Ter fé na cidade O diálogo entre uma pequena igreja de bairro e a cultura Direitos Reservados © Tiago de Oliveira Cavaco Edição conjunta Segunda Igreja Evangélica Baptista de Lisboa – Igreja da Lapa Rua do Pau da Bandeira, 22 A 1200-728 Lisboa Letras d'Ouro, editores Rua Quinta da Flamância, Nº 3 – 3ºDtº 2840-030 Paio Pires Revisão Ana Rute Cavaco Produção Letras d’Ouro, editores Direcção de Arte e Design Pedro Martins Ilustração na badana Pedro Lourenço Impressão e Acabamento www.artipol.net 1.ª Edição, Outubro de 2015 ISBN 978-989-20-6030-9 ISBN 978-989-8215-50-5 Depósito Legal 398664/15 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com a indicação da fonte.
À memória do Pastor João António Marques, que manteve a igreja na cidade mesmo quando pouco da cidade havia na igreja.
ÍNDICE
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Prólogo Introdução O modelo bíblico da cidade O modelo bíblico da congregação Pôr a Lapa no mapa «Religare», de Anabela Mota Ribeiro Adultério Teológico, de Henrique Raposo Fé e laracha, de Nuno Markl Esse conjunto predilecto de pessoas, de Samuel Úria Epílogo
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PRÓLOGO
Alguém, que fez algo que não devia, corre no meio da noite a caminho de lugar nenhum para parar em plena estrada, cercado de carros. Esses carros acendem os seus faróis, iluminados num olhar acusador, encurralando o fugitivo num plano que se vai abrindo para uma panorâmica cada vez maior. No final, temos uma cena memorável onde o pequeno ser humano está diante de uma tribuna de automóveis, que tanto podem ser testemunhas acusadoras do mal que foi feito, como carrascos em busca de vingança. «Fim», diz o ecrã enquanto escurece. A pessoa que vê «Verdes Anos», de Paulo Rocha, assiste a uma história de amor entre Júlio, aprendiz de sapateiro, e Ilda, criada na casa de uma família das Avenidas Novas. Não é uma história propriamente feliz. Sem querer arruinar totalmente o filme a quem ainda não o viu, não resisto a dizer que é o facto de o amor entre eles se passar em Lisboa, lugar onde não nasceram mas onde estão a trabalhar, que acaba por estragá-lo. O espectador fica com a ideia que aquele enredo até podia acabar bem, mas nunca na capital do país. 9
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A tese de um dos filmes mais importantes do cinema português talvez continue a ser a tese de uns quantos portugueses, que suspiram melancolicamente por um regresso ao campo, como a possibilidade de voltarem a uma vida mais inocente e pura. Provavelmente as gerações mais novas, como aquela de que faço parte, já não se dão a tantos suspiros pela razão simples de terem nascido na cidade. Já não demonizamos a cidade pela mesma razão que nunca vimos anjos no campo. A cidade é tudo o que temos e não encontramos grandes alternativas para a nossa vida moderna. Somos, definitivamente, urbanos. Mas se somos, definitivamente, urbanos, talvez não sejamos urbanos sem uns quantos remoques de consciência. Até que ponto é que a nossa vida na cidade serve de desculpa para uma vida menos completa? Muitos de nós fazemos do nosso endereço na capital um pretexto que justifica aquilo que um dia mais tarde, num novo lugar com mais tranquilidade e vagar, conseguiremos ser mas que ainda não se aplica. Cada um tratará de arrastar a sua culpa urbana, penando os muitos pecados que pela cidade se tornam comuns a todos. No fundo, é como se a responsabilidade não fosse nossa mas no lugar onde nos puseram. Os faróis dos automóveis a meio da noite poderão continuar a ser olhares de mochos mecânicos que nos julgam, sem que os consigamos espantar. Este pequeno livro também é acerca disto. 10
INTRODUÇÃO
