qual estava alinhado. O que aconteceu nestes dois milénios que se seguiram é que nós, que confessamos Cristo, temos, na maior parte das vezes, inconscientemente, engendrado e burilado uma religião que, claramente, separa o Jesus, morto na cruz, das ideias radicais que pregou — ideias que Jesus já previra que iriam levar à sua crucificação. Jesus sempre percebeu que Roma e os seus poderes religiosos coligados iriam, inicialmente, recusar converter-se e iriam crucificá-lo por causa das suas ideias. Jesus sempre o disse. Jesus chamou a estas ideias revolucionárias «o reino de Deus». Jesus também tinha a convicção de que, no final, o reino de Deus trinfaria… mas não através da violência. Assim, aqui estamos nós, vinte séculos passados, ainda a lidar com o conflito que temos entre o Jesus que amamos e as suas ideias perturbadoras, acerca das quais ainda ficamos cépticos. Parece que nós, cristãos, temos a tendência habitual de separar Jesus das suas ideias. Esta bifurcação entre Jesus e as suas ideias políticas tem uma história e o caminho pode ser traçado de volta até ao quarto século quando, pela primeira vez, o Cristianismo obteve o beneplácito do Império Romano. Em Outubro de 312, o general romano Constantino chegou ao poder depois de vencer uma batalha decisiva em que usou símbolos cristãos como amuleto, colocando-os então como talismãs nas suas armas de guerra. A incongruência é absolutamente avassaladora. Tendo emergido vitorioso duma guerra civil romana e consolidando a sua posição como imperador, Constantino atribuiu a sua vitória militar ao Deus cristão. Assim, de uma forma sucinta, as rodas estavam já em movimento para que o Cristianismo se tornasse a Religião de Estado do Império Romano. O reino de Deus tinha sido eclipsado pelo império cristão.
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E então, quase da noite para o dia, a Igreja encontrou-se, ela própria, a cumprir o papel de capelania dum império cuja trajectória iria conduzir à catástrofe do Cristianismo mais comprometido. A catástrofe da Igreja, como vassala do Estado, iria encontrar a sua mais grotesca expressão nas cruzadas medievais que, sob a bandeira da Cruz, fizeram com que os cristãos matassem em nome de Cristo. As cruzadas são, talvez, o exemplo mais antigo de como o Cristianismo fica distorcido quando separamos Cristo das suas ideias. E ainda assim continuamos a fazer isso — adoramos Jesus como Salvador enquanto desprezamos as suas ideias sobre a paz. Durante dezassete séculos, o Cristianismo ofereceu-nos um evangelho em que podíamos aceitar Jesus como nosso Salvador pessoal ao mesmo tempo que ignorávamos, em grande parte, as suas ideias acerca da paz, da violência e da sociedade humana. Abraçámos um evangelho confinado ao nosso interesse pessoal, com valor para depois da morte e que apenas enfatiza a morte de Jesus pelos nossos pecados e, ao mesmo tempo, ignoramos as suas ideias políticas. Isto deixa-nos livres para governarmos o mundo da forma como sempre o temos regido: pelo poder da espada. Sob a pressão da ideologia do império, conceitos como liberdade e verdade ganham um significado radicalmente diferente daquele que foi, inicialmente, pretendido por Cristo. A liberdade tornou-se um eufemismo para menosprezarmos ou até odiarmos, em vez de amarmos, os inimigos; a verdade encontra a sua forma última na vontade de poder, expressa na vontade de matar. Este é um caminho que está muito longe das ideias de paz, amor e perdão, estabelecidas por Jesus no Sermão da Montanha. E foram as ideias de Jesus acerca da liberdade e da verdade que o fizeram perigoso para os principados e potestades. Hoje, porém, o nosso evangelho não é assim tão perigoso. Tem sido domesticado e domado. Se Jesus de Nazaré tivesse pregado esta versão simplificada daquilo que passa por ser o «evangelho» hoje — a promessa singela de se ir para o Céu após a morte — Pilatos teria encolhido os seus ombros e libertado o Nazareno, avisando-o para que não se misturasse com os negócios do mundo real. Mas não foi isso que aconteceu. Porquê? Porque Pilatos era suficientemente inteligente para perceber que o que Jesus estava a pregar
