Casos & Causos

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Copyright © 2014 by Benedito de Godoy Moroni

Edição do Autor Presidente Epitácio, SP


Ficha Catalográfica

Editoração Eletrônica

Paulo de Souza Carneiro

Capa Kase Propaganda Revisão Lígia Ferreira Araujo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Bibliotecária Responsável CRB: 8/8583)

M868c

MORONI, Benedito de Godoy Casos e Causos / Benedito de Godoy Moroni. – Presidente Epitácio: 2014. 152 pp ilustrado ISBN 978-85-903061-9-1 1. Romance. 2. Romance brasileiro. 3. Ficção. II. Título. CDD 869.3 Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção e contos brasileiros 2. Literatura brasileira

B869.3 B869

Registrado na FBN – Fundação Biblioteca Nacional sob nº registro 635.490, Livro 1.221, folha 155.


Dedicat贸ria Aos meus netos: J煤lia, Helena, Arthur, Henrique e Rodrigo



Apresentação Despretensiosamente, há algum tempo, comecei a anotar fatos vividos pela Shenka e, também, por mim. Assim, depois de certo momento, eu contava com algumas narrativas que iam desde nossa infância – ela em Epitácio e eu em Tatuí –, passando pela nossa juventude – ela em Presidente Prudente e Botucatu e eu em Tatuí e São Paulo -, até nossos dias atuais em Presidente Epitácio. É bom esclarecer, antes de tudo, de que não se trata de biografia ou autobiografia, mas sim mostras de: lembranças pessoais nossas; coisas que fizemos; como somos e situações que passamos, as quais nos marcaram indelével e inesquecivelmente, distribuídas em dois blocos: Casos da Shenka e Casos do Godoy. Há, ainda, um terceiro bloco: Causos da vida. Nele estão criações literárias, as quais podem até ser associadas a fatos reais, mas nesta obra, na verdade, são montagens ficcionais elaboradas pelo autor. Faço votos de que a leitura da obra possa trazer, ao menos, um pouco de entretenimento e relax, tão necessários em nossos dias. Boa leitura Benedito de Godoy Moroni


Sempre que avistar este c贸digo no livro 茅 s贸 fotografar com o leitor de QR Code do seu Smartphone ou Tablet para ver seu conte煤do.


Sumário Casos da Shenka O nome Dificuldades Ruas de Epitácio Brigas Caiuazinho Lanche Colégio interno Castigo Peraltice

13 15 17 19 21 23 25 27 29

Manga tentadora Passeio Escola Rural Diretora Piscina Ladrão Chega de ficar sozinha Inexplicável Ser feliz Maria Cecília Choro

31 33 35 37 39 41 43 47 51 55 57


Casos do Godoy Susto Nero Coroinha Palmeiras x Corinthians Brigas Atleta Musicalidade Mentira A pesca do Pirarucu Viagens espaciais Inovações Cicatriz Teatro Paixão Amor Bicos Rádio Tiro de Guerra Comandando Emprego

61 63 65 67 69 71 73 75 77 79 81 83 85 87 89 91 93 95 97 99

Mal-estar Vestibular Primeiro carro Chácara Chicote na mão Escrever Desculpa Chuvisco Estação de trem Cadeado do Amor

101 103 107 109 111 113 115 117 119 121

Causos da Vida Zezinho Testemunho Tião Hábitos curiosos Namoro a três Cemitério Festa no presídio Lagoa

125 129 133 137 139 141 145 147


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da

Shenka

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O nome Leia ouvindo Paul Mauriat – Czardas

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henka tem história antes mesmo de ter nascido. A começar pela origem do nome dela. Sua mãe, dona Maria, contava que tudo começou durante a Segunda Guerra. - A Alemanha e os demais países do Eixo enfrentavam os países aliados, entre outros os Estados Unidos, Rússia e Brasil. Naquela ocasião era comum haver simpatizantes do socialismo russo. Entre eles havia o advogado Jovelino, o qual tinha especial admiração pelo general russo Semyon Timoshenko Konstantinovich, general que participou de batalhas na Segunda Guerra. Jovelino, quando soube que sua cunhada, dona Maria, estava grávida do segundo filho, não teve dúvida e sugeriu: “- Maria, você vai ter um menino e ele deverá se chamar Timoshenko. É um nome forte de pessoa vitoriosa!” Naquele tempo não havia como saber, antes do

nascimento, o sexo da criança. Então, a todo instante era Timoshenko pra cá, Timoshenko pra lá. Daí, para facilitar, Jovelino toda vez que encontrava a cunhada e o cunhado Valdir, repetia: - Mas como você sabe que será menino desta vez? - Eu sei!!!! - afirmava Jovelino. Dona Maria entra em trabalho de parto. É um parto difícil. E nasce ... outra menina!!! - Maria! Estou indo ao cartório para registrar o nascimento da Shenka. – comunica Valdir, todo feliz. Quando voltou informou: - Pronto, Maria! Já registrei a Shenka! O tempo foi passando e Shenka crescendo. Antes mesmo de ir à escola já sabia escrever e ler seu nome. Isto sem frequentar nenhuma escolinha para préescolar, o que não havia naquela época em Epitácio e nem em muitas outras cidades. Era Shenka em folhas de papel de embrulho. Era Shenka em folhas de caderno. Era Shenka em cadernetas de marcar as contas dos clientes do açougue. Em todo lugar que dava ela treinava escrevendo seu nome. O tempo passou e chega o dia em que Shenka, com sete anos, vai para seu primeiro dia de aula na escola. Toda uniformizada e com material novinho em folha em sua bolsa escolar, Shenka foi à escola. Para organizar os alunos com destino às respectivas classes, são chamados pelo nome para entrarem em fila.

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Após a chamada conduzem os alunos para as respectivas classes. E nada de chamarem “Shenka”. O pátio vai se esvaziando, esvaziando, até que fica ali somente Shenka com sua bolsa, sozinha no pátio. Ela não sabia o que estava acontecendo e nem o que fazer. Estava, verdadeiramente, “perdida”, logo em seu primeiro dia de aula. Nisso, a servente vendo somente a Shenka ainda no pátio, pergunta a ela por que estava ali fora e não na classe dela. - Acontece que ninguém chamou meu nome – respondeu Shenka. Ninguém me chamou para dizer para onde eu devo ir. A servente pediu para que ela ficasse calma e começou a procurar o nome da Shenka nas listas de alunos. Procura que procura e nada. Nessas alturas Shenka já estava com os olhos marejados de lágrimas. A servente achou estranho não encontrar o nome de Shenka entre os novos alunos e pergunta se era mesmo para ela estar ali na escola. - É sim para eu vir à escola. Meu pai me trouxe até o portão e me viu entrar. – confirma Shenka já quase chorando: A servente, então, pega na mãozinha de Shenka e vai com ela até a diretoria para esclarecer o caso. Lá chegando o diretor pega as listas e após examiná-las, fala à servente que Shenka estava, realmente, matriculada e indicou a classe que ela deveria frequentar. Shenka é levada até sua classe. Lá chegando a professora acolhe-a carinhosamente e mostra-lhe a carteira que deverá ocupar. - Você precisa saber que seu nome é Eugênia Luiza e não Shenka! – esclarece a professora. Shenka não teve dúvida. Na primeira oportunidade que surgiu, no momento em que a

professora passou a escrever na lousa, Shenka pegou sua bolsa escolar e fugiu correndo e chorando para sua casa. Lá chegando, debulhando-se em pranto, falou a sua mãe: - Mamãe! Não volto mais naquela escola! Imagine a senhora que, no primeiro dia, já querem mudar meu nome! Disseram que meu nome é Eugenia Luiza e não Shenka. Lá, eu não volto mais! Foi um trabalhão para dona Maria explicar que Shenka era o nome carinhoso pelo qual ela era chamada, mas que, realmente, seu nome era Eugênia Luiza. A explicação foi dada, mas nunca plenamente aceita. Tanto que desde a escola primária, até a faculdade, bem como pela vida toda, ela continuou a ser identificada e chamada de “Shenka”. Em todas as formaturas dela, em seus contatos diários, nos bancos e no serviço, sempre era Shenka. Até em seu casamento o padre e o juiz de casamento chamaram-na por Shenka durante as cerimônias. Chegou ao ponto de, muitas vezes, telefonarem dizendo que queriam falar com Eugênia Luiza e ela, de imediato, responder que ali não havia ninguém com esse nome. Ela mesma sempre dizia: - Eu me sinto Shenka e quando falam Eugênia Luiza, mesmo sendo um nome bonito e de princesa, parece que se referem a outra pessoa. Esta situação durou muitos anos, até ela resolver acertar, legalmente, incluindo Shenka a seu nome. Após o acerto feito judicialmente seu nome se estendeu, contendo agora sete palavras: Shenka Eugênia Luiza Coser Loyolla de Godoy Moroni. Como se vê, mais uma vez, a persistência, determinação e tenacidade foram, finalmente, vitoriosas.


Dificuldades Leia ouvindo Adriana Calcanhoto – Acalanto

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entre as várias características da Shenka tem-se a de sair-se bem ante dificuldades. A primeira que enfrentou foi ao

nascer. Na gestação foi tudo bem. Quando dona Maria, sua mãe, sentiu que chegara o momento do parto, não dando para ir até a cidade vizinha onde morava a irmã, mandou chamar a parteira, dona Maria dos Anjos. Iniciaram-se os preparativos. Na hora do trabalho de parto a parteira constatou estar a criança em posição fetal que não a deixaria nascer. Após tentar corrigir a posição e nada conseguindo, vendo os perigos da situação, pediu ao marido de dona Maria que chamasse o médico urgente. Naquela ocasião estava estabelecendo-se em Epitácio um médico novo, doutor Alberto.

Doutor Alberto, chegando, viu a gravidade da situação. O bebê estava “sentado” e não tinha como nascer assim. Nisso dona Maria já havia perdido muito sangue no trabalho de parto. Após um trabalho estafante, doutor Alberto consegue fazer o parto. Nasceu uma menina. Nasceu Shenka. Mas, um problema grave ainda perdurava. A perda de sangue fora muito além do permitido. Doutor Alberto prepara um aparelho para realizar transfusão de sangue direto do doador para dona Maria. Enquanto isto ela chama a irmã, que estava visitando-a e fala: - Ativica, estou preocupada com a situação. Vou pedir uma coisa a você. - Pode pedir, minha irmã. – falou Ativica - Se eu morrer cuide do nenê como se fosse sua filha – pediu dona Maria. - Mas o que é isso Maria? Você vai ficar bem! Doutor Alberto está fazendo tudo que é preciso. – respondeu Ativica tentando acalmar a irmã. - Mas só vou ficar sossegada se você me prometer isso – insistiu dona Maria.

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- Não vai acontecer nada, mas fique tranquila que, em último caso, cuido da nenê. – completou Ativica. Naquela ocasião não tinha hospital e nem havia doadores disponíveis em Epitácio. O tempo se escoava e a situação já abeirava a catástrofe. Como única solução, doutor Alberto chamou o irmão de dona Maria. - Ernesto, eu não tenho como fazer, neste momento, um exame para verificar a compatibilidade sanguínea entre você e sua irmã, nem qual é o tipo sanguíneo de cada um. – disse doutor Alberto. - Dona Maria, se não fizermos nada, morrerá, pois teve uma perda muito grande de sangue. – continuou doutor Alberto. - Só nos resta tentar a sorte. Fazer uma transfusão de sangue direto de você para ela, mesmo não sabendo se dará certo. – concluiu doutor Alberto. - Se o Valdir concordar, não há o que pensar.

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Vamos tentar isso para salvar a vida de minha irmã – ponderou Ernesto. - Já que não há outra possibilidade, seja o que Deus quiser. Tente, doutor, por favor, salvar a vida da minha mulher! – pediu Valdir. O passo seguinte foi deitar Ernesto ao lado de dona Maria. Doutor Alberto colocou o aparelho em Ernesto e em dona Maria. Primeiro ele fazia o aparelho encher-se com o sangue de Ernesto. Em seguida fechava a parte que saía do braço de Ernesto e abria a entrada no braço de dona Maria para receber o sangue estocado no aparelho, fechando após a passagem do sangue estocado. Em seguida repetia a operação. Assim aconteceu até que completou a transfusão de sangue de Ernesto para dona Maria. Foi um sucesso. Hoje esse aparelho está com a prefeitura para compor o futuro acervo de um museu. Como se vê, as histórias que envolvem Shenka são sempre repletas de pertinácia, coragem e vitórias.


Ruas de Epitácio

Leia ouvindo Dann Campos Rua de Terra

A

té a primeira metade dos anos 1950 Presidente Epitácio não tinha asfalto ou qualquer outro tipo de calçamento. Somente algumas residências tinham uma calçadinha na frente. Na época seca era poeirão e na chuvosa era barreiro. Shenka, quando menininha, juntamente com outras crianças, tinha como um de seus divertimentos brincar na enxurrada barrenta, que corria pela rua São Luís quando chovia. - Ficávamos enfiados nos buracos, que se formavam na rua e as águas que corriam, fervilhando a nossa volta, formavam espumas para nosso divertimento e deleite. Depois entrávamos em casa, tomávamos banho e nada demais acontecia com nossa saúde. A poluição era nessa época, praticamente, inexistente. – conta Shenka. Na segunda metade dos anos 1950, Shenka

então morando na rua Porto Alegre, quadra um, esquina com avenida Presidente Vargas. A cidade continuava sem nenhuma de suas ruas calçadas. Nas férias do colégio, em dia de chuva que formava lama na avenida Presidente Vargas, quando à noite Shenka e suas irmãs iam ao cinema, utilizavam-se do seguinte expediente para atravessar a rua: um dos empregados do açougue dos pais delas colocava, na avenida Presidente Vargas, pranchas, que atravessavam da calçada de sua casa até a calçada da praça da matriz, para elas fazerem essa travessia sem sujar os sapatos; no outro lado da avenida iam até o meio do quarteirão para esperar que o empregado colocasse, também, as pranchas da calçada da igreja até a calçada do cinema, isto, agora na rua Porto Alegre. Em seguida atravessavam a rua para entrarem no cinema. Tudo para não sujarem os sapatos. Só depois na segunda metade dos anos 1960 é que Epitácio começou a ter ruas calçadas. Anos depois, quando se casou no final dos anos 1960, Shenka passou a morar na rua Cuiabá, quadra 12. Era uma das últimas casas no lado par dessa rua.

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Quando chovia, a enxurrada era tanta que formava verdadeiras valetas na rua deixando suspensos os canos de água da distribuidora. Antes que a molecada quebrasse esses encanamentos, os quais eram usados então como de barras para a eles se balançarem e fazerem acrobacias neles, a prefeitura tinha que providenciar para as valetas serem cobertas com terra. Esta situação perdurou até meado da década de 1980, quando a rua Cuiabá recebeu calçamento feito com blocos de concreto. Agora já podia sentir-se mais confortável. Mas, como a casa da Shenka ficava na esquina da rua Cuiabá com a rua Juca Pita e a entrada de carro era feita pelo portão da rua Juca Pita a qual não tinha calçamento, quando chovia, transformava-

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se em transtorno. O leito da rua virava um quase riacho caudaloso. A erosão provocada pelas águas formava valetas homéricas, as quais muitas vezes quase impediam do carro entrar ou sair da casa. E o transtorno maior, quando estava chovendo, era abrir o portão para entrar em casa. Quando se descia do carro para abrir o portão, o barro fazia com que os sapatos afundassem nele. A situação só foi resolvida no início dos anos 1990 com o asfaltamento desse trecho da rua Juca Pita. Como se constata, neste início da década de 2010, contando a cidade com grande parte de suas ruas calçadas, as pessoas mais novas não têm ideia, nem podem imaginar o transtorno que é a falta de calçamento em uma cidade. Só quem vivenciou tais transformações.


Brigas FOTO 2

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henka e seu primo frequentavam a mesma escola. Afinal, ele era mais velho que ela apenas em um dia. Como seu primo sempre se metia em brigas. Por qualquer motivo lá estava ele brigando. E, geralmente, apanhando, Shenka sentia que isso não podia acontecer. Ninguém podia bater em seu primo. Isso era inimaginável. Qual a solução? Simples! Shenka ia com um calção vermelho fofo sob a saia, que era presa por colchetes de pressão. Esse calção fazia parte, praticamente, do uniforme diário da Shenka. Por quê? Tão logo Shenka sabia que seu primo estava brigando, corria até o local. Se ele estava batendo, apenas assistia. Se ele estava apanhando, o que era comum, ela entregava sua bolsa para uma colega, de um só lance desprendia os colchetes de pressão da saia, dava-a para uma colega e partia sobre o adversário do primo. Não importava o tamanho, nem a força do adversário para intimidá-la. Shenka entrava para “salvar” o primo e isto já justificava a sua briga. Não era briga de arranhar, como seria de se esperar de uma menina. Eram socos, socos certeiros no queixo, nos olhos e no nariz. Enquanto a turma do “deixa pra lá” não agia, Shenka “lavava a honra da família” batendo no

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outro contendor. Por vezes havia a intervenção do servente. Neste caso, invariavelmente, Shenka era suspensa, pois era considerada como quem não levava desaforo para casa e nem deixa membro da família apanhar na rua. Em casa dona Maria, sua mãe, aconselhava: - Minha filha! Olha suas irmãs. Comportadas, não arrumam confusões. E, muito menos, saem brigando por aí. Você já é uma mocinha e esses não são modos finos. Comporte-se com delicadeza. - Mas mamãe – argumentava Shenka – eu não procuro briga! Eu não podia deixar que batessem em meu primo. Afinal, como ele é meu primo, se posso, tenho que defendê-lo! - Claro, minha filha, que os parentes têm que defender a família, mas não é com briga e violência que você resolve as coisas. Procure controlar mais esse seu gênio. - Mamãe, eu não brigo apenas por brigar. É que preciso defender meu primo, senão ele apanha. - Lembre-se: se ele procura confusão, ele é quem deve enfrentar as consequências. - Imagine que você entre em uma briga provocada por ele e durante ela quebrem seu dente. Isto não seria pior? Uma mocinha sem dentes é bem triste. - Tá bom, mamãe! Não vou brigar mais! Não precisa contar que Shenka participou, ainda, de muitas brigas para defender o primo.


Caiuazinho

Leia ouvindo Ellen Oléria Córrego rico

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dias quentes, à tarde, Shenka pegava sua bicicleta e ia para a casa de dona Elisa para brincar com suas filhas, que eram coleguinhas de escola dela. Como muitas mulheres, dona Elisa lavava suas roupas no córrego Caiuazinho, que ficava não muito distante de sua casa. As crianças acompanhavam a mãe e Shenka ia junto. Lá as águas rasas e frescas do córrego eram irresistíveis. Sob o olhar atento de dona Elisa e de outras mulheres, que estavam lavando roupas na margem, as crianças entravam um pouco cautelosas, para não molharem a roupa. Com o passar dos minutos a preocupação deixava de existir e, quando se

percebia, todas estavam dentro da água com roupa e tudo. Lavadas as roupas, dona Elisa chamava as crianças e elas, molhadas e pingando água, para divertimento das mesmas, iam embora brincando e correndo. Shenka corria até sua casa, que ficava na rua São Luis quadra 1, tomava banho e trocava-se antes da mãe chegar do açougue. Entretanto, certa feita, ocorreu o inesperado. Estava Shenka brincando no Caiuazinho, quando seu pai, voltando do Campinal, viu-a “nadando” no córrego. Parou o jipe. Desceu e foi até onde estava Shenka. Esta, entretida com as brincadeiras, não o viu. - Sheeeenkaaa!!!!! Saia imediatamente daí!!! – esbravejou o pai. Não foi preciso um segundo grito, nem uma segunda ordem. Shenka, sem pestanejar e prevendo a bronca que teria, saiu na hora do Caiuazinho, 21


toda molhada. O pai pegou-a pelo braço e levou-a até a estrada. Deixou o jipe estacionado e foi com Shenka para casa: ela na frente pingando água e levando pontapés no traseiro durante o percurso todo até a casa e ele repetindo: - Nunca mais, nunca mais, quero ver você no Caiuazinho! - Menina, enquanto uma de suas irmãs está na escola e a outra em casa, você ao invés de agir como uma mocinha, sai por aí se arriscando a morrer afogada. - Papai, eu só saí para ver minhas amigas depois de fazer as lições de casa e estudar. - Explica, mas não justifica! – respondeu o pai – Não quero mais ver você no Caiuazinho! Ponto final nesta nossa conversa!

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- Tudo bem, papai. Não precisa ficar preocupado. Não volto mais a brincar no Caiuazinho. Bem, as promessas e a memória de criança são curiosas. Com Shenka não seria diferente. Poucos dias depois, lá estava ela brincando escondido com as filhas de dona Elisa nas águas do córrego Caiuazinho. - Afinal, dona Elisa e outras mulheres estão lavando roupas na margem, mas estão cuidando de nós. – raciocinava Shenka - Além do mais, o córrego é seguro e suas águas fresquinhas são deliciosas para brincar. – complementava o raciocínio dela. E Shenka deliciava-se nas águas mansas e calmas do Caiuazinho.


Lanche Leia ouvindo Xuxa Rexeita da Xuxa

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aria Amélia, irmã de Shenka, estudava à tarde. O lanche que ela levava para a escola, preparado pela avó paterna, dona Amélia, eram sanduíches de pão feito em casa e recheado de carne, pega no açougue de dona Maria, mãe das três. O lanche da Shenka ficava sob os cuidados das empregadas e era pão com manteiga e uma fruta, maçã ou pera, que dona Maria recebia, semanalmente, através de encomenda que fazia ao camareiro do trem para trazer de São Paulo uma caixa de maçãs e outra de peras. Naquela época estas frutas não eram vendidas normalmente na cidade e eram caras. Na escola, os alunos, independentemente do lanche que levassem, tinham na hora do recreio

uma sopa para tomarem. Não havia muita variedade. Geralmente era sopa de: macarrão com batata e carne, que por sinal dona Maria dava para enriquecer a merenda escolar; fubá com couve e macarrão com caldo de feijão. Eram muito bem preparadas e a criançada adorava. Depois da sopa, os alunos complementavam comendo o lanche que levavam. Muitas crianças levavam como lanche pão com ovo. Para Shenka aquele ovo frito, com as bordas queimadas, era uma tentação irresistível. O que fazia Shenka? Não titubeava! Propunha a troca do sanduiche de pão com ovo pela sua fruta. A troca era imediata, com as duas partes felizes: a criança por comer uma fruta, que normalmente não lhe era de fácil acesso e Shenka por comer um lanche que lhe juntava água na boca. À tarde, quando estava rodando com sua bicicleta, Shenka ficava atenta ao apito da serraria Sobrasil anunciando a hora do café da tarde de seus funcionários. Como um corisco ela pedalava sua bicicleta 23


até a casa da madrinha Armela, que ficava no pátio da serraria Sobrasil na quadra 9 da rua Belo Horizonte, para tomar o café preparado pela madrinha. Lá chegando encontrava o seu Moisés, marido da madrinha Armela e os filhos deles. A primeira coisa era todos lavarem as mãos e seu Moisés lavar, também, o rosto e os braços.

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Sentavam em volta da mesa e era servido o lanche: café, leite de cabra tirado na hora, pão caseiro e os deliciosos bolinhos de chuva, que tão bem fazia madrinha Armela. Esta era uma atividade a que Shenka nunca se descuidava. Tinha cadeira cativa na casa da madrinha na hora do lanche da tarde.


Colégio interno FOTO 3

Leia ouvindo Nat King Cole Too Young

C

omo em Presidente Epitácio não havia o curso ginasial tão logo Shenka concluiu o primário, seu pai colocou-a, junto com sua irmã mais velha, no Colégio Cristo Rei de Presidente Prudente. No ano seguinte foi a vez da irmã mais nova ser encaminhada ao mesmo colégio. Para a irmã mais velha e para a mais nova,

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o pai delas pagava um extra a fim de que uma salada de tomates e um bife fossem servidos a elas nas refeições. Shenka dispensava isso. Não só dispensava como quando chegava o prato normal para as irmãs e elas recebiam porção maior de outro tipo de carne, Shenka trocava com elas ou mesmo pegava a carne, que elas não iriam querer devido a já receberem os bifes extras e as saladas de tomates. Com Shenka não tinha problema. Certa ocasião, durante a hora que as internas tinham para estudar, Shenka levantou a tampa da carteira e começou a cortar as unhas com sua tesourinha. Tudo ia muito bem até a madre notar que Shenka não descia a tampa. Chamou-a e perguntou: - Shenka! O que você está fazendo? Faz o favor de abaixar essa tampa agora mesmo! Shenka, devido a tampa da carteira estar levantada, para atender à madre, inclinou a cabeça para fora da carteira a fim de poder falar que já iria fazer isso, inclusive mostrando que uma das mãos estava ocupada naquele momento com sua tesourinha, mas a madre entendeu tudo errado. Pensou que Shenka estava ameaçando-a. Isso rendeu muita história e muitas explicações por parte da Shenka para dizer que não era nada daquilo. E não ficou por aí. Quando o pai de Shenka foi visitar as filhas, a madre superiora chamou-o. - Seu Valdir, a Shenka não pode mais continuar no colégio – começou a falar a madre superiora e continuou - Ela está sempre fazendo alguma 26

coisa que foge à rotina do colégio. Assim, o senhor precisa levá-la embora. - Tudo bem irmã. Pode preparar as coisas da Shenka e das duas irmãs dela, que vou levá-las embora – respondeu o pai. - O senhor não me entendeu: é somente a Shenka. As outras duas filhas do senhor não causam problema algum. É só a Shenka – tentava explicar a madre. - Para mim as três são minhas filhas e tenho tratamento igual para todas. Como uma vai embora, as duas outras também irão. As minhas três filhas são ótimas. A senhora, por favor, veja quanto tenho que pagar e está tudo bem – arrematou Valdir. - Mas queremos continuar com as outras duas. Como já disse, o problema é apenas com a Shenka – ainda tentou argumentar a superiora. - Entendi, mas não vou levar apenas a Shenka, como disse, vou levar as minhas três filhas – Valdir dando por encerrada a conversa. A superiora, vendo que tinha resultado em um impasse e a instituição iria perder não a mensalidade de uma, mas de três, propôs uma situação conciliadora. - Seu Valdir, então vamos fazer uma coisa: desta vez não precisa levar embora a Shenka, nem as outras duas filhas suas. Vamos dar uma nova oportunidade para a Shenka. Está bem assim para o senhor? – perguntou a superiora. - Ótimo, fico feliz com isso e muito obrigado – disse o pai da Shenka encerrando a celeuma.


Castigo FOTO 4

Assista ao vídeo King Kong

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esse colégio tem, também, passagens ocorridas com a Shenka, no mínimo pitorescas. De segunda-feira a sábado era norma no colégio as meninas tomarem seus banhos em

local com cerca de 30 chuveiros numerados, cada uma em um mesmo durante o ano. Cabe lembrar, ainda, de que nos primeiros meses de Shenka no colégio, as internas tinham que se banhar, vestidas com suas camisolas de banho, sem se despirem. Não podiam ficar tocando diretamente seus corpos. Só vários meses depois elas passaram a tomar o banho sem camisola. Nos domingos, entretanto, não havia banho. Afinal não tinham feito exercício algum ou qualquer outra atividade que as obrigasse a tomar

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banho. Nesse dia, o local dos chuveiros tinha seu portão vai-e-vem fechado. Shenka, entretanto, não ficava sem tomar seu banho diário. Para isso escapava da vigilância da freira e, após pular o portão que fechava os chuveiros, ia até o qual usava diariamente e tomava seu banho; enxugavase e retornava ao dormitório. Tudo sem a freira saber, pois se percebesse, lá viria castigo. Por sorte, ela nunca foi pega nessa transgressão das regras do colégio. Todavia, certa feita no dormitório, quando já deviam estar dormindo, Shenka chegou sua cabeça até perto da cama da colega para conversar. O assunto era sobre o filme King Kong, que Shenka assistira em suas férias e a colega não havia assistido. E a história era contada em detalhes por Shenka, que se esmerava descrevendo com riqueza de detalhes cada passagem do filme. A expedição até o local selvagem. A descoberta do gigante King Kong. A ferocidade dele. O medo que ele causava. E a descrição da pobre e indefesa mocinha do filme. Foi aí que a descrição se tornou tão convincente e vívida, levando a colega, ao ouvir que King Kong agarra a mocinha com sua mão gigantesca e a elevava nos ares, a dar um grito de pavor e medo.

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Imediatamente todas as internas daquele dormitório acordam e, com elas, a madre responsável pelo dormitório. Nesse caso não foi difícil saber a causadora do transtorno. Resultado: foi determinado que Shenka vestisse a roupa de gala e descesse para rezar na capela. A roupa incluía meias e blusa de seda e boina. Mas a história não terminou. As horas vão passando e a freira esqueceu-se dela na capela. Shenka foi até o corredor ao lado, abriu seu armário. Pegou uma toalha e depois pegou uma toalha de cada armário de suas irmãs. Voltou para a capela e em um dos bancos estendeu uma para servir de lençol; dobrou outra para servir de travesseiro e estendeu a terceira para cobrirse. Deitou-se e dormiu. Na manhã seguinte, quando o padre chegou para rezar a missa teve a maior surpresa: uma interna, com roupa de gala, dormindo na capela. Acordou-a e ela contou que havia sido colocada lá como castigo por conversar quando já deveriam estar dormindo. Nesse dia a bronca do padre sobrou até para a freira, que se esqueceu da Shenka na capela.


Peraltice

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o Colégio Interno Santa Marcelina, de Botucatu a hora do banho era uma festa. Esse colégio era dotado, também, de um local com muitos chuveiros, todos numerados. Das 14h30 até às 17 horas, as turmas de meninas tinham seu horário determinado para entrar e tomar seu banho. Cada grupo de moças iniciava, praticamente ao mesmo tempo, os banhos. E durante o banho era comum começarem a falar em voz alta para desespero das freiras: - Lavei os pés! – dizia uma. - Lavei as pernas! – dizia outra. - Lavei os joelhos! – dizia uma terceira. - Estou lavando as coxas! – falava nova moça. - PULEI! – falava outra interna. - Lavei a barriga! - Apontava outra. - PULEI! – saía a voz de outro chuveiro. - Estou lavando o pescoço! - Outra voz, agora gritando. - Lavei o rosto! – indicava alguém; - Estou descendo e lavei melhor o pescoço! –

escutava-se de alguém. Daí ouviam-se os gritos de várias moças: - LAAAAVEEEEI! Em seguida continuavam: - Estou lavando a barriga! – acrescentava outra. E finalmente, quase que em coro, ouviam-se as moças gritando: - LAAAAAAAVEEEEEI! A freira ficava possessa, mas não tinha como identificar e castigar quem promovia tal algazarra. A hora do banho, também, era um verdadeiro tormento para a freira. Muitas vezes, quando não era o sobe e desce sendo descrito durante o banho, eram as reclamações quanto ao chuveiro. - Irmã, o chuveiro está esquentando demais, já vai queimar! Ou então: - Irmã, a água do meu chuveiro está muito quente! Assim vou me queimar! Isto era uma diversão, até o dia em que um dos chuveiros, realmente, estourou e fez aquele barulho assustando todas as moças que estavam

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no banho. Era moça correndo enrolada na toalha e mesmo algumas correndo peladas e gritando apavoradas. Uma balbúrdia geral no local do banho. Até saberem que não houve maiores danos que um chuveiro estragado, a confusão foi grande. Outra coisa que ocorria no colégio era as internas terem que, mensalmente, levar seus colchões para o pátio a fim de tomar sol. As internas do andar inferior tinham um itinerário pequeno, mas as dos outros andares tinham que descer os lances de escadas até chegar ao térreo. Shenka e algumas amigas procuravam tornar essa atividade maçante em algo divertido. Como? Elas levavam o colchão até a escada, colocavam a ponta do mesmo em dois ou três degraus. Levantavam a ponta do colchão. Deitavam-se nele e faziam-no escorregar escada abaixo.

