Medicina Laboratorial: Estados Inflamatórios 978-989-752-872-9

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MEDICINA LABORATORIAL

Da Prescrição à Interpretação Clínica

ESTADOS INFLAMATÓRIOS

AUTOR

Licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Internato Complementar de Patologia Clínica no Serviço de Patologia Clínica do Hospital de São José; Grau de Assistente Hospitalar de Patologia Clínica pelo Hospital Curry Cabral; Especialista em Patologia Clínica pela Ordem dos Médicos; Consultor de Patologia Clínica da Carreira Médica Hospitalar no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, EPE – Unidade do Monte da Virgem; foi Responsável pela Coordenação do Controlo da Qualidade Analítica e pela Área Core Laboratorial no Dr. Joaquim Chaves, Laboratório de Análises Clínicas SA; foi Diretor Técnico Substituto no Dr. Joaquim Chaves, Laboratório de Análises Clínicas SA; esteve envolvido na atividade docente da cadeira de Farmacologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; foi convidado para fazer parte de vários grupos de trabalho.

AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que foram, e muitos continuam a ser, os meus mestres, colegas e amigos, e que me têm acompanhado e acrescentado valor à minha formação pessoal, académica e profissional, em par ticular ao Doutor Joaquim Chaves pela confiança que sempre depositou em mim, pela sua amizade e por todas as oportunidades que me concedeu.

Ao senhor Professor Doutor Joaquim Augusto da Silveira Sérgio, uma das minhas grandes refe rências como Homem, profissional e, sobretudo, como amigo inestimável com quem tive a honra e o privilégio de trabalhar sob a sua direção. Agora, alguns anos depois, pelo incentivo, entusiasmo e motivação que manifestou pela divulgação deste trabalho, assim como pela generosidade com que se disponibilizou e contribuiu para o tornar melhor na sua estrutura e ordenação dos temas abordados.

Edições Técnicas, Lda.

Lidel –

PREFÁCIO

Este extenso volume, Medicina Laboratorial: Da Prescrição à Interpretação Clínica — Estados Infla matórios, que tenho a honra de prefaciar, da autoria do Doutor Rui Pimentel, versando a Semiologia Laboratorial, no que se refere às doenças, ou estados inflamatórios, como o autor, muito humildemen te, o batiza, é, na verdade, um verdadeiro livro de texto de Patologia Clínica que a sociedade médica e, porque não dizê‑lo, também a Farmacêutica, esta na vertente dedicada ao âmbito das análises clínicas, há muito reclamavam.

Não se trata de um livro de técnica laboratorial, mas de um livro que aponta no sentido da herme nêutica; não no sentido da arte de interpretar os usuais livros sagrados, mas no da capacidade de in terpretar as ocorrências detetadas, através da metodologia laboratorial aplicada, relacionadas com este livro, ainda que muito ignoto em certos capítulos, e que também não deixa de ser sagrado – embora a sociedade, muito costumeiramente, o não queira admitir, nem o respeite como tal.

Se os clínicos apenas fossem capazes de entender o mundo que conseguem ver a olho nu, ainda que se admita a utilização de ortóteses oculares, o conhecimento médico pouco teria evoluído. O intervalo de comprimentos de onda que pode ser percecionado pelo olho humano, segundo a física ótica, é comparável à espessura de uma lâmina, relativamente a todo o espectro eletromagnético. Na verdade, o olho humano só consegue distinguir objetos que não sejam nem demasiadamente pequenos, nem estejam colocados muito longe, ainda que, em tese, consiga “ver até ao infinito”, desde que um número suficiente de fotões possa chegar até ele1.

Deste modo se pode compreender o salto qualitativo e quantitativo que o microscópio veio a pro porcionar – a capacidade de se chegar ao muito pequeno –, ao abrir a janela para se poderem caracte rizar as mais diversas espécies de células, quer estejam elas isoladas quer em grupo, a par dos micro organismos, sejam eles bacterianos, parasitários, fúngicos, ou víricos e, até mesmo, chegando‑se ao pormenor do rendilhado das respetivas estruturas moleculares.

