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APRESENTAÇÃO
Este livro é resultado de minha dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de Campinas, no ano de 1997, sob a orientação da professora Mariza Corrêa. É, portanto, uma narrativa datada que retrata minhas inquietações da época. Como também a literatura sobre mulher, cidade e história da Amazônia, que tive ao meu alcance naquela década de 1990, quando as discussões sobre a categoria de gênero ganhavam fôlego, e o número de trabalhos que passaram a utilizá-la se ampliavam. Havia lido o trabalho de Mariza Corrêa, Morte em família, bem como o de Martha Esteves, Meninas perdidas, e a proposta de escrever sobre mulher, relações amorosas e sexuais a partir de processos criminais me pareceu promissor. Mariza me orientou, Martha veio a fazer parte da banca de defesa e Angélica Motta-Maués orientou-me na construção do projeto. O levantamento da documentação no arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Pará revelou a existência de diversos processos de defloramento, que, somados às matérias de jornais, cartas e obras literárias, formaram o corpo documental central da análise. O período do trabalho corresponde ao auge da economia da borracha no Pará, inserindo-se nas discussões sobre a bellé époque, mas se alinhando à linha historiográfica que criticava a ênfase apenas no caráter moderno, civilizacional e urbanístico desse período, trazendo uma leitura a contra pelo em que, os populares, as casas de porta e janela, as ruas escuras, os cortiços e as mulheres, compunham o cenário principal. O trabalho reflete essa tensão. A cidade de Belém é mostrada na redefinição de seu traçado urbano, na construção de avenidas, hotéis, lojas e locais de passeio luxuosos, mas, também, nas áreas de periferia, nas moradas coletivas e nas lamparinas a querosene projetando sombras fantasmagóricas nas paredes das casas. A tensão também se revela na construção das partes do livro. Os primeiros capítulos tratam das mulheres, meninas, suas mães, irmãs, tias, parentes,
conhecidas(os). Procuro mostrar o perfil de idade, cor e atividade profissional dessas protagonistas. E, ainda, suas falas registradas nos processos, mediadas por todo o arcabouço policial e jurídico. Cartas e bilhetes foram alguns tesouros que esses processos legaram à história. Jornais e revistas foram utilizados para complementar e trazer mais densidade aos processos que ganharam publicidade no cotidiano da imprensa. Comecei com elas, pois queria que o leitor fosse introduzido no trabalho através do olhar das meninas e mulheres defloradas. Nos demais capítulos, entretanto, mostro a perspectiva masculina, evidenciando a tensão entre as diversas vozes e experiências que compõem o corpo documental.
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Assim, trago a perspectiva dos homens acusados de defloramento, muitos deles namorados e noivos que, tal como elas, faziam parte do universo dos populares, ou possuíam uma situação social não muito diferenciada. A ideia era relacionar as falas destacando as diferenças – até mesmo pelo fato de estarem em lados opostos no teatro processual, instruídos pelos operadores do direito, do aparato policial e familiar –, mas, também, as possíveis semelhanças nas práticas e representações de homens e mulheres que possuíam uma condição de classe semelhante.
O gênero tornava-se assim uma categorial literalmente útil de análise, para brincar com o título do texto clássico de Joan Scott, à medida que explorava os diversos marcadores sociais da diferença, pensando masculinidades e feminilidades de forma relacional e assimétrica, e implodindo a homogeneidade em cada um desses polos em função da raça/etnicidade, geração e sexualidade; embora as discussões de interseccionalidade e categorias de articulação ainda não me fossem tão familiares naqueles anos 90. Isso me levou à última parte da narrativa, em que discuto as imagens e representações de advogados, policiais, juristas, articulistas e literatos que representavam o contraponto da elite social, o discurso das normas que se pretendia hegemônico, civilizacional e legítimo.
A argumentação do trabalho formou-se, desse modo, ressaltando a ambiguidade, a diversidade de lugares assumidos pelos diferentes homens e mulheres em função de sua condição de classe, mas sem perder de vista a percepção disruptiva do popular e da cultura popular, que não os aprisiona a homogeneidade por sua condição social – dado que eles também se constroem a partir do
gênero, da cor e da sexualidade, além, é claro, das diferentes posições assumidas nos processos.
Ambiguidade sugerida também no título do trabalho. Adoráveis mulheres protagonistas de sua experiência, construindo seu cotidiano para além das normas prescritas, que cerceiam a sociabilidade no mundo público, da rua e do trabalho, que controlam seus corpos e suas relações amorosas e sexuais. Dissimuladas, pois, com habilidade e agência, (re)adequavam suas falas de acordo com o encaminhamento que queriam dar à investigação policial ou ao processo criminal. Ora, reforçando o fato de terem sido enganadas, defloradas sob declaração de amor e casamento, ora afirmando que mantiveram relação sexual por livre e espontânea vontade, para que, desse modo, o réu, outrora namorado, não fosse preso.
As falas dessas mulheres estavam marcadas e dialogavam com a hierarquia e opressão dos preceitos de passividade, docilidade e controle do corpo, dos desejos e dos amores femininos e masculinos. Preceitos elaborados e legitimados pelas mais distintas instituições que, aqui, podem ser lidos a partir do discurso jurídico, policial, médico, jornalístico e familiar. As experiências dessas mulheres estavam pontuadas e limitadas pela violência física e simbólica. Mas, nesse jogo de assimetria de gênero em que todas nós vivemos, elas foram empurrando os limites, esgarçando os relacionamentos, questionando práticas e representações sobre a imagem feminina. Essas histórias são delas, mas também são de todas nós que temos que cotidianamente esgarçar limites, romper imagens consolidadas de moral e pudicidade.