Cassionei Niches Petry nasceu
em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, onde reside. Professor de Literatura, mestre em Letras, escreve a coluna Traçando livros no jornal Gazeta do Sul e mantém um blog, cassionei.blogspot.com, onde publica crônicas, artigos e aforismos. É autor do livro de contos Arranhões e outras feridas (2012).
Escolheram o melhor q motel. Fred ligou a ban hidromassagem. Ela d os óculos sobre o már lado da cama e esperou Quando o amante se A mãe e dona de casa Paula repensa Paula começou a tirar a sua monótona vida de esposa, Fred a contemplava e depois de lembrar-se de seu antigo também ia se despind namorado no tempo da faculdade, o que sem aosestudante mesmos m Fred, que conquistou tos sensuais. com suas reflexões sobre literatura, filosofia, religião. Reencontra-o através da internet e os dois mantêm conversas em que recordam o passado, reascendendo a antiga paixão. Enquanto isso, um escritor famoso se isola para escrever seu próximo romance... Em Os óculos de Paula, Cassionei Niches Petry lança-se como romancista e nos faz lembrar que o passado está sempre rondando a todos, inclusive as pessoas que mais amamos.
ISBN: 9
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Apresentação Norberto Perkoski Doutor em Letras, professor do Mestrado em Letras da Unisc – Universidade de Santa Cruz do Sul
O romance Os óculos de Paula, de Cassionei Niches Petry, exige um leitor ativo, uma vez que a narrativa institui-se como um enigma que potencializa não uma, mas várias possibilidades de leitura. O texto tanto pode ser lido como um romance de ideias, uma vez que temas polêmicos são discutidos no decorrer da trama, entre eles o ateísmo e o suicídio, quanto como uma trama passional, porquanto apresenta um triângulo amoroso no transcorrer de suas páginas. A tríade afetiva é composta por Fred, Paula e seu marido. Os dois primeiros são os protagonistas da narrativa, especialmente a figura feminina de quem um narrador onisciente revela a problemática situação existencial e a falência de seu casamento. No presente da narrativa, Paula tem consciência do vazio da sua relação com o esposo e reata a relação com Fred, que fora seu namorado nos tempos da faculdade. A retomada do envolvimento com Fred ocorre através do acesso de Paula ao blog que ele mantém nas redes sociais. Fred, também casado e, assim como Paula, com um filho, é professor e polemiza através da internet a temática do ateísmo e, principalmente, do suicídio, assuntos para ele obsessivos. A complexidade da narrativa se adensa com o aparecimento de outro narrador que invade a história, intrometendo-se de tempos em tempos na narração. Esse
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narrador invasivo é um escritor em crise que resolve se isolar para escrever o romance em que está trabalhando. A fragmentação existencial das personagens é reforçada por uma pertinente estratégia de Cassionei Niches Petry através da também fragmentação da obra com capítulos predominantemente curtos. Ressalte-se igualmente o uso da intertextualidade com referências a diversas obras e escritores consagrados, requerendo do leitor o processo de estabelecer relações diversas no momento da leitura. Além disso, são discutidos no transcorrer do texto aspectos da metaficção, bem como da autoficção, revelando um enovelar-se da narrativa e de seu processo de criação sobre si mesma. Há, ainda a ressaltar, o uso da intratextualidade, no caso com o verdadeiro autor do romance: Os óculos de Paula é o título de um livro comentado no conto “Ônibus”, da obra Arranhões e outras feridas, publicada por Cassionei em 2012. O final surpreendente da obra implode vários elementos que pareciam verdadeiros no transcurso do narrado, obrigando o leitor, ao término da narração, a levantar os olhos do texto e se perguntar, espantado: quem conta a história que acabei de ler? Assim como Paula, o leitor talvez precise de óculos novos, ou seja, uma releitura da narrativa para tentar decifrar o mistério do romance.
