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A epidemia que ocorreu no Grão-Pará entre 1748-1750 deixou um rastro de mortos e acentuou antigas disputas políticas. Entre elas, os embates em torno do monopólio da mão de obra indígena e a introdução de novos contingentes de trabalhadores. Nesse sentido, a imigração compulsória de cativos africanos não foi bem aceita por parcela dos moradores e administradores da capitania. Esse processo imigratório também auxiliou a evidenciar projetos diferenciados: valorização da escravidão indígena versus o uso de braços africanos.
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Embora legalmente a escravidão indígena tenha sido proibida, na prática essa mão de obra continuou sendo importante. Considerando a concentração na distribuição da escravaria africana até 1778, podemos imaginar que as áreas com pouco ou nula presença de cativos africanos tinham a base de sua economia centrada na mão de obra compulsória indígena394 e no uso que escapava às proibições e determinações da Coroa: uma escravidão dissimulada do índio. Segundo Robin Anderson, até finais da década de 1780 a economia do GrãoPará estava substancialmente atrelada ao uso da mão de obra indígena.395 Em 1764, Mendonça Furtado, então Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, demonstrou preocupação com a não efetivação das diretivas metropolitanas de assegurar a liberdade indígena. E o fez a partir da denúncia contra as ações do desembargador Francisco Raimundo de Morais, autoridade local que deveria estar comprometida com os ditames lisboetas: “sem atender as Leys de Sua Magestade que reputão forras todas estas Naçoens sem embargo destas Reaes determinaçoens queria este Homem [o desembargador] em muita boa consciença fazer cativo a este [da nação Canaris] mizervel índio”.396
A partir de leis reais revogadas, Bulas papais, inverdades de um governador e resistência à inserção e utilização de cativos africanos, destacamos a tentativa
394 Trabalho Compulsório é definido como aquele trabalho no qual o empregado não pode se retirar quando quer sem correr o risco de punição, mesmo que receba remuneração em troca do serviço prestado. Cf. BRITO, Célia Maria Chaves. Índios das “corporações”: trabalho compulsório no
Grão-Pará no século XVIII. In: MARIN, Rosa Acevedo (org.). A escrita da História paraense.
Belém: NAEA/UFPA, 1998, p. 115-137. 395 ANDERSON, Robin. Following Curupira: Colonization and migration in Pará, 1758 to 1930 as a study in settlement of the humid Tropics. 1976. Tese (Doutorado em História) –
Universidade da Califórnia em Davis, 1976. 396 AHUPR, Capitania do Grão-Pará, janeiro de 1764, cx. 55, doc. 5024.
de imposição de regulamentos que tentavam garantir a liberdade indígena e o fluxo imigratório de escravos africanos para o Grão-Pará. Também percebemos indícios da permanência da utilização do trabalho do índio – que poderia significar a exploração compulsória e/ou o cativeiro ilegal. Assim, a possibilidade da liberdade indígena e do maior uso do trabalho do escravo africano orbitava entre as tensões de interesses da Coroa, demandas dos moradores, empreitadas religiosas e as estratégias de resistência do indígena.
Nesse mesmo cenário de tensões associadas à diminuição da oferta de trabalhadores indígenas, o deslocamento obrigatório de cativos africanos emergia enquanto proposta cuja efetivação foi marcada por assimetrias. E o foi quando consideramos anualmente a entrada de cativos transportados pela Companhia entre 1758-1778 (com oscilação que variavam entre mais de 1.800 cativos transportados e zero), na relação entre os anos e os portos de embarque (83% dos cativos oriundos da região de Angola foram transportados entre 17581765), no número de imigrantes cativos por embarcação e a consequente taxa de mortalidade entre os transportados (com um número superior da média de cativo por embarcação e também de mortos durante a viagem Africa Central Ocidental e Belém) e na distribuição de escravos africanos na capitania do Grão-Pará (com freguesias concentrando 61% dos cativos na capitania em 1778).
Além das assimetrias referidas no parágrafo anterior, também destacamos a relação entre o número de mortos pela epidemia e a reposição de trabalhadores a partir da imigração compulsória africana. Considerando período de monopólio comercial da Companhia, na prática a alta mortalidade indígena durante os três anos de contágio (1748, 1749 e 1750) numericamente levou 22 anos (1756-1778) para ser equilibrada com a inserção de africanos. E não houve uma relação direta entre as localidades que mais índios perderam durante a doença com a entrada equivalente de cativos negros. Nesse sentido, o uso da epidemia para fortalecer o projeto que apostava na imigração africana em detrimento da escravidão indígena surtiu mais efeito discursivo do que prático, evidenciando a coexistência da exploração do trabalho indígena com a do africano no Grão-Pará, com a ressalva que o peso dessa coexistência era variado internamente na capitania.
No próximo capítulo, analisaremos outra frente imigratória associada à inserção de trabalhadores no Grão-Pará, um fluxo ocorrido num curto período, financiado pela Coroa e justificado pelos desdobramentos diretos da epidemia.