Fotos de
CARLOS MONTEIRO
textos de
NELSON VASCONCELOS
rio
Estado de espÃrito guia dos fantasmas cariocas
Foto de Júlia Ronai
Os dois signatários deste livro convi-
dam você a percorrer uma pequena parte do Rio atrás de alguns fantasmas. Talvez você não os veja, talvez não os perceba, ou talvez eles é que não vejam você – mas sim, fantasmas existem. Dizem. Mais importante que encontrá-los, no entanto, é conhecer um pouquinho da história dos lugares onde eles resolveram passar a eternidade, mostrando que têm bom gosto. É assim que vamos ficar sabendo, por exemplo, por que Dona Maria I, mãe de Dom João VI, continua circulando pela Praça XV – assim como sua vizinha Bárbara dos Prazeres, ali do Arco do Teles. Ou vamos descobrir por que o Theatro Municipal é tão querido por tanta gente que, aparentemente, já morreu. Morrer, neste caso, é um detalhe. Sabe disso o pessoal que vive nos cemitérios da cidade. E por aí vai. Ok, tem gente que não acredita em nada disso. A existência de almas perdidas é, de fato, apenas uma hipótese – o que não quer dizer que elas não existam. Não importa. O negócio é calçar sapatos confortáveis, abrir a cabeça e conferir as histórias que nos cercam. Algumas são boas. Outras, melhores ainda.
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Nelson Vasconcelos é jornalista, botafoguense e carioca. Cobre tecnologia há 20 anos, é fotógrafo muito amador e amante profissional do Rio. Já publicou meia dúzia de livros, gosta muito de violão, história e literatura. Nas horas vagas, é pai de quatro crianças entre 1 e 27 anos de idade. É partidário do “no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.
Carlos Monteiro é carioca da gema nascido no bairro de Santa Teresa, flamenguista, portelense, fotojornalista e publicitário desde 1975. Trabalhou em alguns dos principais veículos nacionais, incluindo a revista O Cruzeiro, Jornal dos Sports. No jornal O Dia publicava diariamente a fotogaleria Alvoradas Cariocas, retratando o amanhecer de algum ponto da Cidade Maravilhosa. Atualmente é colunista de baixa gastronomia para a Revista 29 Horas e publicitário na agência Saravah Comunicação. Tem uma namorada e duas filhas: Liv, do coração e Jade.
A EDITORA A Livros Ilimitados é uma editora carioca voltada para o mundo. Nascida em 2009 como uma alternativa ágil no mercado editorial e com a missão de publicar novos autores dentro dos mais diversos gêneros literários. Sem distinção de temática, praça ou público alvo, os editores ilimitados acreditam que tudo e qualquer assunto pode virar um excelente e empolgante livro, com leitores leais esperando para lê-lo. Presente nas livrarias e em pontos de venda selecionados, tem atuação marcante online e off-line. Sempre antenada com as novidades tecnológicas e comportamentais, a Livros Ilimitados une o que há de mais moderno ao tradicional no mercado editorial. Copyright © 2017 by Carlos Monteiro e Nelson Vasconcelos Copyright desta edição © 2017 by Livros Ilimitados Conselho Editorial: Bernardo Costa John Lee Murray ISBN: 978-85-63194-589 Projeto gráfico e diagramação: John Lee Murray Ilustrações, produção e assessoria: Carla Dels Direitos desta edição reservados à Livros Ilimitados Editora e Assessoria LTDA. Rua República do Líbano n.º 61, sala 902 – Centro Rio de Janeiro – RJ – CEP: 20061-030 contato@livrosilimitados.com.br www.livrosilimitados.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
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A minha mãe, Margarida Monteiro, que me ensinou, desde sempre, que há luz no mais profundo silêncio e que é possível enxergar com “olhos” de ver. A todos que voltaram a ver pelos seus olhos e ensinamentos. A Luciana Chong, dos olhos de mar. Carlos Monteiro Tudo junto e embolado: Ana, Luísa, Vitória, Daniel, Cris, Marcio, Clélia, Cacau, Filipe & você. Com todo meu carinho.. Nelson Vasconcelos
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índice Apresentação..............................................................................11 A casa é sua. E de muito mais gente...........................................13 Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.............................17 É o que dizem.............................................................................19 De onde viemos? Para onde vamos?............................................21 Onde tudo começou...................................................................24 No meio da baía..........................................................................44 Dor e resistência.........................................................................52 Almas nobres..............................................................................64 Coisas que acontecem.................................................................74 Sem dó nem piedade...................................................................84 Mas o alferes não morreu............................................................96 Diga lá que vou ficando............................................................ 106 Ó vida, ó céus............................................................................ 116 Questão de sensibilidade........................................................... 126 Eu, hein.................................................................................... 136 A história mais assustadora do Dom João VI .......................... 146 Vamos a bailar .......................................................................... 156 Os livros têm poder................................................................... 168 De olhos bem abertos............................................................... 178 Do além para o palco................................................................ 184 Eles só aparecem quando querem............................................. 198 Alminhas do bem..................................................................... 204 Para entrar na história............................................................... 214 Bota pra correr ......................................................................... 226 A boemia não morre jamais...................................................... 236 Coisas entre o céu e a terra....................................................... 247 Ver para crer ou crer para ver? Vá saber..................................... 251
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“Meninos, eu vi!” Gonçalves Dias “Para os que creem, nenhuma palavra é necessária; para os quem não creem, nenhuma palavra é possível.” Inácio de Loyola
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APRESENTAÇÃO Joaquim Ferreira dos Santos
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Rio de Janeiro é uma cidade cercada de fantasmas por todos os lados. São fantasmas de índole pacífica, integrados ao espírito turístico da cidade e parecem servir apenas para arrepiar os cabelos da garota de Ipanema, deixá-la ainda mais surpreendente. Carlos Monteiro e Nelson Vasconcelos são caça-fantasmas ao estilo carioca, dois jornalistas de muita experiência, que já viram fantasmas em todos os recantos da cidade e agora resolveram dar o bisu, dizer onde eles podem ser achados. Bom... Na verdade, o Nelson não vê nada, mas acredita no que o Carlos diz (e diz que fotografa). São caça-fantasmas no bom sentido da palavra, porque querem mais é que eles continuem soltos por aí – como o de Carlos Gomes no Municipal ou Dom Pedro I no Paço Imperial – e tornem o Rio uma cidade com mais atrações além das muitas que já tem. Paris tem os seus queridões, a Torre de Londres está cheia deles. O Rio também tem seus fantasmas queridos e deles se orgulha, na certeza de que uma civilização se faz também com seus mortos, com a possibilidade de tê-los ainda por perto e não se assustar com isso. Que tal ter a companhia de Dom João VI quando visitar a Biblioteca Nacional?