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Pensé: se me han caído las gafas. Pensé: hasta hace un momento yo no sabía que utilizaba gafas. Pensé: ahora percibo los cambios. Y eso, saber que ahora sabía que necesitaba gafas para ver, me hizo temerario y me agaché y encontré mis lentes (¡qué diferencia entre tenerlos puestos y no tenerlos!)… (Los detectives salvajes, Roberto Bolaño)
1. Tirou os óculos e os acomodou sobre o livro. Os olhos se voltaram para a porta, de onde surgiu o vulto do filho com o caderno nas mãos. A professora mandara um bilhete. Repôs os óculos e leu uma crítica às atitudes do menino em sala de aula. Por ser mais inteligente, terminava as atividades antes de todos e começava a cantar, atrapalhando os colegas. Paula apenas sorriu, lembrando a menina que entrara na escola sabendo ler. Sua professora, no entanto, mandava recados de elogio no caderno, não reclamava. Assinou o bilhete e tirou os óculos. Pensou em
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acrescentar uma resposta à professora, mas se limitou a reprimir o filho, para que ele passasse a ser mais obediente. E que aproveitasse o “castigo” de ir à biblioteca como uma oportunidade para ler mais. Repôs os óculos e pensou na aparente incoerência no seu discurso. Queria o filho obediente, mas o incentivava a ler. Fechou o livro e o pôs sobre o criado-mudo. “Nossa condição é de servirmos aos outros sem falar nada”, pensou.
2. – Com essas filosofices você vai acabar indo para o inferno – disse sua mãe, na verdade o padre pela boca de sua mãe.
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3. Paula acordou no quarto do rapaz, o mesmo que na noite anterior havia “colocado” uma questão muito importante no debate. “O que nos faz ser de alguma religião? Já pararam para pensar sobre isso? Qual foi o ponto de partida? A resposta mais frequente será: ‘Porque minha família segue essa religião’. O que nos provoca outra pergunta: ‘E por que sua família segue essa religião?’ Para provocar ainda mais, proponho um exercício de imaginação. Se você tivesse nascido em outro país, com uma cultura diferente e cuja religião predominante é diferente? Será que seguiria a mesma crença? E se nascesse no seio de uma família que não acreditasse em um deus, você acreditaria nele? Quando a pessoa fica acuada com essas questões, ela já diz que ‘tem um lado espiritual independente de qualquer religião’, expressão que se popularizou nos sites de relacionamento da internet. Mas esse lado espiritual surgiu do nada? Lógico que não, pois nasceu de um processo de questionamento. É um passo para a descrença, talvez, não fosse a necessidade pessoal de crer ou a pressão da sociedade para crer. Não estou com isso querendo destruir nenhuma crença, mas mostrar que ela é um atributo pessoal do ser humano que não deve ser imposto a outros. Querer impor sua ‘verdade’ é desrespeitar o seu semelhante, e o respeito é um dos fatores da ética que devem ser mantidos para o convívio na sociedade.”
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4. Tirou os óculos antes de tomar o café quente, pois a fumaça os embaciava sempre. Quando o filho apareceu na cozinha, pediu a bênção e ela respondeu “deus lhe abençoe”, sem olhar para o menino. Depois, o marido saiu para trabalhar, não sem antes lhe dar um beijo na testa. Ela disse “vá com deus”, automaticamente, assim como foi a resposta do marido: “amém”.
5. O rapaz deu bom-dia e tentou beijá-la. Ela se esquivou porque não tinha escovado os dentes ainda. Hábitos arraigados, disse o rapaz, gente como você nunca os perde, não é?
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6. O menino também saiu. Dessa vez ela não recomendou “vá com deus” e nem ele sentiu falta.
7. Ao voltar para casa, sua mãe a repreendeu, disse que não ia ficar pagando a faculdade para ela ficar só de namoro, a faculdade custava caro, ora essa. Nessas horas, ela colocava as mãos nos ouvidos, fechava os olhos e a boca, o que a fazia lembrar-se da clássica imagem dos três macacos. – Nem na missa vai mais, onde já se viu!
