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quatro peças Vinícius Márquez


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Márquez

Vinícius Márquez é um escritor que está sempre produzindo. Seus textos são cultuados e invariavelmente causam diferentes reações no leitor. Com poder de atiçar profundamente os mais diversos sentidos, sua arte é capaz de tirar o leitor de sua zona de conforto, porém com a capacidade de fazê-lo com grande poder de entretenimento. Sua carreira como escritor começou no teatro, onde recebeu diversos prêmios como: APCA, SHARP, MAMBEMBE, COCA COLA entre outros. No teatro ainda dirigiu e atuou em espetáculos consagrados. Vinícius Márquez estreou como autor na TV Globo a convite de Miguel Falabella em Toma lá dá cá. Desde então participou de diversos projetos na televisão e no cinema, abordando diferentes gêneros. Como ator participou de várias novelas na televisão e de várias peças de teatro, inclusive musicais. Sua paixão pela literatura o levou a escrever seu primeiro romance, O amor em 79:05, aplaudido pela classe artística, onde seus textos servem de referência em várias escolas de teatro e cinema. Na mesma linha, lançou Segundos Depois e Um bonde para Marte. Em 2013 fez sua primeira incursão na literatura fantástica, com o elogiado Os Arqueiros do Rio Vermelho. Quatro peças é o primeiro livro de Vinícius Márquez contendo suas peças de teatro.

“Eu não disse que você era c Primeiro livro igual a lua? Enche, farta, teatro míngua, some e de voltaViníciu assim, deslumbrante.”

3 Peças INÉDITAS e com sucesso de púb Quatro peças, uma temática e estrutura Paulo a Portugal. particular em cada, todas com o poder de personagem Pato, em Lua Vagabunda

divertir, emocionar e chocar. Quatro Peças é o quarto livro de Conheça também osVinícius outros l Márquez pela pelo selo editorial Another Another Hot Books:Hot Books. O livro difere completamente dos outros três pelo gênero abordado. Trata-se de um livro, que, conforme o nome explicita, contém quatro peças de teatro. Nos outros, há ensaios, contos e romance. Entretanto, na essência continua sendo Vinícius Márquez. Quatro Peças também pode ser tratado como uma sequência dos outros títulos, pois desta forma se apresentam todos os ângulos de um escritor “raiz”, que está sempre à vontade para escrever em qualquer formato, sobre qualquer assunto e para vários públicos, o fazendo de forma hábil e com distinta qualidade. O livro apresenta 3 peças INÉDITAS – Lua vagabunda, Ladrões de estrelas, As ladras – e uma peça já encenada, com sucesso de público e crítica. O senhor das flores teve montagem em São Paulo e cruzou o Atlântico, chegando em Portugal. Para este livro que contém a obra teatral de Vinícius Márquez, foram escolhidos textos impactantes, com personagens profundos, que possuem o poder de trazer sempre o ISBN: 978-85-63194-633 elemento da dúvida ao leitor, com surpresas e outros componentes que tornam o teatro por Vinícius Márquez sempre intenso, surpreendente e agudo. www.livrosilimit


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Copyright © 2017 by Vinicius Márquez Copyright desta edição © 2017 by Livros Ilimitados / Another Hot Books O selo editorial Another Hot Books é parte integrante do grupo Another Hot Brand with an American Name. A publicação da obra quatro peças é fruto da parceria entre Editora Livros Ilimitados e Another Hot Brand with an American Name. Conselho Editorial: LIVROS ILIMITADOS Bernardo Costa John Lee Murray ANOTHER HOT BOOKS Rick Yates ISBN: 978-85-63194-633 Projeto gráfico e diagramação: John Lee Murray Ilustrações: Flavio Rossi Direitos desta edição reservados à Livros Ilimitados Editora e Assessoria LTDA. Rua República do Líbano n.º 61, sala 902 – Centro Rio de Janeiro – RJ – CEP: 20061-030 contato@livrosilimitados.com.br www.livrosilimitados.com

Impresso no Brasil / Printed in Brazil Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.