Foi uma longa viagem, desde o início do século XVII, empreendida por cientistas como Jansen, Kepler, passando por Leeuwenhoek – o primeiro a descrever os protozoários e algumas bactérias – até, mais recentemente, Ruska e Max Knoll, os físicos alemães a quem cabem as honras da descoberta do microscópio eletrónico, em 1937, e, por último, já na década de 1980, Gerd Binnig e Heinrich Rohrer com a invenção do microscópio de tunelamento por varredura, que permitiu chegar‑se a estruturas da escala do átomo.

Foi, muito possivelmente, aos ombros destes gigantes do conhecimento, a quem muito se deve, que a Medicina, em geral, e, muito particularmente a Patologia Clínica, se conseguiram guindar ao patamar de conhecimento onde hoje se encontram.

O laboratório, olhado anteriormente como um primo afastado ou familiar secundário das Ciências Médicas, ocupa hoje a primeira fila no que toca à investigação e diagnóstico médico. Na verdade, hoje nada se faz, assertivamente, sem a chancela corroborativa do laboratório, sobretudo no campo da Inflamato‑Infeciologia, a menos que se queira voltar ao perigoso tempo do exercício terapêutico por palpite, em que a arte era mais valorizada que a ciência.

Ainda não há muito tempo, o mundo despertou para o pesadelo epidémico, onde foi colocada em cima da mesa a hipótese de se estar perante o desencadeamento de uma guerra biológica. E a suspeição

1 Al‑Khalili, Jim (2022): O Mundo segundo a Física. Temas e Debates, Betrand Edt., Lisboa: 349 pp.

não era de todo infundada. Fosse por que motivo fosse, por descuido ou por testagem (saber como, e com que armas, o mundo iria reagir), o certo é que o número de óbitos em Portugal, até 2022, relativos a esta doença sistémica – o Covid‑19 – ultrapassou os 26 mil, com perto de 5,6 milhões de casos diag nosticados, enquanto, e na totalidade do planeta, até ao presente, o número de mortos por Covid‑19 já é superior aos 6 milhões.

Mas, ainda acerca das doenças inflamato‑infeciosas, quem se der ao trabalho de verificar as esta tísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), irá constatar que a 4ª causa de morte em Portugal corresponde às infeções respiratórias. Se a estes casos lhes juntarmos as neoplasias respiratórias – a 5ª causa mais frequente de morte –, as neoplasias do cólon e reto, que ocupam a 6ª posição, segui das pela doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), e sabendo que grande parte destas patologias foram despoletadas por processos inflamatórios que se tornaram crónicos, não obstante a importância devida à estrutura genómica, melhor podemos aquilatar o peso que a vertente em apreço, das doenças inflamato‑infeciosas, tem nos diversos aspetos da vivência e bem‑estar da sociedade, que ultrapassam, em muito, os da saúde.

Daí que se justifique o cuidado e a vastidão deste volume, Estados Inflamatórios, que deverá interes sar a comunidade científica.

Seria estultícia dizer que é um puro livro de bolso. No meu entender, trata‑se mais de um livro para a secretária de trabalho e, igualmente, para figurar em qualquer biblioteca que se preze de um profis sional de saúde.

Termino felicitando o meu distinto colega e amigo, de há muitos anos, pela sua honestidade cientí fica, pela partilha do seu vasto e consistente conhecimento, pela sua escrita fluida e concomitantemente pedagógica, que constituem características que o qualificam como um verdadeiro Mestre em matéria da Patologia Clínica.

Bem‑haja, Rui, por mais este trabalho.

Doutor Joaquim Augusto da Silveira Sérgio Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Especialista em Ortopedia e Chefe de Clínica/Consultor de Ortopedia da Carreira Médica Nacional

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APRESENTAÇÃO

O presente trabalho é, essencialmente, uma compilação modulada de boas práticas no âmbito da prescrição médica, de todas as fases do processo laboratorial (pré analítico, analítico e pós analítico) e da interpretação dos resultados analíticos baseadas na minha experiência clínica e laboratorial, que foram sendo adquiridas e amadurecidas ao longo de mais de quatro décadas, mais de metade das quais na Dr. Joaquim Chaves, Laboratório de Análises Clínicas, e nas evidências publicadas na literatura científica das diversas especialidades médicas.

