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Epígrafe
Talvez só possamos colocar a questão O que é a filosofia? tardiamente, quando chega a velhice, e a hora de falar concretamente. De fato, a bibliografia é muito magra. Esta é uma questão que enfrentamos numa agitação discreta, à meia-noite, quando nada mais resta a perguntar. Deleuze/Guatarri. O que é a filosofia? Ed 34, 1991, SP p 9
(...) tanto assim que sempre há uma hora, meio dia ou meia noite, em que não se deve mais perguntar ‘o que é o cinema?’, mas ‘o que é a filosofia?’ O próprio cinema é uma nova prática das imagens e dos signos, cuja teoria a filosofia deve fazer como prática conceitual. Deleuze, Gilles. Cinema 2, A imagemtempo. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1990, p 320. Cinéma 2 - L’image temps. Collection Critique, Les éditions de Minuit. Paris, 1985, p 366.
Índice Introdução..........................................................................................9 Capítulo 1 – De como o cinema forçou o pensamento de Gilles Deleuze.....................................................................11 Capítulo 2 – Atos cinematográficos: enquadrar, decupar, montar.........19 Capítulo 3 – O conceito de imagem-movimento.......................................33 – As ressonâncias com Henri Bergson, a racionalidade e a imagem indireta do tempo...............................................38 – Os tipos de imagens e os signos expressos..........................54 – As quatro tendências do Cinema Clássico...........................61 Capítulo 4 – O conceito de imagem-tempo................................................65 – Da descrição cristalina............................................................75 – Os tipos de troca e os estados dos cristais...........................86 – Cronosignos, noosignos e lektosignos.................................91 Capítulo 5 – Imagem-movimento X Imagem-tempo................................99 – Panorama Histórico-cultural...............................................103 – Casos Especiais: A Imagem-relação e a Perambulação....106 – Esquemática...........................................................................110 Capítulo 6 – Deficiência do cerebelo.........................................................113 Conclusão.......................................................................................131 Bibliografia.....................................................................................137
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Introdução
Muito já se escreveu sobre as relações entre cinema e filosofia. A bibliografia é extensa, bastante extensa. Será que esta sedução vem desde a antiguidade quando já se projetavam imagens na caverna de Platão? Talvez. De qualquer forma, quando procuramos justificar os porquês de insistir em um estudo sobre o cinema parece que queríamos enxergar algo diferente, novo. É aí que a obra Cinema do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) destacou-se entre as tantas coisas já ditas e pensadas. Procuramos em sua obra algo que fosse além de clichês e que experimentasse algo sobre o cinema. E encontramos algo ‘entre’ filosofia e cinema, algo que acontece neste intervalo, provavelmente a meia-noite, quando as questões ‘o que é o cinema?’ e ‘o que é a filosofia?’ forçam Deleuze a pensar e, desse modo, a criar conceitos que podem dizer algo da ‘prática das imagens e dos signos’. Mas aqui estávamos diante de tantas novidades. Eram novidades porque são novas formas de conceber a filosofia e novas formas de encarar o cinema. Deleuze concebeu a filosofia como atividade criadora de conceitos, conceitos criados por força de um encontro com algo fora que nos força a pensar. E o filósofo francês encarava o cinema como um arte de encadear imagens e seus signos, onde a novidade surgia nas singulares relações entre imagens e signos operadas pelos ‘estilos’ dos cineastas. Escolher
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o intervalo entre cinema e filosofia como território significa que o cinema é um fora gostoso de se encontrar e os seus tipos de relações entre imagens e signos dão o que pensar. Porém, a obra Cinema de Gilles Deleuze é bastante extensa e com múltiplas entradas possíveis. Desde a “taxionomia” dos signos cinematográficos e dos tipos de imagens, até os quatro comentários ao filósofo Henri Bergson ou as monografias de mais de 150 autores... Desse modo, em nosso estudo nos limitamos a encarar esta obra pelo viés conceitual, através do estudo das singulares condições de criação dos conceitos de Imagem-movimento e Imagem-tempo. Se Deleuze achava que a filosofia criava conceitos e o cinema a forçava a criá-los, então criou os conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo para tentar dar conta de pensar as relações entre imagens e signos que compõem um filme. Desse modo, desenvolvemos uma pesquisa para experimentar como estes conceitos foram criados e o que eles tentavam pensar. Para executar esta tarefa era necessário, em primeiro lugar, entender quais características Deleuze dá aos conceitos para depois entender quais as características dos conceitos criados para pensar o cinema. De imediato precisamos perceber um dado importante: a abordagem deleuziana do cinema é conceitual, significa pensar que os conceitos de Imagem-movimento e Imagem-tempo não expressam uma evolução na linguagem nem uma história do cinema. São conceitos dinâmicos e expressam diferentes formas de traçar relações entre imagens e signos na composição de um filme. E nosso plano de estudo é nos encontrar com as singulares condições de criação desses conceitos e como eles lidam com as relações entre imagens e seus signos.