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A CASA É SUA. E DE MUITO MAIS GENTE Carlos Monteiro
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um sábado desses, não tão longínquo, estávamos eu e Nelson numa cena bem carioca: aboletados num boteco no Bar Vinte, cadeiras e mesa de plástico, lá no finalzinho de Ipanema, onde outrora o bonde fazia a volta, juntinho ao bucólico Jardim de Alah, nosso bom Alah, tomando umas Serramaltes, comendo amendoim torrado embalado em pequenos tubetes de papel rosa e azul, oferecido por um ambulante em sua lata fumegante adaptada para ser um forno improvisado, comendo Biscoito Globo comprado num distribuidor informal que fica ali na esquina, bebendo também mate com limão de um vendedor que, ora ou outra, por ali passava para fazer reposição do produto em suas bombonas e até fazendo uma fezinha no milhar da águia na banca em frente. Na TV, já nesta era de tela plana, um clássico do futebol carioca: Flamengo e Botafogo. Na vitrine do balcão, os famosos ovos cor-de-rosa e azuis, pastéis requentados e uma bela porção de moela compunham o cenário. Nas paredes, mulheres quase nuas promovendo algumas marcas de bebida e, no cantinho superior, um São Jorge emoldurado por lâmpadas vermelhas e adornado por arruda e espadas-de-são-jorge, acompanhado por um copo de cerveja. Entre comentários provocadores deste flamenguista que vos escreve ao botafoguense que escreveu as páginas seguintes desta obra, uma ideia se impõe: – Porra, cara! – carioca que se preza inicia todas as frases com esta bela e delicada expressão – A gente tem que fazer um livro juntos! E nisso sou retrucado com firmeza e veemência: – Claro, porra! Mas sobre o quê? Ou sobre quem? Devaneios, elucubrações, Serramaltes, amendoins, amendoins, Serramaltes... E eis que chegamos à bela conclusão: tem que ser sobre o Rio; cidade a que tanto amamos, afinal somos cariocas da gema, da clara e da casca...
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Naquele dia o Nelson me presenteou com uma obra fantástica, Rio de Janeiro em prosa e verso, coletânea de textos sobre o Rio assinada pelo Manuel Bandeira e pelo Drummond, publicada em 1965 para marcar os 400 anos de fundação da nossa cidade. Com esse tijolo debaixo do braço, vários saquinhos de Biscoito Globo – o Nelson comprou um pacotão inteiro – e o resultado do bicho no bolso (deu cachorro), voltamos para casa com uma ideia na mão e muitas cervas na cabeça. Assim foi a primeira fase, a que chamo de raiz, desta obra. Semanas depois encontrei o querido amigo vascaíno Bernardo, o famosíssimo BA, rapaz de boa cepa, Superman tatuado no braço, “cabelo ao vento, gente jovem reunida”, na Travessa de Botafogo, numa noite de autógrafos de um ex-aluno da minha mãe, Dona Margarida. Ali comentei com ele, que é editor, sobre a vontade de realizar esta ideia com o Nelson. – Cara, vamos conversar, porra! – respondeu. Opa! Conversar é comigo mesmo. “Passaram-se anos, muitos anos, ele no céu, ela no mar...”, não, não é nada disso... Passou-se nem um ano e lá vem a fase Nutella da conversa. Um belo domingo de sol, bem cedo, a mesma Ipanema, agora na Livraria da Travessa, mais precisamente no Bazzar, entre cafés, água Perrier e ovos fritos que, pelo preço, provinham de alguma galinha de raça da Provence, lá estávamos eu, Nelson e o BA. Café da manhã... Veja só a que ponto chegamos. Só faltou Nutella. Conversamos um tanto e levantamos mil possibilidades, até que o tema pousou sobre a mesa: – Vamos escrever e fotografar os fantasmas da cidade ou, pelo menos, os locais onde eles vivem e costumam fazer suas aparições. Taí. Assim começou a tomar corpo o livro que agora você tem em mãos. Com produção da Carla Dels, que, além de ilustradora, é astróloga, artista plástica, arquiteta e joalheira, não necessariamente nesta ordem, que também assina as ilustrações e, ao lado do John Lee Murray (aquele de Hollywood), participa do projeto gráfico, eis aqui Rio: estado de espírito. Foram mais de cinco mil cliques e muitas visitas a lugares incríveis, que queremos indicar a todos. São imperdíveis, lindos, grandiosos e maravilhosos, assim como a cidade deles.