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APRESENTAÇÃO Vinícius Márquez é um escritor, na concepção mais completa da palavra e da definição da função. Sempre em produção, ele tem a capacidade de escrever – e muito bem! – sobre tudo e todos, e da forma que desejar. Seja romance, roteiro para diferentes mídias, poesia, ensaios, e qualquer outra coisa que se proponha. Sua personalidade, seu talento, inteligência, paixão e disposição para escrever lhe dão um PODER que poucos neste mundo têm: o de se expressar sem freios, e ainda mais, na forma de arte. E arte reconhecida por muitos, mesmo sem pretensões. Aproveito a circunstância para fazer a menção de poder numa forma mais inocente, incluindo tudo o que vem à mente, até mesmo super-homens, mutantes, seres “mágicos”, seres extremamente carismáticos, heróis, anti-heróis... No caso do Vina, anti-herói se encaixa melhor. Eu sei que ele é ator, diretor de teatro, cantor, mas como sou editor, me permito a identificar seu talento mais próximo e aparente à minha função. Vejo que seu grande poder para conquista do mundo é a escrita, assim ele consegue executar de forma muito eficiente o poder de teletransporte. Com seus textos, Vina cria e se transporta a mundos diferentes, levando nós, leitores, com ele. Mundos com histórias cativantes que despertam visões e discussões deliciosamente intermináveis e com várias alternativas, e, principalmente, personagens que coexistem com conosco, ao nosso redor e dentro de cada um de nós, leitores. Por mais que não saibamos, ou não nos damos conta, seus personagens existem e estão, sim, dentro de cada um de nós. Vinícius Márquez sabe! E ele joga na nossa “cara” da maneira sempre mais impactante e emocionante possí-


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vel. Mas, enfim, não posso me permitir a delongas, pois a campainha já tocou, a luz já baixou, a peça vai começar. Curtam as quatro peças e depois comprem os outros livros do Vina publicados pela editora, caso não tenham comprado ainda. São ótimos. Bernardo Costa Editor


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O senhor das flores

Nunca diga em que pé (nós dois) estamos: mudamos de pé o tempo todo, quando andamos.

Do livro “O amor em 79:05”.



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Cena 1 Oto está sentado no vazio... Oto está sozinho no palco de um teatro vazio – quase vazio: tem uma mesa e duas cadeiras, daquelas pretas – descascadas de serviço. Oto veste um terninho surrado; a gravata idem. Entra Julian: bem vestido, sobretudo, luvas, estilo nova-iorquino; aliás, é pra lá que pretende ir em seguida; por tempo indefinido. Julian entra pelo corredor (plateia), com uma pasta executiva nas mãos; sem algemas – por enquanto. Oto lê um texto. Aos seus pés descansa relaxada, uma sacola de couro, esparramada como um cachorro velho.

OTO (Lendo) Como um cachorro velho... essa é ótima! Um cachorro velho... (ri) como um cachorro velho. (Pausa) Toda comparação é meio pobre. E inevitável, me parece. Todos comparam tudo. Até os melhores. Oto gargalha que nem um apresentador de um programa idiota e alisa a sacola como se fosse “a cabeça de um cachorro velho”.

OTO É, Stewart... (ri) meu velho companheiro, meu amigo, vamos ver se... a gente... Oto para de rir aos poucos, à medida que Julian se aproxima. Julian, sem entender porque aquele maluco (Oto) se esbaldava, avança lentamente.


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Na mesa tem uma garrafa do que parece ser... de... conhaque. E dois copos. Três. Eles se olham em silêncio por um tempo. Oto espera até que ele se manifeste. Está preparado para o que virá – ele nem sabia o quanto.

JULIAN Por favor... OTO Silêncio…! Você não vê que eu estou ensaiando? (Desmunhecando) Vai ser complicado decorar esse texto assim, meu amor! JULIAN Me desculpe... eu... OTO (Cortando) Como assim “Me desculpe eu...” Eu o quê?! É muito difícil pra mim... extremamente difícil! Ainda mais quando eu bebo e... sou interrompido por um cretino! JULIAN Me perdoe, meu senhor, é que... OTO (Cortando) Sobe. (Pausa) Bem-vindo ao paraíso, paixão. JULIAN Não,não... eu só queria saber se a... OTO Vamos, meu querido... sobe aqui (palco). Eu sei o que você deseja saber. E estou muito certo de te dizer. A partir daqui, Oto começa a carregar mais ainda na fala e nos gestos, numa estranha afetação – crescente.

JULIAN A peça que estão levando... acabou há muito tempo? OTO Eu diria que ela está apenas começando, gato. Sempre começando... e nos pregando outra. (Resmungando irônico) “A peça que estão levando...”. Ninguém está levando porra nenhuma!, só eu, que tô levando no rabo. JULIAN Não entendi...