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Capítulo 1 De como o cinema forçou o pensamento de Deleuze
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“O cinema sempre contará o que os movimentos e os tempos da imagem lhe fazem contar. Se o movimento recebe sua regra de um esquema sensório-motor, isto é, apresenta um personagem que reage a uma situação, então haverá uma história. Se, ao contrário, o esquema sensóriomotor desmorona, em favor de movimentos não orientados, desconexos, serão outras formas, mais devires que histórias” Gilles Deleuze, Conversações, p. 77, [pp. 84-5]
Na obra Cinema, o filósofo francês Gilles Deleuze distingue dois regimes de imagem que compõem os tomos distintos da obra: A Imagem-movimento (1983) e A Imagem-tempo (1985). Não se trata de uma diferenciação “histórica”, ou uma “evolução”, o que diferencia os dois regimes são os tipos de relações travadas entre o movimento e o tempo, através dos tipos de imagens, os seus signos e suas relações na montagem. Por isso, podemos dizer que o que interessa a Deleuze no cinema são as relações entre imagens. Em uma das entrevistas publicada no livro Conversações, o filósofo nos diz que “a imagem nunca está só. O que conta é a relação entre imagens”1. Dentro dessa perspectiva, os dois regimes fazem, através de relações entre imagens e signos, uma “imagem indireta do tempo” e uma “imagem direta do tempo”. Essas duas expressões concernem à relação entre movimento e tempo que a montagem cinematográfica cria ao concatenar imagens e criar signos que estabelecem elos entre elas. Estabelece-se, portanto, um intervalo entre a filosofia e o ci1 C, p. 69, [p.75].
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nema, no qual o filósofo cinéfilo sente a filosofia ser forçada a pensar o cinema e, assim, criar conceitos para os tipos de relações entre imagens, o que justificava a epígrafe deste livro que dizia “(...) tanto assim que sempre há uma hora, meio dia ou meia noite, em que não se deve mais perguntar ‘o que é o cinema?’, mas ‘o que é a filosofia?’ O próprio cinema é uma nova prática das imagens e dos signos, cuja teoria a filosofia deve fazer como prática conceitual” 2. Se, para Deleuze, a tarefa da filosofia é criar conceitos, então, nossa experimentação de estudo da obra Cinema foi entender que Imagem-movimento e Imagem-tempo são conceitos criados para dizer algo sobre as relações entre imagens e dos seus signos. Concentrar os estudos nas relações entre imagens foi a opção de Deleuze, pois as relações criam um fluxo, um devir de imagens e de signos e, como diz Orlandi, “é como se o estudioso perguntasse: em que esse filme, esse plano, essa imagem modula, modifica, diferencia o fluxo em que mergulha?”3. A tarefa do filósofo era encarar o cinema como criador de um devir de imagens e signos, para assim analisar a singularidade de uma imagem, de um plano, de um signo em relação ao fluxo do todo do filme. Talvez aqui seja importante o leitor conferir a obra O que é a filosofia? (1991) de Gilles Deleuze e Felix Guatarri para entender como concebiam a filosofia. O acesso a esta obra, posterior ao trabalho sobre o cinema, pode situar o que foi dito acima sobre a ‘criação conceitual’. Afinal, para instalar-se no intervalo entre cinema e filosofia, é significativo visitar esta obra posterior onde há a afirmação de que a tarefa do filósofo e da filosofia é a criação de conceitos para depois analisarmos as singulares condições de criação dos conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo. Deleuze e Guatarri inovaram bastante a história da filosofia ao colocar a tarefa do filósofo como um criador de conceitos. Afasta2’. Deleuze, Gilles. Cinema 2, A imagem-tempo. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1990, p 320. Cinéma 2 L’image temps. Collection Critique, Les éditions de Minuit. Paris, 1985, p 366. 3 ORLANDI, Luiz B.L., Deleuze trata da filosofia em tempo de cinema. Jornal diário Folha de São Paulo, Caderno Letras, sábado, 11 de agosto de 1990.