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Se vi fantasmas? Talvez sim, talvez não! Talvez vultos – se bem que andei batendo um papo com algumas pessoas enquanto outras me perguntaram se estava bem, porque diziam que eu estava falando sozinho... Será? Então plasme (ou será “pasme”?): a cidade está coberta de fantasmas. Por isso a gente diz que a alma carioca é, por si, um estado de espírito. Entre. A casa é sua. E de muito mais gente. Tanta gente, que você nem vê todo mundo.
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YO NO CREO EN BRUJAS, PERO QUE LAS HAY, LAS HAY Nelson Vasconcelos
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entira. Eu acredito, sim. Depois de muitas cabeçadas pelas esquinas, nada do que é sobrenatural me é estranho. Mas aqui não vamos falar de bruxas. Bruxa é uma coisa, fantasma é outra, e é este o nosso assunto. Vamos falar sobre abantesmas, abentesmas, alminhas felizes, almas penadas, armadas, assombrações, assombros, avantesmas, aventesmas, avejões, encostos, espectros, espíritos, larvas, lêmures, marmotas, pantasmas, pantesmas, simulacros, sombras, sombrações, trasgos, visagens, visões, visonhas... Como se vê pelo “Houaiss”, são muitas palavrinhas, tudo junto e misturado, e nem importa. Existem. Não é à toa que Cervantes e Shakespeare trataram deles, sem falar no Sobrenatural de Almeida, amigo íntimo de Nelson Rodrigues e inimigo número 1 dos revisores. E Bosch? Goya! Também temos que lembrar do Pluft e do Penadinho, entre tantos outros. Quem sou eu para desconsiderar essas referências? Ok, fantasmas podem até impressionar, mas não é o caso de sair correndo deles. Talvez tudo seja apenas coisa da sua cabeça – e, neste caso, não adianta tentar fugir. Tem que encarar. E é bom pensar nisso. Assim como o inconsciente, a existência dessas alminhas é uma hipótese. Não é uma verdade absoluta. E aí é o tal negócio: cada um com sua sentença – ou com sua assombração (e seu inconsciente). Se você acredita, diga oi e siga em frente. Se não, basta seguir em frente – e nem precisa falar mal de ninguém. Há quem diga, aliás, que eles são manifestações de seres que já nos deixaram e, no entanto, insistem em confraternizar com os viventes. Isso porque ou se apegaram aos lugares onde viveram, ou se apegaram às pessoas que ainda estão por aqui, ou querem apenas zoar a paciência alheia, não importa. Por bem ou por mal, eles querem é aparecer.
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Será mesmo? Não sei, nem vou teorizar sobre essas questões. Existe gente muito bem qualificada para falar a respeito – seja considerando tudo uma grande bobagem, seja se benzendo antes de tratar do assunto. Nosso negócio aqui é mais leve. Vamos visitar alguns lugares do Rio onde vive algum fantasma carioca. Como diz o velho clichê, ser carioca é um estado de espírito – haha – e o sujeito não precisa ter nascido no Rio para ser carioca. Ao menos é o que diz o povo. E a voz do povo, a gente sabe, é a voz de Deus, essa hipótese eterna. No fim das contas, andar por esses cantos do Rio e ouvir algumas de suas histórias foi uma ótima desculpa para (re)conhecer um pouco mais a nossa cidade, sem medo de ser feliz. Tomara que você se divirta tanto quanto nós nos divertimos durante o preparo desta modesta obra. É bom ter em mente que este não é um livro de jornalistas, e muito menos de historiadores (evoé, Paulinho Knauss). Digo isto pela falta de metodologia, claro fique. Conversa de boteco não tem metodologia, e este livro é praticamente aquela troca de ideias na porta de um botequim – cenário ideal, aliás, para fantasminhas de todas as espécies. Em assim sendo, peço licença a quem de direito, e vamos que vamos.
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É O QUE DIZEM
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oda cidade que se preza tem um fantasma à espreita. Pense em Londres e Ana Bolena, a esposa que o Rei Henrique VIII mandou executar em 1536, quando ele estava se engraçando com Jane Seymor. Acusada até de feitiçaria, a pobre Ana Bolena, mãe da futura Rainha Elizabeth I, foi encarcerada e decapitada na Torre de Londres, mas ainda vive circulando não só por lá, como também em outros palácios e castelos por onde viveu. Às vezes aparece lindona, esbanjando sua brancura azedinha; outras vezes, faz questão de se exibir levando a cabeça na mão mesmo, aquelas olheiras fundas... Ao menos é o que dizem. Ou pense em Paris e seu superstar Fantasma da Ópera. É uma cidade, aliás, sob medida para o assunto, onde turistas podem participar de excursões noturnas em busca de almas desgarradas em pontos históricos – incluindo suas galerias subterrâneas. Não vamos esquecer que a capital francesa já foi cenário de muito sofrimento, muita miséria, muitas mortes cruéis – essas coisas que acabam gerando sustinhos. É o que dizem. Não é diferente no Brasil. Em São Paulo são famosos os casos da Capela da Santa Cruz dos Enforcados e do Castelinho da Rua Apa, por exemplo. Já as cidades de Minas Gerais são riquíssimas em relatos arrepiantes – e não é à toa que estamos preparando um livro sobre outras assombrações disponíveis neste país de tantos mistérios. De qualquer maneira, e modéstia à parte, o Rio é o Rio. Há poucas cidades neste e em outros mundos onde a convivência entre natureza e sobrenatural (ou sobrenatureza) seja tão viva e necessária. É uma questão histórica, daquelas que têm origem em tempos imemoriais (talvez envolvendo civilizações desaparecidas) e se completando com os povos de todas as origens que aportaram aqui – seja na base do amor, seja na base da vacilação. Há uma extensa bibliografia a respeito de questões como essas. Vale muito mergulhar nos livros do Alberto Mussa, um dos melhores escritores que ainda temos no Rio. Suas obras são pura história carioca, com um pé no que chamam de realidade, outro pé no que dizem que é inverdade. Não é. Confira. Literatura de primeira.