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OTO E quer entender o quê, querido? se acabou de chegar, se você tem mania de chegar e se meter no que não é chamado. (Advertindo) E isso aqui é um monólogo. JULIAN Bem... eu não sei do que o senhor está falando... OTO (Cortando sempre) Fala logo o que deseja de mim e cai fora, criatura inconveniente. JULIAN O senhor sabe se... os atores... se por acaso eles... OTO Um gago... e eu esperando por um gato. (Pausa) Eu sei quem você está procurando, e é por isso que euzinho estou aqui. E não tem nada-nada de por acaso nesse lance. JULIAN Por quem eu estou procurando? OTO Eu, hein! Você não sabe, bonitinho? JULIAN Olha... eu não vim atrapalhar coisa nenhuma, e... OTO Estou te deixando perturbado?, sem graça!? Como alguém pode te deixar... embaraçado? Isso não é pra quem tem um mínimo de vergonha na cara? JULIAN (Começando a ficar irritado) Eu não estou sem graça. E não sem quem é você. (Pausa) Quem é o senhor, afinal? o zelador? OTO (Pausa) Ah, sim!, sou o zelador zelando por aquilo que eu acredito. Ou apenas um humilde guardião das dúvidas tentando, além de obter algumas respostas, decorar o seu texto em paz, sem ficar gaguejando como um maldito impostor. JULIAN Não... eu não vim aqui pra atrapalhar nada... só queria uma informação. OTO (Histérica) Já disse que eu tenho a informação que você quer. E o que mais você deseja... pra que eu fique livre de uma vez dessa sua carinha asquerosa?


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JULIAN Nada... Só uma informação mesmo. OTO Hã... JULIAN Se fiquei sem jeito é porque... pensei que teria mais movimento por aqui... mais pessoas circulando... como nos outros dias. E também por que eu não esperava encontrar uma pessoa tão... OTO Bizarra? JULIAN Grosseira. OTO Se você fosse um crítico... mas você é só um gato. E muito mais gatinho do que eu imaginava, diga-se. (Pausa) Sim, eu esperava outra coisa. (Pausa) Francamente... você é muito mais bonito pessoalmente do que nas fotos. Entre na luz, por gentileza. Não tenha medo. ( Julian se aproxima do palco) Sim, olhem pra isso... (constatando) definitivamente... trata-se de um verdadeiro gatuno! JULIAN Sério... eu não sei como tratar o senhor. Nem sei se quero tratar de alguma forma. Aconteceu alguma coisa com a... o que aconteceu aqui? (Olhando) Será que meu relógio enlouqueceu? OTO E você vem perguntar isso para mim? JULIAN Mesmo que eu estivesse atrasado... não era pra ter tão pouco movimento... OTO Desembucha logo, infeliz! JULIAN Eu procuro uma pessoa... OTO Do tipo o quê? Vagabunda!? JULIAN Se você sabe por quem estou procurando... onde ela está? OTO Q uer dizer que você concorda? que veio atrás de uma biscateira.


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JULIAN Q uem? OTO Q uem o quê?! JULIAN Você disse que sabia... então fala de uma vez, porque eu estou de saco cheio de ficar... OTO Confuso, envergonhado... que maldade a minha... não precisa ficar assim não, amado. (Pausa) Ela está bem. Só não veio trabalhar hoje porque tinha que conversar com o marido dela. E então resolveram cancelar as apresentações. Nada de mais. O que há de errado numa garota querer levar um papo com o marido na hora do espetáculo? Você não ignorava que ela era casada, não é? JULIAN Não... eu... OTO Não ignorava. JULIAN Não. OTO Vamos ao que interessa: eu vim no lugar dela para te fazer uma sala... enquanto a safadinha embroma aquele bestalhão do marido lá. Vim porque ela implorou que eu fizesse este papel lamentável! Na verdade ela não precisou implorar muito, nós duas somos amigas de anos! E eu sou fiel. Na verdade sempre fui – a vida inteira. Por outro lado, eu estava muito a fim de te conhecer também. Tantas verdades para uma só mentira. Uma mentirinha é o bastante para arruinar com tudo. Uma única e estúpida cascata... e lá se vai tudo por água abaixo... uma vida inteira descendo a correnteza, chocando-se violentamente contra as pedras. JULIAN Não entendo nada do que o senhor está falando... e nem me interessa. Eu só queria que... OTO (Analisando-o de cima a baixo) Sem essa de senhor, ok!? Eu sou uma bicha... e exijo respeito! (Diz isto muito