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ram noções como de ‘contemplação’, ‘reflexão’ e ‘comunicação’ carregadas com o peso de um senso-comum e de um bom-senso e que faziam uma imagem do pensamento como abstrato e representativo. Valorizaram a criatividade e a inventividade, através da imanência, para fazer do pensamento criador de conceitos que resolve problemas que nos forçam a pensar e que nos inquietam. Desse modo, afirmam que: O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. (Deleuze, 1992, p 13)
O filósofo cria conceitos porque existe algo fora dele que o instiga a pensar. E o pensador é aquele que está a espreita para ser instigado por algo que o faça pensar. A criação de conceitos entra em um movimento imanente nascendo no meio do pensamento forçado por um fora. O pensamento assim não contempla um ‘céu estrelado de ideias’, não é veículo de uma ‘razão comunicativa’ e também não se limita a uma faculdade reflexiva sobre qualquer assunto. O pensamento cria e no caso da filosofia, cria conceitos. Como consequência dessa noção de criação de conceitos, como Deleuze/Guatarri concebiam o próprio conceito? Para eles o conceito é uma palavra, expressão ou noção criada para organizar um campo de solução para uma questão ou um problema. E organiza esse campo porque possui elementos singulares que estabelecem relações intensivas entre si. E mais, o conceito precisa ter consistência, precisa se sustentar, para isso precisa legitimar ao leitor seu próprio traço ontológico, ou seja, o conceito precisa expor logicamente as relações entre os seus elementos para ganhar consistência e se sustentar. Deleuze/Guatarri falam em uma ‘pedagogia do conceito’ onde o conceito é criado em função de um problema que o força a pensar e que
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neste processo ele é autopoiético, ele cria as condições de sua própria sustentabilidade resolvendo um problema, ensinando-nos como ficar de pé: Todo o conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução (…) mesmo na filosofia não se cria conceitos, a não ser em função dos problemas que se considerem mal vistos ou mal colocados (pedagogia do conceito). (DELEUZE & GUATARRI, 1992, p28)
Podemos encarar a filosofia de Deleuze e Guatarri como uma produtora de sentido onde o conceito é o seu operador, ele precisa fazer sentido ao remeter a um problema para o qual procura organizar campos de solução. Recorremos aqui a uma aula de Deleuze sobre o cinema em Vincennes-St. Denis4, para tentar dar conta de explicar sucintamente, neste momento, o tratamento conceitual que dará ao cinema. Nesta aula, diz que o conceito de Imagem-movimento não deve ser confundido com “imagens em movimento”, pois esta é constituída somente de pessoas e coisas que se movem. Enquanto conceito, a Imagem-movimento extrai o movimento de seu móvel, ou veículo, através da mobilidade da câmera e dos movimentos relacionais estabelecidos pela montagem. E a Imagem-movimento, ao se constituir, faz uma “imagem do tempo” quando apresenta indiretamente o tempo através da montagem em seus dois aspectos: o intervalo de movimento entre os planos do filme e o todo do filme como totalidade cambiante ao fazer passar os planos. Mas aí é esta “imagem do tempo” que não pode ser confundida com o conceito de Imagem-tempo, quando o tempo é apresentado diretamente pelas imagens e signos, enquanto um “tempo que saiu dos seus eixos”5 . É como se Deleuze nos dissesse que a narrativa cinematográfica faz uma imagem do tempo ao operar movimentos através 4 No website www.webdeleuze.com, é possível encontrar um série de cursos de Gilles Deleuze transcritos. A passagem acima se refere à aula do dia 12/04/1983. 5 Frase da peça Hamlet, de W. Shakespeare à qual Deleuze recorreu algumas vezes.