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Sem falar nos mestres Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, outros gigantes nos assuntos que envolvem os diferentes espaços de coexistência no Rio. – Hmmm, isso ficou muito bonito. Vou repetir: diferentes espaços de coexistência do Rio. É isso. Esses seres de quem falaremos não se sobrepõem, não estão longe, acima ou abaixo dos viventes. Todos caminhamos lado a lado, simultaneamente. Alguns percebem. Outros, não. Não é disso que estamos tratando?
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DE ONDE VIEMOS? PARA ONDE VAMOS?
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sse nosso hábito de colecionar histórias sobrenaturais vem de longe. Talvez seja assim desde que o primeiro sapiens sonhou com a vó dele... Se sentia saudades ou medo da velhinha, jamais saberemos. Mas, na medida do possível, parece que ele transformou o sonho, ou pesadelo, em realidade – o que não deixa de ser um mérito – e começou a ver a vovó em todos os lugares por onde ela andava. Ou talvez não seja nada disso. Nunca saberemos. Sei que herdamos do imaginário medieval europeu, dos indígenas e dos negros todos os seus conceitos e preconceitos, crenças e descrenças, amores e dores. Deu no que deu. No nosso trato com a vida, é impossível desconsiderar essa formação tão sui generis, digamos assim, afeita a misturar alhos com bugalhos, santos com pilantras, bichos com monstros, deuses e os diabos na terra do sol. Somos todos parte da mesma matéria. Não é à toa, por isso mesmo, que os mistérios do além já renderam muita literatura, muito teatro, ópera, cinema, novela, quadrinhos, anedotas. Milhares de páginas foram impressas a respeito, então vamos aqui fazendo a nossa parte neste livro. Tomara que ele nos proporcione tantas alegrias quanto “Ghost – Do outro lado da vida”, aquele filme tão bobo quanto fofo, rendeu para seus produtores. Mas acho difícil. Então vamos deixar claro que os nossos personagens não vão incomodar ninguém, e tampouco quero incomodá-los – até porque a situação real nos leva a ter medo mais dos vivos do que dos mortos. Uma pena. No fim das contas, o que fizemos foi criar uma ótima desculpa para conhecer um pouco mais a nossa cidade. Tem isso. Somos cariocas. Este é um livro de dois cariocas. Ou seja, vamos ler este guia como se fosse um papo furado no fim da tarde, um galanteio à noitinha, a canção da madrugada, o silêncio da manhã que nasce, a poesia da ressaca. Nada mais que isso. Sem o compromisso de encerrar o assunto. Coração aberto a muitas histórias e novos descaminhos.
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Outra coisa importante é que não vamos confundir abantesmas já famosos com espíritos falantes em mesas redondas, caboclos incorporados, reencarnações, coincidências inexplicáveis, lendas e sacis, encantos mil. Casos assim fogem muito da nossa alçada. Também não temos por que falar de cemitérios, necrotérios, hospitais, penitenciárias, festivais sertanejos e outros lugares sempre associados a manifestações apavorantes. Por quê? Porque não. E quem quiser que conte outra.
E VAMOS AOS FATOS...