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Isso era feito lance por lance, colchão por colchão. Tudo fora da disciplina rigorosa do colégio. Certa feita, quando Shenka colocou seu colchão para descer na escada, levantou a ponta dele, deitou-se sobre o mesmo e escorregou escada abaixo e quando chegou ao final viu em sua frente um par de sapatos. Fechou os olhos e pensou consigo mesmo – pronto, fui pega. Abriu lentamente os olhos. Voltou a olhar os sapatos. Em seguida a barra do hábito da freira. Subiu o olhar e viu o terço, as mãos da freira cruzadas sob o hábito e, finalmente, o rosto da freira encarregada do dormitório dela. Não deu outra. Shenka e suas colegas da brincadeira, durante uma semana, tiveram como castigo dormir fora do dormitório, cada uma em um dos cantos do corredor.


Manga tentadora

Leia ouvindo Alceu Valença Morena tropicana

S

henka havia decidido: naquele dia não aprontaria nada no Colégio Santa Marcelina, de Botucatu. Seria um modelo de aluna. Faria tudo para comportar-se sem problemas. Afinal já tinha 16 anos. Colocou seu uniforme daquele dia composto por vestido xadrez com gola branca e punhos brancos, meias soquete bege e sapatos marrons impecavelmente engraxados por ela. Ajeitou os cabelos. Reafirmou seus propósitos e iniciou seu domingo no colégio. Desde a manhã tudo correu como ela planejara. Isto continuou até o lanche da tarde no refeitório. Comportada, após terminar o lanche, foi com as colegas para o pátio. Ficaram conversando para esperar o tempo passar. Lá pelas tantas, enquanto conversavam,

notaram a mangueira, que lhes pareceu a mais linda do mundo, carregada de mangas espada. As mangas eram verdadeiras tentações. Só de olhá-las dava água na boca. Que tal completar o lanche chupando uma manga? Mas elas não estavam fáceis para serem apanhadas. Vara ou algo para derrubá-las não se tinha no pátio. Mas as mangas estavam como a pedir “apanhem-me”. Então, entre elas, surgiu a “brilhante” ideia: - Vamos apanhá-las atirando o sapato para derrubá-las. E começaram a execução da sugestão. Sapatos voavam em direção às mangas. Mas era difícil derrubá-las posto estarem firmemente presas em seus talos. Só algumas caíam. Shenka pensou: - Aquela mangueira com as mangas mais lindas do mundo ali a minha disposição. As demais meninas estão tentando apanhá-las, não vejo mal em tentar também. E do pensamento passou ao ato. Atirou a primeira vez e nada. Atirou pela segunda vez e a manga teimava em não cair. Atirou

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pela terceira e quarta vez, sem sucesso. Já inteiramente concentrada mirou a manga que queria. Preparou-se. Atirou o sapato. Novamente a manga não caiu, mas, para seu desespero, o sapato ficou enroscado na mangueira. E agora? Subir na mangueira, nem pensar. Qual a solução, pois já chegava a hora das orações da tarde. Nada vinha à cabeça naquele instante. Nisso Shenka ouve o sinal do fim do recreio chamando para as orações das cinco horas da tarde. Não tem como apanhar o sapato, que está preso na mangueira e muito menos daria tempo de trocar por outro que estava no dormitório o qual, para piorar as coisas, era fechado. A solução era ir para as orações com um pé calçado e outro só com meia. E assim foi mancando. Quando estava para entrar na capela a irmã Veridiana notou a Shenka sem um pé de sapato e de meia, mancando. - Shenka, o que aconteceu minha filha? Você está com um pé calçado só com meia e sem sapato! - Irmã Veridiana, é que estou com o pé machucado e não dá para colocar o sapato. - Minha filha, precisa cuidar disso. Vá, imediatamente à enfermaria para ser tratada. E lá foi Shenka, mancando, para a enfermaria. Quando chegou, logo a irmã Luídia foi perguntando o que acontecera. E Shenka foi

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sincera: - Irmã Luídia, na verdade eu não tenho nada. É que vi a mangueira com mangas tão bonitas, que não resisti em tentar apanhar uma. O único jeito que eu tinha era tentar apanhar atirando meu sapato. Atirei e ele ficou preso na mangueira. Irmão Luídia, com um olhar cúmplice, fez que entendeu tudo. - Shenka, como você disse que estava com o pé machucado, vamos fazer um curativo. Depois vamos ao dormitório, pegamos um pé de chinelo e vá às orações. Assim foi feito. E lá foi Shenka para a capela com um pé de sapato e outro enfaixado e no chinelo. No dia seguinte, na segunda feira à tarde, com o pé “curado”, foi procurar o jardineiro, seu João, e explicou a ele: - Seu João! Estou com um problema e só o senhor pode resolver. Ontem, no recreio da tarde, ao tentar apanhar uma manga, atirei meu sapato e ele ficou preso na mangueira. Será que o senhor poderia pegá-lo para mim? E seu João, prestativamente, sossegou-a: - Pode deixar menina, eu pego e dou a você. E assim foi feito. Como se vê, às vezes, nem os firmes propósitos correm como o esperado.


Passeio

Leia ouvindo Trilha Sonora I Will Follow Him

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o Colégio Santa Marcelina, de Botucatu, as freiras levavam as moças para o passeio semanal, aos sábados, na avenida Amando de Barros. Isto era esperado ansiosamente pelas garotas. Tratava-se do dia no qual as estudantes do curso normal de formação de professor primário, atual ensino médio, iam comprar na loja Kodak os “dadinhos” de chocolate para a semana e, o mais importante: podiam, discretamente, paquerar os rapazes que rodavam a avenida em suas reluzentes Lambretas, sucesso da época nos anos 1960. Certa ocasião chega o dia do passeio semanal, mas as moças do grupo da Shenka pressentem que não haveria nenhuma freira para acompanhá-las nesse final de semana. A decepção é visível. As alunas são tomadas por uma imensa tristeza. A frustração é geral entre as moças desse grupo.

- Meninas, se combinarmos tudo direitinho, o passeio poderá ser feito. - falou Shenka às colegas após refletir e matutar. - Mas como? Não tem nenhuma freira para acompanhar-nos e sozinhas não podemos sair, você sabe muito bem! – pondera uma das moças, do grupo, curiosa. Shenka não se dá por vencida: - Se vocês prometerem que se comportam, eu darei um jeito. Mas, volto a repetir, vocês precisam me garantir de que não aprontarão nada e comportar-se-ão direitinho durante o passeio. Tudo certo e combinado entre elas, Shenka subiu até o dormitório do grupo dela. Junto com elas dormia a irmã Veridiana. Shenka vai até o armário da freira, abre-o, tira de lá o hábito, os sapatos, a touca, o véu de crochê e o escapulário. Com todo cuidado veste sobre seu vestido todo o conjunto que compõe a indumentária da freira. Completada a empreitada, pronto. Ali estava a freira que seria a acompanhante do grupo de alunas naquele final de semana. Quando Shenka desce vestida de freira as moças não acreditam. Mas topam prosseguir com o plano. Shenka organiza a fila e, com a cabeça baixa, como uma freira concentrada sai do colégio

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com seu grupo para o passeio. A primeira etapa o grupo tinha superado. O passeio transcorreu normal, sem maiores problemas. Os rapazes passando com suas lambretas, paquerando, enquanto as moças mantinham-se discretas e recatadas. E a “freira” Shenka? Compenetradíssima! Como freira não podia dar-se ao luxo de participar das paqueras das moças. Na loja Kodak compraram os dadinhos de chocolate e, esgotado o tempo normal do passeio, dirigiram-se para o colégio, com a “freira” Shenka sempre a cuidar das alunas. Chegando ao colégio as moças foram para a sala de aula. Shenka, após cumprir sua missão, dirigiu-se à escada para subir ao dormitório, tirar as roupas de freira, colocá-las no armário da irmã Veridiana e, após isto, descer para juntar-se às outras moças do grupo. Mas, quando vai subir, ouve a voz da irmã superiora: - Irmãããããããããããããã!!!!!!! Shenka estacou seus passos. Voltou-se

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lentamente para a madre superiora, com a cabeça baixa para não ser reconhecida e manteve-se calada. - Irmãããããããããããããã!!!!!!! – insistiu a madre superiora. Não restou nada mais a ser feito por Shenka a não ser levantar a cabeça. - Shenka!!!!!!!! É você Shenka?!!! Você me deixa um “caldeiron” de “feijon” fervendo!!!!!! – exclamou surpresa e brava a madre superiora. Shenka não esperou mais nada. Virou-se, levantou o hábito e subiu correndo as escadas que levavam ao dormitório e lá chegando, mais do que ligeiro, recolocou toda a roupa da irmã Viridiana no respectivo armário. Resultado: Shenka, como castigo neste caso, teve que levar seu colchão para a sala de costura a fim de dormir lá por uma semana e, também por uma semana, ficou sem direito a sobremesa e sem doces no lanche da tarde. Até os dias atuais, quando as ex-alunas fazem seus encontros, esta história vem à baila.


Escola Rural

Leia ouvindo Nelson Gonçalves Normalista

S

henka dava aula para o curso primário, atual fundamental, em 1964, no sítio Jaracatiá, perto de Presidente Bernardes. Certa manhã, choveu de madrugada e fazia muito frio por volta das 5 horas da manhã. Ela se preparou e foi tomar o ônibus de linha em que iam os professores. Subindo ao ônibus, notou que não havia nenhum dos professores, que normalmente iam naquele horário para suas escolas rurais. Quando chegou na parada Cruzinha, perto de Presidente Bernardes, desceu e foi a pé até a escola, que ficava a 3 km dali. Levava com ela uma vasilha com leite cremoso, fornecido pelo Estado, para diluir e preparar o leite que os

alunos tomariam na escola. Tratava-se de Escola Rural Isolada. Antes de qualquer coisa é preciso atentar para o fato de que os alunos do magistério aprendiam nas aulas de anatomia a identificar, por exemplo, tuberculose, hanseníase e doença de chagas e como prestar os primeiros cuidados. Nas disciplinas metodologia e prática de ensino, pedagogia e didática era ensinado como dar aulas, tanto em classes comuns, como em classes de escolas rurais isoladas. Toda escola rural isolada tinha só uma sala que abrigava juntos alunos de 1º, 2º e 3º ano. Na classe havia três fileiras de carteiras, uma para cada ano escolar. Ali o professor dava tarefas para alunos de dois anos escolares e depois explicava matéria para o terceiro grupo de alunos. Em seguida dava tarefa para estes e iniciava explicações para outro grupo, e assim alternadamente ensinava os três grupos de alunos. A escola rural que Shenka dava aula ficava isolada em um morro. Tinha uma horta, com cerquinha e tudo para evitar que animais a

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invadissem e comessem as coisas ali plantadas pelas crianças. Os alunos regavam a horta com água coletada em baldes no córrego que passava na baixada perto da escola. O produto dessa horta era utilizado para enriquecer a sopa que Shenka preparava para as crianças tomarem no intervalo. Ela, também levava de Epitácio, por sua conta, carne em latas que eram completadas com banha para conservação, isto também destinado à sopa dos alunos. Shenka tirou as medida dos alunos e, com o dinheiro do seu primeiro pagamento, comprou flanela xadrez e sapatos Conga vermelhos para as meninas e flanela xadrez azul e sapato Conga azuis para os meninos. Montou, para cada aluno, um kit de higiene com pasta dental, escova e uma toalhinha para escovar os dentes na escola. Outra das coisas que Shenka fez, foi tirar fotos das turmas, sendo que, para alguns alunos, esta era a primeira foto que tiravam. Foi uma alegria geral. Retornando ao relatado referente àquele dia frio, as crianças na escola, em especial naquela ocasião, estavam com muito frio. Os alunos não tinham condições de escrever, pois suas mãos estavam quase congeladas. Shenka, então, resolveu fazer algo para aquecê-las. Preparou o leite, aqueceu-o e as crianças beberam-no e foram levados para brincar na área externa da escola e começou a preparar a sopa dos alunos. Pouco tempo depois das crianças estarem em atividades para se esquentarem e fugirem do frio chegou um jipe. O motorista o estacionou no pátio da escola, sem sair do veículo. Shenka ficou apreensiva, mas continuou as atividades com os alunos. Como o homem no jipe permanecia lá só 36

olhando, Shenka, passado um tempo, foi até ele e falou: - Bom dia! Meu senhor, esta é área da escola e não é permitido ficar parado aqui. Por favor, gostaria que o senhor fosse embora. Ele não falou nada, mas continuou lá. Preocupada, Shenka deu a sopa para os alunos, em seguida, após o caldeirão, os pratos e os talheres serem lavados e guardados, recolheu as crianças à sala e pôs em prática outras atividades escolares até a hora do encerramento da aula. As crianças já tinham ido para suas casas quando chegou o charreteiro para levá-la até a Cruzinha a fim de ela conseguir uma carona até Álvares Machado e de lá ir para Presidente Prudente, pois tinha que cursar faculdade à tarde. E o homem parado dentro do jipe ainda lá. Antes de Shenka fechar a porta, o senhor desceu do veículo e se apresentou: - Bom dia professora! Sou o supervisor escolar desta unidade e quero o livro Termo de Visitas para anotar meu comparecimento hoje à sua classe e registrar um elogio à senhora, pois, até agora nesta região, só encontrei a senhora trabalhando! Só então Shenka ficou sabendo quem era o homem que causara apreensão a ela. Mesmo assim, como não podia deixar de ser, Shenka “brigou”: - Mas o senhor deveria ter se apresentado quando chegou. Faz pouco tempo que estou trabalhando aqui e não conhecia o senhor. Fiquei com medo pelos alunos e por mim, pois estamos isolados, longe das casas dos alunos! Como se vê, o gênio de Shenka sempre foi o mesmo!


Diretora FOTO 5

Leia ouvindo Lulu To Sir with love

O

prefeito recém-eleito chamou uma professora para dirigir o Curso Supletivo e a Pré-escola municipais de Presidente Epitácio. Na conversa ela disse que aceitaria, mas pediu para ter uma assistente. – Só se for da cidade e faça a indicação por escrito a mim – ponderou o prefeito. A professora saiu e em conversa com um amigo contou-lhe que precisava de uma pessoa

competente para trabalhar como sua assistente. O amigo, imediatamente, respondeu: - Pois eu sei de uma pessoa com esse perfil e tenho certeza de que você irá gostar. Trata-se da Shenka. - Gostei de você me lembrar dela. Vou fazer ao prefeito a indicação do nome dela para minha assistente. E assim o fez. Chegou com a indicação, por escrito, com o nome na época oficial da Shenka, ou seja, Eugênia Luiza. O prefeito ao receber a indicação e, não sabendo quem era Eugênia Luiza, recusou a indicação lembrando de que queria uma epitaciana. A diretora disse que a indicada era epitaciana e ele falou que não conhecia. - Conhece sim! É a Shenka. - Mas a Shenka se chama Eugênia Luiza? perguntou o prefeito. - Sim, é ela mesma. Shenka é apelido. O prefeito, então, aprovou a indicação. Pouco tempo depois a diretora sai e Shenka é convidada a assumir como diretora. Era trabalho de manhã, à tarde e de noite. Tinha que ir frequentemente verificar a Pré-escola dos mais diversos lugares do município.

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Passam-se os anos e muda o prefeito. Shenka continua no cargo. O novo prefeito, certo dia, chamou Shenka e pediu para que uma pessoa que se aposentara do Estado fosse trabalhar com ela como diretora das Pré-escolas. Shenka permaneceria como diretora do Supletivo. Ela concordou e passou a trabalhar de manhã e à noite. No Supletivo, Shenka, antes do início do ano letivo, pegava todas as fichas de matrícula e procurava guardar a fisionomia e dados dos alunos. Assim, quando iniciavam as aulas, ela os recebia no portão de entrada cumprimentandoos e quando precisava falar com um deles não os chamava por “rapaz”, “moço” ou “moça”, mas sim, pelo nome. Chegava, até, a memorizar o riso e voz de alunos e, quando faltava energia, identificava quem estava conversando ou fazendo bagunça. Como muitos alunos trabalhavam durante o dia e à noite frequentavam o curso, ficava difícil terem sempre limpas as camisetas do uniforme. Para resolver isso Shenka sempre tinha camisetas de reserva para emprestar a alunos na entrada das aulas, ficando com as camisetas suadas do uniformes deles e as levava para casa para serem lavadas. No dia seguinte recebia a camiseta usada na noite anterior e devolvia a camiseta do aluno. Nos intervalos das aulas ficava circulando entre os alunos para conversar com eles, dar orientações, conselhos, afinal, uma palavra amiga e de incentivo. Entretanto, se necessário, dava a merecida bronca. Para evitar a evasão escolar Shenka, antes do início das aulas, ia a pé até o barzinho perto da escola para buscar alunos que estavam lá. E os 38

alunos iam correndo para a escola, sem resmungar ou responder. Muitas vezes saía da escola e ficava na calçada perto do muro dos fundos e quando surgia uma perna preparando-se para pular o muro, imediatamente se ouvia: - Pode voltar! A saída da escola não é por aí e ainda tem aulas para serem assistidas!- esbravejava Shenka. Na hora do intervalo, quando era servida a merenda, ela sempre incentivava os alunos: - Hoje tem uma sopa suculenta! - Foi preparado para vocês arroz carreteiro, que está saboroso! – dizia em outra ocasião. - Sabe o que tem hoje? Arroz doce, a merendeira caprichou e está uma delícia! – explicava outras vezes. Na saída das aulas Shenka ficava no portão despedindo-se dos alunos. Quando chovia muito na hora da saída, permitia que alunos deixassem seu material escolar na diretoria ou fornecia saquinhos plásticos para levarem seus materiais para suas casas. Ficou por muitos e muitos anos como diretora do Supletivo. Não são poucos os alunos que se encontram com ela, abraçam-na e dizem das saudades dos tempos que a tiveram como sua diretora. Alguns rememoram com lágrimas furtivas correndo pelo rosto lembrando-se de Shenka dizendo que a escola era rica, rica de amor. E olha que ela era enérgica, mas, ao mesmo tempo, era carinhosa, respeitosa, dedicada e atenciosa para com os alunos, funcionários e professores.


Piscina FOTO 6

Leia ouvindo Louis Armstrong What a Wonderful World

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o início dos anos 1970 Ronaldo e Shenka, após vários dias falando sobre o assunto, decidiram: era preciso ter uma piscina especial na casa deles. Uma que atendesse às necessidades e aos anseios deles, mas tinha que ser feita por eles. Como os dois trabalhavam durante a semana, ficou determinado que a piscina fosse feita pelos

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dois nos fins de semana. E assim começaram. Primeiro foram os estudos e os esboços do formato da piscina. Depois de escolhido o modelo, redonda, passou-se à execução da obra. Demarca-se o terreno. Fincam-se as estacas. Passa-se, então, à fase de maior esforço físico. Ronaldo cavava e Shenka transportava no carrinho de mão a terra cavada. O destino da terra tirada eram os buracos que existiam na rua Cuiabá e na rua Juca Pita, na época sem calçamento. Foram muitos fins de semana até que a escavação ficasse pronta. São preparadas, montadas e instaladas as tubulações necessárias. Em seguida são compradas as ferragens. Iniciase a amarração das ferragens do fundo da piscina. Shenka cortava os arames e Ronaldo colocava-os fixando as barras para em seguida Shenka apertar com o alicate. Com a ferragem da base completada, faz-se o preparo da ferragem das colunas laterais. É chegado o momento da concretagem. Os dois preparavam o concreto misturando areia, pedra, cimento e água. A seguir despejavam o concreto na ferragem. Espalhavam. Compactavam. Depois do concreto seco, começaram a levantar as paredes da piscina. Já havia passado muito tempo e aquilo já estava deixando-os extenuados. 40

As paredes de tijolos alcançavam o meio da altura final. Então decidiram que o resto seria feito por um pedreiro, sob a supervisão deles. E assim se deu. A piscina foi revestida de azulejos azuis, tinha quebra ondas e uma escada azulejada para entrar em suas águas. Sua volta era com pedras apropriadas e indicadas para piscina. Havia, ainda, o local do motor, filtragem da água e caixa de escoamento. Concluída a piscina, passou-se à fase do lazer. Foram muitos anos com as crianças brincando. Até houve o lance de certa vez em que Shenka chegava da escola e viu na piscina uma boiazinha com duas perninhas para cima. Ela jogou a bolsa no chão e pulou na piscina para desvirar a Renata. Felizmente ficou só no susto. A piscina serviu de recreio para o Nal, para a Rê e para amiguinhos deles por muitos anos. Com o tempo ela foi sendo deixada de lado. Daí a surgir uma rachadura foi inevitável. Não dava mais para encher a piscina. Em meados dos anos 1990, comprovando-se que a recuperação da piscina era economicamente inviável, decidiu-se abandoná-la e no local, após ser quebrado seu concreto da base, tapar o local e sobre ele construir um escritório. Assim foi feito e hoje não se tem nem mais vestígio da piscina, que foi feita com tanto esforço físico e que tanto alegrou as crianças.


Ladrão

Leia ouvindo Charlie Brown Jr. Corra vagabundo

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or volta das três horas da madrugada de um sábado, Shenka acorda com um barulho na janela da sala. Mesmo preocupada, pois estava só com os dois filhos ainda pequenos, silenciosamente ela se levantou para certificar-se do que acontecia. Com a sala iluminada indiretamente pela luz da copa, que ela mantinha acesa, viu que alguém tentava, com um arame, abrir a veneziana. - O que fazer? – pensou Shenka – Não tenho nenhuma arma em casa e a única coisa poderosa comigo é a faca de cortar pão! O medo era tanto que a camisola parecia ficar

longe do corpo, tendo que apertá-la junto ao corpo. Shenka tomou coragem e deu o maior grito que conseguiu: -AAAAAAAAHHHHHHH!!!!!!!!! O ladrão se assusta e, no mesmo instante, fugiu. Ela não dormiu mais. Esperou o dia clarear. Vestiu-se, saiu pelo portão lateral e voltou pelo da frente. Não havia mais ninguém lá. Observando melhor, viu na janela uma bolsa preta. Pegou-a, abriu-a e encontrou documento pessoal do ladrão, a carteira de trabalho com foto dele. - Vou encontrar este homem! – disse para si mesma com convicção. Pegou o carro e começou, decidida, a procurar em todos os barzinhos, começando pelo da estação e subindo a Presidente Vargas. Em cada um entrava e pedia uma caixa de fósforos. Enquanto o dono do bar atendia ao pedido, ela olhava em volta para ver se achava o ladrão. 41


Assim foi até que chegou ao barzinho “Pensão do papai”. Mal entrou, viu o ladrão. Pediu uma caixa de fósforos e, disfarçadamente, abriu sua bolsa, pegou a carteira de trabalho esquecida pelo ladrão e olhou a foto. Era ele. Olhou de novo o homem e depois a carteira para ter certeza absoluta. Era ele mesmo. Pagou a caixa de fósforos e saiu. Imediatamente foi à delegacia, contou a história e informou que sabia onde estava o ladrão. Foi designado um policial para acompanhá-la e efetuar a prisão do mesmo.

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O ladrão foi encontrado ainda no barzinho “Pensão do papai” e foi preso. Na delegacia, cheia de coragem e protegida, Shenka, com o dedo no nariz do ladrão, disse ao mesmo: - Não te matei porque fiquei com dó! O meliante ficou detido por uma semana e depois foi liberado para responder o processo em liberdade. Mas, nunca mais, nem por perto da casa da Shenka ele passou.


Chega de ficar sozinha

Leia ouvindo Frank Sinatra New York, New York

- Não quero mais ficar sozinha – falou Shenka em uma reunião com suas amigas, a maioria viúvas. Isto em meados de março. - Você está louca?! Você, como nós, está viúva e livre. Pra que ficar amarrada a um homem? – retrucou uma amiga. - Enjoei de ficar sozinha – continuou Shenka. Quero ter uma companhia. Vocês são ótimas, mas não estamos juntas o tempo todo. Meus filhos já estão crescidos e agora quero ter uma pessoa para conversar, trocar ideias, curtir, dividir as alegrias e namorar, enfim, não passar mais os dias sozinha. Isto está me fazendo falta. - E como você vai fazer? – perguntou outra amiga. - Vou deixar o destino cuidar disso. Como uso o carro para trabalhar de manhã e à noite, na hora do almoço vou descer a avenida Presidente Vargas

a pé e encontrar o meu marido. - Mas por que descer a avenida a pé? – inquiriu uma terceira amiga. - Imagine que eu desça de carro pela avenida e ele esteja a pé ou de bicicleta – começou a explicar Shenka. Como ele, que pode estar pensando “olha essa viúva interessante”, vai falar comigo? Vai ficar apenas me vendo passar de carro e nem iniciar uma conversa com ele. - Você é louca! – comentou uma das amigas. Imagina que é um bicicleteiro do frigorífico. E daí?! - O que me interessa é o conteúdo dele. Que eu descubra ser ele carinhoso para comigo e queira bem a meus filhos. - Vamos imaginar que esse bicicleteiro esteja calçando um chinelo de dedos dos mais simples, vestindo camiseta regata estampada e usando calção todo colorido. Como uma mulher de bom gosto como você, vai fazer? – prosseguiu argumentando a amiga. - Na primeira semana dou a ele uma sandália da Adidas. Na outra um calção de marca e depois uma camisa – respondeu Shenka. - E se a manga ficar grande para ele? – contra argumentou outra amiga.

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- Eu faço com que ele dobre as mangas. Afinal do que adianta eu ter como conseguir as roupas se não tenho o conteúdo? – falou Shenka. - Continuamos pensando: você está ficando doida. – arrematou uma amiga. -Não adianta vocês tentarem mudar minha ideia. Segunda-feira colocarei em prática meu plano e vocês verão: vou achar meu marido! – finalizou Shenka. Na segunda-feira Shenka ao meio dia estacionou o carro na avenida e desceu a pé até a loja de uma amiga. Lá chegando foi logo contando: - É, parece que meu futuro marido está almoçando. Vou à igreja rezar um pouco, volto para pegar o carro e vou almoçar. Amanhã desço um pouco mais tarde. - Continuo dizendo que você é doida – falou a amiga. No dia seguinte, por volta das 13h30, Shenka faz novamente o script do dia anterior: estacionou o carro na avenida e desceu a pé até a loja da amiga. - Minha amiga, parece que meu futuro marido dá uma cochilada após o almoço. Tenho que descer a avenida um pouco mais tarde. E lá foi Shenka até a igreja e depois de rezar, agradecendo pelos filhos que tinha, agradeceu “pelo marido bom que o Senhor vai colocar em minha vida”. Sobe a avenida, pega o carro e vai almoçar. Lá chegando pede à mãe: - Mamãe, continue rezando para que eu encontre um homem bom para ser meu marido. Reze com bastante fé! - Pode deixar minha filha. Eu continuarei minhas rezas – respondeu a mãe. Na quarta-feira Shenka, agora por volta das 44

15 horas, estaciona o carro e começa a descer a avenida. Quando está quase chegando à loja da amiga, vê um homem cruzando a rua. Seu coração dispara. Ela sente uma sensação inexplicável. Parada, ela vê o homem indo embora subindo a avenida. Com o coração na boca, entra na loja da amiga e suas palavras saem aos borbotões: - Minha amiga! Vi o homem que vai ser meu marido!!!! - O que? Como? Quem? – perguntou a amiga. - Eu o vi passando logo ali um pouco mais acima. É, sim, meu futuro marido! Não sei quem é ele, mas senti isso! Eu sei que é ele – explicou Shenka. - Shenka, pare com essa bobeira. Você nem conhece o homem e acha que é ele seu futuro marido. - Eu sei, eu sei. É melhor vocês irem se acostumando à ideia de que não terão mais esta amiga passeando só com vocês. E agora mesmo vou à igreja para agradecer o homem bom que Deus pôs em meu caminho. Assim ela fez. E em suas orações, além de agradecer pela saúde e felicidade dos filhos orou: - Hoje vi o homem bom que o Senhor pôs em meu caminho para ser meu marido. Muito obrigado, Senhor! Chegando em sua casa disse à mãe: - Mamãe, aumente suas preces pedindo a Deus para colocar um homem bom em minha vida, pois hoje ele fez isso. Não sei, ainda, nada sobre ele, mas sei que será meu marido. - Fique tranquila, minha filha. Vou aumentar minhas orações – sossegou a mãe.


Na quinta-feira Shenka desceu a avenida e nada de ver o homem. Sexta-feira, sábado e assim passam os dias e nada de rever quem ela “sabia” que seria seu marido. - Sabe amiga?! Acho que o homem que vi era turista – comentou Shenka com a dona da loja. A vida continuou e, dias depois, quando ela estava passando pela lavanderia que fica perto da prefeitura, ela vê o “homem que seria seu marido”. Seu coração quase que parou novamente. Seus controles foram por água abaixo. O carro “morreu”. Ela ficou tremendo até se recompor, ligar o carro novamente e dirigi-lo até a prefeitura. Afinal, quem era aquele homem? De onde ele era? O que fazia? Tudo era só dúvida. O tempo volta a caminhar e nada mais de Shenka ver novamente o homem. Chega junho e com ele o festival de inverno. As amigas combinam de ir ao Thermas de Epitácio na sexta-feira para curtir o festival. Shenka, entretanto, avisa que só poderia ir após encerrar as aulas da escola em que era diretora. As amigas concordam. O encontro ficou marcado para ser em frente à república de uns rapazes na quadra dois da avenida Presidente Vargas. Pouco depois das 11 horas da noite, Shenka chegou e foi logo falando: - Vamos! Cheguei. É melhor irmos já, senão a festa acaba. - Olha – disse um dos rapazes – tem um amigo meu que, acredito, gostaria de ir conosco para a festa. - Mas onde está ele? – perguntou Shenka. - Foi fazer uma caminhada e já, já estará de volta. Olha!!! Lá vem ele chegando.