Aceitei o desafio proposto pelas minhas colegas e amigas, Catarina Rombo, Marina Pires e Rute Pereira, e pela minha mulher, Margarida Ponte, de publicar Medicina Laboratorial: Da Prescrição à Interpretação Clínica por estar convencido de que a partilha em todas as áreas do conhecimento, na qual se inclui a Medicina Laboratorial, é uma janela de oportunidade imperdível, por permitir criar as condições necessárias para explicar a importância da relação entre a clínica e o laboratório, cujo diálo go entre pares deve ser permanente, assim como o significado de muitos sinais do âmbito da Patologia Clínica. Estou convicto de que constitui um importante contributo para melhorar a sua compreensão e o processo de interpretação dos resultados dos mensurandos prescritos, uma vez que é neles que se baseiam entre 60 e 70% das decisões médicas, que condicionam a qualidade de vida das pessoas e, muitas vezes, o seu tempo de sobrevida.

Revisitada a literatura médica publicada, quer em livros de texto, quer em artigos científicos, nacio nais e internacionais, é evidente a existência de uma enorme lacuna, que se vem traduzindo pela insu ficiência de articulação, cooperação e coordenação de esforços interdisciplinares. É patente, também, um afastamento cada vez maior entre o que é pretendido e tomado como necessidade por cada uma das especialidades médicas e cirúrgicas, e as limitações e potencialidades do estado da arte da Medicina Laboratorial, que importa conhecer e colmatar.

Só há uma Medicina. A Medicina como a Arte Maior de ajudar as pessoas a ter a melhor qualidade de vida (bem estar físico, psíquico e social) durante o máximo de tempo possível.

No âmbito dos estados inflamatórios, Medicina Laboratorial faz uma abordagem geral aos meca nismos fisiológicos e fisiopatológicos da imunidade inata e caracterizam os processos inflamatórios sistémicos, incluindo a senoinflamação e a imunossenescência, que fazem parte da etiopatogenia das doenças crónicas mais importantes que lhes estão associadas, assim como o papel desempenhado pela disbiose, pelos biofilmes e pelos hábitos alimentares e estilo de vida na sua instalação, perpetu ação e agravamento. Também são abordados na primeira parte deste trabalho os processos de vali dação e interpretação dos resultados laboratoriais dos parâmetros com maior valor semiológico no estudo dos doentes com processos inflamatórios de qualquer natureza e dos marcadores biológicos que estão diretamente relacionados quer com a doença alérgica, quer com as doenças autoimunes, nomeadamente as do tecido conjuntivo, a síndroma antifosfolipídica, as vasculites associadas aos anticorpos anticitoplasma dos neutrófilos (ANCA, do inglês antineutrophil cytoplasmic antibodies) positivas, as do aparelho gastrointestinal, a miastenia gravis e a encefalite autoimune.

Na segunda parte dos estados inflamatórios é feita a caracterização do líquor e descritos os parâ metros com maior valor semiológico, as doenças neurodegenerativas e as parasitoses mais impor tantes que envolvem o sistema nervoso central, e enfatizada a vertente laboratorial do estudo destes doentes no contexto do rastreio, do diagnóstico, da monitorização da evolução clínica e da resposta ao tratamento, assim como da estratificação do risco (prognóstico).

XIV

Na terceira parte é feita a caracterização laboratorial dos derrames das serosas e, em relação a cada um deles, são descritos os parâmetros com maior valor semiológico.

Na última parte são focados os aspetos mais importantes relacionados com o valor semiológico e a interpretação dos resultados dos ensaios imunoquímicos prescritos com maior frequência na prática clínica diária para o estudo das doenças infeciosas.

Técnicas, Lda.

Edições

Lidel –

INTRODUÇÃO

Os médicos recorrem às análises clínicas para efetuar diagnósticos, estratificar o risco de morbilida de e de mortalidade, identificar recaídas ou recorrências, e monitorizar a evolução clínica e a resposta ao tratamento de diversas entidades nosológicas, assim como para despistar apresença destas entidades em indivíduos aparentemente saudáveis.