O D U T E D ON U O Ç E M O C
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o geral, este livro tem capítulos curtos. Foi o combinado. Mas este aqui, um pouco mais longo, é necessário. A ideia é mostrar, muito por alto, como uma cidade pode se tornar terreno fértil para o congraçamento de histórias de diversas origens – sob medida para alimentar nossa imaginação (inclusive, com fantasmas). Nesse quesito, o Rio é um caldeirão onde as histórias se misturam, e a gente já nem sabe o que é real e o que não. Isso não é bom. A amnésia, me dizia Pedro Moraes Braga, é um tipo mental de paralisia. É fruto da nossa antiga incompetência no trato com a nossa memória, o que é algo muito mais assustador do que qualquer assombração que a gente possa encontrar por aí. Veja o caso do Morro do Castelo, marco fundamental do Rio de Janeiro. Você sabe onde ele fica? Não fica. Por conta de decisões políticas polêmicas, nosso berço histórico, um morro de 63 metros de altura, foi desmanchado entre 1920 e 1922. Zilhões de litros de água da baía de Guanabara, conduzidos em mangueiras trabalhando sob alta pressão, arrasaram a área de cento e oitenta e quatro mil metros quadrados situada entre o Largo da Misericórdia e as ruas São José, Santa Luzia e México – no atual Centro do Rio. Pela sua importância, seu fim brutal me qualifica a dizer que ele é o primeiro grande fantasma com que os cariocas têm que conviver. Mas por que esse chororô pelo Morro do Castelo? Como bem sabemos, a cidade foi fundada em 1565, pelo hoje honorável Estácio de Sá, numa várzea com água potável e algumas palhoças mixurucas, entre os morros Cara de Cão e o Pão de Açúcar. Demorou. Foi meio no jeitinho desleixado que caracteriza nossos serviços até hoje, mas valeu. Já havia muita gente de olho na nossa Guanabara. Fazia tempo que os jesuítas, como Manuel de Nóbrega e José de Anchieta, por exemplo, recomendavam a fundação da cidade. O historiador Elysio de Oliveira Belchior registra que Estácio de Sá, num momento de vacilação de fé em si mesmo antes de tomar a baía, chegou a comentar com o líder dos jesuítas algo como:
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– Que conta darei a Deus e a El-Rei se deitar a perder esta armada? No que prontamente o padre Manuel da Nóbrega contestou: – Eu darei conta a Deus de tudo e, se for necessário, irei diante d´ElRei a responder por vós. Ou seja, Estado e a Igreja andavam juntos e embolados, fechamento total. Os jesuítas tinham medo, naturalmente, de que povos de outras religiões e, portanto, outros interesses econômicos, investissem na terra nova. Imagine quantas almas católica$ perderiam eles se os portugueses fossem embora e por aqui ficassem os franceses ou os holandeses, talvez os ingleses... Os calvinistas, por exemplo, já se engraçavam por aqui desde sempre. Que perigo. Todos estavam certos. O Rio era mesmo, como escreveu Nóbrega, “a milhor cousa do Brasil”. Ele, Anchieta e seus pares mantinham pela cidade um amor verdadeiro. Amor que deixou a Companhia de Jesus em situação bem confortável depois de se estabelecer por aqui. Aliás, não foi à toa que quatro grandes ordens católicas, cada qual a seu tempo, fincaram fundo suas bandeiras nos nossos morros. Jesuítas, franciscanos, beneditinos e capuchinhos tornaram-se cariocas desde criancinhas. Cada um por si e o Vaticano por todos. Éramos e continuaremos sendo, enfim, um povo que paga para crer. Um bom investimento. Os exemplos dessa fé lucrativa abundam desde sempre. Lembro da piedosa senhora Isabel Ribeiro da Costa, falecida “no ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1674”, como nos contam os historiadores João Fragoso e Roberto Guedes. Era abençoada pela divina mão do mercado. No testamento, pediu que seu corpo fosse acompanhado por 20 padres e 20 cruzes até sua sepultura. Mais que isso, ela “ordena que no dia de seu enterro sejam rezadas tantas missas quantas puderem em todos os conventos, mosteiros e igrejas da cidade”. Tem mais. Manda também que sejam celebradas missas por sua alma “todos os anos e para sempre”. O pagamento de toda essa farra de vaidade ficaria por conta de uma casa a ser vendida, e a encomenda dos ofícios seria responsabilidade do sobrinho Gregório Mendes e de toda sua descendência masculina, até o fim dos tempos. Considerando que, ao menos até o fechamento desta edição, os tempos ainda não chegaram ao fim, haverá ainda hoje alguém dizendo missa
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em memória da dona Isabel Ribeiro da Costa, se é que o Gregório e seus descendentes têm sido honestos com ela por mais de 300 anos. Rá! Duvido que não existam fantasmas dessa família soltos pelas igrejas do Rio... A titia Isabel, enfim, não foi um exemplo raro de fiel que investia numa eternidade tranquila. Comprar uma vaguinha no lado bom da eternidade é um hábito comum desde priscas eras – as igrejas sempre se deram bem com isso e, claro, assim continuará sendo. E eu, que sempre pensei que usufruir da felicidade só depois da morte seria muita falta de sorte, descobri assim que o paraíso é um bom negócio para quem vai e para quem fica. Pois que São Sebastião olhe por nós. Do que vier pela frente, que Deus nos proteja. Mas voltemos ao século XVI, quando a cobiça estrangeira pela Guanabara já era preocupante. O mais famoso invasor nessa época, mesmo não sendo o primeiro, foi o francês Nicolas Durand de Villegagnon, cuja tarefa aqui nos trópicos era fundar a França Antártica. Não era um corsário como tantos outros, mas um qualificado representante da Coroa francesa empenhado em