Quando Shenka consegue distinguir quem vem chegando, descobre: é o homem visto por ela duas vezes e que “seria seu marido”. Nem bem ele chega e cumprimenta os presentes, Shenka pergunta-lhe: - Você vem conosco para a festa? - Que festa? Onde?- pergunta-lhe o recémchegado. - Ih!!!! Se você está com medo não precisa ir!!! Responde ela. - Tudo bem, já que todos vão, eu vou também! – respondeu o homem. E Shenka não deixou por menos: - Você vai no meu carro! Quando disse isso, uma preocupação passou por sua cabeça: o homem era, na realidade, um desconhecido para ela. E agora? Ela não titubeou. Foi até uma das amigas e disse: - Amiga! Você vai deixar seu carro aqui e vai comigo no meu carro. Afinal não sei nada sobre o homem que convidei e não quero ir sozinha com ele. Agora estou com medo. E assim foram. Mas, como já era tarde, o grupo chegou quando a festa já estava terminando. Ficaram poucos instantes e tiveram que ir embora. Antes resolveram que iam comer pizza. Após comerem, o desconhecido propôs que as despesas fossem divididas pelos homens, ao que Shenka imediatamente protestou: - Agradecemos, mas não podemos aceitar. Nós somos mulheres independentes e pagamos a nossa parte. Pode dividir o valor a pagar considerando as mulheres. Assim foi feito naquela ocasião. Depois disso vários outros encontros se 45


sucederam e o relacionamento deixou de ser entre desconhecidos. O final nĂŁo foi diferente do que se espera nesta

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histĂłria: Casaram-se e, hĂĄ mais de vinte anos, curtem e vivem a vida.


Inexplicável

H

á fatos inexplicáveis à maioria das pessoas. Particularmente, Shenka relata dois deles.

BENEDITO DE GODOY MORONI

O RELÓGIO DA VÓ PINA

A vó Pina tinha na sala um relógio antigo com pêndulo, de dar corda semanalmente, que batia quando completava a hora e a meia hora. Na meia hora soavam duas pancadas. Nas horas, soavam duas pancadas para cada hora. Assim: uma hora, duas pancadas; uma e meia, duas pancadas; duas horas, quatro pancadas; duas e meia, duas pancadas; três horas, seis pancadas; três e meia, duas pancadas e assim por diante. Entrava dia e saía dia, entrava semana e saía semana, entrava mês e saía mês, entrava ano e saía ano e o relógio sempre funcionando e alertando as horas com suas sonoras pancadas. Em 1978 dona Pina faleceu. Naquela época não havia velório municipal, nem de empresa funerária. O corpo era velado na casa da pessoa falecida. Enquanto o corpo de dona Pina era preparado pelo agente funerário, seus familiares providenciavam a arrumação da sala, a mesa sobre a qual seria colocado o caixão, as cadeiras para as pessoas que compareceriam ao velório e os demais preparativos necessários.

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Era quase uma hora da madrugada quando o copo de dona Pina chegou a sua casa. Até ajeitar o caixão na mesa, era uma hora da manhã. Nesse instante o relógio começou a dar suas pancadas: deu uma, deu duas e deveria parar, pois era uma hora. Mas não, ele continuou dando suas pancadas seguida e ininterruptamente até acabar a corda. Em seguida ele parou de funcionar. Seu pêndulo quedou-se estático. As pessoas não encontravam explicação admissível para este fato. Algumas se persignavam e diziam que o relógio tinha prestado sua derradeira homenagem à falecida, dado ela ter sido uma pessoa boníssima. Outros, sem encontrar motivo para o acontecido, simplesmente quedavam-se pasmos, olhando para o relógio silencioso e seu pêndulo parado. Naquela hora Ativica, filha de dona Pina, interpretou o significado do fato: - São os anjos tocando para a entrada de mamãe pelas portas do céu! Os parentes se abraçaram e choraram confortados. Dias depois, o relógio foi encaminhado para uma relojoaria de confiança. O relojoeiro examinou e examinou o relógio e nada encontrou de errado com ele. Assim, entregou-o de volta à família. Recolocado o relógio em seu lugar, dado corda no maquinismo das horas e no das pancadas, ele não funcionava. Levado novamente ao relojoeiro, na relojoaria, o relógio funcionava normalmente. Trazido para a casa ele não funcionava mais. A família, desanimada, resolveu deixá-lo apenas como decoração.

Passam-se os anos. Em 1992 Godoy resolve perguntar para Shenka por que aquele relógio tão bonito não estava funcionando. Ela conta-lhe a história. Godoy acha interessante, mas diz que vai dar um jeito. Leva até um amigo que era relojoeiro nas horas vagas e este, após examinar o mecanismo do relógio, diz que o mesmo não tem nada e que só iria fazer uma ligeira limpeza. Dias depois devolve o relógio e ele é recolocado em seu local de origem. Godoy dá corda nos dois maquinismos e aciona o pêndulo. O relógio começa seu tic-tac e não para mais, dando as horas certas e batendo as pancadas corretas nos momentos devidos. Ficam no ar as perguntas: por que parou quando da morte de vó Pina e por que voltou a funcionar na casa só quando Godoy o acionou? Não temos explicação plausível.

O MENINO NO SOFÁ Dona Maria, mãe da Shenka, quando já estava com um grau alto do Mal de Alzaheimer, sempre que a filha ia se sentar no sofá, falava: - Cuidado com o menino! Não se sente em cima dele que vai machucá-lo! - Mas que menino mamãe? Aqui não tem menino nenhum! – falava Shenka. - Olha ele aí quietinho! Deixe o coitadinho em paz! – argumentava dona Maria. - Que menino é esse mamãe? Qual o nome dele? - Pergunte você a ele. – respondia dona Maria. Shenka com medo não perguntava e, para não causar mais transtornos, sentava-se em outro lugar. E assim era quase todo dia.


Godoy, em conversa com Shenka, comentou: - Shenka! Sua mãe, antes de vocês três mulheres, teve um menino, que nasceu e morreu com menos de um dia sendo enterrado em Presidente Venceslau? - Sim, está em túmulo especial para ele. – explicou Shenka. - Seus avós, sua irmã, seu pai e seus tios estão enterrados aqui em Epitácio. Só seu irmão está enterrado em Venceslau. Será que na mente de sua mãe não está passando isso? Que tal providenciar a transladação dos restos de seu irmão para ficar, ele também, em Epitácio? – continuou Godoy. - Bem, não acho que seja isso, mas vamos trazer meu irmão para cá. – completou Shenka.

Os papéis foram feitos em Epitácio e Venceslau para que houvesse a transladação. Godoy foi até o cemitério de Venceslau, o coveiro abriu o túmulo e colocou em um recipiente um pouco da terra do local e uma peça corroída de metal, que fora do caixãozinho, pois a morte do bebê ocorrera há mais de setenta anos e não havia qualquer outro vestígio do mesmo. No dia seguinte pela manhã, o que restou do bebê foi enterrado na cova do pai. Nada foi dito a dona Maria, mas a partir desse dia, nunca mais ela falou do menino que sempre estava sentado no sofá perto dela. Como explicar isso? Não sabemos!

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Ser feliz FABRÍCIO MARCIANO BERTELLI

Assista ao vídeo Renata Loyolla Dança do Ventre Pássaro Ornamental FOTO 7

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avia um professor na Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP, há cerca de meio século, que dizia mais ou menos isto:

“Direito é o desaguadouro das vocações indefinidas: tentou Medicina e não passou, faz Direito; foi reprovado no vestibular para Engenharia, não tem problema, cursa Direito; não sabe em qual faculdade estudar, escolhe Direito”. Renata, talvez para acompanhar alguns de seus amigos, ou, eventualmente, seguir exemplo doméstico, escolheu e cursou a faculdade de Direito. Após concluir seus estudos, prestou e passou logo na primeira vez nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil. O passo seguinte foi escolher em que cidade iria trabalhar. Primeiro ela pensou em Campo Grande (MS), onde tinha uma amiga que a incentivou a se mudar para lá. Visitando a cidade, Renata achou não ser bem o local que queria para trabalhar. Voltou para Epitácio. Aqui se encontrou com outra colega, a qual falou maravilhas de Maringá (PR). A amiga disse a Renata que se ela quisesse poderia ficar lá, em sua casa, até ambientar-se, arrumar emprego e escolher um pensionato. Foi o “empurrão” para Renata decidir tentar a sorte em Maringá, isto com o incentivo de Shenka. No final de semana foram os três para Maringá: Renata, Shenka e Godoy. Ao chegarem à cidade, antes mesmo de irem

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à casa da amiga de Renata, compraram um jornal local para ver se achavam endereço de pensionatos para moças. Só encontraram um anúncio. Depois de vários pedidos de informação e de orientação localizaram o local da vaga. Era simples, mas a dona do pensionato era agradável e foi muito gentil com os três. Na mesma hora alugaram a vaga e Renata pôde deixar suas coisas no local. De lá, encontraram-se com a amiga da Renata e, após as recomendações e orientações de praxe, que os pais costumam dar aos filhos, Shenka e Godoy voltaram a Epitácio. Renata, com facilidade, encontrou serviço em um escritório de advocacia. Pouco tempo depois sua carreira ia de vento em popa. Nas horas de folga, para se distrair, Renata começou a frequentar um curso de dança do ventre. Mas - sempre tem um “mas” -, com o passar do tempo, Renata não aparentava estar satisfeita com a advocacia. E isto foi aumentando, aumentando, até chegar ao ponto dela, cada vez que conversava com a Shenka, chorar e dizer que não estava feliz com aquela sua nova vida. Shenka tentou mostrar-lhe que ela estava progredindo muito bem e que tinha uma brilhante carreira jurídica pela frente. - De que isso me adianta se estou infeliz, muito infeliz – dizia Renata à mãe. - Calma, minha filha! No início é assim mesmo, difícil, você precisa ter paciência que com o tempo tudo melhorará!– falava Shenka. - Mas mamãe, quase todo dia que chego do trabalho eu choro. Não sei se aguentarei isto. –


respondia Renata. Ouvir isto era de partir o coração. Certo dia, durante visita à Renata, ela disse à Shenka que tinha uma comunicação importante a fazer, isto após ter pensado e ponderado muito: - Não vou mais advogar! – informou Renata. Shenka nem tinha se recuperado do choque e outra “bomba” veio em seguida: - Vou fazer o que eu gosto: vou ser professora de dança do ventre – arrematou Renata. Shenka ficou sem reação e, nesse momento, começou a chorar. - Não precisam se preocupar que já tenho tudo esquematizado. Já tenho academias que me aceitaram para dar aulas – explicou Renata. - Será difícil, mas sei que esta é a forma de eu deixar de sofrer fazendo algo que não quero com o meu futuro. Eu quero é ser feliz. Por isso eu quero ser é professora de dança do ventre – arrematou Renata. Após o “choque”, só sobrou à Shenka aceitar e dar seu apoio a esta tentativa da filha em procurar sua felicidade. O início não foi fácil para Renata. Tinha que dar aulas em vários lugares e ter baixa remuneração em face de sua pouca prática. Com o tempo Renata foi melhorando sua técnica e o número de alunas começou a aumentar. Acabaram os choros inconsoláveis de Renata. O passo seguinte de Renata foi tentar obter a carteira de dançarina profissional. Para isto teria que se submeter, em São Paulo, a teste na entidade de classe. Caso aprovada, esperaria cerca

de seis meses para receber seu credenciamento. Entretanto, graças a seus treinamentos e dedicação, ao fazer o teste, não só foi aprovada, como imediatamente, obteve da banca seu credenciamento e registro. Isto lhe abriu novas e melhores oportunidades. Sendo a batalhadora que é, em pouco tempo Renata já estava com sua própria academia. Todavia a concorrência exigia que Renata apresentasse algo mais em seu currículo de professora. Por isso ela resolveu especializarse, fazendo um curso no Egito, com uma das maiores bailarinas de dança do ventre. Inscreveuse e começou a preparar-se para a viagem. Nessa ocasião tomou conhecimento de que, quase na mesma época, haveria outro curso, no Egito, com outra bailarina, também renomada, expoente da dança do ventre. Renata não pensou duas vezes. Matriculou-se, também, para este segundo curso. Viajou. Foram duas semanas de aulas intensivas, uma em cada academia egípcia. Para passeio, sobraram só alguns dias, mas Renata sentiu-se realizada e certa de que, afinal, valeu a pena. Hoje Renata tem sua academia ampliada, um marido que a incentiva e um filho que lhe traz alegrias. - Não me arrependo da mudança radical que impus à minha vida. Graças a esta decisão, hoje eu me sinto feliz e realizada! – afiança Renata. - A pessoa tem que lutar pelos seus sonhos a fim de ser feliz! – arremata Renata. 53



Maria Cecília

Assista ao vídeo Maria Cecília

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erta vez Shenka precisou levar sua mãe, Maria Cecília, para fazer uma endoscopia na cidade vizinha de Presidente Prudente. Precavida, ligou para a sobrinha, também Maria Cecília, informando-a que após o exame levaria a mãe para tomar uma sopinha lá. A sobrinha, casada com dentista e tendo dois meninos, se mudara há pouco tempo para o sobrado novo, que construíra em um condomínio fechado. Tudo ficou acertado. No dia aprazado Shenka, acompanhada de seu marido e sua mãe, dirigiram-se ao sobrado da Maria Cecília, sobrinha de Shenka, após os exames feitos por Maria Cecília, mãe de Shenka,. Na portaria o encarregado, após as identificações de praxe, informou que para chegar ao local da residência da sobrinha de Shenka, Maria Cecília, tinham que descer pela última rua à esquerda do

condomínio e duas quadras depois dobrar à direita. O sobrado era o segundo imóvel à esquerda. Mais fácil impossível. Assim foi feito. Chegando ao sobrado tocaram a campainha. Saiu a empregada para atender. - Bom dia. A Maria Cecília está? Você é???? – perguntou Shenka - Bom dia. Sou a nova empregada de dona Maria Cecília. Ela não está, saiu. Foi levar os meninos para cortarem o cabelo. Mas, podem entrar. – respondeu a moça. Shenka, já meio chateada pelo fato da sobrinha não esperá-la, perguntou se podia subir e pegar uma toalha para sua mãe enxugar o rosto e as mãos, ao que a empregada concordou. Enquanto seu marido e sua mãe ficaram na cozinha tomando café, Shenka subiu ao quarto do casal. Ficou mais do que contente com a arrumação que encontrou: no quarto do casal uma “arara” com as roupas do marido de sua sobrinha, com camisas e calças brancas perfeitamente organizadas e no guarda roupa tudo arrumado; o armário e as camas dos meninos no outro quarto com tudo em ordem. Após pegar uma toalha desceu. - E sobre a sopinha que pedi para minha

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sobrinha preparar para minha mãe? – perguntou Shenka à empregada ao chegar à cozinha. - Não tem sopinha nenhuma preparada. informou a empregada. Já começando a ficar brava, Shenka falou, então, que iria preparar a sopa para sua mãe. Abriu a geladeira e pegou uns legumes, que a bem da verdade, estavam rigorosamente embalados e prontos para utilização. Em seguida abriu o armário da cozinha e pegou um pacote de macarrão, mas ao ver a data de validade vencida, comentou com a empregada: - Maria Cecília precisa prestar mais atenção e jogar fora os artigos com validade vencida. Pode fazer mal aos meninos! – e jogou no lixo o pacote. Após preparar a sopinha para a mãe e tê-la servido, Shenka deixou-a na sala vendo televisão. - Mamãe, a senhora fica aqui, esperando sua neta Maria Cecília chegar, enquanto que eu e o Godoy vamos ao Shopping. – esclareceu Shenka. Após visitarem o Shopping e comprarem algumas coisas, voltaram à casa da sobrinha. Logo ao chegarem ao sobrado, estranharam ao ver a empregada na porta. - Boa tarde. A Maria Cecília já chegou? Tudo bem com minha mãe? – perguntou Shenka Para espanto de Shenka a empregada respondeu: - Boa tarde. Dona Maria Cecília já chegou. Sua mãe não está aqui. - Como? O que aconteceu? Onde está minha mãe? – perguntou Shenka aflita. -Dona Maria Cecília quer falar com a senhora. Vamos entrar. Shenka já estava a ponto de explodir. O que teria acontecido? Cadê sua mãe? Ao chegar na cozinha 56

Shenka vê descendo pela escada um loira alta. - Boa tarde, eu sou Maria Cecília e já levei sua mãe até a Maria Cecília sua sobrinha, que mora nesta mesma rua, mas é a segunda casa do lado esquerdo vindo pelo lado oposto a este. – informou a moradora daquele sobrado. Shenka fica perplexa. - Então entramos em sobrado errado?! Como?! – falou Shenka já em pranto, com as lágrimas como que a pularem nas lentes de seus óculos. - Você me desculpe. Eu subi em seu quarto, mexi em suas gavetas, desci com uma toalha sua, peguei legumes em sua geladeira, joguei fora um pacote de macarrão seu, preparei uma sopa para minha mãe. Você me desculpe!!!! – justificava-se Shenka. Maria Cecília, a dona da casa, desdobrou-se em gentilezas para acalmar Shenka, que só chorava. Após muitos pedidos de desculpas, Shenka e seu marido foram à casa da sobrinha dela, Maria Cecília, onde a mãe de Shenka, Maria Cecília, esperava tranquila a chegada da filha e do genro. O caso ficou guardado até uma reunião de família onde Shenka, pedindo para não espalharem, disse que ela também cometia enganos e contou a história. Uma sobrinha ao ver na TV Globo que estavam procurando histórias curiosas, escreveu para a emissora. A equipe do quadro “Retrato Falado” com a Denise Fraga gostou, entrou em contato e, depois de vencida a relutância por parte da Shenka, levou ao ar a história. Ah! A Maria Cecília sobrinha da Shenka havia preparado a sopinha e a arara com roupas brancas na casa da outra Maria Cecília é que o marido dela gostava muito de usar roupas brancas.


Choro

Leia ouvindo Tim Maia Como uma onda

O

financiamento rural pleiteado pela Shenka fora aprovado e o gerente chamou-a para assinar os papéis e em seguida ter liberado o empréstimo. Lá foi ela toda faceira com seu modelito preto. Quando ia adentrar o banco, tropeça e cai de bruços na entrada, ficando com o rosto prensado na porta de vidro. Levanta-se, envergonhada e chateada. Nem percebe que a frente de sua roupa preta ficou, na frente, cinza de poeira. Quando se dirigia até a mesa do gerente, um funcionário pergunta-lhe: - Dona Shenka! O que aconteceu com a senhora? Posso fazer alguma coisa? - Obrigada! É que caí na porta do banco. Será que posso ir à toalete para lavar o rosto?- fala Shenka.

- Mas é claro! Enquanto a senhora lava seu rosto vou providenciar um copo d’água. – prontifica-se o funcionário. Quando Shenka vê seu rosto no espelho, começa a chorar. Lava o rosto, enxuga-o e, ainda chorando, vai até a mesa do gerente e se senta. Um ex-aluno que estava no banco, vendo-a chorando na mesa do gerente, não pensa duas vezes e vai até ela. Chegando diz: - Não precisa assinar documento nenhum entregando seus bens ao banco. Vou chamar seu filho para resolver e impedir isso, - Calma meu filho! Não é nada disso. Pode ficar tranquilo. É que caí e estou chateada. Os papéis que estou assinando são referentes a um empréstimo rural. Muito Obrigada pela sua preocupação e carinho para comigo, mas não é nada! - Então tudo bem, dona Shenka, pois se fosse para a senhora entregar seus bens ao banco eu iria pedir para a senhora não assinar e esperar seu filho. Depois de mais agradecimentos, Shenka conclui a transação e vai saindo do banco, quando sua nora e seu neto entram. 57


A nora, vendo Shenka com os olhos marejados de lágrimas, pensa: - Será que aconteceu alguma coisa com dona Maria? Afinal ela, mesmo não estando doente, ela tem bastante idade e o pior pode ter acontecido. E dirigindo-se a Shenka, a nora pergunta: - Aconteceu alguma coisa com dona Maria?

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- Não, minha filha. Ainda estou chorando é de vergonha. Caí na porta do banco e fiquei uma lástima. Foi só isso. – explicou Shenka. Disto podemos concluir que, dependendo da pessoa e de seu grau no envolvimento com alguém, situações que têm um sentido podem ser entendidas como portadoras de outro significado.


FOTO 8

do

GodOy

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Susto FOTO 9

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ma das diversas procissões, das quais meus avós maternos e eu participamos, ficou marcada de forma indelével na memória deles. Eu tinha, nessa ocasião, por volta de dois para três anos de idade e fui vestido de anjinho. Por ser procissão em homenagem a são Benedito, o início foi na capela que havia em homenagem ao mesmo. Aqui vale relatar uma curiosidade das procissões que se realizavam em Tatuí. Em todas elas, a irmandade que ia à frente das demais era a de são Benedito. Dizia-se que isto era porque o santo gostava de ser respeitado e de mostrar sua importância. Quando a procissão era em sua homenagem, a irmandade de são Benedito devia ser colocada atrás, sendo a última irmandade, com seu andor em último lugar. Isto, segundo rezava a tradição, para que o santo pudesse ver todos os fiéis que estavam acompanhando sua procissão. Conta-se que certa feita, um pároco da cidade bateu o pé e disse que deveria ir à frente da procissão a irmandade que tinha seu santo homenageado naquela data e não a irmandade de são Benedito. Quando organizaram as irmandades, tendo à frente do santo motivo daquela procissão, colocando a de são Benedito entre as demais,

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subitamente o céu se cobriu de nuvens negras, que quase transformaram o dia em noite e, em seguida, uma chuva começou a dar mostras de que em breve, muito breve, cairia sobre a cidade. Foi uma debandada geral, um corre-corre para dentro da igreja, quase se quebraram andores, crianças perdidas de seus pais choravam, empurra-empurra e medo, muito medo. Os festeiros já anteviam, que depois da procissão, isto se ela houvesse, não haveria condição para o esperado leilão, ocasião em que as prendas arrecadadas seriam leiloadas e o produto arrecadado seria utilizado para pagar as despesas da festa. Nisso um fiel, muito respeitado pela comunidade, foi falar com o padre. Ponderou se aquilo tudo não seria pelo fato de estarem desrespeitando a tradição ao deixarem de colocar a irmandade de são Benedito em primeiro lugar na procissão. Outros fiéis, então, criaram coragem e também ponderaram nesse sentido. Não se sabe se para concordar com os fiéis, ou para demonstrar que aquilo não adiantaria nada, o padre concordou. Os fiéis foram informados que deveriam, calmamente, voltar para a rua, mas desta feita com a irmandade de são Benedito à frente. Mesmo receosas e amedrontadas, as irmandades foram saindo e se postando em seus lugares, com a irmandade de são Benedito em primeiro lugar. Nisso, inexplicavelmente, as nuvens começaram a se afastar, o céu a clarear e o sol reapareceu. A procissão foi realizada e a chuva simplesmente não aconteceu. Muitos creditam isto, ao mesmo tempo, como um milagre e um aviso do santo para não desrespeitarem sua vontade. Mas, voltemos ao início. 62

Após a procissão, e todas as cerimônias religiosas, voltávamos para casa. Quando estávamos quase chegando, paramos em um barzinho, que ficava na esquina perto de um local onde havia um bebedouro para cavalos. Naquele tempo usavamse charretes, carroças e mesmo andar a cavalo na cidade. Meus avós estavam tomando seu copo de refrigerante quando um freguês, que estava na porta do bar, gritou: - Meu Deus! O menino vai morrer! Todo mundo correu para a porta. Segundo contam, ao verem a cena, ficaram paralisados pelo terror e com as pernas bambas. Foram expectadores de uma cena incrível: eu estava atrás de uma mula, que tomava água no bebedouro e como se isto não bastasse, peguei o rabo dela e dei um puxão. A reação da mesma foi instantânea. Deu um coice com as duas patas. A cena, segundo meus avós contavam, parecia-lhes uma visão se desenrolando em câmera lenta: um pirralhinho puxando o rabo da mula; a mula, instintivamente, procurando defender-se do “ataque” dando o coice; as patas, subindo, subindo, subindo e eu ficando entre elas. Antes que eu pudesse agarrar novamente o rabo da mula, uma pessoa arrancou-me de onde eu estava e levou-me para lugar seguro. Meus avós, lívidos, agradeceram e, ainda com as pernas bambas devido ao terror por que passaram, carregaram-me até nossa casa. Não precisa nem dizer que se ao menos uma das patas tivesse me atingido, seria uma tragédia naquele dia e hoje não estaria aqui para contar o caso. Um instante de descuido e pode acontecer a tragédia.


Nero

Leia ouvindo Zeca Pagodinho Cachorro

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inha avó paterna tinha um cão da raça Rough Collie, chamado Nero, raça esta popularizada, devido ao cinema, pela Lassie. Seu porte era imponente. Quando passava impunha respeito e admiração. Era um cão magnífico. Nós, crianças na época, além de tudo já dito, tínhamos, também, receio de que ele pudesse ficar bravo e mordesse-nos, se bem que este receio era de todo infundado, pois Nero “sabia” que sua atitude devia ser a de proteger-nos e não nos atacar ou ferir-nos. Normalmente Nero saía a passear, solto, com meu pai. Caminhava imponente, sempre logo atrás. Não ia à frente, pois sabia que deveria acompanhar seu dono, meu pai. Era, afinal, um fiel guarda e amigo. Na fazenda, ajudava meu pai durante a lida com o gado. Quando meu pai andava ou passeava

a cavalo pela cidade de Tatuí, interior de São Paulo, pois nos anos 1950 isso era comum, Nero andava na velocidade da marcha que o cavalo desenvolvesse. Era sempre uma visão que encantava e extasiava o garotinho que eu era então. Entretanto, Nero causava admiração e sensação de incredulidade a quem o via executar uma tarefa, dentre várias outras, que lhe foram ensinadas: Ele fazia compras no açougue! Minha avó, nas ocasiões em que tinha compras a fazer no açougue, anotava em um bilhete qual o tipo e quantidade de carne que queria; pegava uma sacola e punha o bilhete dentro; em seguida colocava a alça da sacola na boca de Nero e mandava-o ir ao açougue. A casa de minha avó ficava a cerca de três quadras do estabelecimento. Nero ia confiante e direto até o açougue, sem parar para nada. Não havia cão ou gato que o desviasse de seu itinerário. Lá chegando, o açougueiro pegava a sacola da boca de Nero e via a encomenda no bilhete que minha avó colocara dentro da sacola. Após atender ao pedido, o açougueiro punha a encomenda na sacola e colocava a alça da mesma na boca de Nero. Ele, todo concentrado, rumava altivo e firme na sua volta para a casa, com a

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compra realizada. Aquilo, para os que presenciavam a cena, era motivo de curiosidade para uns, de admiração para muitos e de incredibilidade para outros, que apenas ouviam o relato do feito. Havia, ainda, pessoas que iam ao açougue nesses dias especialmente para ver o cão, sozinho, fazer a compra de carne e depois levá-la até o destino, sem se deixar vencer pela tentação de comer a “carga” que portava. Alguns clientes chegavam a apostar que, naquele dia, Nero não resistiria e comeria a carne que o açougueiro iria colocar na sacola. Nunca ninguém ganhou apostando nisso. Sempre a entrega da compra foi feita intacta à minha avó. Essa atividade executada por Nero, por anos, era lembrada e comentada por muitos tatuienses.

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Com o passar do tempo, o fato foi sendo esquecido. Hoje, como acontece com muitas coisas ocorridas, passou a ser considerado apenas lenda ou ficção de algum apaixonado por cães. Na época dos fatos, possuir câmera de filmagem era algo impensável para amadores. É uma pena, pois, devido a isso, a façanha de Nero poderia ter sido registrada para a posteridade, ao menos, como uma curiosidade. Mas, por que não fotografaram? Não se deve esquecer, também, que a fotografia nessa época, não era tão comum, barata, simples e fácil de tirar como nos dias atuais. É uma pena, pois a cena, com Nero carregando carne na sacola presa pela alça em sua boca, ficou apenas na lembrança de uns poucos privilegiados.


Coroinha Leia ouvindo George Harrison My Sweet Lord FOTO 10

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á fatos que deixam marcas indeléveis nas pessoas. Não me esqueço de quando era menino, com cerca de 10 anos, fui coroinha na igreja matriz de Tatuí. Como minhas aulas eram no período da manhã, à tarde, após fazer minhas lições de casa, ia ajudar o sacristão. Eu e outros coroinhas. Uma das tarefas consistia em limpar os bancos após varrermos a igreja. Isso era encarado como competição entre os meninos. Cada um pegava seu pano de limpeza, molhava no balde, torcia-o, estendia-o na largura do banco e, com as mãos sobre ele, empurrava-o no sentido do comprimento do banco. Em seguida fazia-se a mesma coisa no apoio superior do encosto. Após fazer isso em três ou quatro bancos, voltava-se a lavar o pano e torcê-lo. Era uma correria para ver quem terminava primeiro sua tarefa. Ajudar nas missas era também função dos coroinhas e olha que naquela época a missa era rezada em latim. O coroinha que ajudava na missa era o primeiro da fila e respondia, decorado, em latim aquilo que o padre falava em latim. Como não sou bom em decorar, nunca pude ajudar nas missas. Meu consolo era ficar com o turíbulo balançando pra lá e pra cá para a fumaça do incenso espalhar-se pelo ambiente perfumando-o.

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Um dos momentos mais esperados pelos coroinhas era quando chegavam os barris de vinho para utilização nas missas. O sacristão tinha que engarrafar o vinho e lacrar a rolha. Para isso ele contava com a participação de coroinhas, que o ajudavam. No fim ele dava uma garrafa de vinho para o coroinha levar para casa. Confesso: era um vinho muito gostoso, tão gostoso que depois da missa quando sobrava um pouco na galheta, disputávamos para ver quem iria bebê-lo escondido do padre e do sacristão. Outra tarefa consistia em ir até a Santa Casa e pegar com as freiras as hóstias fabricadas por elas, partícula circulares de massa de pão ázimo (obreia), que são consagradas na missa para serem dadas em comunhão aos fiéis. Levava-se um recipiente de aço inoxidável o qual as freiras enchiam com hóstias pequenas e um pouco de hóstias grandes. Elas colocavam e sacudiam para acomodá-las, até encher o recipiente. Não tinham a preocupação de saber quantas comportava cada remessa. Alguns coroinhas, quando iam buscar as hóstias, aproveitavam e comiam algumas. Cheguei a fazer isto uma vez, mas não tinha gosto nenhum. Nunca mais me interessei em comê-las quando ia buscá-las com as freiras. Contar isso se faz necessário posto que, nas férias do seminário, vieram à cidade seminaristas

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como era hábito. Um deles resolveu contar quantas hóstias cabiam no recipiente e chegou a um resultado “x”. Era minha vez de pegar hóstias com as freiras. Lá fui e voltei. Como disse, com a quantia que elas colocaram cheguei à igreja. O seminarista pega e começa a contá-las. Como as freiras colocavam uma quantia aleatória, o número não bateu com a previsão feita pelo seminarista e ele foi até o padre e declarou que eu, ao trazer as hóstias, havia comido várias. De nada adiantou minha negativa. E, para servir de exemplo, o padre expulsou-me da função de coroinha. Chateado, vou à gaveta onde guardava minhas vestes de coroinha, pego-as e vou saindo. Nisso o padre fala: - As vestes ficam!!! - Não ficam não!!! – respondi. - Elas são minhas, foi minha tia quem as fez para mim e já que não sou mais coroinha, vou levá-las e ninguém vai tomá-las de mim – completei e saí. Acabou, por aí, minha fase de coroinha e com ela encerrou-se o que poderia ter, quem sabe, sido uma carreira eclesiástica. A título de dar asas à imaginação e à suposição, poder-se-ia criar uma conjetura mirabolante: será que se continuasse na carreira religiosa não poderia ter abraçado a missão sacerdotal? Bem, isso, jamais saberemos.