A principal responsabilidade da Medicina Laboratorial é contribuir para melhorar de forma consis tente a qualidade de vida das pessoas (estado de completo bem‑estar físico, psíquico e social) durante o máximo tempo possível, devendo para isso garantir que, de forma sustentada, todos os resultados reportados se caracterizem pelos seguintes aspetos:

• Não estejam comprometidos por enviesamentos inaceitáveis em relação ao valor real (in vivo);

• Sejam clinicamente úteis para permitir a tomada de decisões médicas mais adequadas;

• Sejam reportados em tempo útil.

Tem sido evidenciado que até 25% dos erros de avaliação clínica relacionados com resultados laboratoriais afetam o processo de decisão médica, tendo como consequência atrasos na prestação dos cuidados de saúde mais adequados em tempo útil.

A caracterização da variabilidade fisiológica, fisiopatológica e iatrogénica, e a identificação e moni torização da variabilidade que decorre do processo analítico, assim como a garantia de que se estas mantêm dentro de limites clinicamente aceitáveis, são fundamentais para que as informações vei culadas pelos resultados reportados não induzam os clínicos prescritores a cometer erros de julga mento em relação a um diagnóstico, prognóstico (estratificação do risco) ou tratamento e, com isso, diminuir a qualidade de vida dos pacientes.

A variabilidade dos resultados laboratoriais está relacionada com diversos fatores e condições dos quais se destacam de acordo com a sua origem os seguintes:

• A variabilidade biológica intraindividual específica de cada mensurando (equilíbrio homeostático);

• As alterações do estado de saúde dos indivíduos (variabilidade fisiopatológica);

•  As alterações decorrentes de atos ou de intervenções no âmbito da terapêutica ou do diagnóstico (variabilidades iatrogénicas);

•  O processo pré‑analítico, analítico e pós‑analítico, designadamente a competência dos profissio nais envolvidos (fatores humanos) e a qualidade do desempenho dos diferentes procedimentos de medida e ensaios instalados no laboratório (exemplos: precisão e exatidão próprias do método, intervalo de medição e linearidade, limites de deteção e especificidade analítica);

•  A estabilidade dos mensurandos (analitos e parâmetros) nas amostras biológicas em função das suas características, da preparação pré‑analítica efetuada, e das condições de colheita, de conser vação e do seu processamento;

•  As interferências analíticas positivas ou negativas que se traduzem pela diferença entre o resulta do obtido e o seu valor real (in vivo).

Antes de ser tomada uma decisão perante resultados laboratoriais anormais ou discordantes, seja através da história clínica, epidemiológica ou ambas, seja com recurso a critérios interparamétricos, ou ainda através dos resultados obtidos em colheitas anteriores, é importante que o processo de interpre tação, tanto a nível laboratorial como clínico, permita determinar se estão relacionados com o estado

de saúde dos pacientes ou se são resultantes de variáveis pré‑analíticas, analíticas ou pós‑analíticas, nas quais se incluem as interferências.

O impacto negativo que os resultados incorretos podem ter para os pacientes está relacionado com os seguintes fatores:

• Estado de saúde e características das patologias que o condicionam;

• Sensibilidade e especificidade diagnósticas (valor semiológico) dos mensurandos objeto de análise;

• Grandeza da diferença entre o resultado reportado e o seu valor real (in vivo);

• Competência e experiência quer dos profissionais do laboratório, quer dos médicos prescritores em identificar e lidar com este tipo de resultados, visando minimizar a gravidade do dano.