estabelecer um posto político e comercial decente, bonitinho, sem status de malandragem. Daria no mesmo. Foi para isso que, liderando 600 homens, ele desembarcou na baía de Guanabara em 1555. Taí, por sinal, um personagem interessante e muito pouco conhecido. Um historiador francês, Paul Gaffarel, chegou a chamá-lo de Rei da América. Tinha tudo para isso. Era marinheiro, diplomata, erudito, agricultor... Um sujeito bem preparado, jogando nas onze, do tipo que a sua época começava a valorizar. Merece um ponto parágrafo. Ou vários, como veremos. Cabra valente, homem “pra chuchu”, Villegagnon já tinha corrido o mundo inteiro – que era muito maior à época, além de perigoso pacas. Bom de estratégia militar e de porrada, foi responsável por várias operações perigosas a serviço da Coroa francesa na Ásia, na África e nas europas. A mais memorável delas (acho eu) foi o sequestro de uma menina de cinco anos de idade. Não era uma criança qualquer, claro. Era ninguém menos que a Mary Stuart, filha de Jaime V, rei da Escócia que morreria seis dias após o nascimento dela, tadinha. Muito resumidamente, porque não estou aqui para meter-me em intrigas de gringos, conto apenas que o rei inglês, Henrique VIII, quis então garantir que a recém-nascida fosse reservada para casar com seu filho. Ela representaria, afinal, a anexação da velha Escócia ao seu reino. O monarca só não contava com a negativa da mãe da
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criança, Mary Guise-Lorena, que era católica e não queria nada com aqueles britânicos – que, além de protestantes, cozinhavam muito mal. Resultado: o rei francês, Henrique II, pediu a mão da garotinha em nome do seu filho, Francisco, ainda molecote, mas que um dia iria sucedê-lo. Os ingleses fizeram um escarcéu danado e cercaram quase todas as saídas da Escócia, para impedir que Mary Stuart fosse levada para a França. O amor é lindo, mas é para poucos. Mas os ingleses não contavam com a astúcia de Villegagnon – que, a mando de Henrique II, enviou pencas dos seus soldados para um lado da costa escocesa, atraindo a armada inglesa, e saiu navegando como quem não quer nada pelo outro lado, rumo ao norte, subindo pelo rio Clyde e chegando até a fortaleza de Dumbarton, onde vivia a pequena Mary Stuart. Aí foi moleza. Viragalham, sujeito tão porreta que seu nome mereceu várias grafias, levou a garota para a França, onde cresceu, casou com o Francisco II e foi feliz para sempre. Mentira. Morreu mal, muito mal. Foi decapitada aos 44 anos, em 1587, condenada por traição à coroa Isabel, da Inglaterra, mas aí já não tem nada a ver com o que vínhamos falando. De modos que esse grande feito do almirante francês foi em 1548. Faz tempo. Aí, virou o cara. Aos 38 anos de idade, conseguiu mais prestígio entre a nobreza e mais dinheiro, sobretudo para financiar seus próprios projetos. Foi assim que conquistou a responsabilidade de começar pelo Rio, e adjacências, a tal da França Antartica, com que levaria para o novo mundo a versão francesa da dobradinha Estado & Igreja – no caso, protestante. Foi assim que ele aportou em Cabo Frio já em 1554, pisando mansinho, só para reconhecer o terreno. Viu que tinha jogo e logo fez amizade com os índios donos do pedaço, que já tinham sofrido à beça nas mãos dos portugueses desde que estes se afeiçoaram à Guanabara, em 1502. Os tamoios eram guerreiros de primeira, e provocavam muito estrago quando estavam enfurecidos. Usavam canoas de até 13 metros de comprimento, com 30 guerreiros prontos pra qualquer parada, sobretudo para degustar nacos generosos dos portugas aprisionados que viravam moqueca. Ossos do ofício... Esse episódio da formação da cidade daria – e deu – livros e livros, mas este aqui é sobre fantasmas. Então voltemos ao fato de que, em 1555, Vilaganhão (sic) estava na França mais uma vez quando recebeu a tarefa de
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atravessar o Atlântico de novo (como se fosse moleza) para criar uma base comercial e militar no Rio de Janeiro. À época, assim como hoje, o Rio era uma cidade abandonada pela lei e pela ordem, com algumas centenas de privilegiados esperando o tempo avoar. Como sempre, Viragalhão (sic) cumpriu seu dever. Era excelente estrategista e logo conseguiu cooptar os índios – que detestavam o jeito dos portugueses. E tinham toda a razão. Os “descobridores” eram brutos além demais da conta. Na conversa de que iriam catequizá-los para facilitar a entrada deles no céu, faziam o oposto. Exterminavam tribos às toneladas, rezavam um Pai Nosso às pressas e seguiam em frente. O francês tinha outro approach, e era muito querido pelos índios, com apenas poucos entreveros, como acontece em qualquer casamento. Também os engambelava com espelhinhos e trequinhos bobos, mas ensinou-os a manejar armas e ferramentas, e a conversa acabou fluindo. Os índios se revelaram bons espingardores. Poliglota por natureza, Viligalhon (sic) além do francês, falava italiano, espanhol, grego e latim. Até aí, moleza. Mas, quando se instalou na Guanabara, resolveu ter aulas da língua dos tupinambás todos os dias. Além disso, organizou um dicionário francês-tupi. Esse tratamento dispensado à cultura local aproximou-o muito dos índios. Conta-se até que, sendo um sujeito bonitão e educado, mesmo sendo francês, despertou a paixão de uma certa índia chamada Jacy, filha de um cacique tupinambá, doida para casar com ele. O gentil homem declinou. Era, pois, um cavaleiro da Ordem de São João de Jerusalém de Malta, o que exigia sua castidade, entre outros sacrifícios. Taí um sujeito durão. Durão ou não, Vilagalhom (sic) sucumbiu à politicalha interna, com brigas de origem religiosa entre os próprios calvinistas. História longa, nem dá para ensaiar aqui porque já até esqueci que se trata de um livro sobre assombrações cariocas. Só não podemos deixar de dizer que também ajudou a derrubar todo o projeto França Antartica, veja só, uma das queixas mais comuns da vida dos marujos: a falta de mulheres. – Ai, que coisa mais sexista – dirá alguém. Pode ser, mas é vero. O chefe, religioso que só ele, era bastante rigoroso nessa questão. Pensava que as tentações da carne naquele paraíso tropical poderiam agitar demais os instintos mais primitivos da tropa. Que, aliás, era formada basicamente por