Palmeiras x Corinthians

Leia ouvindo Hino do Palmeiras

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u não poderia deixar de falar um pouco da paixão nacional: o futebol. O confronto entre Palmeiras e Corinthians, segundo a Wikipedia¹, teve a denominação de Derby dada pelo jornalista Tomás Mazzoni. Neste site constatamos, também, que se trata, conforme a Cable News Network (CNN), como uma das maiores rivalidades no futebol mundial: o nono maior clássico do mundo;

o segundo maior clássico das Américas e o único do Brasil a figurar entre as principais rivalidades mundiais. Já o site especializado Football Derbies colocou o Derby como até a 4ª maior rivalidade do mundo (e primeira brasileira), hoje figurando como 8ª em seu ranking mundial. A revista nacional Trivela classificou-o como segundo maior do Brasil. Pois eu assisti a dois desses Derbies. Vamos lá. O primeiro Derby a que assisti foi no domingo, 06 de fevereiro de 1955. Era a decisão do campeonato paulista de 1954. O vencedor sagrar-se-ia Campeão do IV Centenário de São Paulo.

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Na decisão final daquele dia, o Corinthians, já com empate venceria o campeonato. Ao Palmeiras só interessava a vitória. Estádio do Pacaembu lotado. Meu tio, minha tia e eu, garotinho de dez anos, estávamos lá, torcendo pelo Palmeiras. Meu tio, animado, lembrava que o Palmeiras já vencera o Corinthians, em 1933, por 8 x 0, no estádio Palestra Itália, fato que levou a queda do presidente do clube e fez a torcida corintiana colocar fogo na sede da própria agremiação. Agora a situação era outra, mas a torcida era grande pelo Palmeiras para que conseguisse o título. Bastava fazer um gol e segurar o time corintiano. O jogo foi movimentado e a expectativa tão grande que nem nos apercebíamos do sol escaldante que nos castigava naquela tarde. A emoção do momento era mais importante. No final, o resultado do jogo foi 1x1 e o Corinthians sagrou-se campeão. O Palmeiras foi vice, mas aqui no Brasil, que é a terra do tudo ou nada, ser vice é não ser nada. Ao sairmos, eu chateado e triste, fiquei com raiva da bolsa de minha tia. É que a bolsa, de material sintético preto, estufado, tamanho era o calor. Imaginei e atribuí o fato da bolsa ter inchado pelo Corinthians ser campeão. Isso para mim, naquele momento, era ofensivo e até revoltante. Falei disso para meus tios, que riram muito e me fizeram entender que era bobagem minha e não motivo para aquela raiva. Entendi, mas mesmo assim fiquei desolado com a perda do título. Passam-se os anos. O segundo Derby a que assisti foi na quartafeira, dia 18 de dezembro de 1974, 20 anos depois do primeiro Derby assistido por mim. Aqui vale lembrar que então o Corinthians já

amargava há 20 anos sem título paulista. Este jogo era diferente do primeiro, pois foi realizado à noite e chovia a cântaros. Eu estava sozinho no meio da torcida palmeirense para assistir ao primeiro jogo que decidiria o campeonato paulista daquele ano. Tudo indicava que as chances do Corinthians eram maiores. O campo estava encharcado. A partida foi disputada com garra e no final o placar foi 1x1, como o do primeiro Derby a que assisti. E o resultado final, também foi diferente. Não pude comparecer ao jogo final no Morumbi, no domingo dia 22 de dezembro. Os corintianos tinham comprado praticamente todos os ingressos. Assim, a maioria esmagadora dos 120.522 torcedores que superlotavam o Morumbi era de corintianos. Palmeirenses, somente pouco mais de dez mil torcedores. A equipe alvinegra foi derrotada pela esquadra alviverde com gol do centroavante Ronaldo, aos 24 minutos do segundo tempo. No final do jogo, a minoria de torcedores palmeirenses, para azucrinar o adversário no estádio, gritava "Zum, zum, zum, é vinte e um", em referência a mais um ano que seria somado aos vinte anos do Corinthians, sem títulos. Como se vê, os dois Derbies a que assisti foram opostos em tudo: No primeiro era dia e no segundo era noite; no primeiro havia sol escaldante e no segundo havia chuva torrencial; no primeiro eu estava acompanhado de meus tios e no segundo eu estava sozinho; no primeiro o Corinthians foi campeão e no segundo o Palmeiras foi campeão. Nesse ano comemorei feliz mais um título do meu Palmeiras. 1 (<http://pt.wikipedia.org/wiki/Derby_Paulista> - acesso em 16/9/14)


Brigas

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a época em que fiz o curso ginasial, hoje 6ª série do curso fundamental, os hormônios dos meninos estavam em efervescência. Queriam mostrar que não mais eram crianças e que tinham físico para isso. Pouco importavam os falsetes ou o fato de ainda serem imberbes. O que valia mesmo era mostrar-se destemido e valente. E para isso, nada melhor que uma briga. Não importava o motivo. A briga, em si, já valia a pena para os meninos. E quase todo dia havia uma em frente ao ginásio. Até eu mesmo, que era avesso à briga, tive a minha, que foi, confesso, um fiasco. Longe do ginásio, para não ser suspenso, eu e o Ademar brigamos, mas não teve nenhum de nós machucado. A briga terminou logo com a turma do “deixa disso”. Não saímos como perdedores, mas julgando-nos vencedores da contenda. Mas isso me faz lembrar dois outros casos de brigas. O primeiro caso foi o de uma briga provocada pelo Turquinho. Moleque pequeno, mas bom de briga. Não havia tamanho que o intimidasse. Brigava com quem bem entendia e sempre se dava bem batendo no adversário. Isso fazia com que ele, cada vez mais, ficasse atrevido e

inconsequente. Como já havia brigado com vários colegas, resolveu, não sei por que, brigar com o Ciro. Logo com o Ciro, pessoa calma, pacata e retraída. Ele mal falava, de tanta timidez. Mas o Turquinho resolveu que deveria brigar com o Ciro e nada o demoveu de seu intento. Começou a provocar o Ciro em frente dos colegas. Provoca daqui. Provoca dali. A turma se formando em roda para ver o Turquinho bater em mais um. E o Ciro dizendo que não queria brigar, pois não tinha nada contra o Turquinho. Entretanto Turquinho não o deixava em paz. E assim foi até que o Ciro virou para mim, tirou os óculos e pediu-me para segurá-los. Mal pequei os óculos e a cena seguinte deixou-nos estupefatos. Nem percebemos como, mas o Ciro, que nunca brigara, tinha derrubado o Turquinho, estava com os joelhos sobre os braços do briguento e começava a estrangular o colega. Estarrecidos, recuperando-nos do choque, pulamos para separar os brigões. Acredito que se não tivéssemos feito isso Ciro poderia ter até estrangulado o provocador. A lição serviu para o Turquinho: parou com seus rompantes. E o Ciro? Ninguém mais se atreveu a provocá-lo. O segundo caso de briga, nem me lembro mais entre quais brigões, foi em frente ao ginásio. Como

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era comum, uma roda se formava tendo ao centro os dois brigões. E era uma torcida barulhenta. Não percebemos, entretanto, que o diretor estava vendo tudo de sua sala, que ficava no andar superior do ginásio. No dia seguinte, quando me preparava para entrar em classe, fui avisado pelo servente, que naquele dia eu estava suspenso. Fiquei surpreso, pois naquela ocasião, não havia feito nada para merecer esta punição. Só me restou ir até a diretoria e procurar saber o motivo de minha punição. Lá chegando perguntei ao diretor a causa de minha suspensão. Ele, com a maior tranquilidade,

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respondeu-me: - Ontem eu vi a briga que houve aqui em frente ao ginásio. Como sei que você estava lá, pelo jeito dos dois brigões e conhecendo quem é o Godoy, deduzi que um deles era você. Então está suspenso e até amanhã! De nada adiantou eu tentar argumentar com o diretor. Infelizmente prevaleceu a fama, imerecida, que eu tinha com o mesmo. Aquela, foi uma punição injusta. Verdade. Eu não era tão terrível assim...


Atleta

Leia ouvindo Roberto Soco Carruagem de Fogo

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arece incrível, quase impossível, mas é realidade: infelizmente sou destituído de habilidades para, praticamente, todos os esportes. Senão vejamos. Natação: nunca consegui aprender a nadar. Posso boiar, mas só enquanto há ar em meus pulmões. Depois é só reiniciar. Já tentei diversos cursos. Nenhum deu certo. Só consigo me manter à tona, se estou usando uma boia. E tem que ser das boas. Nem nadador medíocre consigo ser. Corrida: se antes já não apresentava condições físicas, ao menos mínimas, agora, com o peso dos anos, e atente que já são mais de 60, além da protuberância abdominal, que teima em não me deixar, correr torna-se quase uma missão impossível. Não adianta dizer que se deve começar de pouquinho e depois ir aumentando. Acontece que, otimistamente, fico só no pouquinho. Judô: pratiquei este esporte, mas foi por um motivo que em outra ocasião conto com maiores

detalhes. Não fui excepcional, mas sim, aquele que fazia direitinho o aquecimento e mal conseguia executar os golpes mais elementares. E olha que eu ia duas vezes por semana para treinar. Não me destaquei. Futebol: foi aqui que descobri ser destinado a apenas assistir aos jogos, mas não jogar. Certa ocasião o grupo de escoteiros, do qual fiz parte, programou uma caminhada pelos arredores da cidade. Na hora marcada, lá fomos nós. Apreciando a paisagem, o tipo de vegetação, alguns animais e as condições do tempo. Chegando a uma fazenda, cujo proprietário já havia autorizado visitá-la, fomos até um espaço amplo e decidimos fazer um “racha”. Metade para cada lado. A partida começou. Como “experts”, os jogadores, todos eles, iam onde a bola corria. Todos atrás dela, inclusive os goleiros. Era um sufoco. Corriase e corria-se, sem resultado concreto. Ao final, os contendores mais que cansados, sem marcar gol, resolveram dar a partida por encerrada “devido às más condições do campo”. Decidimos que o próximo jogo seria em um campo oficial. E assim foi. Com o campo do Operário Futebol Clube cedido a nós, lá fomos para o que, segundo

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achávamos, seria a partida do ano. Descalços, formamos os dois times: os com e os sem camisa. E demos a partida. Para nossa angústia, o campo, que estava molhado devido a chuva da noite anterior, parecia-nos imenso, muito maior do que o da fazenda. Mas não podíamos dar-nos por vencidos. E lá fomos nós, com a mesma tática: onde estava a bola, estávamos nós, só agora tínhamos combinado que os goleiros ficariam

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cada um em seu gol, não participando das demais jogadas. Simplificando: de nada adiantou. Foi um jogo para não se esquecer. Principalmente eu, que decidi nunca mais passar por outro vexame como esse. Hoje, só me proponho a fazer caminhada e olha lá. Esporte? Deixo para os atletas.


Musicalidade FOTO 11

Leia ouvindo Tom Drummond O músico

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inha vida musical teve início na escola. No primeiro ano primário, hoje segundo ano do ensino

fundamental, fui escolhido para pertencer ao coral de alunos. A professora colocou-me entre os alunos classificados como 1ª voz. E eu ia tocando a vida de membro do coral. Certo dia ela chega para mim e transfere-me para o grupo da 2ª voz. Fiquei só um dia e não voltei mais. Afinal, se eu não era da 1ª, não queria ser da 2ª. Ninguém, na ocasião, explicou-me a diferença. Com o passar do tempo Tatuí ganhou seu Conservatório Dramático e Musical. Como não poderia deixar de acontecer, minha

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tia matriculou-me para aprender violino. Era uma dificuldade para eu ler as notas musicais e tirar os acordes no instrumento, mesmo preparando-o com todo cuidado e colocando-o na posição correta. A afinação era por conta do professor. Confesso: não tinha dotes ou qualificação para o violino. Constatando isso, o professor sugeriu que eu passasse a aprender a tocar violoncelo, instrumento para o qual havia poucos interessados em aprender e que futuramente, a orquestra necessitaria. Seguindo a orientação, adentrei o mundo do violoncelo. Aulas e mais aulas. Também, tudo em vão. Não consegui aprender o necessário. Deixei o curso inacabado. Quando eu estava no curso ginasial, atual 5ª série e seguintes do ensino fundamental, resolvi fazer parte da fanfarra. De início só havia disponibilidade entre os corneteiros – como se vê até corneteiro já fui -. Devido a minha forte estrutura, sem na época ser gordo, passaram-me para tocar a tuba, mas

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não gostei e na primeira oportunidade passei ao bombo. Ainda não era o instrumento de que eu gostava. Depois minha experiência foi com o contra surdo, que era um surdo pequeno. Daí foi um passo para o surdo. Com o tempo tornei-me o surdo-mor, ou seja, aquele que dita o ritmo, o compasso da fanfarra. Até aí, tudo bem. Ocorre que o professor de música dos membros da fanfarra resolveu introduzir uma novidade: a mesma deveria fazer evoluções artísticas durante os desfiles. Para complementar, essas evoluções eram acompanhadas da execução de músicas assobiadas pelo grupo. Assim eram feitos ensaios dos membros da fanfarra no anfiteatro do ginásio. Em uma das vezes, estava eu todo compenetrado assobiando a música, a fim de exercer meus dotes artísticos musicais, quando o professor deu um intervalo e falou para mim: - Godoy, pelo amor de Deus, PARE de assobiar! Você está desafinando toda a fanfarra! Após isso, vi que, realmente, não tinha pendores, vocação ou habilidade para a música, salvo, ser ouvinte.


Mentira

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uando garoto, à noite reuníamos cada dia na calçada em frente à casa de um colega. Nessas ocasiões eram contadas, entre outras coisas, as peripécias do dia. Com o tempo estabelecemos que cada um contasse uma história. Não importava o tema. Podia ser sobre qualquer assunto. E olha, assunto tinha de sobra. Mas o forte era contar alguma história que o grupo desconhecia. E assim passávamos horas e horas conversando, até que éramos chamados para voltar para casa. Na época não tinha televisão fácil e os programas radiofônicos eram para adultos. Certo dia quando chegou minha vez de contar uma história, nada me vinha à cabeça. Não me lembrava de nenhuma, por mais fraquinha ou pequena que fosse. Mas tinha que fazer a minha parte, e assim comecei. Fui encadeando isto, aquilo e aquele outro. Juntava parte de uma história a pedaço de outra. Criava situações inusitadas e dava as soluções mais estapafúrdias. Afinal, depois de muito penar, cheguei ao fim da história. Acreditei que, por amizade, eles não fizeram comentário algum sobre minha baboseira. Continuamos o

bate papo e, depois, fomos para nossas casas. Passados vários dias, o Tonho, irmão do Dentinho, na hora de nossa reunião detonou a bomba: - Sabe aquela história que você contou na segunda-feira aqui para nós? - e continuou – Eu gostei tanto que não resisti, convidei o Edu para ouvir você contá-la de novo. Vou dizer, foi a mais bacana destes últimos dias. Merece ser contada novamente! Aí fui eu quem ficou em palpos de aranha. Não me lembrava da bendita história. Nadinha de nada. Nem uma parte que pudesse ligar a outra. Em resumo: se tentasse reproduzir a história, seria um fiasco. A solução encontrada por mim foi dizer que, para não ser enfadonho nem repetitivo aos demais, eu contaria outra história, que acreditava também ser interessante. Minha sorte é que nesse dia eu tinha um caso para contar, o qual, felizmente, salvou minha noite. É, quando se mente ou se cria algo fantasioso, não se consegue contar a mesma coisa duas vezes. Eu que o diga.

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A pesca do Pirarucu

Leia ouvindo Mercedes Sosa Pedro Canoero

H

á muito tempo, quando eu tinha por volta de 11 anos, participei de uma pesca do pirarucu na região amazônica. Naquela época não havia restrições quanto à pesca desse peixe. O início de minha aventura foi logo com os raios do sol surgindo. O primeiro a entrar na canoa foi o pescador, imediatamente seguido de seu fiel cão, companheiro inseparável das pescarias. Fui o último a embarcar e fiquei acomodado na popa – parte de trás – da canoa. Estava atento a tudo o que ocorria e, ao mesmo tempo, em silêncio. Afinal, eu estava ali para acompanhar a pesca do pirarucu. Tratava-se da captura de um dos grandes peixes de água doce. O pescador, com a maior desenvoltura, remava resolutamente, enquanto seu cão, sentado na proa, parecia como que a indicar o caminho das

águas. Eu ia apreciando, além da mata exuberante, os mais diversos tipos de pássaros que voavam despreocupados, não dando a mínima atenção para nós. O trajeto que percorríamos, dava a impressão de ser velho conhecido do pescador e de que navegar por aquelas águas, era a coisa mais fácil e simples do mundo. Após atravessar igarapés e braços maiores do rio, chegamos ao ponto em que se costumava encontrar pirarucu. O pescador colocou o remo no fundo da canoa. Em seguida pegou o arpão, que completo tinha aproximadamente três metros de comprimento e verificou se o mesmo precisava de algum ajuste. O arpão, que ele utilizava na pesca do pirarucu, era composto de uma haste de madeira de lei, um cordão com cerca de 30m, resistente, chamado de arpoeira e um bico, facilmente desmontável, de ferro pontiagudo com mais ou menos dez centímetros, dotado de mais duas farpas laterais voltadas para cima, bico esse que ficava na ponta da haste. A arpoeira passava por um anel, que ficava na haste, tendo uma ponta amarrada à parte mais grossa do bico de ferro e a outra ponta amarrada no banco da canoa. O pescador ficou de cócoras na canoa

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procurando localizar bolhas de ar, que viessem à superfície, depois de expelidas pelo pirarucu. Isto requeria paciência, silêncio e muita atenção. Depois de passado um bom tempo examinando cuidadosamente a superfície do rio, à procura de sinais que indicassem a existência de pirarucu passando por ali, viu bolhas aflorando a superfície. Imediatamente ficou em pé, empunhando o arpão. Homem e instrumentos de pesca pareciam uma coisa só. A tensão era palpável. O silêncio, total. Ao constatar que chegara o momento, com o pirarucu aflorando para respirar, o pescador arremessou o arpão, de forma precisa contra o dorso do peixe. O bico, com o choque, penetrou no dorso do pirarucu e desprendeu-se da haste. O peixe, procurando fugir, inicia uma corrida alucinante, fazendo com que a arpoeira ficasse esticada entre o pescador e o pirarucu. Com seus quase dois metros e aparentando ter cerca de cem quilos, o peixe arrastava a canoa. O pescador soltava e recolhia a arpoeira conforme o pirarucu tentava escapar. E eu ali, sentindo a intensidade daquela cena e presenciando o embate entre dois gigantes, de um lado o homem e, do outro, o pirarucu. Isto me fez lembrar cena semelhante do livro “O Velho e o Mar” de Ernest Hemingway. O cão agora acompanhava o embate latindo, como que dando força ao pescador. Eu, segurando as

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bordas da canoa, sentia os respingos que batiam em meu rosto, deixando-me eletrizado com a luta tendo de um lado a habilidade do pescador e de outro a firme intenção do pirarucu em escapar. Todavia, após um tempo que parecia uma eternidade, o cansaço e a dor fizeram com que o peixe fosse perdendo sua força. Aos poucos, o pescador foi trazendo o peixe para perto da canoa. Depois de grande luta, o pescador conseguiu que o pirarucu ficasse ao lado da canoa. A seguir, o pescador desfechou fortes pancadas na cabeça do peixe, matando-o. Passou uma laçada na parte dianteira do corpo do pirarucu e, com muito esforço, embarcou-o na canoa. O pescador, mais uma vez, concluíra com sucesso sua missão. Após descansar um pouco para recuperar o fôlego, ele iniciou seu retorno para o nosso ponto de sua partida. ... Nisso, toca a campainha do ginásio de Tatuí e retorno à realidade: estava terminando mais uma aula de geografia do professor Paulinho Ribeiro. Eu, bem como meus colegas, mais uma vez, tínhamos aceitado o convite que seu Paulinho habitualmente fazia no início de cada uma de suas aulas: - Preparem-se! Hoje nós faremos uma viagem...


Viagens espaciais Leia ouvindo Gabriel o Pensador e Lulu Santos Astronauta

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gora você ficará sabendo de um segredo “de estado” guardado, até agora, a sete chaves: Dentinho, Celso, Tonho e eu, muito antes dos astronautas russos e americanos, já havíamos viajado pelo espaço. Sim, havíamos feito diversas viagens interestelares. Só agora podemos revelar esse segredo mantido por mais de 60 anos. A base secreta de onde eram feitos os lançamentos ficava em Tatuí. Isso porque era uma cidade pequena do interior de São Paulo e não chamava a atenção de possíveis espiões. Ela estava muito bem escondida e camuflada sob a sombra de uma imensa jabuticabeira que ficava no fundo do quintal da casa do Dentinho. Para disfarçar, mantinha-se ali um galinheiro. As naves eram feitas para cada missão. Qual a alta tecnologia que era utilizada? O material

encontrava-se ali mesmo, à disposição dos astronautas, que éramos nós, todos com idade suficiente para enfrentar os perigos galácticos. Éramos experientes pilotos com idade variando entre sete a dez anos. A fuselagem necessária a enfrentar os meteoritos e o atrito provocado por altas velocidades do foguete eram dois pedaços de bambu que havia no local. A ponta do foguete era amarrada com uma cordinha. Em seguida, para começar a dar forma ao corpo da aeronave, colocavam-se tijolos na parte interna e, para que a parte do corpo ficasse como um retângulo, no final do foguete colocavam-se outros tijolos no lado externo. A parte traseira era fechada por uma fileira de tijolos. Pronto. A aeronave já se encontrava terminada e preparada para a viagem. Para que os astronautas se sentassem, os bancos eram feitos com quatro tijolos empilhados. Todos a bordo, o primeiro piloto ligava os controles invisíveis, que assim o eram para que, no caso de haver alguma falha ou se perdêssemos a batalha e o foguete fosse capturado por alienígenas, eles não conseguiriam desvendar a alta tecnologia empregada na nossa nave. Com todos preparados a nave começava a subir.

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Primeiro lentamente, quase em câmera lenta, Em seguida, aos poucos, a velocidade começava a aumentar. Em segundos estávamos passando pela Lua e em seguida Marte. Logo depois já estávamos navegando entre as estrelas e enfrentando os inimigos que queriam atacar a terra. As lutas necessitavam da atenção e participação de toda a tripulação. Às vezes, depois de vencermos a batalha, a nave estava avariada e tínhamos que, destemidamente, sair do aconchego de seu interior, para fazer os reparos indispensáveis, pois,

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caso contrário ficaríamos a vagar pelo espaço sem poder voltar à terra. Felizmente, e graças às habilidades incríveis dos pilotos, nunca perdemos ninguém nessas nossas viagens. Com o passar do tempo e novos interesses surgindo, a base de lançamento foi desativada, ficando sua lembrança apenas na cabeça daqueles que, embalados pela inocência, souberam criar um mundo mágico para viver.


Inovações

Leia ouvindo Gilberto Gil – A novidade

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osso dizer que tive o privilégio de ver o início da aplicação de muitas inovações, as quais hoje são mais que corriqueiras e passam despercebidas. Uma delas é a tão singela seta automática dos veículos. Um dentista para o qual trabalhei, certa vez, convidou-me para dar uma volta em sua Kombi nova. Era um veículo comprado zero quilômetro. Quando chegamos a uma esquina, ele orgulhoso me fala: - Observe, vou ligar a seta – diz o dentista. O carro contorna a esquina e quando a Kombi completa o trajeto ele diz: - Agora, agora! Veja que eu não vou tocar na alavanca da seta. E nisso, a alavanca volta à posição original.

- Viu? Viu? Ela se desliga sozinha. Não precisa a gente voltar a alavanca à posição original. Realmente, era algo inovador na ocasião. Outra coisa marcante da época, para um grupo de rapazes na ocasião, foi quando o pai de Pedro, outro amigo, comprou um caminhão. - Meu pai comprou um caminhão novo que pode, facilmente, chegar a 100 quilômetros por hora em estrada de pedregulho - contou-nos o rapaz. Isso era uma façanha na época e quase equivaleria dizer que hoje, em uma estrada sem asfalto, pudesse um veículo chegar a 180km/h. A incredulidade era geral. Como isso seria possível? - Você está dizendo isso só para “gozar de nossa cara” – diz um dos ouvintes. - Que nada! É a mais pura verdade! Posso provar – diz o Pedro. - E como você pode fazer isso? - Amanhã, por volta das 10 horas, venham até aqui e vou levá-los para dar uma volta e ver como o caminhão atinge os 100km/h – fala Pedro. Tudo fica acertado. No dia seguinte estamos lá esperando Pedro.

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Na hora combinada Pedro chega com o caminhão reluzindo de novo. Dois foram na cabine e os demais na carroceria. O destino é a estrada municipal que liga Tatuí a Cesário Lange. A estrada tem como calçamento cascalho. No trecho que a estrada tinha uma reta de bom tamanho, Pedro para no início da mesma e avisa gritando, pois o barulho é grande: - Preparem-se, pois vou pisar fundo no acelerador e fazer o caminhão chegar aos 100km/h! E o caminhão começa a rodar. A velocidade começa a aumentar. O velocímetro marca 20km/h, 30km/h, 40km/h, 50km/h, 60km/h. A velocidade já começa a levantar poeira dos cascalhos. A velocidade já está em 70km/h e rapidamente passa a 80km/h. A adrenalina sobe. A trepidação se faz sentir. Com o acelerador no fundo o caminhão atinge 90km/h. A paisagem passa rápido. Uma bobeada e o resultado poderá ser um

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desastre. Agora o velocímetro caminha mais lentamente. Parece que não vai chegar aos 100km/h. Mas Pedro continua a acelerar o caminhão. O velocímetro marca 95km/h. A sensação geral é de que não teríamos o tão esperado 100km/h. Mas Pedro não diminui a marcha. Ao contrário, acelera mais. Poucos instantes depois, o caminhão atinge os “fantásticos” 100km/h. O vento batendo nos nossos rostos dava uma sensação especial e a adrenalina corria à solta. Afinal tínhamos “voado” a 100km/h. ... Pode-se dizer hoje isto não ser nada, é compreensível, mas tem-se que voltar no tempo e na ocasião para aperceber-se de como tudo isso era interessante e mostrava inovações. Atualmente há tantas inovações sendo apresentadas a nós, que não temos tempo para sentir e muito menos para guardar a sensação do prazer em valer-se das mesmas. Isto fora as inovações das quais nem tomamos ciência e que passaram a existir e a fazer parte de nosso cotidiano.


Cicatriz

Leia ouvindo Nação Zumbi Cicatriz

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uando falam que devemos tomar cuidado com as crianças na cozinha, não é sem motivo. Perigos se apresentam por todas as partes: facas, vidros, produtos químicos e outros. Qualquer descuido, por pequeno que seja, pode resultar em danos irreparáveis ou fatais. Posso falar de experiência própria. Quando eu tinha por volta de nove anos, em uma tarde de domingo após voltar do cinema onde assistira a continuação de um seriado e ao filme da ocasião, fui para casa. Lá chegando, resolvi que iria comer algo. Já com água na boca imaginava o bife quentinho esquentado na frigideira e depois, na mesma

frigideira, com o óleo que fizera o bife, esquentar o arroz. Era uma delícia. Não tive dúvida: peguei a espiriteira para preparar o bife. Espiriteira era um utensílio utilizado para esquentar ou fazer coisas como se fosse um minifogão. Tinha um recipiente para álcool e do mesmo saía um pavio para acender. Sobre isso havia o suporte para colocar a vasilha que seria utilizada, no caso uma frigideira. Bem, acendi a espiriteira sobre o fogão de lenha, coloquei a frigideira e o óleo, esperei esquentar e em seguida coloquei o bife. O mesmo estalava no óleo fervente e exalava aquele aroma delicioso. Eu já o antevia em meu prato com o arroz, também quentinho, prontos para eu me deliciar com eles. Quando fui sentir o aroma do bife, mais uma vez, descuidei-me e o acidente aconteceu: bati no cabo da frigideira, ela escorregou do suporte da espiriteira e, como que em câmera lenta, vi o óleo fervente e o bife caindo sobre minha coxa direita, mal coberta pelas calças curtas que usava na época. Não tive tempo para me desviar. A dor foi dilacerante. Gritei de dor. Imediatamente minha

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tia surgiu. Procurou uma toalha, umedeceu-a e colocou sobre a queimadura para fazer o papel de compressa e minorar a dor. Levou-me à Santa Casa e fui medicado. O resultado final foi uma cicatriz imensa e estranha em minha coxa direita. Entretanto, eu tinha que me sentir feliz, pois se fosse um pouco mais à esquerda, hoje eu não teria meus filhos. Passam-se os anos. Eu já moço. Em uma noite, véspera de Natal, antes de sair para a Missa do Galo, fui me preparar para jantar. Havia um dos pratos que sempre adorei: sopa. Aquela era especial. Era sopa de arroz com caldo de feijão, repleta de legumes. Só em lembrar dáme vontade de saborear uma sopa igual. A panela sobre o fogão a gás estava cheia. Liguei o fogo e deixei para esquentar. Passado um tempo voltei e destampei a panela para ver se já estava no ponto certo. Estava quase. Alguns minutos depois tornei a ver o ponto da sopa. Tirei da tampa e pude constatar bolhas se formando e estourando na superfície demonstrando estar fervendo. Estava, portanto, no ponto para ser saboreada. Nesse momento, nem sei como, bati na panela e vi, novamente em câmera lenta, a panela caindo

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e derramando parte de seu conteúdo em minha coxa direita. Sim, novamente minha coxa direita. Nem precisa dizer que a dor foi indescritível. Doía e ardia muito. Tirei a calça, mas não conseguia nem me mexer. Parte da pele se desgrudara da carne. O couro estava “cozido”. Novamente minha tia correu e, vendo o que acontecera, pegou uma toalha úmida e colocou sobre o ferimento. Naquela noite não pude e nem tinha como sair. O tratamento foi longo e demorado. Todavia, temos que ver a parte boa das coisas. Mas o que pode haver de bom em uma queimadura desse ponto? Respondo. Você se lembra da cicatriz em minha coxa originada pela primeira queimadura que tive? Pois bem, a pele que surgiu após a segunda queimadura não tinha mais, sequer, vestígio da cicatriz anterior. Sumiu tudo. A pele ficou sem qualquer resquício da outra queimadura. E o principal: novamente o conteúdo fervente escorreu pela parte direita da coxa, pois se fosse pela parte esquerda, Fernando e Cesar Augusto não teriam nascido.