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era um desafio à filosofia do Império ou, como nós preferimos chamar hoje, superpotência. Fazendo de Cristo o capelão-mor do cristianismo Constantiniano, inventou-se um Jesus Maniqueu que salva as nossas almas enquanto nos deixa livres para tratarmos dos negócios desta vida como melhor entendermos. E isso é o que queremos, especialmente se, na configuração actual do Mundo, a nossa própria nação está particularmente perto do topo. Porque, enquanto nós cremos em Jesus como o Salvador pessoal da alma, ainda assim não estamos muito convencidos das suas ideias para salvar o mundo. O facto é que os dezassete séculos de história cristã sugerem exactamente isso. Especialmente os cristãos americanos deveriam ter em mente que nós, quais romanos da modernidade — os cidadãos privilegiados da única superpotência mundial — temos muito mais em comum com Pôncio Pilatos do que com os camponeses Galileus. Comentando isto, Miroslav Volf diz: «Pilatos merece a nossa simpatia, não porque ele fosse um homem bom tragicamente errado, mas porque nós não somos muito melhores. Podemos crer em Jesus, mas não cremos nas suas ideias; no mínimo, não cremos nas suas ideias acerca da violência, da verdade e da justiça.»2
Foi assim que a engrenagem ficou montada: uma vez que foi decidido que uma boa forma de governar o mundo era a que estava personificada num imperador cristão, empunhado uma «espada cristã», então o reino de Deus, anunciado por Cristo, foi deslocado para um céu distante, ou para um futuro longínquo, deixando de fora a tarefa de Jesus como Salvador do Mundo. Claro que o cristianismo Constantiniano não podia simplesmente demitir Cristo dele próprio, pelo que o seu trabalho ficou confinado ao reduzido papel de salvar as almas ao mesmo tempo que presidia a uma religião de piedade privada. Isto não sugere que Cristo não seja a fonte de salvação da alma humana; o que eu estou a sugerir é que a missão de Cristo está muito para além do espectro estreito da espiritualidade privada e das expectativas além da morte.
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Jesus quer, de facto, salvar o mundo! E por mundo eu quero significar a boa criação de Deus e a sua intenção original para a sociedade humana. Em poucas palavras, o problema é este: muito poucos daqueles que crêem no Cristo ressuscitado crêem nas suas ideias revolucionárias. Há uma sensação de que criamos a religião como uma categoria para manter Jesus fora daquelas que são as nossas ideias mais queridas sobre o nacionalismo, a liberdade e a guerra. Quase no fim do capítulo intitulado «Pôncio Pilatos» na obra The Master and Margarita, Bulgakov imagina uma brilhante conversação entre Pilatos, o Governador romano e Caifás, o Sumo sacerdote. Estes dois poderosos — um era político, o outro religioso — que, na realidade, não eram nada simpáticos entre si, nutrindo até, reciprocamente, um desprezo velado, precisavam um do outro para manter as suas posições de poder. E à medida que a história decorria, Pilatos tinha dois prisioneiros notáveis que estavam condenados à morte: Yeshua Ha-Notsri (Jesus de Nazaré) e Bar-Abba (Barrabás). Pilatos perguntou a Caifás qual dos prisioneiros deveria beneficiar do perdão pascal e qual deles deveria ser executado. Caifás foi confrontado com uma escolha difícil. O prisioneiro Barrabás era um lutador heróico, disposto a fazer a guerra pela liberdade e independência do povo Judeu. Já tinha assassinado uma sentinela Romana e representava a esperança nacional da conquista da liberdade política, através da revolução violenta. Yeshua, por seu lado, era um messias pregando a ideia revolucionária do reino de Deus pacífico, fundado no amor e no perdão. O governador avisou o Sumo sacerdote para escolher, sabiamente. Sem hesitar, Caifás deu a resposta a Pilatos: «O Sinédrio requer a libertação de Barrabás.» O Sinédrio tinha feito a sua escolha: queriam um messias violento, não um messias pacífico. Porém, com alguma acutilância profética, o Pilatos de Bulgakov previa já o que seria o inevitável resultado para Jerusalém, ao escolher o violento Barrabás em vez do pacífico Jesus: «Lembra-te das minhas palavras, Sumo sacerdote: Tu vais ver mais do que uma coorte romana aqui em Jerusalém! Sob os muros desta cidade