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sério; depois gargalha e prossegue – lânguido) De tanto ela falar de você... “Ah, Julian!” e eu ficar vendo as suas fotos... aquela que você está de cuequinha branca, quase transparente, saindo da piscina... a barriga sarada... JULIAN Você deve estar me confundindo com outro cara... eu não tenho foto de cueca em parte alguma... e mesmo que tivesse ela não teria... OTO Ela!? Você ainda tem medo de pronunciar o nome da sua amásia!? (Pausa) Como posso estar te confundindo, Julian, se eu disse o seu nome? E que outro gato viria aqui a essa hora? Eu já disse também que ela me conta tudo, que eu sou o melhor amigo de Júlia. Quanto às fotos – suas – tenho várias: eu as roubava. Ah, quer saber? Era ela que me dava. Eu tenho você inteiramente nu, dentro de mim. Deitado no sofá, de costas, com a bundinha arrebitada, peludinha, viradinha pra Lua... ui! (Mostrando o braço supostamente arrepiado) Olha só como eu fico! JULIAN Eu nunca fiz... nunca vi essas porras de fotos!... não quero mais falar com você, quero que você se... OTO (Berrando para cortar o xingamento iminente) Eu fiz as benditas fotos – e as vi! Minha imaginação me transcende! Tenho tudo aqui ó (cabeça), tudinho! Na verdade, você está vestidinho nos retratos... mas eu te dispo... fácil!, peça por peça. (Pausa) Juntando suas imagens, a minha indelével perspicácia, e o que a Julinha me conta com requinte de detalhes... JULIAN Não sei quem é você, tá legal meu camarada?! (Pausa) Não sei qual é a piada... nem quero saber mais de porra nenhuma! Você pode ser amigo de quem for, mas é chato para... OTO Caralho.


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JULIAN Onde ela está? Eu estou explodindo de dor de cabeça... tive uma semana péssima... e nós estamos atrasados. OTO Amei o plural! “Estamos atrasados”... como se a Júlia já fosse uma coisa sua, como se a situação fosse absolutamente natural. (Acende um cigarro e dá um trago – no cigarro e na bebida) Está atrasado nada (irado)... seu bostinha! Sobe. Porque se não quem vai explodir a sua cabeça, sem uma gota de culpa, sou eu! (Pausa) Ela não está aqui, meu amor! E talvez... JULIAN O que você tá querendo dizer? (Subindo no palco) Ela não me disse que ia conversar com o marido... nós combinamos que era melhor... OTO Parou!? Por que, meu bem?! (Pausa) Veja como você subiu rápido... viu? Eu não mordo! (Pausa) Será que você é... ah, bobagem! Mesmo que você fizesse isso não seria comigo... teria os seus amiguinhos bonitinhos pra se esfregar. Os gatos se pertencem, se lambem... não acredito que você se daria ao desfrute de gozar com um velho como eu. (Pateticamente insinuante) Estou enganado? JULIAN Não, não está... eu não gozaria com você... nem com nada parecido... é nojento! OTO Nossa, gato!, também não precisa me humilhar! JULIAN Olha... eu quero que você pare com essa merda... de ficar me chamando de gato! OTO (Furioso) Eu também queria um monte de coisa que você não vai fazer por mim... ga-to! (Pausa) Mas venha, sente-se aqui comigo. Vamos beber um pouco... que a sua donzela não tarda. (Pausa) Eu gosto muito da Júlia... sabia que ela salvou a minha vida? Mais de uma vez. E eu salvei a dela também. Ela é a outra parte da minha alma neste mundo. (Pausa) Sabia que ela era uma garotinha


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viciada... sem ter onde cair morta? Eu a encontrei num buraco do mundo... magrinha, sarnenta, toda picada, seca como um galho sem vida. Oh, não! era tanta remela e pus que cativavam a luz daqueles belos olhinhos... você acredita nessa ladainha de alma gêmea, não é, Ju? É a sua cara achar que a Julinha é a sua cara-metade... pelo menos na vida de Oto ela foi. Não uma parte podre, mas... JULIAN Eu gosto dela... se é isso que você queria ouvir, meu camarada. OTO (Pausa) Quanto você calcula que gosta dela, fofinho? JULIAN Muito... OTO É pouco... morreria por ela? JULIAN Como é o seu nome, afinal? OTO Ah, perdão... esqueci de me apresentar: Marco Túlio. Sei que ela fala muito de mim pra você e que você, sonsa, já me viu diversas vezes com ela. Só que, como você, eu costumo ser muito reservada. Só quero te entreter um pouco, Ju... te conhecer melhor. (Pausa) Meu Deus! você é bonito mesmo... de doer! Passo mal! Acho tão fútil me deixar levar por uma aparência, mas... eu sou assim, tão leviana! (Berra sobressaltada) Ui! (Pausa) A acústica daqui é excelente, não é mesmo, Juju? Agora eu percebo que esta espelunca aqui valeu cada centavo investido! JULIAN É melhor você maneirar aí... nessa bebida. OTO Por causa de quê, gata? JULIAN Tá ficando cada vez mais bichona. OTO Jura?! E qual é o problema disso? JULIAN É muito deprimente... e cansativo.