Talvez seja de vivermos o Século XXI ainda com demasiado Século XIX na cabeça. Em Portugal continuamos a pensar nas coisas da religião como se fôssemos personagens do Eça de Queirós. A igreja é uma palavra que nos transmite sensações ambíguas: por nos lembrar a fé dos nossos avós parece que não se relaciona com os nossos filhos. Reconhecemos um passado nosso na religião com a mesma facilidade que não descobrimos nela qualquer futuro. Um pouco como o Padre Amaro, cujo crime era ter na sua velha religião uma impossibilidade de viver um novo amor com a Amélia por quem se tinha apaixonado, os assuntos da igreja parecem transmitir-nos inadequação. É como alguém que quer arranjar um problema num tablet com uma chave de fendas. Afinal, não fomos todos precocemente convencidos que as respostas da fé não servem para as perguntas de agora? A religião até pode ter servido para o meu antepassado que vivia no interior, mas como é que pode servir para a minha vida moderna na cidade? 11
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O que este livro tenta é o contrário disto – não ignorando na religião o seu peso de passado, o objectivo é encontrar nela a liberdade para o futuro. Mais ainda. Este livro chega ao ponto de sugerir que o que está por vir será melhor se tivermos uma disposição favorável à fé. A minha proposta é dizer que a fé abre caminhos em lugares que parecem becos sem saída. Isto porque a fé não finge um mundo que já não existe, nem propõe um regresso ao que já foi. A fé é a melhor adequação à realidade. A nossa vida na cidade é o âmbito onde este livro tenta encontrar na fé o futuro. Este pequeno volume é escrito para partilhar uma experiência particular que aponta para uma experiência geral: o que nos últimos tempos temos vivido na igreja da qual faço parte – a Igreja da Lapa, em Lisboa – é o que os cristãos têm vivido ao longo de dois mil anos nas várias cidades que habitaram espalhadas pelo mundo. O cristianismo não só não é inadequado para a nossa vida moderna nos grandes centros urbanos que habitamos, como é urgente para essa vida. Para compreendermos melhor como o cristianismo é uma fé que promove e permite um progresso à vida moderna na cidade, começaremos por fazer uma breve incursão pelo passado. Vamos reflectir como o conceito de cidade se desenvolve no documento essencial do cristianismo: a Bíblia. Depois, num segundo momento, observamos o modelo de convi12
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vência em comunidade cristã a partir de um texto central nas Escrituras: o capítulo 13 da Primeira Carta que o Apóstolo Paulo escreveu à Igreja de Corinto. Por último, partilharemos algumas das experiências que a Igreja da Lapa tem tentado reproduzir a partir desse modelo. Aí, apresentamos testemunhos de pessoas que, sendo externas à nossa comunidade, provam como a igreja pode ser um ponto de convergência e construção urbana no meio da diversidade.
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O MODELO BÍBLICO DA CIDADE
QUASE AMOR E UMA CABANA Na Bíblia, a cidade não começa como uma coisa boa. Tudo corre bem nos dois primeiros capítulos do livro do Génesis (que é o primeiro livro da Bíblia). E em boa parte, pode até parecer que tudo o que corre bem nos primeiros dois capítulos de Génesis, também corre bem pelo facto de o espaço da acção não ser uma cidade. Os dois primeiros capítulos do Génesis dão-nos quase um amor e uma cabana. Neste caso, dão-nos Adão, Eva e um jardim. O Paraíso também é Paraíso por sugerir que o amor, para ser vivido a sério, encaixa mais num local selvagem do que propriamente num condomínio de luxo. Chega então o terceiro capítulo do livro do Génesis, onde o amor e a cabana deixam de ser o Paraíso. Não sendo o assunto central deste livro, vale a pena apontar para aquilo que estragou a combinação perfeita entre Adão, Eva e um jardim. Neste caso, não foi o jardim que deixou de ser o lugar perfeito para Adão e Eva, mas Adão e Eva que deixaram de ser as pessoas perfeitas para o jardim. Como assim? Foi o que aconteceu den15
