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INTRODUÇÃO
Uma caixa de Pandora1. Essa parece ser a imagem própria para caracterizar o significado que os primeiros encontros amorosos e a perda da virgindade tinham no cicio de vida da mulher para literatos, poetas, advogados e promotores que viveram na Belém do final do século XIX e início do XX. Os primeiros anos representados pela inocência eram seguidos pela desonra no contexto de uma relação ilícita, acarretando uma inevitável decadência que espalhava o sofrimento e a dor, destino dessas “adoráveis” e “dissimuladas” mulheres. Ao ler as crônicas e poesias, bem como discursos de magistrados, ficamos imaginando de que forma essas “decadentes” mulheres pensavam a perda de sua virgindade, ou, melhor dizendo, em que medida a imagem da perda, da falta, da decadência, seria, por elas, usada para caracterizar a maneira como viviam e representavam seus envolvimentos amorosos, no interior dos quais mantinham suas relações sexuais. Foi com essa questão que comecei a investigar os autos e processos criminais de defloramento abertos na segunda metade do século XIX e primeira década do XX. No total, foram consultados setenta e cinco autos de defloramento do Arquivo Público Estadual do Pará, e setenta e cinco processos-crimes, também de defloramento, do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Através das páginas rotas e quase ilegíveis, escritas em bico de pena, dessas peças jurídicas, podemos conhecer um recorte do cotidiano amoroso vivido por meninas das camadas pobres da capital paraense, que, ao serem protagonistas de um auto e/ou processo de defloramento, tinham suas relações amorosas expostas em um universo público mais amplo, possíveis de serem
1 Pandora, a imagem feminina criada por Júpiter para destruir o paraíso dos homens, carrega consigo em sua viagem para a terra uma caixa que contém todos os males do mundo. Uma vez aberta a tampa da caixa, as desgraças se espalham pela terra. Logo em seguida, a caixa é fechada permanecendo lacrada no fendo apenas a esperança, que assim fica escondida para sempre. O homem perde então seu paraíso (MITOLOGIAS. Ed. Abril Cultural, São Paulo, 2 vol, 1976, p. 316-317).
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conhecidas através de seus depoimentos, bem como do testemunho de seus amantes, parentes, vizinhos e/ou conhecidos.
Ao falar de suas experiências amorosas, algumas dessas meninas utilizavam-se de representações legitimadas pelos grupos letrados, particularmente os magistrados, cujos discursos valorizavam as atitudes de passividade da mulher no estabelecimento de um relacionamento amoroso, e, mais do que isso, a sua imagem de seduzida, enganada, que só se entregaria a um homem frente a uma promessa de casamento legitimado pelo Estado e pela Igreja – sendo essa a única atitude pensada como própria a uma mulher honesta. Representações muitas vezes articuladas por essas meninas em um discurso que se pretendia coerente e usado de forma astuciosa e necessária, sem o qual não conseguiriam protagonizar um processo de defloramento, à medida que, para tanto, era conveniente assumir e se mostrar de acordo com os predicados exigidos à mulher e à sua situação de espectadora, prescrita no código penal atualizado pelos magistrados.
Outras meninas, no entanto, diferentemente daquelas, afirmavam que teriam tido relação sexual por sua livre e espontânea vontade, com o namorado acusado, aceitando muitas vezes estabelecer com ele um relacionamento sem a legitimação institucional. Já outras nem mesmo aceitavam a ideia de casar com o acusado, alegando não estarem apaixonadas, ou ainda pelo fato dele não ter recursos. Com essas atitudes, elas negavam o direito, fosse da justiça, fosse de seus próprios familiares e conhecidos, de dirigirem seus comportamentos e interferirem em suas vidas privadas.
Para muitas meninas, essas peças jurídicas trouxeram um conjunto de expectativas que geraram desencantos e mágoas, quando o amante acusado de defloramento negava a existência de qualquer tipo de envolvimento amoroso e sexual com elas. Para outras, no entanto, essas mesmas peças jurídicas, ao ficarem incompletas ou serem encerradas sem a prisão do namorado, geravam alívio e o fim do receio de vê-los presos – o que, acreditavam, faria com que os perdessem definitivamente. Esse receio fez com que muitas de suas falas fossem marcadas por um desejo ambíguo, que fazia com que, contraditoriamente, ora afirmassem, ora negassem ser o réu o autor de seu defloramento. Neste último caso, comumente diziam ter tido a primeira relação sexual com outro homem, para, dessa forma, livrar o namorado da acusação de um processo, a despeito das imagens depreciativas a que ficavam sujeitas com essa afirmação.
De uma maneira ou de outra, essas situações apontam para a iniciativa feminina frente às relações amorosas e sexuais. Fosse utilizando-se das imagens socialmente criadas de vulnerabilidade emocional, vitimização e passividade, para levar a termo a continuidade de um relacionamento amoroso, fosse se recusando a assumir tais imagens ou mesmo a estabelecer um compromisso de união institucionalmente legitimada, as meninas viviam seus dramas de amor em um universo dinâmico de práticas e valores que eram recriados e ganhavam múltiplos significados a cada nova situação estabelecida no contexto de suas relações sociais.
Na primeira parte do trabalho, montaremos o cenário em que esses dramas de amor se desenrolam, segundo à caracterização do perfil de nossos personagens. Na segunda parte, percorreremos uma espécie de etnografia dos relacionamentos vividos por esses personagens, analisando-os a partir, preferencialmente, dos discursos das menores ofendidas, de seus parentes, bem como conhecidos por elas, arrolados como testemunhas. Na terceira parte, daremos destaque às formas de representação das imagens das meninas e dos relacionamentos, a partir dos discursos dos homens acusados de defloramento. E, finalmente, na quarta e última parte, analisaremos os processos em que ofendidas e acusados passam ou permanecem vivendo juntos.
Traçado o roteiro, iniciaremos conhecendo o processo de Belmira, que, curiosamente, embora tenha sido aberto pela justiça como sendo de defloramento, para a própria menor isso seria impossível, pois, segundo seu depoimento, nunca teria tido contato com o corpo de um homem. Portanto, não poderia estar deflorada.
Assim, comecemos o texto parodiando a abertura dos autos e processos de crimes de defloramento, em que se lia: aos vinte e oito dias do mês de novembro de mil oitocentos e oitenta e seis do ano de nosso senhor Jesus Cristo...