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vais ver a legião Fulminata em plena força assim como a cavalaria Árabe. Então, o choro e a lamentação irão ser mesmo amargos. Então, vais-te lembrar que salvaste Barrabás e vais-te arrepender de ter enviado o pregador da paz para a morte!»3
O Pilatos ficcional de Bulgakov antecipou aquilo que nós conhecemos como tendo sido a realidade histórica. Uma geração depois da crucificação de Cristo, Jerusalém finalmente teve a sua há muito esperada guerra da independência… guerra essa que terminou num Geena fumegante. Quarenta anos depois da crucificação, Jerusalém caiu no inferno do cerco romano com um brutal bombardeamento de pedras de noventa quilos de peso lançadas pelas catapultas romanas tendo, no final, resultado a total destruição da cidade, a violenta morte da maioria dos seus cidadãos e a escravização da parte restante. Diferente da novela de Bulgakov, nos Evangelhos é Jesus, e não Pilatos, que prevê este desastre terrível. É por isso que Jesus, ao entrar em Jerusalém, no começo da semana da Páscoa, lamentou o trágico destino do povo que rejeitou o seu caminho de paz. Lucas recorda-nos o evento desta forma: «E, quando ia chegando, vendo a cidade, chorou sobre ela, Dizendo: Ah! Se tu conhecesses também, ao menos neste teu dia, o que à tua paz pertence! Mas agora isto está encoberto aos teus olhos. Porque dias virão sobre ti em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras, e te sitiarão, e te estreitarão de todos os lados; e te derrubarão, a ti e aos teus filhos que dentro de ti estiverem, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, pois que não conheceste o tempo da tua visitação.» (Lucas 19:41-44)
Jerusalém, no primeiro século, rejeitou o Príncipe da Paz e sofreu um destino inimaginável — a «cidade da paz» tornou-se numa ruína fumegante «onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga». (Marcos 9:48) Esse horrível destino podia ter sido evitado, mas apenas se tivessem desejado renunciar ao paradigma da violência e ver o mundo através
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do novo paradigma oferecido por «este pregador da paz». Tristemente preferiram ficar amarrados à velha mentira. E o que restou foi não ter ficado pedra sobre pedra. A triste profecia de Jesus cumpriu-se. As enegrecidas pedras das ruínas da Jerusalém do primeiro século dão testemunho dessa calamidade até ao presente. Rejeitando o Príncipe da Paz, Jerusalém foi para o inferno. Esta foi a trágica consequência. Então, e quanto a nós? Será que temos procedido muito melhor? Será que temos consciência do que é necessário para a paz? Será que reconhecemos a visitação de Deus na vida e mensagem do Emanuel? Será que ousamos crer nesse Príncipe da Paz que almeja conduzir a humanidade até ao seu reino pacífico? Temo que não. Não, pelo menos para a maior parte de nós. Não, na maior parte do tempo. Parece que também nós temos estas coisas escondidas dos nossos olhos. Parece que simplesmente não conseguimos visualizar o mundo doutra forma a não ser esta. Tudo aquilo que imaginamos tem sido comandado pelos principados e potestades. Tal como Walter Brueggemann descreve, referindo a nossa situação: «A nossa cultura é competente para implementar quase tudo e para imaginar quase nada.» 4 Aqui estamos nós, vinte séculos depois de Caifás e de Pilatos, os quais, em defesa da nação e do império, respectivamente, condenaram à morte «aquele pregador da paz» em troca da manutenção do status quo da revolução violenta e do império militarista. E onde é que estamos? Continuamos a ser definidos pelas guerras. A liberdade continua a ser um eufemismo para que o poder possa matar. A violência ainda é vista como o caminho legítimo para modelar o nosso mundo. Tudo isto numa verdadeira traição a Jesus Cristo e às suas ideias revolucionárias. Mas… Ainda temos esperança. Porquê? Por causa da forma como a história de Jesus é contada. Na Sexta-feira Santa, o procurador da ideologia superpoderosa e os sacerdotes, em conluio com a religião, rejeitaram as suas ideias. Ele foi condenado, sentenciado, torturado, executado, declarado morto e enterrado numa sepultura que levou o selo imperial de Roma.