Teatro Leia ouvindo Lulu Santos De repente, Califórnia

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uanto estudava no final do curso ginasial - 6ª a 9ª séries do atual ensino fundamental -, às noites de quartas-feiras frequentava os ensaios de peças do Teatro Popular do SESI de Tatuí. Via os atores, todos amadores, ensaiando a peça que seria apresentada ao público no final do semestre. Nos intervalos ficávamos batendo papo. Tive participação em duas peças, uma infantil e um drama. Todas com papéis pequenos, pois sempre tive dificuldade para decorar. Minha seara eram os esquetes, encenações curtas e, em geral, cômicas. Nestes eu me saia bem. Lembro-me, até, de um no qual eu e outro amigo fazíamos o papel de dois patrões que tinham dois empregados muito ingênuos e que viviam brigando um com o outro. No esquete, os patrões combinam simular um duelo entre os brigões, com balas de festim para só assustá-los e

no fim fazer ver a eles a bobagem que era viverem brigando. Como era um esquete relativamente rápido e simples, arrumamos duas espingardas para o duelo, sendo que uma não funcionava e na outra colocamos apenas espoleta para fazer barulho de disparo. Por precaução coloquei uma espoleta a mais no recipiente que havia no cabo da espingarda. Na hora do duelo, os dois preparados, é feita da contagem regressiva para o disparo: - Três! Dois! Um! Fogo! E a espoleta não estoura. O rapaz que fez o disparo, rapidamente, tenta novo disparo. Engatilha, dispara, E nada! A plateia assistindo e não sabendo de nada quanto ao drama que se desenrolava no palco pelo não disparo. Nós quatro gelados. Nessa hora tive que improvisar. - Olha o passarinho verde! – disse aos dois que faziam o papel de brigões. Um deles, com presença de espírito, tirou um estilingue de seu bolso traseiro e começou como que a procurar o pássaro. Enquanto isso peguei a espingarda, tirei a espoleta, joguei-a no chão e peguei a outra

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espoleta que havia deixado de reserva. Entretanto ao pegá-la, na afobação, amassei-a e não tinha como desamassá-la. Aí quase morri. Procurei a espoleta que tinha jogado no chão. Achei-a e recoloquei-a na espingarda. Em seguida dei ao rapaz a espingarda e, mentalmente rezando para dar certo ou ter inspiração para uma saída se não disparasse a espoleta, reiniciamos a contagem para disparo. Por sorte a espoleta estourou e o esquete continuou. No dia seguinte, quando houve a reapresentação, prevenimo-nos levando duas espingardas com espoletas, assim, se uma falhasse, a outra dispararia. Desta forma, após a contagem, as espoletas dispararam. Nesse instante pudemos ouvir uma voz da plateia se queixar: - Ah!!!!! Que pena! Eles não falaram do

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passarinho verde! Se a pessoa pudesse imaginar o sufoco pelo qual passamos na noite anterior, jamais iria querer que se repetisse o incidente. Participei de outros, muitos outros esquetes até meus estudos no curso normal de formação de professores. Nessa ocasião fiz minha despedida da “vida teatral” dirigindo e atuando com meus colegas normalistas na peça de Maria Clara Machado “A bruxinha que era boa”. Tudo para arrecadar fundos destinados a parte das despesas de formatura da turma. Sem falsa modéstia, dentro de nossas limitações e do amadorismo nosso, a peça foi um sucesso de público e de crítica. Teatro, agora, só como espectador!


Paixão

Leia ouvindo Gene Kelly Singin' in the rain

Q

uem na vida não teve, ao menos, uma grande paixão? Se ela foi correspondida, ou não, é outra história. Quando se é jovem, com os hormônios correndo à solta, é a coisa mais fácil do mundo apaixonar-se. Comigo não foi diferente. Mas, das minhas paixões, a que explodiu de forma avassaladora foi quando era adolescente. Eu trabalhava em uma loja em Tatuí e tinha uma moça como colega. Inicialmente até eu a achava sem graça e sem maiores atrativos. Verdadeiramente, era uma moça desinteressante. Os contatos do dia-a-dia, entretanto, foram aparando as arestas e, certo dia, aconteceu: pedi-a

em namoro. Era uma sexta-feira. Ela aceitou. Na manhã do sábado, a serviço, tive que viajar para Itapetininga, cidade vizinha, a fim de realizar umas cobranças para a empresa. Cumprida a missão, não via a hora de tomar o ônibus que me levaria de volta e podermos ir ao cinema. As horas não passavam e a angústia era grande. Não dava para voltar a pé, pois a distância era grande. Parecia que chegaria o outro dia e não chegaria a hora do ônibus partir no fim da tarde. Os segundos demoravam o dobro do tempo normal. Os ponteiros não se mexiam. Tudo conspirava para a demora se tornar maior. E eu só pensando na minha nova namorada “tão distante”. Depois de “séculos” esperando, chegou o ônibus. Os dez minutos que o mesmo ficou na rodoviária pareciam horas. Quando começou a andar, dava a impressão de que se uma tartaruga estivesse ao seu lado, o animal ganharia em velocidade. Mal acreditei quando cheguei a Tatuí.

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Corri para casa, tomei banho, arrumei-me e fui ao encontro da namorada. De mãos dadas, fomos ao cinema. Lá, ficamos em um dos disputados cantinhos da sala de projeção. Nem bem se apagaram as luzes, os beijos começaram. Curiosamente estava passando um filme de Walt Disney. Os sons de sinos do filme embalavam as trocas de beijos apaixonados. Assim foi durante todo o filme. Por sorte o lanterninha não veio até nós, pois era costume dele interromper os beijos dos namorados acendendo sua lanterna com o foco no casal, isto quando não os convidava a se retirarem do cinema. Era, no mínimo, constrangedor. Nossa volta do cinema foi como se eu estivesse

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andando nas nuvens. Na rua não existia mais ninguém. Só nós dois. A despedida foi repleta de beijos e agrados. Fui para casa em estado de graça! No domingo, fomos ao cinema. Não foi como na noite do sábado. Os beijos já não tinham o calor da paixão. Parecia que algo acontecera. Não havia o enlevo anterior. Levei-a para sua casa e despedimo-nos, acertando que voltaríamos a ser apenas bons amigos e nada mais. Assim, como se vê, uma paixão que no primeiro dia começou avassaladora e culminou com êxtase, extinguiu-se completa e totalmente no segundo dia. Isto foi uma paixão. Inolvidável, mas paixão e não amor.


Amor

Q

Leia ouvindo Ray Conniff La mer

uando eu tinha 16 anos mudou-se para Tatuí uma família. Eram os pais e cinco filhos, duas meninas e três meninos. A mais velha, que tinha 15 anos, era lindíssima, deslumbrante. E mais: como vivera no Rio de Janeiro, sua pronúncia carioca possuía sonoridade especial e encantadora, deleite para quem a ouvia. Logo, rapazes começaram a tentar se aproximar dela a fim de iniciar um namoro. É de se ressaltar que, naquela época, era costume pedir autorização ao pai da moça para namorar. Quanto a essa garota, ninguém se atrevia a pedir ao pai para iniciar o namoro. Os obstáculos, nesse caso, eram considerados poderosos, pois o pai dela era policial de pouca prosa e valente que não titubeava em valer-se, se necessário, de seus conhecimentos de judô, arte marcial modalidade esportiva de defesa e combate, sem o uso de armas, considerada a mais nobre das artes marciais, da qual ele era instrutor em sua academia. Eu, encantado com a moça, queria namorá-la.

Mas, como enfrentar o pai sem levar uma bronca pela ousadia em pedir a filha em namoro? Após muito pensar, encontrei uma solução: matricular-me em sua academia de judô e, desta forma, tornar-me amigo dele. Comprei o quimono, matriculei-me e comecei a frequentar as aulas de judô, que eram nos fundos da casa dele. Em pouco tempo já gozava da amizade do pai/ instrutor. Não mais era considerado um estranho para ele. Assim, tomei coragem e um dia pedilhe para namorar sua filha. Ele primeiro ficou pensativo e em seguida chamou-a. A garota veio e o pai contou-lhe que eu havia pedido para namorála. Perguntou-lhe se ela também queria namorar comigo, ao que ela confirmou. Ante a resposta, ele deu sua autorização. Iniciamos o namoro. Tudo transcorria às mil maravilhas. A cada dia sentíamos que juntos as coisas tornavam-se agradáveis e prazerosas. Alguns rapazes diziam abertamente que me invejam por ter conseguido namorá-la. Éramos dois enamorados felizes e curtíamos todos os nossos momentos. Passeávamos de mãos dadas. Fazíamos o footing no jardim da praça da matriz. Íamos ao cinema. Trocávamos juras de amor. Planejávamos o futuro. Era como

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que existisse um mar de rosas atapetando nossos sonhos. Mas, como se diz, não há bem que sempre dure e nem mal que nunca acabe. Certo dia, quando estávamos conversando na sala, o pai dela perguntou-me: - Você já está com 17 e minha filha com 16 anos. Suas intenções são realmente sérias? Vai se casar com ela? - Gosto muito de sua filha! – respondi. Tudo caminha para que, no tempo certo, casemo-nos. - Godoy, você tem que se decidir se vai casar, porque se não for logo, tem um primo que me pediu para casar com ela imediatamente – fulminou o pai. Ponderei a ele que eu ainda era estudante e o que ganhava mal dava para pequenos gastos. Como se isso não bastasse, eu não tinha, ainda, condição de oferecer à sua filha nem ao menos o padrão de vida que ela tinha com os pais. Falei, também, que tinha certeza de que eu venceria na vida e teria sucesso. Desta forma, em futuro não distante, poderia oferecer uma vida tranquila à sua filha. Se me precipitasse, casando-me naquele momento, seria temeridade, senão irresponsabilidade minha. O pai ouviu, mas foi taxativo: - Então vocês têm que acabar o namoro para ela ficar noiva do primo e casarem-se. Fiquei chocado, pasmo. O pai dela não me deixava qualquer alternativa que não fosse marcar o casamento. Seria, como que, “pegar ou largar”. 90

Assim, ainda tomado pela surpresa, mas com tranquilidade, decidi: - Bem, amo sua filha. Entretanto, como já expliquei, não tenho condição de casar agora. Só posso dizer que eu e sua filha tivemos momentos lindos. Infelizmente, então, terminamos o namoro e espero que ela seja feliz casando-se com o primo! – completei. Foi triste. Ela se despediu de mim, com os olhos cheios de lágrimas e um choro melancólico, enquanto eu triste e com o coração partido fui embora. Acabava ali uma linda história de amor. Tempos depois fiquei sabendo que não havia primo algum interessado em casar-se com ela. Era apenas o pai tentando forçar nosso casamento. Este foi um de meus namoros em minha adolescência. O tempo passou e, muitos anos depois, encontramo-nos, por acaso. Eu já casado e ela também. Lembramo-nos daqueles tempos, do amor que existiu entre nós quando adolescentes, de como havia sido bom naquela ocasião e que a vida continuou, levando-nos a novos caminhos, novas experiências e novos amores. Despedimo-nos e aí me veio à lembrança conhecido trecho do Soneto de Fidelidade, de Vinicius de Moraes, que diz, quanto ao amor: “Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.”


Bicos

E

stava no final do curso ginasial – atual ensino fundamental – quando comecei a trabalhar, à tarde, em uma loja de Tatuí. Inicialmente ajudava na entrega de gás, cujo botijão era transportado em bicicleta adaptada com um aro que substituía o selim para o acompanhante. O rapaz “titular” das entregas equilibrava dois botijões, um sobre o outro. Com o tempo, passei a fazer o mesmo, pois isto me poupava retornar quando havia a necessidade da entregar dois botijões em um mesmo endereço. O rapaz resolveu entregar três de uma vez. Colocava dois atrás e um no cano da bicicleta, que era mantido apoiado pelos braços dele. Eu, não querendo passar por incapaz de fazer o mesmo, também batalhei e passei a transportar três botijões. Mas não ficou por aí. O rapaz colocou mais um botijão sobre o que transportava no cano da bicicleta, com isto transportava quatro botijões de uma só vez. Novamente, para não ficar atrás, tive que me esforçar para acompanhar o feito. Consegui. Felizmente ele não tentou levar cinco, pois isto já seria demais. Passado algum tempo o dono da firma comprou uma carroça e as entregas passaram a ser feitas, também, com ela. Tive que aprender como conduzir a carroça pela cidade e como tratar do cavalo. Foi uma época divertida.

Com o tempo deixei as entregas de gás e passei a efetuar cobranças e a ficar na loja para atender clientes. Fiz até curso de vendas. Entretanto, continuava a ganhar muito pouco. Certo dia um dos serventes do ginásio perguntou-me: - Você trabalha registrado? - Não! – respondi. - Que tal trabalhar comigo nas horas de folga? – inquiriu o servente. - Pode ser, mas fazendo o que? – perguntei. - Ajudando-me a instalar antenas para televisão nos telhados ou em torres e, também, na troca de fios velhos de recepção. - Mas nunca subi nem em muro! Quem diria em telhado? – expliquei. - Não tem problema! É fácil e eu ensino. Basta boa vontade. Topei na hora. O início foi trabalhoso e difícil. Todavia, em pouco tempo já estava andando normalmente sobre os telhados. Passados alguns meses o servente deixou de fazer esse tipo de trabalho e assumi seu lugar. Arrumei um colega para ajudar-me e serviço não faltava nas nossas tardes. Conseguimos, dessa forma, ter uma fonte de renda extra para nossas despesas de estudantes.

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O serviço executado era impecável. Acabamento irrepreensível e cuidado em não deixar nenhuma telha quebrada que viesse a gerar infiltrações de chuva. Prova da qualidade reconhecida do serviço foi o caso do proprietário de uma grande loja de eletrodomésticos na cidade, o qual, quando precisou instalar a antena em sua residência, não a entregou ao funcionário que fazia este serviço para ele. Se assim fizesse ele não teria nenhum gasto. Todavia, contatou-me para executar a tarefa e pagou-me o preço que eu cobrava. Nas instalações ou consertos que eu fazia, passei a observar que as torres metálicas das antenas residenciais precisavam, periodicamente, de pintura para evitar a ferrugem e dar um aspecto mais bonito. Vi que isso poderia propiciar-me mais renda que apenas realizar consertos de antenas ou trocas de fios de recepção. Iniciei o trabalho de pintura de torres de TV. Os negócios melhoraram sensivelmente. Entretanto, observei que deixava de ganhar mais, pois só dispunha de meio expediente e este era tomado integralmente para pintar só uma torre, a qual variava de 15 a 20 metros de

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altura. Com conceito profissional muito bom e grande procura pelo serviço, o problema resumiase na falta de tempo disponível para assumir novos compromissos. Como resolver o impasse? Esta era a questão crucial. Foi simples: deixei de lado a avidez pelo lucro. Decidi montar mais uma equipe. Assim, com meu colega pintávamos uma torre, ficando eu com 66% do lucro enquanto que da torre pintada pela outra equipe eu ganhava 33% do lucro, valor este que eu deixaria de ganhar se não houvesse essa segunda equipe. Assim, era mais renda para meus bolsos. Desta forma fui fazendo esses bicos até formarme professor primário. Trabalhando de segunda a sábado. A partir de então, nova etapa em minha vida teve início. Mas isto já é outra história. Disto tudo cabe uma reflexão: as pessoas, para vencer, devem perder o medo de enfrentar os obstáculos. Eles existem para serem superados e deixar-nos mais fortes e confiantes para os embates futuros.


Rádio

O

Leia ouvindo Gigliola Cinquetti Non ho l'età

sotaque do tatuiense é carregado e, além disso, há o hábito de se utilizar o diminutivo para tudo. Por exemplo, se estiver acontecendo um tufão ou uma tromba d’água em Tatuí e alguém ligasse de outra cidade perguntando sobre o tempo, receberia a resposta de que estava “ventandinho” ou “chovendinho”. Mas, voltando ao sotaque carregado. Eram os anos 1960 e eu queria corrigir essa minha forma de falar. Como resolver esse problema? Não pretendia fazer como Demóstenes, que para aperfeiçoar a dicção, punha pequenas pedras na boca enquanto falava. Então lembrei-me de quando gravávamos nossa voz, ao ouvirmos a gravação, parecia-nos estranha com os defeitos de dicção se sobressaindo e aparecendo escandalosamente. Pensei: já sei uma forma de corrigir a dicção: serei locutor na rádio local. Com jeitinho fui até o diretor da emissora e

propus-lhe que, à noite, concedesse gratuitamente espaço para notas estudantis. Inicialmente ele relutou, pois há muitos anos houvera um programa estudantil que ia normalmente ao ar até o dia em que seus apresentadores resolveram contar uma historinha, isto nos anos 1940. Era a seguinte: Certa feita, numa sexta-feira santa, um homem, à meia noite, passava sozinho por uma ponte mal iluminada. Veio-lhe à mente as histórias ouvidas de que aquele era o dia em que o demônio abria as portas do inferno para que as almas viessem atormentar os vivos. Nisso ouviu uns sons estranhos como gemidos e “ais”. Apavorado, tremendo e com a fala quase embargada perguntou: - Quem está aí? Em resposta ouviu uma voz vinda lá debaixo da ponte: - Geeennnnteeeee! O apavorado transeunte, com os cabelos em pé, perguntou: - Com quem? E a voz, lá do fundo, com um tom que parecia ira, gritou: - Geeennnnteeeee! Enregelado, o homem ousou a pergunta: - Fazendo o que?

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A voz respondeu: - Geeennnnteeeee! No dia seguinte o programa foi proibido de ir ao ar e aos estudantes foi negado o acesso a programações da emissora por muitos anos. Mas o diretor resolveu dar um voto de confiança à nova geração e, assim, passei a apresentar um programa duas noites por semana. Foi uma dupla vitória: para os estudantes que voltaram a ter acesso à programação da rádio e para mim, que assim, pude corrigir minha dicção. Com o tempo, já fazia parte do corpo de locutores da emissora e cheguei a comandar programas. Nessa época constatei que, no domingo à tarde a audiência da rádio, após as 16 horas, caía assustadoramente. É que nesse horário, naquela época, as pessoas já se preparavam para ir à missa ou à sessão de cinema, ambas às seis horas da tarde. Comecei a estudar que programação poderia levar ao ar e ter audiência, o que atrairia patrocinadores e, consequentemente, renda para pagar o horário e eu ter lucro. Depois de pensar e pesquisar idealizei um programa ao vivo, com a participação de ouvintes através de telefone (isto ainda era permitido). Eu atenderia o ouvinte e o sonoplasta rodaria o começo de três músicas para o ouvinte escolher a que ouviria inteira. Nessa época as músicas eram gravadas apenas em discos de vinil. Tudo dependia da rapidez do sonoplasta na troca dos discos, pois havia apenas dois tocadores de disco no estúdio para apresentar o início das três músicas. Enquanto eu perguntava ao ouvinte qual das três músicas ele escolhia, o sonoplasta segurava os picapes preparados com a segunda e terceira música. Se a escolhida era a segunda ou terceira, soltava-se a música para ir ao ar. Se o ouvinte escolhesse a

primeira, o sonoplasta, rapidamente, trocava um dos discos que estavam nos picapes pela escolhida e a colocava no ar. Para conseguir maior audiência, decidi que todo ouvinte participante ganharia um brinde doado. Eu faria a apresentação e animação, teria um excelente locutor para fazer as propagandas e contaria com o melhor sonoplasta. Após tudo pensado e esquematizado conversei com a direção da emissora e consegui, a “preço de banana”, um contrato por dois anos do horário das 16 às 18 horas. O sucesso foi imediato. Nessa ocasião as chamadas telefônicas eram completadas pelas telefonistas e elas, nas tardes de domingo, eram atormentadas por ouvintes que queriam participar do programa para ouvirem música e ganhar prêmio. E por falar em prêmio, lembro-me de que certa feita, ao buscar o disco que uma empresa doava semanalmente ao programa, a vendedora procurou até achar um disco, que depois ela me contou, acreditava que não conseguiria vender a ninguém. Recebi-o e levei-o à rádio. Lá chegando ouvi-o. Gostei. A emissora não tinha esta música. Propus ao diretor da rádio a troca do disco por outro que a emissora tivesse duplicado. E ele aceitou. Só para resumir: a música, pouco tempo depois, foi um sucesso no Brasil e na Itália. Estou falando da música Non ho l’età, com Gigliola Cinquetti. E o programa? Sem dúvida e sem falsa modéstia, foi um dos melhores da época na emissora. Entretanto, a diretoria da rádio, quando o contrato venceu, não o renovou. Resolveu que ela passaria a realizar o programa. Infelizmente, pouco tempo depois, acabou. Bons tempos.


Tiro de Guerra Leia ouvindo Canção dos Tiros de Guerra

Q

uando servi ao Exército, foi no Tiro de Guerra de Tatuí. Foi época com momentos mais que interessantes. Entre outras coisas, vale a pena lembrar algumas passagens. A primeira é quanto à obediência irrestrita às ordens do sargento. Certa feita, o pelotão formado em frente à sede do Tiro de Guerra, com cada soldado portando um fuzil, comigo em frente a uma das quatro colunas de soldados, foi dada a ordem pelo sargento: - Batalhão, ordinário, marche! Imediatamente, colocamo-nos em marcha. Terminou a rua e começou uma estrada e nós seguindo em frente. A marcha continuava e, com ela, a poeira que subia quase sufocava os soldados do fim das filas.

E o sargento ao lado observando e corrigindo os que estavam com passo errado. Assim foi até chegarmos ao fim da estrada, que terminava perpendicularmente a outra estrada rural. Sem combinar nada, e nem dar sinal algum, os quatro cabeças das filas seguiram em frente e pararam em frente ao barranco da outra estrada e ficaram marchando no lugar. O sargento, espumando de raiva, deu o comando: - Pelotão, alto! - Por que os senhores pararam em frente ao barranco e não foram à esquerda, pois o campo de treinamento do Tiro de Guerra, como os senhores sabem, fica à esquerda? – perguntou-nos o sargento aos berros e espumando de raiva. - É que esperávamos a voz de comando do senhor determinando a direção a ser tomada pelo pelotão – respondi “candidamente”. - Então por que os senhores não escalaram o barranco? – disse ele gritando para nós quatro. - Imediatamente, voltem à sede e me aguardem lá! – ordenou o sargento. E lá voltamos os quatro, lentamente, à sede. Quando ele voltou levamos a maior bronca,

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mas, o pior ficou para o resto do pelotão. Os soldados tiveram que fazer exercícios puxados na estrada poeirenta. Os uniformes, que eram verdes, voltaram vermelhos de poeira. Sem culpa, pagaram pela ira do sargento e nós quatro só ficamos com a bronca. De outra feita, no campo de treinamento do Tiro de Guerra, o sargento foi ensinar como fazer trincheiras. Cada dois convocados tinha que cavar uma trincheira para caber os dois e com profundidade suficiente para ficarem apenas as cabeças de fora. Isso em uma manhã, apenas, e com pá do exército, ou seja, com cerca de cinquenta centímetros de tamanho total. Como é de imaginar-se, um trabalho mais do que árduo. Só escapavam disso dois grupos que iriam aprender, um como efetuar um ataque à “tropa inimiga” e outro seria a tropa inimiga. Consegui ser designado como participantes de um dos grupos da simulação de batalha e escapei de cavar trincheira. Enquanto preparava-me para uma das investidas contra as “posições inimigas”, ouvi o seguinte diálogo entre dois convocados. - João, pode deixar que eu faço a trincheira. Sei que você não tem jeito e nem condições físicas para isso. Imediatamente João “engoliu a isca”: - O que você está dizendo? - Que não vejo condições de você fazer uma trincheira. Só isso. - Pois olhe – respondeu João – eu trabalho no duro e isto é uma tarefa que eu posso fazer com a maior tranquilidade!

- Não estou dizendo que é mentira sua. Mas tudo dá a entender de que você é incapaz de executar este tipo de serviço. - Uma coisa de que não admito é que duvidem de minha capacidade. Dá aqui a pá e deixe-me mostrar a você! O colega, como que a contragosto, passa-lhe a pá. João, imediatamente começa a cavar. Passado cerca de meia hora, o colega fala: - João, você deveria deixar que eu continuasse a cavar. Estou vendo que você já está cansado e não aguenta mais. - Sai pra lá, eu nem comecei a suar direito – responde João, que continua a cavação. Com o buraco quase pela metade, João estava pingando suor pelo corpo todo e o colega volta a dizer: - Está bom João, agora é demais, você pode ter um troço. Deixa que eu continue. Não quero ver meu amigo doente ou tendo um problema. - Fica aí! Agora é que estou pegando o embalo. Isto para mim é moleza – responde João. E o colega se vê “forçado” a deixar João continuar a tarefa. Quando ao final, a trincheira é totalmente cavada por João, orgulhoso ele se gaba: - Pronto! Viu só se sou o fracote que você imaginou? E olha que tenho fôlego e disposição para fazer mais outra trincheira! - Parabéns, pois eu não imaginava que você fosse tão capaz. Puxa, rapaz, você é “um leão” – diz, descaradamente, o colega. Como se vê, os espertos podem usar dos incautos valendo-se da vaidade destes.


Comandando Leia ouvindo Medley no Quartel Soldado do Exército

D

urante o período que servi ao Exército como soldado do Tiro de Guerra, muitas foram as atividades desenvolvidas pelos soldados. Uma delas era fazer a guarda da sede o Tiro de Guerra à noite. Para tanto eram designados soldados para o exercício, sendo que um recebia a função de ser o cabo da guarda. Era ele o encarregado de colocar os guardas nas posições nos limites da sede, inspecionar regularmente a guarda e, nos horários estabelecidos, efetuar a troca da guarda. Isso era feito sem, oficialmente, a presença do sargento. Todavia, sempre escondido, na maioria das vezes ele acompanhava os trabalhos do cabo da guarda. Em uma das vezes em que fui cabo da guarda, segui o regulamento integral e corretamente. Para iniciar, coloquei em forma os soldados que iriam cumprir o primeiro turno. Depois da voz de comando iniciando a marcha, fomos até o primeiro posto. Chegando o grupo ao local que deveria ficar de guarda o soldado, dei o comando de “alto”. Em seguida determinei ao soldado, chamando-o pelo

“nome de guerra” dele, que assumisse seu posto e assim foi feito. Tudo dentro da mais rígida e perfeita ordem. Após isso levei o remanescente do destacamento para a base seguinte, tudo sob voz de comando e eles marchando. Na segunda base, após o comando de “alto”, repetiu-se o processo de deixar o guarda em sua base. Imediatamente depois, o restante do destacamento reiniciou sua marcha até a outra base. E assim foi até que o último guarda se colocasse em sua posição. Voltei para a sede e, de hora em hora, eu fazia a inspeção para ver se estava tudo bem. Depois de três horas, formei outro destacamento para a troca dos guardas do primeiro turno. O procedimento foi o mesmo do anterior, só que desta vez em cada base saía um do destacamento e o que estava na base ocupava o lugar dele. Isso até completar a troca dos guardas. Durante toda a noite repetiu-se o procedimento de troca da guarda, sempre com seriedade e ordem. Não vimos, em momento algum o sargento. No dia seguinte, na hora das instruções que eram dadas na sede do Tiro de Guerra, o sargento parabenizou-nos pelo respeito às determinações militares ao cumprirmos, com seriedade, as determinações para a guarda daquele dia. Mas não foi sempre assim. Em outra guarda fazia um frio intenso. Nosso

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uniforme, mesmo com mais roupa por baixo, não esquentava. Se fôssemos deixar alguém de guarda, quando voltássemos para rendê-lo, poderíamos encontrá-lo “congelado”. - É impossível o sargento vir inspecionar o destacamento nesta noite. Ele não deve sair da cama com um frio destes só para espionar-nos. – comentou um dos guardas. - Mas se ele vier vai ser a maior confusão. – comentei por ser, também, o cabo da guarda naquela ocasião. Depois de muito confabular, chegamos à conclusão de que o melhor a fazer era ficarmos no depósito dos alvos, fecharmos a porta por dentro, colocarmos os quadros de alvo no chão, dois a dois, estendermos um cobertor sobre cada dois quadros, deitarmo-nos com farda e tudo, só tirando os coturnos, cobrirmo-nos para dormir até perto do final da guarda e, só aí, fazermos uma guarda que se encerraria na hora de começar as instruções na sede do Tiro de Guerra. Deu tudo certo até que lá pelas tantas ouvimos uns murros na porta. Pensando ser algum atrevido

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que estava fazendo isso, determinei que um guarda fosse ver o que estava acontecendo. Este, com os pés na cama improvisada, entreabriu a porta para ver quem era. Na hora que abriu, imediatamente ficou em posição de “sentido” e bateu continência. Era o sargento que nos fazia uma “visita”. Não foi só bronca que ele nos deu. Pior! Todos fomos designados para a tarefa de desentupir as privadas da sede. Tivemos que tirar a tampa e, nesse instante, dejetos voaram. O cheiro era insuportável. Tivemos que desentupir os vasos, limpar e lavar o local, jogar desinfetante, limpar e lavar de novo e assim repetidas vezes até que não mais tivesse vestígio dos dejetos. Quando terminamos, os demais convocados estavam chegando para as instruções daquele dia. E, apesar do frio, nós estávamos suando pela tarefa que tivemos de executar. Pensando bem, o castigo não foi mais severo do que o esperado para aquele caso de desobediência e descumprimento das ordens militares superiores.


Emprego

Leia ouvindo Martinho da Vila O pequeno burguês

A

pós formar-me professor primário e técnico em contabilidade, almejando um emprego com melhor remuneração, resolvi partir definitivamente de Tatuí, então pequena cidade do interior de São Paulo, para tentar a sorte na capital. Com dinheiro, mais do que curto, comprei passagem de trem para o vagão da segunda classe, sobrando-me pouco para gastar com as demais despesas que teria na capital até arrumar um emprego e ganhar meu primeiro salário. No domingo, à noite, embarquei em uma viagem a qual, naqueles anos, demorava cerca de seis a oito horas. Hoje pela rodovia leva, no máximo, duas horas. O banco do vagão da

segunda classe era de madeira, mas naquele dia, para sorte minha, vieram vagões especiais com bancos estofados. Em minha cabeça já tinha tudo planejado. Logo pela manhã, chegando à estação Júlio Prestes, eu iria direto para o local da estação onde havia chuveiros para utilização mediante pagamento de pequena taxa. Em seguida me trocaria e colocaria a mala no guarda volumes para sair à procura de emprego. Acreditava que acharia um sem muita dificuldade. À noite, como não tinha dinheiro para pagar uma pensão simples, eu voltaria para a estação Júlio Prestes e escolheria, para passar a noite, um dos bancos que estivesse mais escondido. E assim faria até arrumar um emprego e ter condição de pagar uma pensão. Na viagem sentei-me ao lado de um amigo, que já trabalhava em São Paulo. E a pergunta inevitável aconteceu: - Por que sua viagem a São Paulo? – inquiriu o amigo. - É para eu arrumar emprego - contei-lhe. - E onde você ficará? - perguntou ele.