E DISBIOSE

1 SISTEMA IMUNE, RESPOSTA INFLAMATÓRIA

1. INTRODUÇÃO

O sistema imune é constituído por uma rede complexa de diferentes tecidos e órgãos, células de origem hematopoiética e não hematopoiética, e moléculas, funcionalmente relacionados entre si, visando assegurar e manter a homeostasia do organismo face às agressões em geral (agentes patogénicos de natureza física, química e/ou biológica), quer de origem externa, quer interna. A resposta imune tem sido tradicionalmente dividida em duas vertentes funcionais – a inata ou natural e a adaptativa ou adquirida:

• Imunidade inata: constituída por barreiras anatómicas, celulares, físico-químicas e moleculares; caracteriza-se por ser independente do antigénio e relativamente inespecífica;

• Imunidade adaptativa ou adquirida: caracteriza-se por ser dependente e específica de antigénio, sendo a resposta imune mais lenta do que a inata, demorando desde vários dias a algumas semanas a manifestar-se. É regulada pela interação entre as células apresentadoras de antigénio (APC, do inglês antigen presenting cells) e os linfócitos B e T, e envolver a proliferação celular, rearranjos e ativação genética, e sintese proteica:

– Imunidade adaptativa ativa: desenvolve-se naturalmente em resposta aos processos infeciosos ou artificialmente induzida pelas vacinas profiláticas ou terapêuticas;

– Imunidade adaptativa passiva: caracteriza-se por conferir proteção imediata e ser de curto ou de médio prazo, sendo induzida, na maior parte dos casos, por anticorpos, e pode ocorrer naturalmente, como na transmissão mãe-filho durante a gravidez ou amamentação, ou artificialmente após, por exemplo, a administração parentérica de gamaglobulinas.

A primeira fase de defesa do organismo exerce-se em diversas etapas, das quais se destacam as seguintes:

• Vigilância e tolerância imune ou reconhecimento dos agentes patogénicos (microrganismos, substâncias, moléculas ou estímulos identificados como sendo potencialmente prejudiciais ou perniciosos para a saúde);

• Ativação de vias metabólicas que induzem e regulam, direta ou indiretamente, alterações vasculares, tecidulares e celulares;

• Síntese e libertação de mediadores com atividade local (vias de sinalização autócrina e parácrina) e sistémica (via de sinalização endócrina), no âmbito da ativação, diferenciação, proliferação e recrutamento celulares, visando a destruição e remoção dos agentes patogénicos;

• Reparação e regeneração ou remodelação celular, com o restabelecimento estrutural e funcional dos tecidos e órgãos envolvidos, e desenvolvimento de memória imune.

As disfunções do sistema imune estão na origem de reações de hipersensibilidade, quando a resposta é inapropriadamente hiper-reativa; nas doenças autoimunes, quando é inadequada e dirigida para os antigénios ou determinantes antigénicas do hospedeiro; nas doenças autoinflamatórias, quando há desregulação das interações entre os recetores celulares de reconhecimento de padrões (PRR, do inglês pattern recognizing receptors) e os seus ligandos [padrões moleculares associados a patógenos (PAMP, do inglês pathogen‑associated molecular patterns) e padrões moleculares associados a danos (DAMP, do inglês damage‑associated molecular patterns)], no âmbito do sistema imune inato, ou de imunodeficiência (primária ou adquirida), quando é ineficaz.

As suas concentrações no soro ou no plasma aumentam precocemente (≥4-12 horas) depois do início de lesões tecidulares secundárias a processos inflamatórios de natureza infeciosa e não infeciosa (por exemplo, autoimunes, imunoalérgicos, degenerativos, necróticos e neoplásicos), atingindo o seu valor máximo, que pode chegar a valores 100 vezes superiores ou mais em relação aos seus níveis basais, 24-72 horas depois. Normaliza, habitualmente, entre 12-14 dias depois do processo que lhe deu origem ter terminado.

1.1.1.1. Características moleculares e biológicas

As características mais importantes da PCR, no âmbito clínico e laboratorial, são as que a seguir se descrevem:

• Concentrações basais: são condicionadas por diversos fatores, nomeadamente idade (senescência), sexo, hábitos tabágicos, IMC, pressão arterial, metabolismo lipídico, polimorfismos do gene codificador da PCR (1q23.2), IL-6 e terapêuticas de substituição hormonal;

• Isoformas: as isoformas biologicamente ativas mais importantes são a pPCR e a mPCR. A mPCR resulta da dissociação irreversível da pPCR e é ativada exclusivamente nos locais onde se encontra a inflamação ou o tecido lesado;