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Parece que estava a acontecer uma outra vitória para o Império. O fim. No entanto isto não foi o fim da história… No Domingo de Páscoa as ideias daquele pregador da paz foram confirmadas pelo poder da ressurreição!
Sim! O Domingo de Páscoa e a ressurreição de Jesus mudaram tudo! Se Jesus tivesse permanecido no túmulo com a pedra selada pela autoridade imperial de Roma, as ideias de Jesus teriam morrido com ele. Mas a ressurreição mudou tudo. A ressurreição não é apenas a confirmação divina de que Jesus é o Filho de Deus; é também a confirmação de tudo quanto Jesus ensinou. O Domingo de Páscoa não é nada mais do que o triunfo do reino pacífico de Cristo. A Páscoa muda tudo. A Páscoa é a esperança para o mundo, é a aurora da nova era, é o renascer da Nova Jerusalém no horizonte da paisagem enegrecida e queimada da humanidade. A Páscoa é Deus a dizer mais uma vez: «Este é o meu Filho amado em quem me comprazo. Escutai-o!» Não é já tempo de abandonarmos, de facto, o nosso acordo de facto com Pôncio Pilatos, Caifás e as suas já desgastadas ideias mortíferas? Não é já tempo de levarmos a sério as revolucionárias e vivificadoras ideias de Jesus — aquele que Deus ressuscitou de entre os mortos e declarou ser o Senhor, pelo poder de uma vida indestrutível? Não é já tempo de nos convertermos e nos tornarmos como crianças, tendo a capacidade de imaginar a radicalidade diferente do reino de Deus? Não é já este o momento do estrangulamento do status quo em que vivemos dar lugar às possibilidades da imaginação profética? Não é já este o tempo de considerarmos, aqui e agora, que o reino pacífico de Cristo seja encarado como uma opção viável em vez de ser sempre remetido para aquele «doce amanhã-que-há-de-chegar»? Por fim, é imperioso que tenhamos um olhar novo e refrescado e façamos a avaliação a uma nova luz daquilo que Jesus de Nazaré de facto nos ensinou acerca dos fundamentos sombrios em que assenta a civilização humana tal como a temos e a alternativa que Ele oferece no reino de Deus. Em vez de ler os Evangelhos através
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das lentes de um cristianismo Constantiniano, onde a crítica profética de Jesus ao poder violento é como que filtrada, devíamos tentar refamiliarizar-nos com estas ideias revolucionárias que pertencem «àquele pregador da paz». A igreja americana, especialmente, iria beneficiar muito se visse e lesse novamente este Jesus, libertado do verniz da religiosidade e das lentes censórias do império militarista e da sua capelania religiosa. Este livro é a minha tentativa para fazer com que isso ocorra. Por esta altura o leitor já deverá estar a pensar: «Eu não consigo fazer isso. Eu não consigo repensar tudo aquilo em que sempre tenho acreditado no que respeita ao patriotismo, à guerra, à liberdade, ao nosso desígnio como nação e ao nosso “Deus abençoe a América”». De certeza que pode. Eu fi-lo. Pode não ser fácil. Mas também não é assim tão difícil — desde que esteja disposto a reexaminar tudo à luz de Cristo. A partir do momento em que se decida retirar Jesus da subserviência a uma agenda nacionalista, pode-se voltar a pensar em tudo à luz de Cristo. E não é isso o que se requer de um cristão? Eu comecei a pensar desta maneira ao