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8. Pôs os óculos e continuou a leitura. Deixou a louça suja sobre a pia. O livro a estava fazendo refletir depois de anos de certo marasmo intelectual. Lembrava-se de algo com respeito à reflexão, reflexo no espelho, olhar para dentro de si mesmo. Encontrar um espelho como esse, anos depois de outro ser quebrado, despertava o Cérbero dentro dela.
9. “Paula, pensa comigo, não estaria o inferno dentro de nós mesmos? Estamos sempre querendo ver o céu ou o inferno em um além-túmulo, mas a paz ou o conflito não estão dentro de nosso próprio cérebro? Não é à toa que na mitologia grega o mundo dos mortos era protegido pelo cão de três cabeças chamado Cérbero, que controlava a saída do Hades. Note a semelhança entre o nome do monstro e a palavra cérebro. Pois cada cabeça desse ser mitológico
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pode simbolizar as divisões do inconsciente, de acordo com Sigmund Freud: o id, que são nossos instintos e desejos mais primitivos, relacionados à busca pelo prazer; o superego, que representa a censura que a cultura impõe ao indivíduo, as repressões aos desejos do id; e o ego, que é o equilíbrio, controlando o comportamento, pois nem o id nem o superego podem prevalecer um sobre o outro, caso contrário acontecem os distúrbios mentais. Então, quem se deixa dominar pelos seus desejos mais recônditos pode ser tachado de pervertido. Quem se deixa ser controlado em demasia pode se tornar um fanático religioso, por exemplo. O inferno, portanto, não é um lugar além-túmulo fictício, tampouco o nosso mundo o é, muito menos são as outras pessoas, como escreveu Sartre. O inferno está dentro de cada um de nós, e, como disse Juan Pablo Castel, personagem do romance O túnel, do argentino Ernesto Sabato, os muros deste inferno serão, assim, cada dia mais herméticos. Se as pessoas deixassem de acreditar nesse inferno que não existe e se voltassem para si próprias, o mundo seria muito melhor. Mas, claro, é só minha opinião, fica com a sua, ou melhor, com a que lhe enfiaram goela abaixo durante toda sua vida.”
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10. Paula tirou os óculos e foi lavar a louça.
11. Paula pôs os óculos pela primeira vez e foi como se um novo mundo surgisse na sua frente. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi poder enxergar o letreiro dos ônibus. Uma vez quase perdera sua linha, pois ficava aguardando até o último instante o veículo se aproximar da parada para ler o destino. Agora, de longe, podia ver. Logicamente, passou a perceber muitos detalhes da paisagem urbana de forma diferente. Mas não se acostumou, em princípio, com a extensão dos seus olhos e preferia tirá-los para falar com as pessoas. Talvez por não querer ver suas imperfeições que ficavam mais visíveis, principalmente as dele. A barba sempre mal aparada, dessa forma, quase não era notada por ela. Com o tempo os graus aumentaram e ela não
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tirou mais os óculos. Inclusive passou a necessitar deles para ler. Aconselharam o uso de lentes de contato, mas gostava dos seus óculos. Eles lhe davam um toque intelectual, um “plus” a mais, pleonasmo que seu antigo namorado usava quando queria debochar dos pseudointelectuais que arrotavam suas titulações. Foi Borges quem disse que os óculos são a extensão da nossa visão, sendo que o livro o é da imaginação e da memória. Na verdade, ele falou do microscópio e do telescópio. De qualquer forma, bastavam os óculos para ler, e os livros lhe proporcionavam uma visão melhor das pequenas coisas ou das que estão distantes. Mais do que qualquer outra lente.
12. Os óculos estavam sobre o criado-mudo. Muda ela permaneceu quando o marido lhe falou da visita próxima de alguns amigos dele e de suas respectivas esposas, que não eram necessariamente amigas dela. Nesse ponto, Sartre estava certo: o inferno são os outros.
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Escolheram o melhor quarto do motel. Fred ligou a banheira de hidromassagem. Ela depositou os óculos sobre o mármore ao lado da cama e esperou por ele. Quando o amante se deitou, Paula começou a tirar a roupa. Fred a contemplava enquanto também ia se despindo, lógico que sem os mesmos movimentos sensuais.
ISBN: 978-85-66464429
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