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- Ainda não sei – disse-lhe -, mas já estou imaginando como fazer. - Esta minha viagem a São Paulo – contou-me ele - é porque trabalho amanhã, segunda-feira, pois na terça, sairei de férias, ocasião em que voltarei a Tatuí. Já paguei a mensalidade da pensão na qual estou – disse-me ele -, isto para não perder a minha vaga na mesma. Aí veio, em um rasgo de generosidade dele e, mais uma vez, minha boa sorte, a oferta: - Se você quiser nesse período de minhas férias, poderá ocupar minha vaga na pensão sem gastar nada – ofereceu-me. Aceitei, imediatamente, a proposta. Chegando a São Paulo fomos até a pensão, na rua Augusto Severo, onde pude tomar um banho e deixar minha mala. Ele me lembrou, então, de que naquela noite eu precisava achar um local para me hospedar, pois só na noite seguinte ele voltaria para Tatuí e sua vaga na pensão poderia ser utilizada por mim. Acertamos, que à tardezinha, ele iria comigo a um hotel simples, que cobrasse baratinho o pernoite. Durante o dia achei o endereço de uma empresa que trabalhava com colocação de pessoas nas mais diversas áreas. Fiz entrevistas e testes. Após as análises recebi uma carta encaminhando-me para uma empresa onde deveria comparecer na terçafeira para ver se seria contratado pela mesma. À tarde, na hora combinada, encontramo-nos na pensão. Peguei uma troca de roupas e lá fomos nós até um hotel que ele conhecia, na praça Júlio de Mesquita. Chegando à portaria do hotel ele explicou ao atendente que queria um quarto de solteiro para

eu ficar por uma noite. Estranhei, na ocasião, o jeito como o porteiro me olhou quando foi dito que era só para mim. O preço pedido pelo pernoite era acessível e cabia em minha disponibilidade financeira daquele momento. Segundo o atendente informou, era norma do hotel receber antecipado. Paguei. Despedi-me de meu amigo na portaria e fui com o recepcionista até o meu quarto. Era no fim de um corredor. Nele só havia, e cabia, uma cama de solteiro e um minúsculo criado-mudo. Para mim, entretanto, tudo bem. Dormi o sono dos justos. No dia seguinte usei o banheiro coletivo que me foi disponibilizado. A diária do hotel não incluía o café da manhã. Assim, tive que tomar café no bar ao lado do hotel. Só tempos depois é que vim a entender o porquê do jeito estranho do atendente ao saber que eu queria um quarto somente para uma pessoa. É que o hotel, na verdade, era um “treme-treme”, ou seja, hotel para encontros de programa. Na terça-feira mesmo arrumei emprego. Poucos dias depois surgiu, para mim, vaga na pensão onde havia ficado inicialmente, graças a meu amigo. Como se vê, tudo depende de como encaramos a vida. Se não somos pessimistas, podemos perceber que até coisas ruins, ao final, costumam resultar em algo bom. E não se diga isto é ser otimista, pois, embora seja difícil, ser realista é melhor, nem pensando no melhor nem no pior. Ah!!! Ia me esquecendo de contar um detalhe: tempos depois descobri que a estação Júlio Prestes fechava à meia noite e, após isso, não era permitido que ninguém permanecesse em suas dependências...


Mal-estar

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m uma quinta-feira, à noite, senti-me mal. Não dava para aguentar o mal-estar. A única solução, naquele momento, foi procurar um Pronto Socorro. Recordo-me que o único encontrado por mim nas imediações de minha pensão foi um Pronto Socorro Cardiológico. Fui examinado e o médico falou que aquilo era devido aos efeitos do remédio tomado por mim para controle de peso. Deu uma injeção e mandou-me repousar. Na manhã do dia seguinte não tinha condição de ir ao trabalho. Pedi à dona da pensão para ligar ao serviço informando isso. Ela o fez e, por uma deferência especial, durante o dia serviu-me chá e refeição. A indisposição persistiu pelo dia todo. À noite fui à estação Júlio Prestes e tomei o trem para Tatuí. Justo nesse dia sentou-se ao meu lado um amigo, que ficou o tempo todo contando suas histórias. E eu com um mal-estar que não passava. O que eu queria era só sossego e mais nada. Todavia a viagem toda, que durava cerca de oito horas, foi só falação do rapaz. Chegando a Tatuí tomei um táxi para casa e lá pedi para chamar o médico que eu havia consultado para controle de peso.

Algum tempo depois ele chegou e examinoume. Seu diagnóstico foi simples: apendicite. - Você está com apendicite e precisa ser operado imediatamente. Entretanto tem que ser em Cerquilho, pois não opero na Santa Casa de Tatuí. O que fazer? Só me restou contratar um táxi para levar-me até Cerquilho. E olha que eu não ganhava muito, nem tinha dinheiro sobrando, mas tratava-se de uma emergência e tinha que ser feito. Acompanhou-me meu primo, que é três anos mais novo do que eu. Lá chegando, fui internado e os procedimentos necessários providenciados. O médico visitou-me no quarto antes da operação e falou para que eu pedisse a um parente mais velho para acompanhar-me após a cirurgia. Dei-lhe o nome e telefone de meu tio. Tomei as primeiras medicações e fui para a sala de cirurgia. Lá me aplicaram soro e anestésico. Dormi. Quando voltei da anestesia estava novamente no quarto e meu tio comigo. O médico falou-me que eu tivera apendicite supurada e, por isso, só pudera retirar a bolsa com pus e limpar a região abdominal. - Coloquei um dreno – disse o médico – Agora

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é repousar. As horas foram passando e eu observando o dreno. Todo contente falei a meu tio: - Olha tio. O dreno está sequinho. Creio que deu tudo certo. Meu tio não disse uma palavra. Apenas olhou para mim e saiu do quarto. Passadas mais algumas horas, ao examinar o dreno, notei que estava todo úmido de secreção. Chamei meu tio e comentei com ele: - Xiiii! tio. Veja só, está vazando alguma coisa pelo dreno. É melhor chamar a enfermeira para limpar. Será que está complicando a operação? Meu tio chamou a enfermeira, a qual, após ver o dreno, limpou o local e disse estar tudo bem e que isso era normal. Só depois, muito tempo depois, vim a saber que o médico, quando eu voltei da sala de cirurgia, havia dito a meu tio que o dreno precisava funcionar, caso contrário a secreção que iria ainda se formar espalhar-se-ia pelo intestino e me envenenaria, levando-me à morte. Por isso, quando falei a meu tio que o dreno estava sequinho, ele saiu do quarto, mas era para chorar porque tudo indicava, então, que a operação não fora bem sucedida. Mas, felizmente, deu certo. No tempo de minha internação soube de casos curiosos, como por exemplo, a de um bêbado que recebeu uma navalhada no abdômen, caiu na

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rua de pedregulho e toda a sujeira ficou em seu intestino. Quando o bêbado chegou ao hospital, os médicos viram o estado dele e concluíram que não tinha jeito. Estaria todo infectado pelas sujeiras e detritos da rua, entre elas toco de cigarro, pedriscos e penas de galinha. Somente restou a eles lavarem os intestinos, recolocá-los na cavidade abdominal, costurar e dar medicação para desencargo de consciência. No dia seguinte, quando a enfermeira entrou no quarto para constatar a morte do bêbado, surpresa!!!!! O bêbado estava apenas com uma ressaca das bravas, mas pronto para sair do hospital. Quanto a mim, contudo, enquanto uma operação comum de apendicite naquela época requeria internação de três dias, a minha durou cerca de um mês. E deitado. Não me esqueço das últimas explicações do médico: - Como seu caso era de apendicite supurada, não pude retirar o apêndice cecal. Só retirei a bolsa com o pus. Dessa forma você poderá, um dia, ter que fazer uma apendicectomia. Em tempo: E viva o século XX no qual nasci, pois se meu problema de apendicite acontecesse no século XIX, seria diagnosticado como “nó nas tripas”, a qual, mesmo com sangrias feitas com sanguessugas ou ventosas, era fatal.


Vestibular FOTO 12

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Leia ouvindo Coral da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco Trovas Acadêmicas

u queria entrar em uma faculdade. Mas qual fazer? Na minha época havia três cursos no então 2º grau: clássico, científico e normal.

O clássico preparava alunos que pretendiam entrar em faculdades ligadas às ciências humanas como, por exemplo, direito. O científico era destinado aos alunos que queriam cursar alguma das faculdades ligadas às ciências exatas como medicina, entre outras. O curso normal formava professores normalistas para ministrar aulas do então curso primário e o destino no curso superior seria na área de educação. Como fiz magistério, restava-me apenas

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administração escolar ou pedagogia como caminho natural. Ocorre que toda essa divisão apontada existia apenas para melhor preparar o aluno a fim de enfrentar o vestibular. Assim, nada me impediria de prestar vestibular, por exemplo, para medicina ou direito. O problema seria eu acompanhar o curso. Desta forma resolvi preparar-me para o vestibular visando entrar no curso de direito. A primeira fase do vestibular consistia em uma prova de português: redação, gramática e literatura. Somente se passasse em português, faria a segunda fase: história da filosofia, latim, inglês e francês. Sim! Inglês e francês e não inglês ou francês. Comecei a estudar com dois colegas. O primeiro, ex-seminarista, estudava história da filosofia em latim. O segundo, por trabalhar em uma empresa de viação aérea, em suas férias, ficava o tempo todo em um país para aprender a língua local. Certa feita, estando na Alemanha, no ônibus da excursão, o guia mandou quem falava inglês sentar-se em determinado ponto do ônibus, quem falava espanhol em outro ponto, quem falava alemão em um terceiro lugar e quem não falava nenhuma delas ficasse em um quarto ponto. Meu amigo estava em pé e o guia perguntou-lhe: - O senhor ainda está em pé. Será que precisa de algum esclarecimento? Posso ajudá-lo? - Ah! Não, obrigado! É que ainda não me decidi em qual lugar vou sentar para poder treinar meu vocabulário. 104

Dá para ver qual era o nível dos concorrentes. Depois de alguns dias senti que minhas oportunidades eram mínimas, apesar de ter feito um curso bem feito no ginásio e no normal. Poucos dias antes de se encerrarem as inscrições para o vestibular, tive um sonho. Sonhei que me encontrei com um colega e, conversando com ele, perguntei-lhe se havia feito algum vestibular, ao que ele, no sonho, falou-me: - Eu me inscrevi para direito na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP, e como este ano houve poucos inscritos, em número inferior às vagas, todos foram chamados sem necessidade de prestar vestibular! Fiquei tão chateado e deprimido com isso que, ainda no sonho, sentei-me na guia da calçada e comecei a chorar de tristeza. Acordei naquela manhã, fui ao serviço e pedi licença por alguns dias para tentar conseguir os documentos necessários para inscrever-me ao vestibular de Direito da São Francisco. Naquela época tinha-se que apresentar todos os documentos antes do vestibular. Se passasse, seria só fazer a inscrição e se fosse reprovado poderia pegar os documentos de volta. Foi uma dificuldade enorme, mas consegui tudo a tempo de fazer minha inscrição. Voltei a estudar com meus amigos. Não fiz cursinho. Antes da primeira prova do vestibular, um amigo perguntou-me: - Godoy, você vai prestar algum vestibular? - Vou! – respondi-lhe.


- E para qual curso? – continuou a perguntar meu amigo. - Direito da São Francisco - disse-lhe. - E em qual mais? – quis saber meu amigo. - Nenhum mais. Só na USP. – contei-lhe - Que pena! Você vai perder o dinheiro da inscrição! – concluiu ele, que já tentara três vezes e não conseguira passar no curso de direito do Largo São Francisco e então entrou em outra faculdade. Mas isso não me desanimou. Chegado o dia da prova eliminatória de português, fui confiante. Na hora da prova, na parte da redação, caiu para dissertar sobre o tema “Cortina de ferro”. Era o ano de 1968, plena ditadura militar. Eu sabia haver, entre os professores que corrigiriam a prova, partidários da ditadura e outros contra. Como falar sobre a Cortina de Ferro e contentar a gregos e a troianos? Foi uma verdadeira ginástica. Posteriormente soubemos que houve até quem, ao invés de fazer dissertação, fez a descrição de uma cortina de ferro. Dias depois, saiu em jornal de grande circulação a relação dos aprovados na primeira fase. Aquele ano, de Tatuí, só havia dois aprovados: eu e mais um amigo. Foi cumprimento de todo mundo. Até parecia sermos astros e olha que ainda faltava a segunda parte. Nas provas seguintes saí-me bem. Na de latim, por exemplo, caiu a tradução de um texto bíblico. Não que eu seja estudioso da bíblia. Curiosamente, no caminho meu da pensão

para o serviço, havia uma livraria evangélica que tinha na porta um cartaz com desenhos mostrando o bom e o mau caminho e essa passagem eu ouvia desde pequeno. Adivinhe qual o texto que caiu para tradução. Sim! “Os dois caminhos”. Havia, entretanto, mais um problema que eu tinha que enfrentar. Tinha que classificar-me em posição suficiente para poder escolher o período noturno, pois tinha que trabalhar durante o dia. Outra curiosidade é a de que os candidatos, ao saírem das provas do vestibular, tinham que passar por trote dos veteranos. É que os vestibulandos, mesmo podendo não ter sido aprovado, sofreriam trote nas mãos dos veteranos. Para complicar, o exame obrigava-nos a fazer o vestibular com paletó e gravata. Para escapar do trote vali-me de uma artimanha: usei um paletó feito com tecido sintético da época, o nycron. Antes de sair ao pátio, tirei a gravata e o paletó. Dobrei-os e coloquei no bolso da calça, para em seguida sair como se fosse apenas um visitante da faculdade. Não fizeram nada comigo, Apenas um ovo atirado passou perto de mim e bateu em um dedo de minha mão. De resto, nada mais aconteceu comigo. Passados vários dias saiu o resultado: Eu e meus colegas, o de Tatuí e os dos estudos, havíamos passado e dois dentro do número exigido para fazer o curso noturno. Às vezes, até um sonho pode fazer com que o sucesso seja alcançado na vida real. 105



Primeiro carro

Leia ouvindo Roberto Carlos O calhambeque

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m 1972, após verificar cuidadosamente minhas contas, resolvi que era a hora de comprar meu primeiro carro. Passei horas e horas pesquisando e escolhendo que carro compraria. A primeira opção foi comprar um Fusca 1967, do que fui convencido a desistir, pois teria havido um probleminha com os carros desse ano. Então passei ao Fusca 1968, mas a diferença entre preço do 1968 e do 1969 era tão pouca! Meus olhos e atenção se voltaram para o Fusca 1969. Nessa época havia um amigo que ia a meu apartamento para estudar. Ele possuía um Fusca tirado zero quilômetro. Pensei: não será melhor eu comprar um Fusca

mais novo, quem sabe um 1970? E do Fusca 1970, fácil, fácil, passei a pensar no Fusca 1971. A ideia consolidava-se cada vez mais. Desta forma eu estaria com um carro praticamente novo e não dependeria mais de favores dos amigos para locomover-me. Fins de semana em feiras de automóveis. Busca nos jornais, pois não havia a internet nesta época. Ler mais e mais sobre como escolher e verificar carros usados. Naquela ocasião os carros eram os novos ou os usados, diferentemente de hoje, que estes são chamados de seminovos. Até fui alertado por um amigo que me contou ter colocado um anúncio dizendo que seu carro era de “único dono”. Quando o pretendente chegou, viu o carro, gostou e pediu para ver a documentação, observou ter sido o carro de outro dono anteriormente a meu amigo. Indignado ele falou: - Mas você anunciou que era o único dono!

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- Sim! - afirmou meu amigo – Sou o único dono dele, não tenho sociedade com mais ninguém sobre ele. Outro amigo contou-me que tinha um carro para vender, mas em péssimas condições. Chegou um interessado, à noite, e pediu para ver o carro. A lataria estava aparentemente sem problemas. Pediu para meu amigo levá-lo dar uma volta, no que foi prontamente atendido, com meu amigo dirigindo. Este, sabedor dos problemas que o carro enfrentava, evitava-os. Assim, a demonstração foi impecável. O comprador, satisfeito, pagou em dinheiro o preço pedido e levou o carro. No dia seguinte o comprador voltou até meu amigo e disse que o carro apresentava alguns problemas. E meu amigo só ouvindo. - Vou deixar o carro aqui – disse o novo proprietário. - O senhor pode deixar – respondeu meu amigo – mas o senhor deu uma volta comigo e o negócio foi feito ontem. Dei o recibo do carro “no

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estado” em que se encontra. Portanto, não desfaço o negócio. Tudo isso me levava a pensar muito. Pensei, pensei, pensei e resolvi: - Vou comprar um Fusca zero quilômetro e pronto! Entretanto, sempre há um “entretanto”, ouvia do meu amigo, que estudava em meu apartamento: - Tão logo eu termine de pagar as prestações do Fusca, vou trocá-lo por um Corcel, que tem mais conforto e não custava muito mais que meu Fusca. Disso concluí: por que comprar um carro, ficar meses pagando-o e pensando em outro modelo, sendo que com um pouco mais já poderia ter o carro dos sonhos? Não precisa dizer mais nada. Meu primeiro carro foi um Corcel 1972 zero quilômetro. Afinal, eu merecia ter como meu primeiro carro um que me trouxesse satisfação e não me fizesse ficar pensando em outro enquanto o pagava.


Chácara Leia ouvindo Paula Fernandes No rancho fundo

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ive vários amigos que ao comprarem um imóvel rural com 1.000m² diziam ter comprado uma chácara. Outros compravam imóveis rurais com 60.000m² e contavam ter um sítio. Como comprei um imóvel rural em Piracaia-SP com cerca de 50.000m², achei por bem denominá-lo de chácara. A parte que me foi vendida era remanescente de uma área bem maior, da qual a Sabesp havia desapropriado a outra parte. A minha chácara, inicialmente, era usada pelo antigo proprietário, como pastagem e havia apenas uma árvore nela, a qual um raio atingiu e queimou. Portanto, não tinha nada. De início íamos à chácara de manhã e voltávamos à tarde. Com o tempo foi feita a terraplenagem e iniciado o plantio de árvores, muitas árvores. As

mudas eram compradas em quantidade tal que eram entregues pelo viveiro de mudas e plantadas por um senhor que fazia serviços avulsos. Encomendada a planta de casa e a mesma aprovada, fez-se o poço, o depósito e, finalmente, a construção da casa e a mobiliamos. O passo seguinte foi fazer a casa para um caseiro. Passado algum tempo, houve o enchimento da represa e fiquei fazendo divisa com um lago lindo. E melhor, fui o primeiro a receber em comodato a área desapropriada e não inundada, que fazia divisa com a chácara, isto perto de 90.000m². Com isto “passei a ter” um imóvel com cerca de 140.000m² à beira de uma represa espetacular. Como havia ainda área livre no meu imóvel, resolvi que deveria plantar algo. Depois de ouvir opiniões, decidi que iria primeiro plantar feijão e em seguida arroz. Para tanto levei amostras do terreno até o órgão competente da Secretaria de Agricultura, o qual após a análise orientou qual correção que eu deveria fazer no solo. Fiz tudo o determinado. Em seguida comprei sementes de feijão certificadas. O plantio foi na época certa. Tudo correu às mil

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maravilhas. A cada final de semana que eu voltava para a chácara, via o progresso. Era o terreno todo coberto com um verde luxuriante e vagens de feijão pendentes. - Isto merece uma foto – falei para o caseiro - mas como não estou com minha máquina fotográfica agora vou trazê-la na semana que vem para registrar o sucesso da plantação – arrematei. Na semana seguinte entrei na chácara com a máquina fotográfica preparada para a foto que registraria o sucesso da minha plantação de feijão. Qual não foi minha surpresa ao ver as folhas verdes da semana anterior naquele momento estavam com muitas e muitas folhas amarelas. - Puxa vida! Preparei com todo cuidado para fazer o cultivo e olha hoje. Que praga deve ter acometido a plantação de feijão? – falei para mim mesmo. Quando desci do carro e o caseiro veio a meu encontro, disse-lhe: - Seu Armando! O senhor viu só como está a plantação? - Vi sim, seu Godoy! Uma maravilha! E eu sem entender nada. - O feijão já começou a madurar que é uma beleza! Dentro de mais um tempo vai secar e poderemos colher. O plantio foi um sucesso! – arrematou o caseiro. Não falei nada a ele sobre a minha ignorância do ciclo da plantação de feijão, mas aprendi que depois de crescerem as vagens com os feijões, as 110

folhas amarelecem e em seguida o pé de feijão seca permitindo que a colheita seja feita arrancando-se a planta. No meu caso, como a produção não era muito grande, depois em uma área forrada, eram espalhados pés de feijão e, com uma vara, batiase nos mesmos para as vagens se abrirem. Em seguida tiravam-se os pés de feijão batidos e restos das vagens, sobrando apenas os grãos que eram ensacados. Esta operação era repetida até serem “batidos” todos os pés de feijão. De outra feita após o plantio e colheita de arroz, também sob controle técnico, aprendi mais uma coisa. A colheita, no caso do arroz em pequena escala é feita cortando-se com uma foice pequena os pés de arroz e depois de preparado, providencia-se o beneficiamento. Recebemos da beneficiadora o arroz já descascado e polido. Mas o interessante ocorre com as raízes do arroz, que ficam rente a terra depois do corte. O pé de arroz volta a crescer e produz, é claro que em menor quantidade, o arroz “de soqueira”. Ou seja, produz mais grãos. E eu achando que cortando o pé de arroz, só restava revolver a terra e plantar nova remessa, ou outro tipo de cultura. Estas foram algumas das experiências que tive na chácara. É! Vivendo e aprendendo.


Chicote na mão FOTO 13

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a edição de 08/01/2014 saiu matéria do economista Cláudio de Moura Castro na revista Veja sob o título “Bagunça tóxica”,

sobre educação, a qual tratava da disciplina na sala de aula. Destacou ele que, entre outras coisas, as dez melhores escolas do Brasil tinham como característica a rigidez quanto à disciplina, ou

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seja, “nada de bagunça” e que “os próprios alunos admitem que conversas e turbulência na sala de aula atrapalham os estudos. A bagunça é tóxica”. Isto me fez lembrar, primeiro, das aulas do doutor José Ignácio Botelho de Mesquita, professor de Processo Civil na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP. Sua postura na sala de aula era invejável. Os alunos respeitavam-no. Durante suas aulas não havia conversa paralela. Se alguém “ousasse” conversar, o mestre imediatamente interrompia sua explanação e voltava seus olhos para os “conversadores”, permanecendo em silêncio. Estes paravam imediatamente a conversa ao se sentirem observados pelo mestre e por toda a classe que se voltava, instintivamente, para a direção dos mesmos. E olha que não era a classe de santinhos, pois o professor de “Estudos de Problemas Brasileiros”, tido como “emissário da ditadura”, durante um ano não conseguiu dar, sequer, uma aula tranquila. Em suas aulas os alunos, imóveis em suas carteiras e fitando-o, batiam cadenciadamente os pés no assoalho da sala de aula, que ressoava como o som de um pelotão em marcha. A segunda coisa refere-se às aulas que ministrei. De início, ainda como normalista, substituía professores que faltavam. Certa feita, enquanto substituía um professor e dava aula para as crianças do então curso primário, atualmente os cinco primeiros anos do ensino fundamental, notei o diretor passando volta e meia pela porta da classe. Dei a aula normalmente e quando terminei, o diretor chamou-me para contar o porquê de suas passadas pela porta da classe: é que aquela era

uma classe das mais turbulentas e, naquele dia, os alunos estavam quietos e sem nenhum grito do professor. No ensino para alunos do colegial, atual ensino médio, e nas faculdades, adotei o método do professor Mesquita, o qual deu resultados excelentes. Isto me faz lembrar algumas situações curiosas. Havia um meu colega, professor universitário, que tentou fazer e mesmo e depois me disse ter desistido, pois os alunos não mantinham o silêncio. Outro, como as minhas aulas na universidade eram as duas primeira, pediu-me para que eu trocasse o horário e passasse a dar as duas últimas, porque como estava não dava: os alunos saíam de uma aula em que eram mantidos quietos e nas outras duas, com ele, até subiam nas carteiras, tal a bagunça. O pitoresco é que nessa faculdade havia avaliação, pelos alunos, dos professores. O diretor mostrou-me uma dessas avaliações, onde constava: “o professor Godoy parece que entra na sala com um chicote na mão para dar as aulas”. Exagero!!!!!! E olha que as aulas nas faculdades, nos dois primeiros anos, eram para cerca de 200 alunos em cada sala. Os professores usavam microfones. Eu, como já fui locutor de rádio, não dava as aulas usando o microfone com receio de empolgar-me e desviar meu enfoque da matéria que os alunos precisavam aprender. Ex-alunos já foram meus colegas de trabalho e rememoravam essas aulas onde a disciplina rígida, tranquila e firme era mantida em benefício do melhor desempenho dos alunos.


Escrever FOTO 14

Assista ao Vídeo Entrevista

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uem manuseia um livro de história, imagina que é fácil coletar e compilar os dados históricos seja sobre que tema for.

No entanto é uma tarefa que requer persistência e paciência, muita paciência. Quantas vezes tem-se que conferir os dados fornecidos, pois mesmo que não tenha havido má fé, pode ter ocorrido erro, o que leva ao descrédito do resultado final. Os relatos verbais são os mais susceptíveis de falhas. Com o passar do tempo a memória pode trair as pessoas. Elas acreditam que estão relatando corretamente, enquanto que, na realidade, o

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ocorrido não foi bem daquele jeito. Outra dificuldade é a falta de alguns documentos. Isto pode ocorrer por motivos diversos como: deterioração pela ação do tempo ou de cupins; algum “esperto” entender que aquilo não tem valor e, por isso, destruir rasgando ou incinerando; omissão involuntária ou proposital na informação da localização do que estamos procurando e, finalmente, má vontade em colaborar. Fatos curiosos aconteceram em minhas pesquisas. Entre eles, lembro-me do ocorrido quando entrevistei uma pessoa para obter a biografia de um personagem importante para a obra. Foram muitas idas até a residência dela, pessoa rigorosa com as colocações e as palavras. Enquanto o texto não ficou claríssimo e conforme o relatado, tive que apresentar o modelo para apreciação, análise, cortes e acréscimos. Mas valeu a pena, porque uma parte importante da história foi resgatada e trazida à tona para o conhecimento das pessoas. Durante muito tempo mantive contato com esse meu colaborador, o qual infelizmente faleceu recentemente. Outro fato merecedor de relato é o do dia em que pesquisando documentos de uma escola, pedi para me avisarem a hora que fechariam. Despreocupado continuei com a pesquisa. Lá

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pelas tantas, percebendo o silêncio, saí da sala, que ficava nos fundos da escola e fui até o bloco principal. Primeiro estranhei porque estava tudo às escuras. Ao tentar entrar vi que a porta estava trancada. Apreensivo, fui até o portão para ver se o guarda estava lá. Mas não estava. Não havia ninguém. Pensei em telefonar para a secretária ou diretora e pedir para abrirem a escola para eu poder sair. Todavia, antes disso, resolvi tentar outro meio para sair de lá sem causar maiores transtornos à direção. Olhei no local e vi uma escada meio torta. Pensei: é ela mesmo que vou usar. Encostei-a ao muro e, pela escada, subi no mesmo. Em seguida passei a escada para o lado de fora do muro, por onde desci. O passo seguinte foi jogar a escada de volta para dentro da escola. Tudo isso com o medo de que alguém visse aquilo ou passasse pelo local e pensasse tratar-se de um ladrão. Mas, felizmente, nada aconteceu. Quantas vezes tem-se que se deslocar para outras cidades em busca de dados essenciais. Mas, ao final, tem-se a satisfação e o prazer em poder apresentar uma obra feita com carinho e fidelidade aos fatos. Vale a pena, mesmo com as dificuldades inerentes ao trabalho de pesquisa, vencer os obstáculos.


Desculpa

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om a saída de um dos sócios do jornal “Correio do Porto”, os demais sócios propuseram-me tornar-me não só sócio, como, também, um colaborador na confecção de reportagens. Inicialmente fiquei preocupado, ainda mais que o editor era um jornalista de renome nacional, pessoa de destaque no meio jornalístico, inclusive tendo ocupado cargo de relevância no Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo. Mas o desafio de vencer em uma nova atividade foi maior e levou-me a aceitar o convite/desafio. Contudo, com o passar do tempo, senti ter que fazer algo, pois, escrevendo para o jornal, poderia ser questionado pelo fato de não ser jornalista. Isto ficou martelando em minha cabeça. Já estava com 56 anos. Na ocasião para ser jornalista havia a necessidade de cursar faculdade de jornalismo. Eu já tinha feito duas outras faculdades. Para que começar outra? Só para gastar dinheiro e tempo que poderia ser utilizado em lazer? Mas a curiosidade e vontade em fazer conscientemente o trabalho, obrigaram-me a decidir: tenho que cursar a faculdade de jornalismo. O passo seguinte foi ver quando seria a segunda época do vestibular, pois a primeira época já fora realizada. Descobri que

seria em janeiro para as vagas remanescentes. Fiz a inscrição. Nas vésperas do vestibular meu filho se casou. A festa foi até de madrugada. Fui para a casa, tomei um banho e me dirigi a Presidente Prudente, a cerca de 90km de Presidente Epitácio. A cada posto de abastecimento eu parava para tomar um cafezinho. Durante as provas, tinha que balançar a cabeça para afastar o sono e continuar respondendo as questões. Voltar para casa foi outro sufoco para vencer o cansaço. Quando saiu o resultado, eu estava classificado. Foram quatro anos, com chuva, calor ou frio, enfrentados, indo diariamente à faculdade no ônibus dos estudantes. Devido a minha idade, vários professores achavam que eu já era profissional e estava apenas procurando obter a graduação para ter o registro profissional como jornalista. De nada adiantavam minhas tentativas de explicação de que eu era um aluno a mais na classe. Eles me tratavam como se aquela minha colocação fosse apenas modéstia. E isso foi até o final do curso. Aprendi bastante e fiz amizades às quais tenho imenso prazer em poder contar, isso entre professores e colegas. Como se vê, formei-me com 60 anos de idade 115


e não acho que foi tarde. Depois, na escola da vida, aprendi muito com meu amigo José Aparecido, editor do jornal. Ele não só revisava os textos, como dava as orientações e esclarecimentos de como levar ao leitor a notícia de forma clara e precisa. É um mestre inolvidável. Esta narrativa encontra sustentação para demonstrar que quem quer fazer as coisas certas,

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e vencer, deve lutar não importando a idade. É que algumas pessoas, para justificarem sua apatia e falta de vontade em enfrentar desafios, apegam-se à desculpa de que já estão velhas demais para fazer aquilo. E isto, na realidade, não é desculpa para quem quer realizar seus sonhos. Tudo isto me dá orgulho de ser, também, jornalista.