ler a novela profética de Fyodor Dostoevsky, Demónios. (Chamo profética porque nela Dostoevsky parece que antevê, com uma clarividência terrível, o negro e sangrento destino que sobreviria à Rússia com o advento do comunismo soviético.) Numa passagem importante, Shatov explica a Stavrogin como é que as grandes nações crêem que Deus é expressamente o seu Deus — e de como, de certa forma, as grandes nações deificam e personificam a sua nação como Deus. Ainda me lembro de quando li esta passagem pela primeira vez. «Eu ergo a nação para Deus. Alguma vez isso foi diferente? A nação é o corpo de Deus. Uma nação só o é enquanto tiver o seu Deus particular e se reger por regras com as quais os outros deuses não se podem conciliar; a partir do momento em que crê que é através do seu Deus que será vitoriosa e que governará sobre os outros deuses do mundo… Uma verdadeira grande nação nunca se pode conformar com um papel secundário na humanidade, ou mesmo com um papel principal, a não ser que seja inevitável e exclusivamente o primeiro papel. Todos aqueles que perderem
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esta fé já não serão uma nação. Mas a verdade é uma e, assim, apenas uma das nações pode ter o verdadeiro Deus.» 5
Esta breve passagem da novela russa do século dezanove pode não nos dizer grande coisa mas, quando li as suas palavras pela primeira vez, fiquei tão chocado que saí de casa e, com o livro na mão, andei uma milha a pensar seriamente naquilo que havia lido. Custou-me a engolir, mas fi-lo. O que eu vi foi que grandes e poderosas nações modelam Deus à sua própria imagem; grandes e poderosas nações circunscrevem Deus ao seu formato. Grandes e poderosas nações usam a ideia e o vocabulário de Deus para legitimar a sua própria agenda. Grandes e poderosas nações projectam Deus como a personificação dos seus interesses pessoais. E a maior parte nem se apercebe do que está a fazer. Isto não quer dizer que tudo o que todas as grandes e poderosas nações fazem é mau, ou errado — muito longe disso. Elas mantêm a ordem, proporcionam segurança, produzem indústria, mantêm a civilização, educam a população, preservam a cultura, etc.. Mas isto não pode ser confundido com o reino de Cristo. Nem podem alegar que o Deus revelado no Cristo crucificado e ressuscitado é o seu Deus, dedicado apenas aos seus interesses! Não! Não há «nações cristãs» no sentido político do termo. O Cristo ressuscitado tem uma «nação» (ver Mt. 21:43), mas não um corpo político nacional, é, antes, o corpo baptizado do Messias! E foi isto que eu comecei a ver no princípio — uma verdade perturbadora, mas também libertadora. É estranho como uma novela pôde escaqueirar a minha forma de ver o mundo e permitir que a luz da verdade entrasse na minha mente, mas foi exactamente isso que aconteceu. Em Agosto de 2008 a minha mulher, Peri, e eu estávamos nas nossas férias anuais de Verão, nas Montanhas Rochosas. Durante essas nossas férias, parecia que, em cada caminhada, a minha mente estava absorvida por esta ideia — as grandes e poderosas nações tentam usar Deus como patrocinador da sua agenda e especialmente uma agenda que diz respeito à violência, à guerra e ao seu lugar no mundo. Este é o modus operandi das nações gentias que os profetas hebreus constantemente criticavam.