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criminosos condenados que aceitaram embarcar nessa viagem louca em troca de sua liberdade. Muitos foram punidos por se engraçar com as índias, e outros tantos desertaram justamente para isso. Não por acaso, surgiu um complô para matá-lo, o que solucionaria o fato de não haver sexo entre a tropa, pelo menos era o que alegavam. Mas o chefe descobriu a trama, sentou o sarrafo e mostrou quem mandava. Relatou a punição numa carta em 1557: “...Este (conspirador) foi enforcado e estrangulado por tal feito”. Ou seja, tratava-se de um diplomata gentil e casto, mas que podia ser impiedoso, vingativo e exagerado quando seu poder estava em perigo. A delicada questão sobre a presença das mulheres na incipiente França Antartica poderia dar pano para muitas discussões, não estivéssemos aqui para falar do Rio de outrora. Mas fica aqui, para reflexão, uma frase de A primeira história do mundo, do Alberto Mussa: “Numa cidade em que há mais homens que mulheres, não pode haver virtude.” Zerou o assunto. Mesmo com a ajuda dos tamoios, os franceses acabaram espanados pela turma do Estácio de Sá, que, por sinal, acabou atingido no olho por uma flecha envenenada numa batalha em 20 de janeiro de 1567 – ali onde hoje está o amado bairro da Glória. Estácio ainda penou durante um mês antes de morrer, talvez por conta de uma septicemia decorrente da tal flechada. Foi um fim deveras simbólico, aliás, considerando que ele era cruel “pra burro” e gostava de se vangloriar por ter ateado fogo em centenas de aldeias indígenas por onde passara – como se isso fosse bonito. Aqui se faz, aqui se paga – taí alguns fantasmas que não me deixam mentir. Diga-se, ainda, que seu tio, o governador Mem de Sá, nem deu muita pelota quando soube de sua morte. Mas vamos parar de fofoca de família. Debaixo da intensa reação dos portugueses, o francês e sua turma acabaram expulsos. Ainda assim, deram trabalho. Eles tinham se aboletado e construído seu forte na ilha de Seregipe (ferrão de siri), chamada hoje de Villegagnon, onde temos a Escola Naval, quase colada ao Aeroporto Santos Dumont. Graças a alguns aterros, agora tudo aquilo é quase uma coisa só, mas Seregipe ficava a cerca de um quilômetro das praias onde hoje estão Centro, a Glória e o Flamengo. Ou seja, a francesada tinha acesso muito fácil ao continente, assim como a outras ilhas e à entrada da baía. De certa maneira, estavam bem protegidos.
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Tanto que Estácio de Sá consumiu dois anos para limpar o pedaço. Entre os tupinambás que ainda insistiam em garantir o que era seu, havia uns quarenta franceses – flechados pour l´amour. Todas alminhas bonitinhas, que ainda hoje circulam pela Praia do Flamengo, onde o almirante conseguira montar uma base para sua tropa, no entorno da foz do Rio Carioca, hoje um fétido canal, sem qualquer pista da sua importância nos tempos d´antanho... Daí que em 1567, depois que o pau comeu, os portugueses resolveram se estabelecer no então chamado Morro do Descanso. Cercado por pântanos e lagoas, era uma proteção natural da nossa cidade. Lá de cima, as nossas forças protetoras (!!) ficavam de olho na entrada da Guanabara e, em especial, na ilha de Seregipe. Com o tempo, instalou-se ali no alto do morro do Castelo o Forte de São Sebastião (com paredes de um metro de espessura, parecendo um castelo), além de fossos, muros, muralhas, igrejas, o Colégio dos Jesuítas, uma cadeia, armazéns e muitas casas. Mas os inimigos eram franceses, e não desistiam nunca. Outros conflitos viriam – mas sem o Vergalhão (sic), que se mandara de vez. Há quem garanta que, se tivesse permanecido na Baía de Guanabara, talvez conseguisse mesmo estabelecer a tal da França Antartica. Não deu. Por isso mesmo, não falemos mais dele, a não ser que venha fazer assombração. Por essas e por outras foi que ocorreu a transferência natural do “centro” da cidade do Cara de Cão / Pão de Açúcar para o Castelo. Que, segundo o indispensável historiador Padre Perereca, também chegou a ser conhecido como penedia ou morro do Descanso, da Sé, do Alto da Sé, Alto de S. Sebastião, Baluarte da Sé, S. Januário, Sé, Concelho (sic), Colégio e Sé Velha. Como quer que se chamasse à época, o que importa é que o morrete logo começou a ficar muito disputado, concentrando quase todos os moradores do Rio já nos anos 1570. Eles começaram a se espalhar pela cidade, sendo que outros morros serviram como limites nesses primeiros tempos: o de Santo Antônio, que hoje praticamente já não existe mais; o da Conceição, que inspira sambas e comentários qualquer hora dessas; e o de São Bento, onde até hoje existe um mosteiro de 1590, com direitos a missas e canto gregoriano, entoado por vultos que até parecem ectoplasmas na penumbra – mas são apenas padres a caráter. Dezenas. Bonito mesmo.