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OTO Tá cansada!? Pois eu vou lhe dizer um negócio, bofe: o outro lá, o maridão corno, não está disposto a largar esse osso facilmente. (Pausa) Eu conheço o Oto... e a Júlia então, nem se fala! Ela sempre foi louca por ele, sabia? Não como a gente se apaixona, claro que não, mas um amor harmônico... fluente como as águas dos rios. Sabe do que elas correm, Ju? De ninguém. Correm para serem livres até se perderem no oceano. (Acende outro cigarro) Ele era... ele é tudo pra ela. Pai, irmão, mãe, amigo, companheiro, parceiro... essas coisas. Se você o conhecesse... não, acredito que isso não faria muita diferença... como todo gato você dever ser egoísta demais para pensar nos outros. Todo belo é mau... e deslumbrante! (Pausa) Para de olhar pra esse maldito relógio! O voo de vocês é às cinco! Ela virá! Está tão alucinada por você quanto você por ela... só um acidente gravíssimo impediria a putinha de pintar por aqui. (Pausa) Merdas acontecem, é claro, mas isso seria tão triste! (Pausa) O que vou ter que fazer pra você se sentar? Ah, já sei: se você não colocar o traseiro aqui nesta cadeira, imediatamente, não conto como foi que ela, a Juju dois contou tudo pro Oto, o maridinho crédulo. (Pausa) Desde que eu a encontrei, ele cuidou da pobrezinha: pagou os médicos todos necessários para reabilitá-la, os estudos, zilhões de roupas... a Júlia cismou que queria ser atriz e ele fez de tudo pra realizar esse delírio dela... e pra quê? Pagou todos os cursos que ela inventava, deixando muitas vezes até de cuidar de si mesmo. Ela era a estrela maior... e sempre será o Sol, aos olhos dele. (Pausa) Não vou te dizer que não gosto de Oto... jamais! Um homem que jogou o único apartamento que tinha nesta caveira de burro aqui. Mas estou do lado de vocês... porque a felicidade é mais importante que tudo... e nada torna uma pessoa mais feliz que uma paixão irresponsável, e por que não dizer arrebatadora, entre... dois pombinhos execráveis.


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JULIAN Ela contou tudo pra ele... pro Oto? Oto vira-se para a plateia e assovia: “Enquanto Julian não sentar, “elazinha” não dirá mais nem meia palavra.” Julian se aproxima e senta-se de frente pra Oto, deixando a pasta que carregava ao seu lado, no chão.

OTO Ótimo, meu amor! É assim que deve se comportar um cavalheiro, um fidalgo. (Pausa) Sim, o Oto sabe de tudo. Deve estar nas últimas! Ele é tão... como dizer... é tão grande de sentimento... ele é doente por ela! Não vive sem. Anote o que eu digo. Anota aí, anda! (Bebe) Eu já era amigo dele antes da Júlia aparecer. Eu diria que mais que isso. (Pausa) Eu devia estar feliz por ela tomar rumo com você e concluo: ele não vai aguentar. O Oto é fraco, autodestrutivo... não é como eu: calejada, fria, papisa, acostumada a tomar “coió” desde pequena. Não sei se “fraco” é o termo correto para o Oto mas, no tocante à Julinha dele – esse mantra – ele é simplesmente... obsessivo! (Bebe) Se visse os dois juntos, você entenderia o que eu estou “falando pra caralho!”. Nesses anos todos não vi – e não houve uma hora, um instante sequer -, que os dois estivessem descolados um do outro. Sempre mantinham alguma parte do corpo em contato: mãos ou reles cotovelos... Julian vira um copo da bebida sem notar. Mas não fica bêbado, não tão fácil.