• Local de síntese: a pPCR, embora seja produzida principalmente pelos hepatócitos, também pode ser secretada pelas células musculares lisas, macrófagos, células endoteliais, linfócitos e adipócitos;

• Ligandos: a pPCR pode ligar-se a diversos tipos de moléculas e de estruturas celulares, como polissacáridos, proteínas, antigénios nucleares/cromatina, membranas de células lesadas e células apoptóticas;

• Interações: proteínas do sistema do complemento, FcγRI (CD64), FcγRIIa (CD32), FcαRI (CD89), recetor-1 da LDL oxidada semelhante à lectina (LOX-1), interinas (αvβ3 e α4β1), FcγRIII (CD16) e remanescentes lipídicos.

As ações mais importantes da pPCR são as que a seguir se descrevem:

• SC: ativação da via clássica;

• Monócitos/Macrófagos: polarização da diferenciação no sentido do fenótipo pró-inflamatório M1, estimulação da fagocitose e da libertação de citocinas, inibição da quimiotaxia e aumento da recaptura da LDL;

• DC: ativação das DC, que, por sua vez, induzem a ativação das células T;

• Neutrófilos: inibição da sua ativação e da quimiotaxia, e estimulação da fagocitose em função do contexto biológico;

• Células endoteliais: ativação;

• Plaquetas: inibição da ativação, da mobilização e da agregação.

As ações mais importantes da mPCR são as que a seguir se descrevem:

• Monócitos: estimula a produção e a libertação de ROS;

• Neutrófilos: induz a ativação, a aderência e a sua mobilização, e diminui a apoptose;

• Células endoteliais: ativação;

• Aumenta significativamente os níveis séricos de citocinas pró‑inflamatórias (IL-6 e IL-8), assim como do amiloide A, fosfolipase A e de diversos parâmetros da hemostase e da trombofilia, incluindo a protrombina (contribui para criar um estado de hipercoagulabilidade).

As ações mais importantes dos péptidos biologicamente ativos resultantes dos rearranjos da estrutura molecular da PCR, designadamente do péptido AA201-206 (resulta de atividade proteolítica), são a inibição da adesão dos neutrófilos às células endoteliais, assim como a inibição da ativação plaquetar e da captura dos neutrófilos.

As características biológicas da PCR evidenciam que, além de ser um marcador de inflamação é também um importante mediador pró-inflamatório e imunorregulador.

A PCR é um importante efetor da imunidade inata (por exemplo, ativação dos neutrófilos, dos monócitos e indução da produção de IL-6, IL-1β e TNF-α), que tem por principal função reconhecer as substâncias autogénicas potencialmente tóxicas, libertadas pelos tecidos lesados, e diversos polissacáridos de microrganismos (por exemplo, bactérias, fungos e protozoários),

Edições Técnicas, Lda.

Lidel –

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4. ANAFILAXIA E SÍNDROMA DE ATIVAÇÃO DOS MASTÓCITOS

4.1. anafilaxia

A anafilaxia (ver Caixa 5.1) é a forma de manifestação mais grave da alergia. É uma reação de hipersensibilidade sistémica (envolvimento simultâneo de ≥2 órgãos ou sistemas diferentes) grave, de início súbito e potencialmente fatal, independentemente da natureza do seu mecanismo causal (por exemplo, mediados por IgE ou por outros processos imunes não dependentes da IgE).

Caixa 5.1 • Definição de anafilaxia

•  Qualquer doença de início agudo com mani festações clínicas mucocutâneas características (erupção urticariforme ou eritema, rubor e/ou angioedema), associadas ao envolvimento dos sistemas respiratório e/ou cardiovascular e/ou sintomatologia persistente grave do aparelho gastrointestinal; ou

•  Qualquer início agudo de hipotensão arterial ou broncospasmo ou obstrução das vias aéreas superiores onde a anafilaxia é considerada uma causa possível, mesmo se as manifestações clíni cas mucocutâneas características não estiverem presentes

A anafilaxia é um processo imunopatológico no qual ocorre uma ativação celular com desgranulação rápida e maciça dos mastócitos e dos basófilos, com a consequente libertação explosiva de uma grande quantidade de mediadores contidos nos grânulos destas células, designadamente de mediadores pró-inflamatórios e de aminas vasoativas (por exemplo, histamina). Os agentes e fatores desencadeantes mais frequentes são os alergénios alimentares, os fármacos, o veneno dos himenópteros e o látex, que podem ter como cofatores o exercício físico intenso e a exposição ao frio. Em 20-60% dos doentes não se consegue identificar o fator desencadeante (a anafilaxia idiopática é um diagnóstico de exclusão).