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das relações entre os signos na montagem e na mobilidade da camera. E que há dois problemas que o instigam a pensar: quando esta imagem do tempo é apresentada indiretamente através de uma espacialização e motricidade dos signos e da montagem; e será outro problema quando o cinema passa a apresentar o tempo de modo ‘direto’, trazendo outros modos de suceder imagens e outros signos. O que temos aqui portanto, são dois conceitos sobre dois modos de estabelecer as relações entre as imagens e seus signos e como elas constroem um filme. Este é o ‘entre’ filosofia e cinema em Deleuze. Este é o nosso ponto de partida neste estudo e também nosso recorte em uma tão extensa e complexa obra. Precisávamos delimitar este modus operandi porque a obra Cinema apresenta diversas entradas possíveis: os comentários a filosofia de Henri Bergson, a análise do estilo singular de mais de 150 cineastas, a descrição e análise dos signos cinematográficos... No nosso caso, como dissemos, estudaremos as singulares condições de criação dos conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo. Esses conceitos, portanto não expõem a “História” do cinema ou a “evolução de uma linguagem”, mas tentam atravessar os estilos dos cineastas tomados enquanto variedades de tipos de imagem, de enquadramentos e de relações entre planos. Os estilos dos cineastas surgiram sucessiva ou simultaneamente, porém Deleuze os toma como coexistindo e formando um conjunto de múltiplas entradas de uma multiplicidade de singulares traçados de relações entre imagens. Isso fica bem claro quando Deleuze avisa aos leitores que seu livro fala de uma “história natural, de preferência à História histórica” e que a história das imagens “não me parece evolutiva”6. Por isso o tema da “taxionomia” das imagens e dos signos como uma “classificação das classificações”7 dentro de uma infinidade de classificações possíveis. 6 Deleuze, Gilles. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, p 66. Pourparlers 1972 - 1990. Les éditions de Minuit, 1990, p. 71. 7 C, p. 87, [p. 91].
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Falou-se de estilos cinematográficos, mas, então, o que Deleuze diz dos estilos? Os estilos são variadas modulações de proceder com a montagem, e constituem as singularidades de cada autor. Assim, a montagem perfura transversalmente os conceitos de Imagem-movimento e de Imagem-tempo. Por isso, pareceu pertinente salientá-la como operadora daquilo que é essencial para o filósofo: montar é criar relações entre imagens. Deste modo, Deleuze esforçou-se para extrair um uso conceitual da montagem ao dizer que ela cria um fluxo de imagens que, com sua dupla troca (relação entre os planos e a construção de um “todo” do filme) pode constituir diferentes expressões do movimento, do pensamento e do tempo. Portanto, será necessário conferir o tratamento filosófico que foi dado a certos atos cinematográficos, atos ligados a construção de um filme: montar, decupar, enquadrar. Esta sutileza se faz necessária para que possamos precisar o que ele pretendia com eles. Os dois conceitos serão estudados em capítulos próprios e depois confrontados em uma retomada de seu sentido. Enfim, encerramos nosso estudo com um diagnóstico preocupante sobre a situação das imagens nesta ‘sociedade de controle’ atual, diagnóstico que estava em curso quando Deleuze nos deixou, por isso, tivemos que recorrer a alguns textos e entrevistas do livro Conversações, onde ficaram registradas as últimas preocupações desse ‘filocinesofo’. Neste livro, queremos experimentar um tratamento conceitual do cinema ‘à deleuziana’. Esperamos com isso ressaltar que os conceitos criados servem para nos proteger dos clichês e da propagada que se apropriaram e dizem ‘fazer cinema’ e assim possamos curtir os fluxos, a imagens, as montagens, os estilos de diferentes cineastas que traçaram diferentes singularidades ao longo da história do cinema ao mesmo tempo que somos afetados pela filosofia de Deleuze.
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Capítulo 2 Atos cinematográficos: enquadrar, decupar, montar
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