OTO Sei lá o que vocês dois estão fazendo. (Pausa) Então, se conheço bem a Júlia, neste momento ela está com ele no colo, tentando convencer o infeliz de que nada nesta vida é definitivo. E não é... mas é. Entende o paradoxo? Se não entende de paradoxo não verá sentido em nada do que eu digo. Em nada que existe, e acrescento: tudo o que há tem o seu contrário. Esta é a outra metade, gato. (Bebe) A


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morte é definitiva. E não é, pois é tão viva quanto a própria vida. Tanto que está sempre do nosso lado, e contra nós. A morte não dorme. Não queremos ou suportamos suas teorias, assim como você está cagando para as minhas. Partindo deste princípio e fim, nutritivo e defecativo, cômico e trágico, o Oto pode tentar qualquer coisa, até o mais amargo fim. O sucesso de vocês seria a ruína dele. (Pausa) Era mais ou menos isso que eu queria te dizer. JULIAN E daí? OTO E daí? Depois desse solo? (Pausa) Você deve imaginar. O negócio todo é com ele, já que ele não te conhece e nem vai querer, jamais, estar diante de uma pessoa tão baixa. A coisa que Oto mais odeia no mundo é odiar. Mas é uma pessoa em ascendente desespero. Quero dizer que uma pessoa nestas condições não é ela, é outra... alguém que não se pode prever... tampouco prevenir. JULIAN Isso parece uma ameaça, não? De que lado você está, gata? OTO Pela última vez, sonsa: estou do lado da alegria... só que pra vocês dois ficarem juntos, desfrutando, roendo as maçãs todas, tem uma criatura que será destruída... e isso me deixa tão desorientada que... sério, Julian: não é um bom começo. Não mesmo. Talvez seja inevitável... e... o que fazer? JULIAN Acontece. OTO Acontece? Olha que simplório! Como os gatos são simplistas! Não é um charme? JULIAN Ninguém programa essas coisas, titia. OTO (Macho) Titia é o caralho! (Pausa) Vocês se conheceram naquela festa do barco, não foi? Eu não fui. Como foi?


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JULIAN A Júlia não te conta tudo? OTO E que tal a sua versão? já que as mulheres tacam a lua cheia em tudo o que há. JULIAN Era Lua cheia. OTO Hum, hum... prossiga. E beba um pouco... você está começando a tapar os ouvidos com os ombros e ainda temos uma hora e meia pela frente. (Pausa) Ela me disse que estaria aqui por volta das duas da manhã. Que horas tem? JULIAN (Olhando o relógio) Meia-noite... e meia. OTO Então. JULIAN Q uer que eu seja sincero com você, Marco Túlio? OTO Você não gosta de mim e é homofóbico. JULIAN Não tenho nada contra você, meu camarada... OTO Então por que você quer esperar a Júlia noutro lugar? JULIAN Eu não disse isso. OTO Sabia que o corpo fala, coisinha? JULIAN Tem alguma coisa errada aqui... alguma coisa nessa historinha, alguma coisa em você que... OTO “Para tudo!”, meu pai me disse isso aos três anos, quando viu que eu adorava sentar no colo dos meus tios. JULIAN Não é dessa sua viadagem irritante que eu estou falando, Túlio. Essa me parece meio forçada, mas tudo bem. É outra coisa. (Pausa) Tem algo em você que não encaixa... OTO Por que você não quer, gostosão! Por mim eu já tava encaixadézima!


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JULIAN Você parece tão interessado na alegria de todos... na verdade, o que parece é que você está se divertindo com a dor de todo mundo. OTO Não reparou ainda, tolinho? Deus! devia haver um limite para a imbecilidade juvenil! Ainda não é do seu conhecimento que as pessoas que mais parecem se divertir são as mais desgraçadas? Pronto, você já esqueceu toda a teoria do paradoxo. Julian boceja.

OTO Está se sentindo entediado, meu bem? Esse bocejo devia ser meu! afinal, é muito mais difícil pra mim, que tenho que ficar te explicar tudo o que eu falo. Julian se sente meio grogue, fatigado, parece ter alguma coisa na bebida. Nada disso. Está limpa: Oto está vampirizando o rapaz.

JULIAN Eu estou preocupado... e cansado demais... Rápido como uma caranguejeira, “tia” Oto salta para trás de Julian. Começa a massageá-lo.

JULIAN

Não precisa fazer isso...