As manifestações clínicas relacionadas com a ativação dos mastócitos e dos basófilos podem variar desde uma simples cefaleia ligeira ou urticária até à anafilaxia grave ou fatal. Estas são causadas pelos diversos mediadores vasoativos e pró-

-inflamatórios libertados pelos mastócitos e, em alguns casos, também pelos basófilos (nem todas as reações de hipersensibilidade alérgica envolvem os dois tipos celulares), quando são ativadas por um alergénio através da via de sinalização da IgE ou por outros fatores desencadeantes.

Agentes frequentemente envolvidos na in dução da ativação e da desgranulação dos mas tócitos:

• Mediados pela IgE: clorhexidina e outros antissépticos e desinfetantes, bloqueadores neuromusculares (curarizantes), látex, β-lactâmicos, hipnóticos (por exemplo, tiopental), contrastes imagiológicos iodados e opioides;

• Mediados pela IgG ou diretamente (indução espontânea): coloides (por exemplo, dextrano) e opiáceos (por exemplo, morfina).

O tipo de ativação dos mastócitos pode ser classificado da seguinte forma:

• Local versus sistémico;

• Agudo versus crónico;

• Ligeiro versus grave.

A capacidade de os mastócitos e basófilos libertarem mediadores da anafilaxia no con texto da ativação celular (direta ou indireta) depende, principalmente, dos seguintes fatores:

• Patologia subjacente (primária);

• Número e tipo de recetores de superfície celular ativados;

• Moléculas de sinalização envolvidas;

• Padrão genético e fenotípico do hospedeiro (predisposição).

A gravidade das manifestações clínicas das reações de hipersensibilidade depende de di versos fatores ou variáveis independentes, dos quais se destacam:

• Número de mastócitos e, eventualmente, de basófilos envolvidos;

• Tipo de alergénio desencadeante;

• Quantidade e especificidade das IgE envolvidas;

• Quantidade e tipo de mediadores libertados: – Histamina: vasodilatação; prurido, edema,

6.2. falsos resultados elevados, reatIvos ou posItIvos

As causas mais frequentes de falsos resultados elevados, reativos ou positivos para os anticorpos (classes IgM, IgG ou totais), antigénios ou ácidos nucleicos específicos estão, na maior parte dos casos, relacionadas com um ou mais dos fatores e condições que se descrevem nos parágrafos se guintes. No caso particular dos anticorpos, as va cinações ou imunizações recentes, e as hiperimu noglobulinemias (IgM, IgG e/ou IgA) são causas frequentes de interferências positivas..

6.2.1. Prevalência da doença infeciosa

A taxa de falsos resultados reativos ou posi tivos de qualquer ensaio de serologia infeciosa é função da sua especificidade e da prevalência da doença na população a que os pacientes perten cem. Nas situações em que a prevalência de uma determinada patologia infeciosa é baixa, uma parte muito significativa dos resultados reativos são FP, mesmo que se esteja a usar um ensaio com elevada especificidade analítica.

O VPP (frequência com que um resultado reativo representa um verdadeiro positivo) de um ensaio é diretamente proporcional à preva lência da doença. A título de exemplo, é de re ferir que numa população que tenha uma pre valência de infeção pelo VHC <10%, o número de falsos resultados reativos ou positivos obtidos com os ensaios serológicos de rastreio varia en tre 15‑60%. Para ilustrar melhor a importância deste problema na interpretação dos resultados da serologia infeciosa é representado, na Tabela 16.1, um exemplo das relações existentes entre

a especificidade dos ensaios, a prevalência de uma determinada patologia infeciosa e o VPP do imunoensaio, assumindo que, por exemplo, a sua sensibilidade é de 90% [(VP x 100 ÷ (VP + FN)] e a especificidade é de 98% [(VN x 100 ÷ (VN + FP)] para essa patologia.