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Não é que Deus se oponha às nações — não, Ele não se lhes opõe. Deus designou as nações com a sua rica diversidade e culturas únicas. As nações são essenciais para uma pessoa se tornar pessoa com uma linguagem particular, uma identidade e uma cultura. Aquilo a que Deus se opõe, e sempre se opôs, é ao império — às ricas e poderosas nações que acreditam que têm o direito divino de governar sobre outras nações e desenhar o destino do mundo de acordo com os seus interesses. Deus opõe-se a esta agenda imperial por esta simples razão: Deus fez a mesma reivindicação para o seu Filho! Deus fez com que o seu Filho se tornasse o verdadeiro, presente e eterno imperador do mundo! Com as suas agendas nacionalistas os impérios deste tempo tornam-se rivais de Cristo. Isto não é mais claro do que na área da violência. Os impérios acreditam que têm o poder de modelar o mundo de acordo com a sua agenda e que essa violência é um meio legítimo para alcançar esse objectivo. Cristo rejeita isso, claramente. René Girard diz isso deste modo: «A violência é a escravização a uma mentira generalizada, penetrante, persuasiva; impõe ao homem uma visão falsa não apenas de Deus mas de tudo o resto. E é por isso que é um reino fechado. Escapar da violência é escapar deste reino para um outro reino, de cuja existência a maioria das pessoas nem sequer suspeita. Este é o Reino do amor, que é também o domínio do verdadeiro Deus, o Pai de Jesus, que os que estão prisioneiros da violência nem sequer concebem.» 6
Girard tem certamente razão ao dizer que a maioria das pessoas nem sequer suspeita da existência de um reino que é sustentado pelo amor de Deus e que opera sem violência. Estes foram os pensamentos que me dominaram depois de pensar em Dostoevsky como o meu Morfeu que me deu o comprimido vermelho* (que tanto me custou a deglutir...), proporcionando-me a visão da matriz do que é um império violento. A ver-
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Alusão ao filme Matrix. Nesta cena, o personagem Morfeu dá a escolher dois comprimidos, um vermelho e outro azul, que tomados terão consequências na vida futura. (N. do T.)
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dade é que lutei com estas ideias ao serpentear pelas muitas milhas das Montanhas Rochosas, em Agosto de 2008. Ao atravessar o Nebrasca, na longa viagem de regresso a casa, uma frase manteve-se sempre na minha mente: Vislumbrei esta verdade pelo canto do olho. E a ideia vinha, repetitiva: Vislumbrei esta verdade pelo canto do olho. Por fim, saltei fora e pedi à Peri para conduzir. Agarrei numa caneta e num bloco de notas e escrevi um subversivo e perigoso poema sobre aquilo que tinha visto. Quando o li à Peri, ela perguntou: — Não vais compartilhar isso com ninguém, pois não? Disse-lhe: — Claro que não! Menti. Mas esse não foi o pior pecado que eu alguma vez cometi.
PELO CANTO DO MEU OLHO Penso que consegui vislumbrar a verdade pelo canto do meu olho. Um espírito, um sussurro, uma suspeição, um rumor subtil e subversivo. Tão perigoso que todos os exércitos deveriam ser comandados a marchar contra ele; tão lindo que iria conduzir aqueles que o vêem ou à loucura ou à sanidade. Será que todo o meu semelhante sofre duma vertigem moral e mental? Tal como Melville disse do rapaz da cabine, Pip, ele viu o pé de Deus sobre o pedal do tear e atreveu-se a falar disso. Daí para a frente os seus companheiros chamaram-lhe doido.