Chuvisco Leia ouvindo Sérgio Reis – Meu Cavalo Zaino

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ernando, meu filho que atualmente mora em Limeira, certo dia ao dirigir pela cidade viu um cavalo muito magro puxando uma carroça. O animal parecia estar prestes a morrer devido a seu estado físico lamentável. Com pena do animal, Fernando comprou-o, tendo certeza de que o cavalo tinha poucos dias de vida pela frente. Na verdade, o antigo dono pareceu até aliviado por livrar-se do “fardo”. Fernando, na mesma hora, deu ao cavalo o nome de Chuvisco e, como estava de carro, pediu a seu amigo Luís para levar o animal para sua chácara, o que foi feito a pé, por cerca de 10km. O passo seguinte foi procurar uma ração baratinha para não deixar Chuvisco morrer com fome. Chegando à loja, pediu à vendedora que lhe indicasse uma ração para o Chuvisco, seu cavalo, mas a mais barata. Contou que comprara o animal e suspeitava de que o mesmo não tivesse maiores chances de continuar vivo, mas ele queria, ao

menos, dar algo para minorar o sofrimento do cavalo em seus últimos dias. A vendedora, em seguida, trouxe e mostrou a ração mais barata. - Acredito que você está falando desta – disse a vendedora –, acontece que temos outra um pouco melhor e não muito mais cara. Fernando pediu para ver e, após as explicações convincentes da vendedora, decidiu-se por ela. Afinal o preço dessa outra ração, realmente, não era muito maior que o da ração mais barata. - Tudo bem, você está bem servido com essa ração – falou a vendedora -, mas tem uma que é “top”, é melhor ainda e creio ser a ideal para um cavalo nas condições físicas precárias como as do Chuvisco. Se for só para “levantar” o Chuvisco, no começo, seria a escolha mais acertada. Luís lembrou que o cavalo estava “no pó”. Fernando convenceu-se. - Então vai essa outra, afinal o Chuvisco merece ter algo decente ao menos no pouco tempo de vida restante – ponderou Fernando. Nessas alturas o preço da ração havia mais que dobrado. - Já foi dado vermífugo ao Chuvisco? – foi a pergunta seguinte da vendedora. - Ainda não - respondeu Fernando -, comprei o cavalo hoje e creio que o antigo dono não tinha

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essa preocupação. - É indispensável o uso de vermífugo para tentar recuperar o animal – esclareceu a vendedora. Luís concordou com a vendedora, afirmando ser isso verdade, o que convenceu Fernando a comprar, também, o vermífugo sugerido. Após mais essa compra Fernando pediu que fechasse o pedido, pois acreditava ter comprado todo o necessário. - O animal tem algum machucado? – ainda perguntou a vendedora. - O chuvisco tem alguns “machucadinhos” – contou Fernando, com Luís esclarecendo que eram nas costas. - Sem remédio para os machucados só a ração não resolverá – explicou a vendedora e, trazendo um remédio, esclareceu as vantagens do mesmo e de como utilizá-lo. - Então quero também esse remédio - resolveu Fernando. - Você já pensou em qual tipo de sal irá dar ao Chuvisco? – continuou a vendedora. - Ainda não - informou Fernando – pois, como lhe disse, comprei o Chuvisco hoje, há poucas horas. Luís confirmou isto. A vendedora foi buscar o sal e voltou com dois sacos. - O Chuvisco, como você deve saber, precisa de sal em sua alimentação – disse a vendedora. Temos aqui dois tipos. Este é bom, mas não é como este outro que tem complementos essenciais ao animal e irão ajudar o Chuvisco em sua recuperação. E a diferença de preço é mínima. - Muito bem, então vou levar este melhor apontou Fernando. - Com isso que está sendo comprado, você pode ter certeza, o aspecto do Chuvisco vai melhorar e

pelos novos e sadios nascerão – falou a vendedora –, mas, será preciso escovar para tirar os pelos mortos e assim o cavalo ficar com um aspecto impecável. Você tem um escovador? - Não. Pode incluir um escovador também autorizou Fernando. Antes de encerrar a conta, a vendedora perguntou: - O local onde ficará o Chuvisco tem cerca? - Tem – falou Fernando. - E como ela é feita? – perguntou a vendedora. - Ela é feita com um arame - contou Fernando. - Será que depois de você fazer tudo isso pelo Chuvisco, deixando-o bonito e saudável, ele não poderá fugir dessa cerca que tem apenas um arame? – observou a vendedora. Que tal melhorar a cerca levando um rolo de arame? - É... Bem lembrado! Já pensou se depois de todo o trabalho ele foge e eu o perco? Vou levar um rolo de arame também - disse Fernando. A vendedora fechou a conta. - Onde o Chuvisco ficará? – perguntou a vendedora, enquanto entregava o pedido ao Fernando. - No pasto - respondeu Fernando. - Seria bom você fazer um abrigo com cobertura para proteger o Chuvisco - sugeriu a vendedora. Fernando não se conteve e disse a ela: - Não posso deixar passar sem falar uma coisa a você. Não sei se tudo o que você me disse é ou não verdade. Mas posso afirmar, com certeza: você é uma excelente vendedora. Adivinhe! Fernando e seu amigo Luís, saindo da loja, foram completar a carga da caminhonete em uma madeireira, onde Fernando comprou madeiras e telhas para construir o abrigo sugerido. E o Chuvisco?! Recuperou-se! Hoje está magnífico, uma beleza!


Estação de trem Leia ouvindo Kleiton e Kledir Maria-Fumaça

A

comunidade de Presidente Epitácio, no dia 1º/5/1922, acordou em festa. Finalmente ganhara sua estação da Estrada de Ferro Sorocabana a qual seria inaugurada nesse dia. Novinha: sua pintura branca, imaculada, irradiando luz; seu sino de bronze brilhando como se de metal nobre fosse; seus trilhos e dormentes a determinarem o destino do trem; os pontos móveis dos trilhos, para as mudanças de linha, tratados com material especial que dava, aos trilhos de aço, a impressão de peças moldadas com prata; suas bilheterias impecáveis, uma onde se lia “Leito; 1ª Classe e Cadernetas Quilométricas” e outra “2ª Classe” e um bar sortido com bebidas, salgados e petiscos de dar água na boca. Encimando o portão de saída da plataforma de embarque e desembarque, uma placa indicando que, da capital até aquele ponto, o viajante percorrera 837km, isto devido as inúmeras curvas que haviam no percurso. No lado de fora da estação, para saciar a sede dos cavalos das charretes que fariam ponto ali, um bebedouro circular com água límpida e fresca.

Ainda nas imediações da estação, as primeiras casas de madeira dos ferroviários. Curioso nessa época é que o chefe da estação era personalidade das mais importantes nas cidades, igualando-se a juízes, padres, delegados e demais autoridades. BENEDITO DE GODOY MORONI

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A estação foi palco de muitas partidas que deixaram tristezas, mas, também, foi cenário para inúmeras chegadas que trouxeram reencontros, alegrias e felicidade. Nos anos 1940, em frente à estação, ocorria o footing – passeio que se fazia para paquerar –. Os rapazes se arrumavam, colocando seus melhores trajes. As moças caprichavam ainda mais no visual, a fim de realçarem sua formosura. Olhares tímidos a princípio, mais ousados depois e, finalmente, o rapaz tomava coragem e partia para o galanteio e conquista da moça. Às vezes a tentativa era infrutífera, mas, as bem sucedidas resultaram em muitos namoros, noivados e casamentos. Já nos anos 1960 os jovens, quando iam a bailes em Presidente Venceslau, a ida era de carro, porém, para voltar usavam o trem, quando os rapazes conversavam sobre suas proezas e conquistas e as garotas sobre as paqueras e acontecimentos da noite. Quantos segredos foram revelados, à boca pequena, entre as paredes do vagão de trem. Na chegada dos anos 1980 a estação já não ocupava a posição de destaque no cotidiano da

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cidade. Era importante, mas apenas uma coisa a mais da cidade. Com os anos 2000, após a desativação de seus trens de passageiro, somente cargas passavam em frente a sua plataforma. E depois, nem isso mais ocorria. Daí ao abandono foi um passo. Depredada, sujada, esquecida, tornou-se lugar frequentado por viciados, vagabundos, prostitutas, bêbados, traficantes e etc. Caiu uma parte de seu telhado devido a infiltrações. O bebedouro de animais sumiu. As salas da estação tornaram-se banheiros. Animais abandonados vagueiam por seus espaços. O portão de entrada foi arrancado e em seu lugar uma parede foi levantada. Agora, passados mais de 90 anos de sua inauguração, a pobre estação, como que em seu último estertor, procura manter o resto de dignidade originária exibida orgulhosamente. Entretanto, ao que parece, seus dias estão contados e, infelizmente, em breve poderá deixar de existir, levando consigo parte da história de Presidente Epitácio.


Cadeado do Amor

Assista ao Vídeo Cadeado do Amor

C

om base em observações de viagem à Itália, em 2009, resolvemos, eu e Shenka, que a cidade de Presidente Epitácio deveria ter também um local para que os “Cadeados do Amor” fossem colocados. Assim procuramos um local e o escolhido foi o píer da Orla do rio Paraná. Ali instalamos uma corrente e cadeados foram colocados com os nomes de casais. O fato teve repercussão tão boa, que o programa “Mais Você” da apresentadora Ana Maria Braga, em junho de 2009, levou ao ar matéria mostrando o fato em rede nacional. Funciona assim: o casal que deseja colocar o seu cadeado adquire-o normalmente, o qual ache adequado, escreve seus nomes ou grava no mesmo, coloca junto com os demais, fecha-o e, de costas para o rio Paraná, atira as chaves para que o cadeado não seja mais aberto e o amor perdure

para sempre. Esta já é a terceira versão do “Cadeado do Amor” em Epitácio, com corrente mais reforçada, posto que nas duas vezes anteriores as correntes com os cadeados foram furtados. Como surgiu esta prática? “A lenda dos cadeados da Ponte Milvio já se tornou uma verdadeira atração turística para os namorados. (...) Tudo começou com um romance, Ho voglia di te (Quero-te), de Federico Moccia, um culto para os adolescentes, onde era celebrado o ritual do cadeado, com os nomes dos namorados, eventualmente com uma frase romântica, ligado a um porte da Ponte Milvio. Fechado o cadeado com a chave, e atirando-a às águas do rio Tibre... será amor eterno.” 1 A partir de 2008, a Pont (ou Passerelle) des Arts, ou simplesmente, Ponte dos Cadeados, entre as muitas pontes do Rio Sena em Paris, passou a ter grande quantidade de pessoas que colocam cadeados nas grades da ponte. O gesto passou a ser realizado, também, em outras cidades europeias e ganhou o mundo. Hoje há relatos de sua existência em diversos países como Inglaterra, China, Coreia do Sul, Rússia, Alemanha, Marrocos e no Brasil

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Presidente Epitácio é, senão a primeira, uma das primeiras a ter o Cadeado do Amor. Um caso especial a ser relatado é a de um empresário bem sucedido de São Paulo, que já tendo presenteado sua mulher durante anos com os mais variados tipos de joias, para comemorar os vinte e cinco anos de casados, resolveu fazer uma surpresa dando-lhe algo diferente. Assim, em sua oficina particular, que mantém em casa como hobby, após comprar um cadeado, esmerilhou-o até apagar a marca do fabricante e, ele mesmo, gravou no cadeado seu nome e o de sua mulher. Colocou-o em uma caixa de presente. Veio a

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Epitácio e, no hotel, no dia da comemoração, entre brindes com o vinho Romanée-Conti, deu a ela o cadeado. Segundo a mesma nos contou, foi emocionante. Na mesma hora dirigiram-se ao píer de Epitácio, colocaram o cadeado, fecharam-no e, de costas para o rio Paraná, jogaram as chaves nas águas para selarem suas promessas de amor. 1 . (http://gonio.blogspot.com.br/2010/04/os-cadeados-do-amor-emroma.html) em 28/12/2013.


CAUSOS Vida da

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Zezinho

Leia ouvindo Paul Mauriat Love is blue

Z

ezinho, desde criança, morava ao lado da casa de Celinha. As brincadeiras de infância tinham sempre os dois participando juntos. Não eram crianças feias, apenas “engraçadinhas”. As famílias eram amigas e os dois mais que amigos, eram companheiros um do outro. Foram crescendo e continuaram amigos, mas então somente amigos. Celinha era aluna inteligente, dedicada e esperta. Zezinho, por sua vez, era um aluno mediano, mas de habilidades artísticas as mais variadas. Era um desenhista excepcional. Seus desenhos encantavam a todos. Com o passar dos anos, outras habilidades desabrochavam, tais como escultura, modelagem e música.

A seu amigo de mais confiança Zezinho confidenciava seu amor por Celinha e sua falta de coragem para pedi-la em namoro. De nada adiantava o incentivo do amigo. Zezinho amava Celinha em segredo. Não havia olhos para qualquer outra menina. Celinha já mocinha, entrou para a irmandade católica Filhas de Maria. Zezinho, para poder ficar perto dela, procurou ajudar o padre na casa paroquial. E tanto fez, que certo dia quando precisaram arrastar um cofre do padre, Zezinho esforçou-se demais e teve “hérnia estrangulada” sendo submetido a uma operação às pressas. Nos estudos ele não ia bem. Toda série do ginásio ele repetia. Celinha, já moça, a beleza desabrochara como as flores na primavera. Tornou-se um encanto para os olhos. Zezinho, por sua vez, continuava um rapaz sem maiores atrativos físicos. Eis que aconteceu o inesperado para Zezinho. Carlinho pediu Celinha em namoro e ela aceitou. Zezinho ficou arrasado. O namoro de Carlinho com Celinha ia de

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vento em popa para desconsolo de Zezinho, o qual nem pensava em namorar com outra moça. Afinal, sua musa era Celinha. Isto foi até um dia em que Carlinho e Celinha brigaram. Carlinho, dando mostras de despeito, embebedou-se e em uma roda de amigos, lá pelas tantas, disparou: - Quem quiser, pode namorar com a Celinha. Ela é uma moça que faz tudo para o namorado e quando eu digo tudo, é tudo mesmo! Aquilo era um atestado público contra a reputação de uma moça na época. E isso foi parar nos ouvidos do Zezinho. Curiosamente, o mundo dá muitas voltas. Celinha, em uma atitude inusitada para a época, vai até Zezinho e propõe que eles namorem. A resposta de Zezinho é terrível, mas condizente com a situação e época: - Não dá. Você não é mais minha Celinha! Porém, apesar do choque, Celinha insiste e o amor que Zezinho tem por ela é mais forte. Eles começam a namorar. Tempos depois se casam. Como a vida em sua cidade natal era muito difícil, eles resolvem mudar-se para uma das cidades vizinhas onde ela lecionaria e ele exerceria, oficialmente, a profissão de fotógrafo. O tempo passa e Celinha é convidada para trabalhar na assessoria da Prefeitura. Com isso a renda deles melhorou. O único senão era Celinha ter que frequentemente acompanhar as comitivas do prefeito como sua assessora. A felicidade de Zezinho e Celinha completouse com o nascimento do filho, um menino que 126

ganhara a beleza da mãe. Parecia uma pintura a criança. E a mãe, pouquíssimo tempo após o nascimento da criança, já voltava a exibir as formas esculturais que a natureza, tão generosa, deu a ela, permitindo que Celinha em breve retornasse ao trabalho. Após uma viagem na qual a comitiva do prefeito foi a Manaus e que Celinha acompanhou, um amigo de Zezinho compareceu ao estúdio fotográfico para conversar com ele. A conversa rodou, rodou, rodou, até que o amigo falou a que viera: - Eu vi umas fotos muito interessantes em uma revista de fofocas, que mostra políticos divertindo-se com garotas de programa. Como você é fotógrafo eu trouxe para você ver as fotos, mas a fim de serem analisadas por você quanto a qualidade do material fotográfico. E deu a revista para Zezinho. Quando ele viu as fotos publicadas trazidas pelo amigo, ficou pálido. Como estava em pé, cambaleou e precisou apoiar-se no balcão para não cair. Em várias fotos estavam Celinha e outras moças, nuas, em um barco com o prefeito e amigos divertindo-se com muita bebida à vista. - Você me dá licença – pediu Zezinho – deixe a revista aqui, que depois verei direito. Tenho que atender a um compromisso já assumido anteriormente. Por isso preciso fechar o estúdio agora. - Até qualquer hora – disse Zezinho despedindose do amigo. O amigo saiu. Zezinho fechou a porta e ficou no escuro, em silêncio, pensando em sua vida. Sempre amara


Celinha. Fizera tudo e mais alguma coisa para agradá-la. Tinha aceitado ficar com ela, mesmo Carlinho tendo-a reduzido a farrapos. Mudara de cidade para deixar de fora tudo e teve que fazer novos amigos e nova vida. E em troca recebe isso? O ódio e o sangue ferviam em sua mente. - Chega, basta! - pensou Zezinho. - Assim não dá mais. Como pude ser tão cego? Qual o sentido de minha vida? Fiz tudo pela Celinha e ela acabou comigo. Como posso encarar os amigos de minha cidade natal e os desta cidade? Quando eu passar pela rua, o que falarão por minhas costas? Como enfrentar isso? E como nessas horas a razão deixa de existir, Zezinho só viu uma solução: lavar sua honra com sangue. Sim, matar os dois, o prefeito e Celinha. Não pensou em mais nada e nem mais raciocinou. Foi até a escrivaninha, pegou a chave que mantinha consigo, abriu as gavetas e da primeira retirou a caixa onde guardava o revólver. Colocou mecanicamente as balas no tambor. Respirou fundo e saiu. Caminhou pela rua, com decisão, apenas retribuindo os cumprimentos dos amigos que encontrava no percurso até a casa do prefeito. Lá chegando Zezinho sobe as escadas e chama o prefeito. Em cidades pequenas isso é muito comum. O prefeito recebe-o e convida-o a entrar. Ainda em pé na varanda, Zezinho, sem titubear, saca do revólver e, sem dizer uma só palavra, dispara dois tiros, a queima-roupa, no peito do prefeito, que cai fulminado. Ninguém passava pelo local naquele instante. Agora só o

corpo ensanguentado jaz no chão. Zezinho vira-se, desce as escadas e toma o caminho de sua casa. Lá chegando pega a revista e dirige-se, com passos decididos, até o quarto deles, no qual sabia estar Celinha. No curto caminho, entretanto, já via a cena: contaria a ela que sabia de tudo quanto às viagens de orgia dela e ele, fazendo papel de idiota. Ela iria negar e ele atiraria a revista onde ela e as outras moças estavam estampadas nuas na maior orgia. Ela tentaria argumentar de que devia ser algum engano e ele diria que não havia engano algum. Ela começaria a chorar e, entre lágrimas, pediria perdão e ele, irredutível, com o revólver apontado para ela, diria que já matara o prefeito e agora poria um fim nisso tudo. Celinha suplicaria pela vida, ele diria que ela não merecia viver e que ela jogou fora a vida dos dois. A vida que ele sempre dedicara a ela e ela desperdiçara. Fizera ele de palhaço, de motivo de chacota, de zombaria e de escárnio. Em um gesto final descarregaria o resto das balas naquela ingrata. Só assim poria fim àquela desgraça que se abatera sobre ele e lavaria sua honra. Zezinho, ao chegar ao quarto, parou na porta e deparou-se com Celinha sentada à beira da cama dando os seios para o filhinho, de poucos meses, mamar. Aquele quadro provocou um efeito devastador em Zezinho. Desmontou-o por completo e paralisou-o. - Oi Zezinho – disse Celinha ao vê-lo-. Veja como nosso filho está tranquilo. É uma criança linda. Tão pura, indefesa e dependente. Zezinho apenas fez um sinal afirmativo 127


e silencioso com a cabeça. Disfarçadamente escondeu o revólver, foi até Celinha e à criança. Curvou-se e deu um beijo na cabeça da criança, afagou-a e se afastou. Foi até a sala, sentou-se em sua poltrona favorita, repassou toda sua vida até o momento da constatação do infeliz que era. Afinal, não tivera a coragem de matar a mulher infiel, por causa de ela estar amamentando o filho deles. Devagar foi erguendo o revólver até que

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este ficou na altura de seus olhos. Fitou-o longa e demoradamente. Depois, lenta, mas decididamente, colocou o cano na boca e, com o polegar, sem pestanejar, acionou o gatilho. Um tiro fulminante. A morte foi instantânea. Aquele dia, no pequeno necrotério da cidade, irônica e dramaticamente, os corpos de Zezinho e do prefeito jaziam, lado a lado na mesma mesa fria de autópsia, à espera do médico legista.


Testemunho Leia ouvindo Sonete Vou testemunhar

C

arlos, finalmente, encontrara a mulher de sua vida: Rosa. Ela era jovial, alegre, bonita e profissional de sucesso. Ele, que sempre tivera casos rápidos com garotas que não queriam maiores envolvimentos e viviam apenas para curtir e passar o tempo, agora, namorando com Rosa, estava feliz. Mas, com o passar do tempo Rosa falou com Carlos sobre a necessidade das pessoas terem uma religião. Ela disse: - Meu amor, você precisava ter sua vida religiosa levada a sério, pois sou uma pessoa verdadeiramente de fé e gostaria que você também fosse. Assim nossa felicidade seria completa. Carlos, que não estava nem aí para com nenhum credo religioso, apenas ouviu e desconversou. Assim, na primeira conversa, nada ficou decidido. Entretanto, com o assunto retornando à baila outras vezes, Carlos resolveu acompanhar Rosa ao

culto da igreja dela. E assim foi. Mesmo não participando efetivamente do culto, Carlos acompanhava atentamente a tudo. Até parecia que ele se convertera à religião de Rosa. Todavia, tudo era feito por Carlos apenas pelo amor que devotava a ela. Certo dia a mulher do pastor chamou Carlos para uma conversa. Ela falou: - Meu irmão, você não pode mais frequentar a casa de Rodrigo, homem casado, que leva, devido à serpente, uma vida dissoluta e de pecado. Se você não acabar com essa amizade, sua presença nos cultos representará a vitória do mal. Carlos, no entanto, era grande amigo de Rodrigo e sua família há longa data. Mas, não querendo contrariar a mulher do pastor, disse que iria pensar seriamente no assunto, para tomar uma atitude. A conversa parou ali. Seu passo seguinte foi encontrar-se com Rodrigo, contar-lhe sobre a conversa que a mulher do pastor tivera com ele e perguntar o porquê dessa antipatia demonstrada por ela, ao que Rodrigo respondeu: - Eu sei o porquê dessa atitude dela, mas não se preocupe, não é nada que eu não possa resolver. Pode ficar sossegado, vou solucionar isso para você

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da melhor forma. Carlos nada mais disse, mas ficou pensando como Rodrigo iria agir. A resposta ele viu no primeiro culto. Carlos ficou surpreso ao notar Rodrigo, sentado entre os fiéis, se tornou maior ainda quando, no momento em que as pessoas foram convidadas a prestar “testemunho”, Rodrigo falou: - Irmãos, a luz do Senhor se fez sobre mim e quero prestar meu testemunho. Aleluia! Os fiéis nem notaram que a mulher do pastor, nessa hora, ficou branca e quase desmaiou. Com passos lentos Rodrigo se dirigiu à frente dos fiéis e, depois de um momento de silêncio, começou: - Irmãos! O Senhor quer que reconheçamos nossos erros e procuremos corrigi-los para sairmos do caminho do pecado e da perdição aos quais satanás procura nos conduzir. Até há bem pouco tempo eu era um pecador. Um pecador, não: um grande pecador. A serpente havia se instalado em meu coração e em minha alma. Nova pausa e depois continuou: - Eu não respeitava o nono mandamento que manda não desejar a mulher do próximo. Os fiéis olhavam magnetizados e prestavam atenção ao testemunho. Rodrigo, continuando, contou: - Eu não só desejava como “conheci”, no sentido bíblico, uma mulher casada. Sim, uma

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mulher casada que vocês todos aqui conhecem. - Sem querer diminuir minha culpa – continuou Rodrigo – testemunho que ela também teve sua parcela de culpa. No início ela se insinuou a mim. Com o passar do tempo as insinuações passaram a ser feitas de forma direta por ela. Sei que eu devia ter resistido a essa mulher que me levava ao pecado, aos braços de satanás, porém, ela agia como Messalina – o símbolo da devassidão - e eu, como um tolo, acreditando que estava sendo “o conquistador”, deixei-me sucumbir à sedução dessa mulher possuída e enviada pela serpente. - Com o passar dos encontros ela se mostrava cada vez tão devassa, ou mais, quanto a própria Messalina. Ela sempre inventava experiências novas, que me levavam à loucura. E olha que sou experiente. Mas ela me fez descobrir coisas de sexo, orgia e libertinagem que eu antes nunca vi ou imaginei existirem ou possíveis de serem feitas. Com ar de arrependimento Rodrigo continuou: - Quando em alguns momentos de lucidez eu tentava dizer a ela que aquela situação não podia continuar, afinal nós éramos casados e nem o marido dela e nem minha mulher mereciam aquilo, ela me calava com beijos e carícias, dizendo que eu era a paixão de sua vida, que eu a fazia sentir-se verdadeiramente mulher, coisa que seu marido não conseguia. Para mim, fraco e pecador, isso enchia meu ego e eu deixava a conversa morrer.


- Mas, oh glória! o Senhor tocou em mim, pobre pecador. Deus baixou sua luz – falou Rodrigo - quando um amigo foi conversar comigo e convidou-me para assistir ao culto, pois achavam que eu estava afastado da religião. A princípio achei bobeira. Para que perder meu tempo? Contudo meu amigo foi persistente na conversa que tivemos e eu resolvi ir ao “bendito” culto. - Mas como o Senhor é sábio. Aleluia, aleluia! Oh Glória! Obrigado Senhor! Os fiéis acompanhavam quase sem piscar o testemunho de Rodrigo, que prosseguiu: - Hoje acordei, e logo de manhã, ao ver a meu lado na cama minha mulher dormindo tão tranquilamente, tão pura, senti todo o peso do remorso pelo que estava fazendo com ela. Tomei uma decisão: iria ao culto que Carlos me convidara e daí para frente deixaria a vida de pecado que levava com uma mulher casada, devassa e pecadora. - E agora, aqui estou para orarem comigo e pedirmos que o Senhor me ilumine e mostre o caminho do bem e da salvação, abandonando, de vez, essa Messalina, a qual tem parte com as obras da serpente, do satanás. Não vou dizer, agora, o nome dessa tentação, pois espero que ela também se arrependa de sua atitude desonrosa, mude de conduta e tenha a humildade de prestar aqui seu testemunho de como o Senhor opera milagres. Oh

Glória! Nesse instante ouviu-se, como que a uma só voz, os fiéis exclamando: - Aleluia, aleluia, aleluia Senhor! Obrigado Senhor! Oh glória! Carlos ficou boquiaberto, não podia nem queria acreditar no que via e ouvia. Com ar compungido, aparentando arrependimento profundo, Rodrigo voltou ao seu assento entre os fiéis. Terminado o culto, Carlos foi procurar Rodrigo para saber o porque daquele seu testemunho. - Agora, falou Rodrigo, você pode continuar seu namoro tranquilo, que ninguém mais vai perturbá-lo. - Mas como? – perguntou Carlos. - Quero dizer que quase tudo falado por mim é verdade. O que não era verdadeiro foi meu arrependimento e muito menos minha intenção de acabar o caso que estou tendo. Com meu testemunho a mulher do pastor não mais vai perturbar você. - Você e Rosa sejam felizes e toquem o barco para frente – disse Rodrigo. - Além do mais, só para você saber, a Messalina de que eu falei em meu testemunho existe. É a filha casada da mulher do pastor.

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Tião

T

ião acordou naquela madrugada decidido a realizar seus propósitos. Raras vezes fazia seus projetos, porque quando os fazia nada dava certo. Entretanto, agora seria diferente. Tinha que ser diferente. Ele não sabia se estava feliz ou triste, mas sabia muito bem como era sua vida. Repassou-a em seus pontos principais. Suzi, sua mulher, com o passar dos anos, mais parecia uma uva passa que o tempo sugara todo o líquido da graça e alegria que tinha quando Tião a conheceu. Na época, ele com 17 e ela com 14 anos. O casamento teve que ser rápido, pois a barriga de Suzi já estava começando a aparecer. Casamento de papel passado, mesmo, não houve. Tião levou-a para morar na casa dos pais dele até poderem ter um lugar dos dois. Pouco antes de Maycon nascer, arrumaram um barraco de dois cômodos em que, praticamente, faltava tudo, mas, afinal, não precisavam dividir com mais ninguém. A água para cozinhar a comida tinha que ser pega no córrego onde, também, lavavamse as roupas e eles faziam a higiene pessoal. Maycon, seu filho mais velho, quando cresceu não tinha nenhuma ocupação. Tinha largado os estudos logo no início do ensino fundamental. Enveredou no uso de droga ainda menino. Aos 16 anos já havia sido completamente dominado pelo crack.