OTO Calada! Ai-ai-ai. (Pausa) Nossa! como você está duro, querido! E no lugar errado! (Pausa) Relaxe... pense nas estrelas... na Lua cheia que vocês tanto amam... Oto aperta os ombros dele com ódio.

JULIAN Ai! porra! Oto gira a cadeira, colocando Julian de frente pra ele.

OTO Como você é lindo, Julian! Que boca... que sorriso... eu sei que você não deu uma risadinha até agora, mas... ui! que olhos são esses!? impressionantes... seus cabelos são tão bem resolvidos...


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Clima. Oto vai alisando o rosto, os cabelos, os lábios de Julian... se inclina para beijá-lo, aos arrulhos. Julian, meio hipnotizado, só se liga quando o beijo está por um triz. Dá um salto, limpando a boca que sequer foi tocada pelos lábios de Oto, que faz a cínica.

JULIAN (Transtornado) Que isso!? Que merda é essa, viado?! OTO Bem, se não vai rolar nada... eu vou embora. Fiz o que pude pra te entreter.

Oto pega a sua sacola de couro e vai saindo – teatral. Espera que Julian faça alguma coisa que o impeça ir embora. Nada. Ele se volta, jogando novamente sua “bolsa” no chão.

OTO Eu prometi praquela piranha da Júlia que ficaria com você. JULIAN Se você falar dela assim... mais uma vez... OTO Você o quê, idiota!? Comigo não, seu babaca! JULIAN Sabe que eu não acredito em nada que você diz!? Eu não acredito que você seja o melhor amigo da Júlia. Talvez seja só um vagabundo dessa companhia triste, fazendo uma caricatura ridícula de bicha! É tudo muito superficial! Ela nunca me disse nada sobre você! (Pausa) Se ela chegar, diz que estou esperando por ela no aeroporto (pega suas coisas). Se ela não aparecer lá... até a hora do voo... OTO Espere, gato... ela virá. E vai precisar muito de você. JULIAN Não... eu já ouvi demais! Você deixa qualquer um fora de controle... há muito tempo não tinha tanta vontade te enfiar a porrada em alguém. OTO Creio que fiz bem mandando a Júlia contar tudo pro Oto. Fiz sim. E ela jurando que seria feliz com você em Nova


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York. Ir para uma terra estranha, cheia de gente igualmente esquisita, com um sujeitinho como você, que não pode esperar uma horinha pela coitadinha. (Pausa) A sua família sabe desse caso, Julian? JULIAN Q uem é você pra perguntar qualquer coisa sobre a minha família!? Vai à merda, desgraçado! Fique sabendo que eu esperaria pela Júlia a minha vida inteira! Mas não com você falando tanta nojeira na minha cabeça! (Confuso) Nem sei o que fiz aqui... até agora.

Julian pega sua pasta olhando pra Oto.

JULIAN Foi um prazer, Marco Túlio... ou seja lá quem você for. OTO Falsa! Falsa e falsa! (Pausa) Eu exijo que você fique aqui! JULIAN Chega, camarada... se eu ficar aqui acabo fazendo uma besteira. (Pausa) Quer saber de uma coisa, Tutu? OTO (Debochado) Manda ver... mas com rima. JULIAN Vai pra puta que o pariu! OTO Amo... quem joga uma rima fora.

Julian vai saindo. Oto pega a sua sacola e, discretamente, saca um revólver de dentro dela – a plateia só percebe que trata-se de uma arma quando rola o primeiro estrondo. A partir daqui a bicha (Marco Túlio) some dando lugar ao dono do corpo que ela ocupava – Oto.

OTO (Dando a última pinta) Disparou... olha que mal! (Sério, autoritário) Quero que você volte e sente-se aqui... na minha frente. E olha, rapaz... eu não estou mais de bom humor. JULIAN O que você pretende, Oto!? ficar com uma mulher que não te quer!? (Pausa) Sabe o que ela me disse a seu res-


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peito? Que não aguentava mais você babando nela o tempo todo. Que você só gosta de ficar em casa e ela não podia sair com mais ninguém... que você vive em cima dela o tempo todo, pegando, passando a mão, que ela se sentia sufocada... não suportava mais! Disse que você era até bonzinho, mas que ela precisava gostar de alguém da mesma época que ela... (Pausa) que você fazia ela se sentir um bocado deslocada nos poucos lugares que vocês iam, com seus velhos amigos de faculdade. Bonzinho!? É isso que você chama de ser o homem ideal pra alguém, meu chapa? OTO E você, idiota... por acaso tem noção do que ela me disse a seu respeito? JULIAN Você inventaria qualquer coisa pra eu me decepcionar com a Júlia. Só que eu não vou cair nessa... você está doente, meu camarada! Ela era bem triste antes de me conhecer... disso eu sei. (Pausa) Você quer ficar com ela, otário? Mesmo que ela fique do seu lado por pena!? (Pausa) Tenha alguma autoestima, velhinho! (Pausa) Ela deve achar que te deve alguma coisa... ou não teria falado sobre a gente. É dinheiro que você quer? OTO O que você acha? JULIAN Onde ela está, Oto?