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Tal como Vladimir disse, quando foram enterrar Fyodor, o líder espiritual deve sentir a falsidade vigente na sociedade; o profeta deve lutar contra isso, nunca o tolerar, nunca se submeter. Penso que tive um vislumbre da verdade pelo canto do meu olho. Será que temos estado tão cegos pelas luzes brilhantes da propaganda mentirosa que a única visão verdadeira que temos é periférica? Na era da comercialização contínua e da propaganda exagerada será que a verdade gritada com um sussurro se pode destacar subtilmente? Penso que tive um vislumbre da verdade pelo canto do meu olho. Fiquei aterrorizado ao apaixonar-me com isso. E disse: Isto explica tudo. Isto muda tudo. Isto desafia tudo. Isto ameaça tudo. Isto transforma tudo. Será que ouso dizê-lo? Esta verdade que vislumbrei pelo canto do meu olho? Todo o império humano está construído sobre uma mentira; eles vêm para matar, roubar e destruir. Todo o império humano está construído sobre uma mentira; toda a virtude é objecto de sacrifício sobre o altar da conveniência imperial. Todo o império humano está construído sobre uma mentira; Deus ou os deuses existem apenas para servir a sua causa. Todo o império humano está construído sobre uma mentira;
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a religião tira a sua máscara quando diz: — Não temos outro rei senão César. A última traição, a apostasia final, todo o império humano está construído sobre uma mentira. Marx estava mais de metade certo quando disse: — A religião é o ópio das massas. Todo o império humano está construído sobre uma mentira: Autopromoção e Autopreservação, Cobiça e Luxúria, Indústria e Guerra, a indústria da guerra. Longa vida ao Império! Mantenham o Império vivo, e para manter o Império vivo muitos terão que morrer, porque o Império vive pela espada e pela mesma morre. Todo o império humano está construído sobre uma mentira. Desde o Azteca ao Zulu, do Egípcio ao Otomano; Persa ou Babilónico, Grego ou Romano, Inglaterra e — Agora estou perto de casa. Uma amável, gentil Babilónia para ter a certeza, mas uma Babilónia com certeza. Todo o império humano está construído sobre uma mentira. Então quando Cristo veio Ele não trouxe outro império de homem construído sobre uma mentira como o mentiroso no deserto o tentou.
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Em vez disso, Ele trouxe o Império de Deus, Boas Novas! O governo de justiça e misericórdia, graça e verdade, e a verdade é que todo o império humano está construído sobre uma mentira, apesar de cada império dizer: Temos Deus do nosso lado. Assim terão de decidir quão patriótico pode um crente Bizantino ser. Possamos nós ser sal e luz, uma voz profética, uma consciência cristã. Possamos nós preservar e iluminar, gritar alto com convicção, mas nunca esquecer todo o império humano está construído sobre uma mentira. E ficar firmes pela verdade e ficar firmes por Deus, é ficar firmes contra a mentira sobre a qual o império está construído. E no meio de uma imperial Autojustificação orar: Venha o Teu Império. Eis que já o disse. A verdade que vislumbrei pelo canto do meu olho. E quando a hora da verdade chega, como sempre acontece, o Império do Homem opõe-se ao Império de Deus. Saber isto é perigoso. Dizer isto pode ser mortal.
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Pensam que estou a brincar? O que é que crucificou Jesus? A religião autojustificativa? Não, não apenas a religião. A religião como a prostituta do Império. Foi isso que matou Jesus. E Paulo. E Pedro. E Policarpo. E Huss. E Bonhoeffer. Porque é isto o que os impérios fazem. Silenciam os profetas que não prostituem a verdade. A religião é tolerada. A religião Imperial é promovida. Mas a esperança profética de outro caminho tem que ser censurada mesmo que pela espada. Este é o caminho do império. Porque todo o império humano está construído sobre uma mentira. Constantino pode tornar-se cristão, mas Constantino não pode baptizar o Império. O Império de Deus converte os corações dos homens um de cada vez. Cristo, o Rei, deve ser, Ele próprio, o patrocinador de cada um que entra no seu Reino. Mas quando o Império sanciona a religião para os seus propósitos particulares, a prostituta Babilónia cavalga as costas da besta. Avante e que Deus abençoe o Império! Todo o império humano está construído sobre uma mentira.
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Vislumbrei esta verdade pelo canto do meu olho. Crer nesta verdade vai torná-lo livre. E pensou que isto era uma banalidade de Escola Dominical ou um sentimento religioso e vazio para orar Venha o teu Império Seja feita a tua Política. E não tinha ideia de quanto isto era dissidência e subversão, porque cada império humano está construído sobre uma mentira. A mentira de que o império tem Deus do seu lado. Vislumbrei esta verdade pelo canto do meu olho. E se me perguntarem acerca da minha política, eu direi: — Jesus é Senhor! Vislumbrei esta verdade pelo canto do meu olho.