Marcinha, sua filha mais nova, também abandonara os estudos e só queria andar com amigos. Não tinha hora para chegar da rua, sendo que em alguns dias nem voltava ao barraco para dormir. Para piorar, ela agora com 13 anos, estava grávida e nem desconfiava quem seria o pai da criança. E Tião, que não estudara nada, sabia apenas desenhar o nome e não tinha nenhuma profissão. Assim era difícil encontrar um emprego decente. Após um tempão, vivendo só de bicos, arrumou trabalho de desossador no frigorífico. Entretanto, pouco tempo depois, o frigorífico fechou e o serviço acabou. Tião estava novamente desempregado. Ainda era madrugada e só se ouviam os grilos e barulho das folhagens sopradas pela brisa. No mais, tudo era silêncio. Na noite anterior, na passagem do ano, Tião fizera questão de comemorar com Suzi, Maycon e Marcinha. Comeram um panetone que ganharam de uma entidade de caridade e brindaram ao ano novo com uma sidra comprada fiado no armazém do seu João e servida em copos de massa de tomate. Tião levantou-se sem fazer nenhum barulho para não acordar Suzi, Maycon ou Marcinha. Pé ante pé foi até a cozinha. Pegou uma cadeira e levou-a para fora do barraco. Sentou-se, buscou no bolso o maço de cigarros, de onde tirou um,

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que por sinal era o último. Amassou o maço vazio e deixou-o cair ali mesmo a seu lado. Acendeu o cigarro com gestos lentos e deu uma longa tragada. Reteve a fumaça até parecer que seus pulmões iriam explodir, depois foi soltando a fumaça lentamente para o alto. Queria saborear sozinho aquele momento. Foi fumando calmamente, até o cigarro acabar. Jogou o toco no chão e, mecanicamente, pisou-o para apagar. Afinal iria, realmente, cumprir as resoluções para o ano novo que começava. Hoje seria diferente. Tinha que ser diferente. Entrou no barraco e foi para o quarto. Todos ainda dormiam. Olhou para Suzi, rememorou o tempo que se conheceram e de como havia sido bom no começo, antes das agruras da vida. Entretanto via nela, agora, apenas uma mulher sofrida, amargurada e sem esperanças. Tião fitou-a longamente. Em seguida voltou seus olhos para Maycon, que dormia em um colchonete. O filho que os deixara tão felizes quando nasceu e para o qual sonhavam um futuro bom, enveredarase cedo pelo caminho do vício. Tião, naquele momento olhando Maycon, via o filho ainda sem os efeitos das drogas, mas logo que acordasse

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Tião sabia que Maycon iria usá-las e voltaria ao descontrole e aos desregramentos. Com lágrimas começando a descer-lhe pelo rosto, viu o catre em que Marcinha dormia. Tião lembrou-se de quando ela nasceu e foi a alegria por terem, então, um casal de filhos. Aquela menininha travessa e esperta sempre trouxe encantamento a ele e a Suzi. Mas com o tempo Marcinha mudara drasticamente. Começou ainda menina, a ter uma vida irresponsável e degradante que os pais não podiam e nem conseguiam controlar. Ela, naquele momento ressonava suavemente, como que a recuperar-se de noites anteriores mal dormidas. Sim, hoje seria diferente. Tinha que ser diferente. Silenciosamente foi até a cozinha e pegou o machado, experimentou o corte dele. A passos suaves voltou ao quarto. Fitou sua mulher. Lenta, mas decididamente, levantou o machado e, sem titubear, com um golpe violento e certeiro decepou a cabeça de Suzy. O sangue imediatamente empapou o travesseiro. Os filhos nem ouviram o barulho do machado a cortar a garganta da mãe. Virou-se e, da mesma maneira de como fizera com Suzy, deu uma machadada precisa no pescoço de Maycon, com tamanha força, que rasgou parte


do colchonete. Tião estava resoluto, iria até o fim. Com a mesma decisão ergueu novamente o machado pingando sangue e com um só golpe matou a filha. Nenhum grito no barraco. Nenhuma lamentação. Nenhum sussurro. Só o silêncio cortado pela respiração ofegante de Tião. Joga o machado ensanguentado no chão. Evita pisar na poça sangue, que já se espalhava pelo cubículo. Na cozinha mexe na caixinha onde guardavam o pouco e raro dinheiro que tinham para as despesas. Pega os últimos trocados que estavam nela. Joga no chão a caixinha vazia, sai, fecha a porta do barraco e ruma para a rodoviária. Estava decidido: tomaria o primeiro ônibus, não importava o destino. Só queria ir para longe, bem longe do lugar que se tornara seu inferno em vida. Tentaria vida nova. Quem sabe? Sentia que agora, finalmente, poderia dar certo e ser diferente. No caminho ele parou no bar do Ari para tomar um cafezinho e comer um pão com margarina. Quem o visse nem imaginaria a tragédia que acontecera alguns momentos antes. No bar, após ser atendido e nem bem começara a comer, eis que chega Tonhão, bêbado e encrenqueiro do local e que pede a Tião para

pagar-lhe uma pinga. Este faz de conta que nem ouviu o pedido e continua a tomar seu café. Tonhão começa a ficar bravo e insiste. Tião não responde. Tonhão não se dá por vencido: para chamar a atenção de Tião dá-lhe um empurrão no ombro. Isso faz com que Tião derrame quase todo o café que está tomando. Tião manda Tonhão ir embora, senão iria apanhar ali mesmo. Tonhão não se intimida e retruca dizendo que não havia naquele bar nenhum homem para causar-lhe medo e que Tião não era nada. Tião começa a sair do sério. Como o bêbado não arreda pé, Tião vê que só dando um corretivo no Tonhão resolveria a questão. Desencosta do balcão, ergue o punho com a mão fechada preparando-se para desferir um soco em Tonhão, mas o que ele não esperava é o bêbado, em uma fração de segundo, sacar de uma faca velha e enferrujada e enterrá-la no peito de Tião. Caído no chão, a vida esvai juntamente com o sangue se espalhando e formando como que uma moldura para Tião ali caído. O Sol começava a aparecer. Era o primeiro dia do ano.

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Hábitos curiosos

E

xistem hábitos que são, ou foram, ao menos curiosos. Quando garoto, um dos hábitos que existia entre os homens era o de cortar as unhas e deixar grande a unha do dedo mínimo de uma das mãos. Não sei se tal medida era para fazer a higiene auricular, a nasal, ou sei lá para o que. O fato é que era comum. Eu, entretanto, nunca adotei isto. A um, porque não via nada de interessante nisso e a dois, por ter unhas extremamente fracas e que lascavam ou descamavam facilmente. Também era costume de comerciantes fazerem as contas e as anotações a lápis. Para não perderem o lápis e terem-no sempre à mão, usavam prendêlo atrás da orelha. Isto devia causar inveja àqueles que tinham orelha de abano, pois nestes, o lápis nunca ficava preso. Hoje isto não existe mais. Se a orelha ainda fosse utilizada para colocar nossos instrumentos de calcular, veríamos calculadoras e não lápis. Sem dúvida, seria muito estranho. As mulheres costumavam usar em sua maquilagem o pó de arroz das mais diversas marcas, como o Cashmere Bouquet e depois o ruge para dar colorido, sendo que hoje o utilizado

é o blush. Esta introdução toda é para contar o caso de minha amiga Carmen da Silva. Ela tinha o hábito de usar somente pó de arroz, pintar o contorno dos olhos e mais nada. Nem ruge, nem batom. Nada mais. Confesso, era uma figura, ao menos, “diferente”. Mas o que mais causava estranheza em seu visual era que ela tinha cabelo relativamente curto e penteava-o para trás. Detalhe: o cabelo na parte de trás da cabeça ficava sem ser penteado. Ficava arrepiado e desgrenhado. Aquilo provocava olhares, pelo menos, estranhos de quem se encontrava com Carmen. E os amigos dela? Como falar com ela sobre isso? E se ela ficasse magoada? Afinal, era uma moça com um coração de ouro, mas uma cabecinha, no mínimo, faltando algum parafusinho. Situação difícil. Mas amigo de verdade precisa tomar decisões em benefício do amigo, que se encontra precisando ser alertado sobre algo não percebido por ele. Após muita hesitação resolvi falar com ela. Com jeito perguntei: - Carmen, por gentileza, esclareça para mim uma coisa: por que você penteia seu cabelo na 137


parte da frente e deixa sem pentear a parte de trás? A resposta dela, de tão simples e inocente, deixou-me sem espaço para contra argumentar. Ela contou-me: - Ora, eu me preocupo em pentear meu cabelo somente na parte da frente, pois quem conversa comigo fica em minha frente e não está vendo a parte de trás. Então, pra que pentear a parte de trás do cabelo? Bobagem e perda de tempo – afiançou

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a moça. Tempos depois os fatos confirmaram a tese da Carmen. Foi quando, no último encontro nosso, ficamos frente a frente. Eu fitando o rosto dela, a parte da frente de seu cabelo e nada mais. Por sinal, no momento nem atentei para isso. Pouco tempo depois, triste, saí de seu velório.


Namoro a três

Leia ouvindo André Rieu My Heart Will Go On

A

nos atrás havia o footing, especialmente nas cidades pequenas. Era quando, em determinado lugar, os jovens iam passear à procura de alguém para se flertar ou se namorar. Em Epitácio o footing já foi em frente a estação da Estrada de Ferro Sorocabana e, depois, na praça da matriz. Em Tatuí era na praça da matriz. Lá havia o coreto, onde a banda se apresentava, e os apreciadores das músicas ficavam sentados à volta do mesmo. Dois canteiros circundavam o coreto, sendo que neles, frondosas árvores permitiam brisas suaves e agradáveis. Entre os canteiros e após o canteiro externo era o local do footing. Os rapazes à direita caminhando, lentamente, no sentido horário e as moças, no seu lado direito iam pelo sentido anti-horário. Assim, em uma só volta, os rapazes e as moças se viam duas vezes. Era o momento das trocas de olhares furtivos, olhares mais ousados, galanteios e convites para umas palavras que pudessem levar ao namoro.

Mas, em Tatuí, sem que houvesse qualquer determinação ou norma escrita, cada círculo do footing tinha uma característica. No interno, logicamente menor, desfilavam os jovens da classe média e rica. Na externa faziam o footing os menos abastados e os trabalhadores das fábricas. Isto não significava que eram impossíveis os contatos entre os membros de cada círculo, mas não era comum. Em uma cidadezinha do rincão brasileiro na qual, também, era usual o footing, certa noite, um rapaz e uma moça que o faziam estavam passeando com uma senhora entre eles. De início pensouse que a senhora seria a mãe passeando com seus filhos, mas depois se ficou sabendo, que a senhora era mãe da moça. Esta senhora, precavida e temerosa dos arroubos que pudessem ocorrer entre a filha e o namorado, chegava ao extremo de ficar junto e entre deles enquanto namoravam. No footing lá ia ela entre eles. Os namorados não podiam nem se darem as mãos, pois entre eles estava a mãe da moça. E a senhora agia com “cara de paisagem”, não estava nem aí. No cinema era hilário. Os três juntos e ... a mãe da moça sentada entre os dois. Nem ficar pertinho podiam. A mãe, guardiã da filha, firme separando o casalzinho. A bem da verdade, os três, naquela

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situação, realmente assistiam aos filmes. Também pudera, podia ser diferente? Quando voltavam de algum passeio, ficouse sabendo que na sala, os três ficavam sentados no sofá, com a mãe da moça entre eles, estática. As conversas entre o casal de enamorados era, integralmente, ouvido pela senhora, que não falava nada. Só ouvia e fiscalizava os dois. No conceito dela, quanto mais vigilância, menos possibilidades de intimidades maiores. Afinal, naqueles tempos uma moça poderia ficar “mal falada” se terminasse um namoro sério ou noivado. Isso ela não queria para sua filha. Depois, ela sabia que na idade de sua filha e do namorado os hormônios estavam em atividade máxima. O perigo rondava os dois. Qualquer descuido poderia ser desastroso para a reputação intocada de sua filha. Da imagem de ridículo inicial passou-se, com o tempo, para imagem comum e própria dos três: a mãe da moça sempre no meio do casal de namorados. Certo dia explode uma bomba na cidade: A moça estava grávida! Mas como? A mãe não só não se desgrudava dos dois, como ficava junto, entre eles em todos os momentos e como, então, puderam ficar sozinhos?

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Especulações surgiram. Boatos circularam. A imaginação correu à solta pela cidade. Só depois vazou o que aconteceu realmente. Foi o seguinte: Depois dos passeios e de ficar conversando na sala, o casal se despedia, na frente da mãe da moça, sem ao menos um beijinho. O rapaz saía da sala, atravessava o corredor e saía pelo portãozinho, onde recebia os acenos da moça e da mãe dela. Em seguida o portãozinho era fechado com um cadeado e as duas entravam na casa. Ele, entretanto, ao virar a esquina parava e esperava cerca de 20 a 30 minutos. Passado esse tempo olhava para ver se não havia ninguém na rua. Se houvesse, continuava parado como quem não quer nada e se não tivesse ninguém, voltava furtivamente à casa da namorada. Com todo cuidado pulava o portãozinho, caminhava silenciosamente, pé ante pé, pelo corredor até chegar à janela do quarto da namorada, puxava as folhas da janela e saltava para dentro do quarto da moça. Lá eles ficavam à vontade pelo tempo que queriam e precisavam. Daí a explicação simples para a gravidez dela. Os enamorados, quando querem, sempre acham tempo para eles.


Cemitério Leia ouvindo Michael Jackson Thriller

D

e segunda a sábado Luciano trabalhava de balconista na loja de calçados. Não era um trabalho estafante, mas requeria estar sempre de bom humor e cordial com a clientela. Tinha que saber como lidar com as vontades e caprichos do comprador. Uma cliente, após serem trazidas caixas e caixas de sapatos, queria determinado modelo que não tinha mais o seu número e de nada adiantavam os argumentos de Luciano para escolher outro que ficariam bem para ela. Outra, depois dele baixar a prateleira toda, no fim dizia: - Vou pensar. Pode ficar sossegado que depois volto. Mas voltar, que é bom, nada. Cansado, mal tendo tempo para lavar o rosto e colocar a camiseta do curso de madureza que frequentava de segunda a sexta-feira à noite, lá ia Luciano para as aulas. Chegando, ia direto para a classe e, durante as aulas, esforçava-se, ao máximo,

para aprender. Tinha algumas limitações, é certo, fazendo que ele sentisse alguma dificuldade em acompanhar as aulas, mas conseguia vencer as etapas. A duras penas, mas vencia. O sábado à noite e o domingo era quando ele se dava para divertir-se. Diversões simples como ir ao cinema, fazer o footing na praça principal da cidadezinha em que morava e trabalhava. Foi em um footing da noite de sábado que Luciano notou Cristina. Os olhares, inicialmente, foram trocados timidamente e, depois, mais atrevidamente insinuavam que uma química parecia estar se criando entre eles. Luciano toma coragem e pergunta a Cristina se poderiam conversar um pouco. Ela, encabulada, concorda. Eles param perto do coreto e começam a conversar. Em pouco tempo combinam que eles se encontrariam na porta do cinema para assistirem ao filme que estava passando. Tratava-se do filme de terror “Drácula – o vampiro da noite”. Ele fica exultante, afinal Cristina é uma linda moça, pouco mais nova que ele. No dia seguinte vão ao cinema e, depois da sessão, ainda comentando o filme que fora amedrontador, Luciano leva Cristina para casa. O caminho ela vai indicando para ele, mas isso

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nem importa a Luciano. Ele está fascinado por Cristina e a presença dela o faz esquecer-se de tudo o mais. Após uma boa caminhada, chegam até o portão da casa da moça. A conversa segue por mais uns breves momentos, pois Cristina tem que entrar. Despedem-se e Luciano volta-se e começa a ir embora. Está em êxtase. Afinal Cristina era uma moça que lhe permitia antever o quão feliz ele poderia ser, só pelo fato de estar perto dela. Ela já havia entrado na casa. Luciano estava como que ainda andando nas nuvens, como se estivesse acordando aos poucos de um sonho bom, mas passa a aperceber-se do local em que se encontrava. Olhou melhor e constatou que estava em uma viela mal iluminada, deserta e, para complicar, localizada atrás do cemitério. - Como não vi isso? – perguntou-se Luciano – E agora! Já é quase meia-noite! Mas, enchendo-se de coragem, começa a caminhar. Chega à rua atrás do cemitério e ruma para o caminho mais curto, à esquerda. Quando chega à esquina do cemitério, tem que dobrar à direita e ainda lhe restam cerca de 500 metros de outra viela que tinha de um lado o muro do cemitério e de outro o muro de um campo de futebol cheio de árvores que projetavam 142

suas sombras no passeio público. Luciano para. Olha aquela viela deserta e que agora lhe parecia com mais de um quilômetro de extensão, com apenas um poste no início dela, um no meio e outro no fim. Agravando tudo isso, as lâmpadas, de fracas, mais pareciam tomates do que luzes. - Voltar? Jamais! – pensa Luciano. - Já imaginou que por algum motivo Cristina sai e me vê voltando para pegar outro caminho? Com certeza vai achar-me um covarde! Não! Isso nunca! – são pensamentos que correm pela cabeça do moço. Com um frio correndo-lhe pela nuca, os pelos arrepiados e os nervos à flor da pele, ele inicia a caminhada. - E se algo aparece pra mim aqui? O que vou fazer? Nesta hora não tem viva alma para ajudarme. A solução que me resta agora é continuar – raciocina Luciano. Como a lua está à esquerda, o chão se enche de sombras, que projetadas pelas copas das frondosas árvores do campo de futebol deixam o lugar mais lúgubre e amedrontador. Depois de um tempo, que pareceram séculos a Luciano, ele está quase chegando ao meio da viela. Foi quando notou que no meio da mesma o muro do cemitério tinha um portão gradeado. Nova onda de arrepio subiu-lhe pela espinha. -E agora? Já pensou se eu ao passar pelo portão do cemitério e olhar lá dentro vejo um vulto igual


às vampiras do filme? Mesmo que só na minha imaginação, como vou ficar? – imagina angustiado Luciano. O medo aumenta a cada passo dado por ele e o portão, que inicialmente parecia um fio de luz, vai aumentando, aumentando, aumentando, aumentando, até que está ao lado direito dele. Ele estanca seus passos, com os olhos ainda voltados para o fim da viela. Recusa-se a encarar o portão e o que se descortinaria dentro do cemitério. O medo já é tamanho que suores escorrem e chegam ao pescoço. Enregelado pelo pavor, vai virando lentamente a cabeça em direção ao portão. Vira, vira, vira, até encarar o cemitério que está banhado pela luz do luar. Tumbas, anjos e estátuas projetam suas sombras negras sobre os túmulos. Mas, por sorte, nenhum movimento ou som saem do cemitério. Luciano reinicia sua caminhada para o fim daquela viela. Nesse instante ele se lembra de que no final daquele muro do cemitério ficava o necrotério. O impacto do filme de terror que assistira ainda se fazia sentir na cabeça de Luciano. Junto com o medo inspirado pelo local que atravessava, tudo era inominável. Agora só lhe restava metade do caminho a percorrer. Estava apavorado, mas ia terminar.

E vai chegando perto da construção que abriga o necrotério. A cada passo a distância diminui entre ele e o necrotério. O medo, por sua vez, aumenta. Quando chega bem ao lado do necrotério, banhado pela luz mortiça do poste do fim da viela acontece o inesperado. Luciano ouve um barulho que lhe parece ensurdecedor. Parece o barulho do fim do mundo. O coração do pobre rapaz não resiste. Ele cai fulminado por um ataque cardíaco. No dia seguinte, no necrotério, o zelador comenta com o legista: - Coitado desse moço que o senhor está examinando. Ele foi encontrado morto no outro lado do muro. Tão jovem! - É! Não sei, ainda, o que pode ter acontecido com ele! Vamos ver se descobrimos alguma coisa após a autópsia! – respondeu o médico - Judiação, né doutor! – Pra ver que para morrer basta estar vivo! – falou o zelador. - Bem, doutor, preciso terminar de arrumar o armário que fica aqui no necrotério e onde guardo as ferramentas. Hoje de manhã, quando cheguei, vi o armário caído e todas as minhas ferramentas no chão por causa dos pés dele que se quebraram, atacados pelos benditos cupins. Tive que amontoar as ferramentas lá fora para poderem colocar o moço aqui e o senhor trabalhar! - concluiu o zelador.

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Festa no presídio

Leia ouvindo Jerry Fielding Escape from Alcatraz

G

enaro era um próspero comerciante no sul do Brasil. Seu tino empresarial era notado por todos. Seus negócios iam de vento em popa e crescendo. Ganhou muito dinheiro. Ficou, verdadeiramente, rico. Entretanto, isso não era suficiente para ele. Queria ficar mais rico ainda. Com sua inventividade resolveu ampliar sua fortuna de forma mais fácil. Para tanto resolveu que criaria uma máquina para fabricar dinheiro. Assim, o passo seguinte foi aprender como funcionava uma tipografia. Viu como fazer impressão de qualidade. Onde adquirir papel e tintas similares aos utilizados para fazer dinheiro. As primeiras notas fabricadas não ficaram boas e ele as queimou para não deixar prova do que estava fazendo. Após várias experiências, o produto final se mostrou satisfatório. Passariam facilmente no

comércio. E ele assim o fazia, entre outras coisas, saldando seus compromissos com o dinheiro fabricado em sua máquina pessoal. O negócio corria às mil maravilhas. Genaro, “empreendedor”, resolveu expandir seu negócio com notas falsas. Começou a vendêlas a interessados rigorosamente selecionados. Mais lucro para ele. Enquanto isso, ninguém na família sabia dessa faceta de Genaro. A fortuna dele aumentava dia-a-dia. Nos anos 1940, “a casa caiu”. Descobriram a falcatrua de Genaro. Preso, foi julgado, condenado e encaminhado a uma prisão, no interior do estado de São Paulo. Genaro, todavia, não era homem de dar-se por vencido ou derrotado. E, durante as visitas que seus familiares lhe faziam, contou-lhes: - Tenho um plano para fugir desta prisão, mas preciso do auxílio de vocês. – falou-lhes Genaro em particular. - Na próxima visita eu dou maiores detalhes. –concluiu Genaro naquele dia. O passo seguinte: foi pedir uma entrevista com o diretor do presídio. Concedido o pedido, Genaro, na sala do chefe

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falou: - Como terei que passar muitos anos preso aqui, quero criar um bom ambiente para eu poder enfrentar minha pena sem maiores problemas. Se o senhor autorizar, com despesas por minha conta, gostaria de fazer uma festa de Natal para todo mundo aqui no presídio. O senhor permitiria? - Aguarde que amanhã eu lhe dou uma resposta. - disse o diretor. No dia seguinte Genaro foi chamado à sala do diretor. Lá chegando este deu o resultado do pedido: - Como é para todos, em uma data de confraternização e caridade cristã, bem como será uma festa sem despesas para o erário público, você tem a autorização para fazer a nossa festa. Genaro agradeceu e foi levado de volta à sua cela. Na visita seguinte, os familiares dele receberam as instruções a serem transmitidas aos empregados: - Combinei com o diretor e vou organizar uma festa de Natal no presídio. Quero que vocês providenciem a vinda de muitos tonéis de vinho de minha vinícola. Bastante bebida e tem que ser vinho bom. Vocês usem quantas mulas forem necessárias para o transporte. Aqui eu me ajeito. – concluiu Genaro. Os empregados seguiram à risca o determinado e, às vésperas do Natal, o presídio estava abarrotado com tonéis de vinho trazidos pelos empregados. Mas, o que o diretor não sabia é que, juntamente com os tonéis de vinho, os empregados levaram um baú cheio de disfarces, tais como perucas, bigodes,

chapéus, bonés, bengalas, charutos e roupas. No dia da festa a alegria era geral. O vinho era bebido como água por todos, menos Genaro e seus empregados. Estes serviam aos funcionários nas dependências internas do presídio e aos presos, que estavam no pátio, através das grades do portão. Enquanto isso Genaro, por ser o patrocinador da festa, circulava livre, leve e solto pelo presídio, sem ser importunado ou interceptado por ninguém. A bebedeira foi geral. Lá pelas tantas, com o diretor, os funcionários e os presos caindo de bêbados, Genaro continuou com seu plano de fuga. Perto da hora de partida do trem, trocou de roupas e saiu tranquilamente pela porta da frente da prisão, acompanhado por seus empregados. Não havia nenhum funcionário sóbrio e em condição de impedir a fuga dele. Os empregados deixaram Genaro na estação, com o baú, para tomar o trem que partiria em pouco tempo. Ele comprou a passagem, tomou o trem e fugiu para São Paulo. Os empregados pegaram as mulas e imediatamente voltaram para o sul. Lá viveu confortavelmente por muitos anos, até que se sentiu em perigo. Não teve dúvida, mudouse para o Rio de Janeiro e continuou sua vida de bon vivant, sem ser molestado por ninguém, até morrer tranquilamente em seu apartamento de cobertura. Genaro sempre dizia a seus familiares: - Preso eu não vou nunca ficar! Afinal, sou um sulista guapo, tchê!


Lagoa Leia ouvindo A Lenda do Abaeté Dorival Caymmi

E

stamos nos anos 1950 e a cidade é São Paulo. Batista tinha uma vida modorrenta e insípida. Era um pacato contador de uma fábrica de tecidos. Sua rotina de manhãzinha era fazer sua higiene pessoal, arrumar-se, preparar sua marmita, sair em seguida, tomar o bonde 47 e depois descer quase na porta da fábrica. Lá, levava sua marmita para o refeitório onde ela seria aquecida na hora do almoço. Às 8 horas, batia o cartão de ponto, ia até sua sala no escritório e iniciava suas atividades rotineiras. Ficava envolto em papéis até o meio dia, quando batia o cartão, ia ao refeitório, pegava sua marmita já aquecida com as demais e almoçava. Depois a lavava e a guardava para levar embora. Batista, na sua hora de almoço, aproveitava para ler o jornal que era disponibilizado na empresa. Às 13 horas, novamente, batia o cartão e voltava para sua mesa a fim de trabalhar. No final

da tarde, às 17 horas, encerrava suas atividades, batia o cartão, tomava o mesmo bonde 47, mas sentido contrário ao que tomara pela manhã e retornava do serviço para sua casa. Isto era feito religiosamente por Batista. Entretanto ele não se sentia bem, pois o salário era muito pequeno e mal dava para cobrir as despesas essenciais dele. Batista queria melhorar seu padrão de vida. Foi então que ele resolveu fazer faculdade de Direito. Preparou-se estudando à noite na biblioteca pública. Prestou o vestibular e passou. Foram tempos difíceis, porém ele os venceu e formou-se advogado. Com bom relacionamento que tinha na empresa, não foi difícil receber uma ajuda da chefia. O chefe dele tinha amizade com um assessor do governador. Batista, devido a seus conhecimentos adquiridos nas aulas de direito, foi nomeado delegado em uma cidade perto de São Paulo. Naquela época não havia necessidade de concurso para esta função. Batista assume e começa a viver uma vida nova. Agora ele passa a conviver com “ladrões de frango”, punguistas, larápios, prostitutas, gigolôs, briguentos, valentões e bandidos. 147


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Com isso, seu jeito pacato vai deixando de existir. Afinal, sua nova realidade se constitui em ver, ouvir e conviver com crimes. Em pouco tempo Batista se transforma. Passa à truculência e autoritarismo em suas ações. Seus chefes, de início, achavam normal a atitude dele. Contudo, com o passar do tempo, até os chefes sentem que algo precisa ser feito. Exonerá-lo? Não! Batista fazia bem, muito bem seu serviço. A solução foi designá-lo para uma cidadezinha no “fim do mundo”. Chamam Batista e, alegando estarem promovendo-o, designam-no para a referida cidadezinha. Batista não gosta, mas o aumento salarial proposto é compensador. Ele aceita. O passo seguinte foi preparar sua mudança. Desfez-se de parte das coisas, pois seria mais prático comprar outras na região a que ia e com o resto das coisas tomou o trem para o local determinado. Comparado ao local que trabalhara, neste novo local quase não havia nada. Era pequena a cidade, todavia, como ele constatou, logo que chegou a violência grassava ali. Era a lei do mais forte. O revólver é que resolvia grande parte das questões. Para Batista isto não foi problema, pois seu aprendizado anterior lhe foi de grande valia. Durante o dia envolvia-se com seu trabalho. À noite, quando a delegacia fechava, ele para espairecer tomava umas e outras. Não era incomum a vizinhança ouvir os disparos de tiros que ele fazia dentro de sua sala enquanto treinava

tiro ao alvo na parede. Entretanto, os vizinhos se acostumaram. Passados alguns anos depois que ele voltou para São Paulo, é que os moradores da localidade ficaram sabendo de como era hábito dele agir com marginais perigosos, valentões e bandidos temidos pela população, os quais, após serem presos, dias depois simplesmente sumiam da delegacia sem deixar vestígio de seus paradeiros. Um de seus ajudantes, a boca pequena, revelou o segredo até então mantido a sete chaves: - O doutor, quando tinha alguém que não tinha jeito, à noite, algemava-o e tirava-o da sela. Fazia entrar no carro do doutor, que ia até um município vizinho. Dirigia-se até a lagoa famosa que existe lá. Parava o carro na beira da lagoa, que por sinal era larga e profunda, mandando, em seguida, o preso descer. Depois, com o revólver em punho e engatilhado apontado para o preso, abria as algemas e mandava que o mesmo tirasse a roupa, toda a roupa. Sob a mira do revólver engatilhado, não havia quem ousasse desobedecer à determinação de Batista. A seguir o doutor dizia que o preso nadaria na lagoa e ficaria livre se a atravessasse. O preso via, então, sua oportunidade de se safar. O aterrador era a observação seguinte. O doutor dizia que a travessia tinha que ser feita com a cabeça dentro d’água e se a tirasse, ele atiraria. O que sei – continuou o ajudante – é que ninguém conseguiu atravessar a lagoa. Se alguém revirar essa lagoa, vai encontrar muitos esqueletos no fundo dela, pode ter certeza. Essa era uma realidade não muito diferente de muitos outros lugares deste nosso Brasil.


Créditos das ilustrações

Todos os esforços foram feitos para determinar a origem das fotos usadas neste livro. Nem sempre isso foi possível. Teremos prazer em creditar as fontes caso se manifestem. Arquivo de Shenka Eugênia Luiza Coser Loyolla de Godoy Moroni: fotos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 Arquivo de Benedito de Godoy Moroni: fotos 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e foto da quarta capa

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Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo N.º 54, de 1995). Este livro foi composto nas tipologias Adobe Garamond Pro, Esmeralda Pro e Gotham. Contém cerca de 40.000 palavras e 200.000 caracteres.

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Nesta obra têm-se fatos vividos pela Shenka e, também, pelo autor, desde suas infâncias – ela em Epitácio e ele em Tatuí –, passando pela juventude deles – ela em Presidente Prudente e Botucatu e ele em Tatuí e São Paulo -, até seus dias atuais em Presidente Epitácio. Não se trata de biografia ou autobiografia, mas sim mostras de lembranças e vivências pessoais distribuídas em dois blocos: Casos da Shenka e Casos do Godoy. Em um terceiro bloco, Causos da Vida, há criações literárias, as quais podem até ser associadas a fatos reais, mas nesta obra, na verdade, são montagens ficcionais elaboradas pelo autor.

N

asci em Tatuí/SP no dia 8 de outubro, mas fui registrado no dia 17/11/1944 e tenho dupla nacionalidade: brasileira e italiana. Cursei o Primário em grupo escolar, fiz o exame de admissão e entrei no curso Ginasial, onde repeti o primeiro e o terceiro anos. Depois me formei professor primário cursando o Normal. Fiz todos estes cursos em escolas públicas. Durante esse tempo, no período livre, trabalhei na iniciativa privada e fui radialista. Em 1964 mudei-me para São Paulo onde continuei o curso de Técnico em Contabilidade. Concluído este curso entrei na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na USP, onde me formei em 1972, esta, também, escola pública. Continuei trabalhando no setor privado e lecionando inicialmente no ensino fundamental e depois no ensino médio e posteriormente no superior. Em 1979 formei-me no curso de Pedagogia da Faculdade Pinheirense. Anos depois deixei a iniciativa privada e passei para o serviço público estadual de São Paulo. Desde 1991 moro em Presidente Epitácio, onde me aposentei. Com 59 anos de idade, em 2003, formei-me jornalista pela Faculdade de Comunicação Social da Unoeste, exercendo o jornalismo em Presidente Epitácio, como editor, nos jornais Correio do Porto, A Fronteira e Orinho.Com, bem como correspondente do jornal prudentino O Imparcial. Pertenço ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, à Academia Venceslauense de Letras onde ocupo a cadeira nº 28, à Associação Prudentina de Escritores e à Agape – Academia Geral de Artes de Presidente Epitácio. Atualmente exerço a advocacia, participei de conselhos municipais de Presidente Epitácio como membro e nas horas vagas pesquiso e escrevo. Obras editadas: “História de Presidente Epitácio” (em sua 2ª edição revista, corrigida, atualizada e ampliada); “Carnaval: origem, evolução e Presidente Epitácio”; “Presidente Epitácio, 100 anos da fundação da cidade”; “Jornalismo Regional” (em coautoria com Reinaldo Lázaro Ruas) e como um dos coordenadores e participante dos livros “Antologia dos Escritores Epitacianos” e “Escritos da Joia Ribeirinha”.

Benedito de Godoy Moroni

godoy.moroni@uol.com.br godoy.moroni@bol.com.br


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