6.2.2. Reações cruzadas

São o tipo de interferência mais frequente e afetam todos os ensaios imunoquímicos ou imu noensaios, em particular os competitivos, estan do diretamente relacionado com a sua especifici dade analítica. Os interferentes competem com os mensurandos para os mesmos locais de liga ção dos antigénios ou dos anticorpos presentes nos reagentes dos ensaios, quer sejam de captura, conjugados, de deteção ou indicadores, e estão associados mais frequentemente a falsos resulta dos elevados, reativos ou positivos.

Estão relacionadas com a capacidade de os anticorpos poderem reagir com proteínas dife rentes; este tipo de reação ocorre porque o inter ferente (antigénio) envolvido neste mecanismo partilha o mesmo epitopo ou tem uma homo logia estrutural antigénica elevada em relação à da proteína (antigénio) responsável pela resposta imune do hospedeiro (produção de anticorpos). No âmbito estrito da imunosserologia in feciosa devem‑se, na maior parte dos casos, à presença de anticorpos endógenos, proteína M ou infeções intercorrentes por outros microrga nismos diferentes do que deu origem à infeção primária, objeto de estudo, mas que apresentam uma homologia elevada como acontece frequen temente entre os vírus da família Orthoherpesviridae (exemplos: VHS‑1 e VHS‑2, Varicellovirus,

Tabela 16.1 • Alterações verificadas no VPP de um imunoensaio específico em função da prevalência da doença infeciosa.

Prevalência numa população de 10 000 pessoas

MEDICINA LABORATORIAL Da Prescrição à Interpretação Clínica

Vol. 3

Esta coleção de 5 volumes apresenta as fases da prescrição médica, do processo laboratorial (pré-analítico, analítico e pós-analítico) e da interpretação dos resultados analíticos. É explicada e evidenciada a importância da relação entre a clínica e o laboratório, cujo diálogo entre pares deve ser permanente, e clarificado o significado de muitos sinais do âmbito da Patologia Clínica, que são representados e se traduzem nas diferentes formas como os resultados dos parâmetros laboratoriais prescritos podem ser reportados e devem ser interpretados.

Destina-se a internos e especialistas em Patologia Clínica; estudantes de Medicina; médicos de diversas especialidades que, na prática clínica diária, prescrevem análises clínicas e interpretam os seus resultados; estudantes e profissionais das áreas de Ciências Farmacêuticas, Ciências Biomédicas, Biologia e Bioquímica em formação e especialistas em Análises Clínicas; interessa também a técnicos de análises clínicas e saúde pública.

Estados Inflamatórios

Neste volume, , é feita uma abordagem geral aos mecanismos fisiológicos e fisiopatológicos da imunidade inata e são caracterizados os processos inflamatórios sistémicos que fazem parte da etiopatogenia das doenças crónicas mais importantes que lhes estão associadas, assim como o papel desempenhado pela disbiose, pelos biofilmes e pelos hábitos alimentares e estilo de vida na sua instalação, perpetuação e agravamento. Também são abordados os processos de validação e interpretação dos resultados laboratoriais dos parâmetros com maior valor semiológico no estudo dos doentes com processos inflamatórios e dos marcadores biológicos diretamente relacionados com a doença alérgica e com as doenças autoimunes.

Adicionalmente, é feita a caracterização do líquido cefalorraquidiano e são descritos os parâmetros com maior valor semiológico, as doenças neurodegenerativas e as parasitoses mais importantes que envolvem o sistema nervoso central. Por fim, são caracterizados os derrames das serosas e focados os aspetos mais importantes relacionados com o valor semiológico e a interpretação dos resultados dos ensaios imunoquímicos prescritos com maior frequência na prática clínica diária, para o estudo das doenças infeciosas.

ISBN 978-989-752-872-9 www.lidel.pt

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