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Não seria exagero dizer, então, que a cidade foi crescendo nesse perímetro durante séculos, sempre naquele jeitão desordenado que a gente conhece tão bem. É claro que nunca houve qualquer espécie de projeto urbano quando o Rio de Janeiro começou a nascer. Tudo girava por ali, e basicamente nesse quadrilátero. Eis por que consideramos o velho Castelo tão importante para o desenvolvimento da cidade do Rio. No século XIX, entretanto, já se falava sobre a necessidade de derrubar aquilo tudo, fosse por questões de saúde pública, fosse para evitar uma certa “favelização”, ou por especulação, ou por segurança pública. Como se vê, não faltavam desculpas. E parece que o morro era mesmo meio esfarelento, barrento, bem chegado a fazer vítimas e estragos com frequentes desmoronamentos após chuvas fortes, nas célebres “águas do monte”. Ficaram na memória do povo – ou, pelo menos, na memória do Padre Perereca – desastres registrados em 1756, 1759, 1811, 1833, 1845, 1858, 1860, 1872 e 1896. Urucubaca calvinista. Não faltavam motivos, portanto, para alimentar os defensores do desmonte do morro do Castelo, discussão que foi se arrastando até o início do século XX, quando se bateu o martelo. Não houve um motivo propriamente, mas uma desculpa: preparar a cidade para a comemoração dos cem anos da Independência do Brasil. Assunto para alhures, quiçá por outrem... Com o desmonte do Castelo, que desalojou quatro mil moradores, vieram abaixo não só as edificações coloniais, mas inúmeras histórias e objetos de valor inestimável para a nossa memória. E daí (re)nasceram lendas a respeito de túneis secretos, fortunas escondidas etc. Os jesuítas, por exemplo, teriam escondido um tesouro com nada menos que 67 toneladas de ouro. Entre suas galerias subterrâneas haveria até uma imagem de Santo Inácio em ouro maciço. É a famosa opção preferencial pela riqueza. Muito se especulou, muito se cavou, nada de significativo foi encontrado. Até porque, diga-se, os jesuítas tinham sido expulsos do Brasil em 1759 e suas terras foram confiscadas pela Coroa, mas tiveram bastante tempo para enviar suas moedinhas para fora do país. Por isso, na hora do desmonte do Castelo, o dinheiro, que é bom, tinha evaporado – o que me leva a crer que ainda hoje existem muitas alminhas jesuítas flanando pelo Rio. Uma coisa é certa. Alguém se deu muito bem: suspeitou-se, à época, de superfaturamento nos custos da destruição do monte. “Os homens de
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hoje são negocistas sem alma. Querem dinheiro”, escreveu o paulista Monteiro Lobato num texto clamando pela preservação do Castelo. Surpreendente como nossa história se repete à exaustão. Quem não se deu bem foi o morro, que veio abaixo, dando lugar à hoje chamada Esplanada do Castelo, com avenidas largas, pouquíssimas árvores, um calor da peste, trânsito besta e prédios sem grande personalidade ou, quando muito, exibindo uma arquitetura típica de regimes fascistas. A Igreja de Santa Luzia, que tem origens no século XVI e ficava à beira d’água e bem próxima ao velho morro, hoje parece deslocada, quase triste, em meio à brutalidade visual que restou. Do Castelo original sobrou apenas um pequeno trecho de 40 metros da Ladeira da Misericórdia, uma das suas três vias de acesso. Mesmo assim, só porque serve para escorar, ainda hoje, uma parte da Santa Casa da Misericórdia – criada, aliás, pelos jesuítas e cujas paredes teriam muitas histórias por contar. Assim como a Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso (ou Bom Sucesso), a mais antiga da cidade, ali ao lado. Fica a dica. Quando você for visitar o Museu Histórico Nacional, vale espiar o que restou da Misericórdia – e, por extensão, o tal morro do Castelo. A ladeira, saiba, foi a primeira rua a ser aberta na cidade, ainda em 1567, e recebeu calçamento em 1616. Ao seu redor cresceram a cidade, o porto, o Rio, o Brasil. Menos, menos. Tem fantasmas por lá? Deve ter. Não os vi, é verdade, mas estou seguro de que aparecem na área de Misericórdia só porque ela ficou no centro nervoso do país durante séculos. Se você conseguir observar à distância o velho bairro da Misericórdia, e relaxar bastante, vai perceber o vai-e-vem de índios, portugueses, negros, cariocas, franceses, mulatos, escravos, nobres, piratas, padres, malandros, padres malandros, ciganos, amigos e inimigos, fidalgos e merdunchos, mucamas e senhorinhas em seges e cadeirinhas, cachorros, burros, cavalos e galinhas, porcos, carroças e o que mais houvesse, todos o tempo todo circulando sem pressa, cada qual no seu rumo, talvez incerto. Duvida? Eu, não. Se você duvida, tente perscrutar as pedras da Ladeira da Misericórdia. Pena que pedras não sejam de falar muito.
“O Rio de Janeiro é uma cidade cercada de fantasmas por todos os lados. São de índole pacífica, integrados ao espírito turístico da cidade e parecem servir apenas para arrepiar os cabelos da garota de Ipanema, deixá-la ainda mais surpreendente. Carlos Monteiro e Nelson Vasconcelos são caça-fantasmas ao estilo carioca e já viram fantasmas em todos os recantos da cidade. Agora resolveram dar o bisu, dizer onde eles podem ser achados.”
Joaquim Ferreira dos Santos jornalista
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ISBN: 978-85-63194-589
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