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tro de Adão e Eva que gerou uma consequência negativa, consequência essa que impediu o jardim de continuar a ser o local para eles. Não foi o lugar que deixou de agradar aos habitantes, mas foi mais os habitantes que deixaram de agradar ao lugar. Vale a pena explorar isto um bocadinho porque é este facto que torna o cristianismo uma religião que, antes de começar pelo que acontece de errado no mundo, começa pelo que acontece de errado nos habitantes do mundo. Podemos usar uma linguagem mais teológica e falar em antropologia cristã. Os acontecimentos do Éden, ao contrário da acusação de alguns, não são uma fábula infantil. Eva ter trincado o fruto proibido não é uma desculpa para eu não ser responsabilizado pelos meus actos. Bem pelo contrário. Eva ter trincado o fruto proibido é o que explica que qualquer pessoa que habite neste mundo depois dela tenha necessariamente de ser responsabilizado pelos seus actos. Os acontecimentos do Éden não nos infantilizam perante as injustiças da vida, mas apontam para nós como a explicação primordial para elas. Na antropologia cristã o chamado pecado original é a consequência do que aconteceu no Paraíso, descrito nos eventos do terceiro capítulo do livro do Génesis. É a doutrina do pecado original que me inspira a que, de cada vez que me deparo com alguma coisa má, não a avalie independentemente da minha existência. Ou seja, o mal que contemplo e que pode ter sido criado 16
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por outra pessoa que não eu, não deve ser pensado fora do meu reconhecimento que poderia ter sido eu a cometê-lo. Isto não faz com que eu relativize o erro do outro, mas faz com que eu possa avaliá-lo com uma justiça diferente: se o outro erra, a melhor maneira de tratar do assunto não é aplicar um critério que me retira do problema. Poderei (e deverei) ser justo com quem erra precisamente porque a justiça que aplico não existe por eu ser externo ao erro – existe por eu também fazer parte desse fenómeno. Não posso olhar para a existência do mal no mundo independentemente da existência do mal em mim. Por isso, o cristianismo acredita tanto em castigo como em perdão. Adão e Eva deixaram de ser habitantes que agradavam ao jardim também porque tomaram uma decisão contrária ao respeito original que deviam ao espaço. Quando Satanás em forma de serpente tenta Eva, fá-lo dizendo que Deus os impediu de comerem de todas as árvores do jardim (Génesis 3:1). Eva corrige, e bem, a serpente dizendo que não foi assim, que de facto Deus só os proibiu de comerem da árvore que estava no meio do jardim porque, se o fizessem, morreriam (Génesis 3:3). Ao que a serpente não desarma e sugere que não: não haveriam de morrer mas, antes pelo contrário, teriam os olhos abertos por comerem do fruto proibido e conhecerem o bem e o mal como Deus (Génesis 3:4-5). O resto da história nós conhecemos e vai ao tom da forte trincada de Eva, que se tornará a forte trincada de Adão. Em que é que esta decisão se revela contrária ao respeito 17
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original que eles deviam ao espaço do jardim que habitavam? Nos dois primeiros capítulos do Génesis assistimos à criação do mundo num ambiente que descreve Deus como um feliz arquitecto. Aquilo que ele constrói, constrói muito bem. Mas Deus não é apenas um feliz arquitecto. Também é um feliz escritor. Porque criou o mundo a partir da palavra e resolveu acrescentar personagens à história. Se o mundo – a sua arquitectura, era bom, o homem e a mulher – as suas personagens, ainda eram melhores. Adão e Eva têm uma importância tal que manifestam mais perfeitamente o talento criativo de Deus. Por isso, Adão e Eva enquanto criaturas são postos acima da natureza. Há um equilíbrio único entre criador, criaturas e criação. Esta é também a ordem, decrescente em termos de importância. Primeiro está Deus, depois estão as pessoas, e por último a natureza. Esse equilíbrio é tão valioso que pede uma dinâmica que o respeita: Adão e Eva são chamados a cuidar da natureza como agentes divinos. Ou seja, não só Deus é arquitecto e escritor – também é jardineiro. E é um jardineiro que passa o talento às suas criaturas.
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