Julian se toca, pela primeira vez, que Júlia pode estar morta.

JULIAN Fica com ela, camarada... seria a mesma coisa que roubar uma vida. OTO Não é mais tão simples, seu covarde filho de uma puta! (Pausa) Vem pra cá... posso disparar quantas vezes eu quiser. A acústica deste lugar, como eu disse, é soberba! Gastei uma fábula pra forrar estas paredes! e tudo pra


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ela conseguir ser audível! Acredite, queridão, tudo o que tinha pra perder eu já perdi... financeiramente inclusive... JULIAN E o que você quer de mim? OTO Sobe aqui. E é a última vez que eu digo isso. JULIAN O que vai fazer, Oto!? Que bosta de pessoa é você? OTO No momento, uma pessoa com direito a, pelo menos, cinco tiros. JULIAN Você não tem coragem... é um merda! Um cara que se humilha desse jeito por causa de alguém... OTO (Mirando nele) Eu treinei, sabe? JULIAN Você tá blefando...

Oto aponta pra baixo da cintura de Julian.

OTO Vai pagar pra ver? Esse dinheiro eu aceito. Julian volta pro palco, preocupado com Júlia. Oto joga a cadeira pra ele sentar. Pega umas algemas (dessas de sexy shop) e joga em cima dele.

OTO Coloca isso... (Pausa) rápido, nojento! JULIAN Onde ela está, Oto? OTO Em casa, que é o lugar dela. A coisa agora é entre nós dois, “camarada”. Põe logo essa porcaria, antes que eu atire no seu pé e acabe duma vez com essa viagem idiota... até agora eu não consigo acreditar que a Júlia ia... (com ódio) eu tô com muita vontade de atirar em você... e que se foda! Julian põe as algemas.


Primeiro livro com peças de teatro Sde Vinícius Márquez. OTO ó algumas bobagens... o mesmo que eu vou fazer com JULIAN Você fez alguma coisa com ela? você.

JULIAN ocê tá doente... nãoeé assim vai conseguir... 3 PeçasVINÉDITAS umaquepeça encenada,

com sucesso público crítica de São OTO (Cortando)de O quê!? (Pausa) Nósenão vivemos no mesmo bonitão. (Pausa) Você já foi estuprado antes? Eu Paulo a mundo, Portugal. já. Por um playboyzinho chamado Julian. Vai ser bom... você vai gostar... Conheça também os outros livros de Vinícius Márquez

JULIAN Você não é um psicopata, Oto... é um cara culto... profespela Another Hot Books: sor de História... OTO Pois é... eu cansei de explicar a vida dos outros. (Pausa) Quer dizer que pelo fato de eu ser um professor você acredita que... se eu fosse um traficante, um bandido, qualquer coisa dessas, você não faria o que fez? Quer dizer que o respeito deve ser adquirido na base da violência? Então, meu doce príncipe... agora eu ando atrás de outra forma de expressão. JULIAN Não faz isso, Oto... a Júlia vai te odiar pra sempre... nunca vai te perdoar... OTO E você? Vai me amar? Um orgasmo apenas, Julian, e nada mais. É tudo o que preciso de você. Não é isso que prende vocês dois? O gozo? a carne? Sim, porque inteligência não pode ser... nem nada que lembre algo espiritual. JULIAN A Júlia não devia ter te contado... ela foi muito... OTO Burra, não é? Esse amor de vocês promete. (Pausa) Ela não “me contou”... eu peguei a nossa linda Júlia escrevendo uma cartinha de adeus pra mim. Foi bem ruim o que eu passei, Julian... creia... um dia da pior literatura ISBN: 978-85-63194-633 que eu já sofri. (Pausa) Eu vou me esforçar ao máximo... pra que você saia daqui me achando o melhor dos amantes. www.livrosilimitados.com.br


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