Ao pe do sobrado

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ANGELO HAMILCAR BEVILAQUA



AO PÉ DO SOBRADO E OUTRAS HISTÓRIAS



A NGELO H AMILCAR B EVILAQUA

AO PÉ DO SOBRADO E OUTRAS HISTÓRIAS


Copyright © 2011 by Angelo Hamilcar Bevilaqua Copyright desta edição © 2011 by Livros Ilimitados LIVROS ILIMITADOS Conselho Editorial: Bernardo Costa John Lee Murray Leonardo Modesto ISBN: 978-85-63194-35-X Revisão: Marina Silvera e Luciana Bastos Figueiredo Projeto gráfico e diagramação: Jorge Paes Capa: John Lee Murray Direitos desta edição reservados à Red Pepper Consultoria Marketing e Assessoria Ltda Rua Joaquim Nabuco, 81 – 101 Copacabana – Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22080-030 Tel.: (21) 3717-4666 contato@livrosilimitados.com.br www.livrosilimitados.com.br PARCEIRO

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


SUMÁRIO

Introdução – 7 1ª– PARTE – 9 CAPÍTULO I – 11

Nando e Quim – 13 O caso do tenente – 20 Família Benevides – 22 A compra da fazenda – 26 A instituição de amparo – 27 Amigo é pr’essas horas – 28 O Coronel – 30 Filho adotado – 33 A doma – 35 Cadáver refinado – 37 Família Milanês – 39 Amor à primeira queda – 41 A cruza – 46

CAPÍTULO II – 49 Carreiro Vitório – 53 U negu tá marradu... – 54 CAPÍTULO III – 57

Óleo de mocotó – 59 Revolução de 32 – 59 Os botões do casaco do General – 60 A tropa – 62 O sobrado – 63 A selaria – 66 Santos Dumont – 67


CAPÍTULO IV – 69 Tem gente nova? – 72 Festa do padroeiro – 74 CAPÍTULO V – 75 CAPÍTULO VI – 81

A fazenda e a roça – 83 Amor da juventude – 86 A tulha, o paiol, a capelinha – 89 Lições de catecismo – 90 Mardita pinga – 93 Mineiro e o lobisomem – 94 Limite da propriedade – 98 Água mineral gasosa – 100 Cine Alvorada – 101 O tropel dos cavalos– 103 Tipos diferentes – 104 Origem da cidade – 105

CAPÍTULO VII – 109

“Daqui não saio....” – 111 Carnavais – 112 O Expressinho – 112 A noiva pode esperar – 113 O aviador e a moça do interior – 114 Assassinato de Tonico – 115 Aparelho de ressuscitar afogados – 116

CAPÍTULO VIII – 119 2ª– PARTE – 123 Em continuação... – 125 Notas do autor – 151 Glossário – 153


INTRODUÇÃO Tive cinco filhos Plantei árvores E escrevi este livro

Habituado a elaborar laudos, pareceres, relatórios e outros trabalhos técnicos, como engenheiro, atrevo-me agora a escrever, ou melhor, a digitar esta história. Tudo tem um ponto de partida. Este, no caso, foi a minha vida vivida em fazenda. Ao me valer da lembrança e das histórias ouvidas, ocorreram-me lapsos de memória, às vezes propositais, os quais foram preenchidos com outros causos. Em semelhança a um jogo em que a bola rola de um lado para o outro, a disputa entre a realidade e a ficção terminou com um resultado discutível. E o lúdico jogando pela lateral. Aqui, em um mesmo personagem estão escondidas uma, duas ou mais pessoas, assim como uma mesma pessoa se incorpora em um ou vários personagens. Mas nem sempre. Enfim, são histórias. Nos capítulos do livro é contado o que se passa num só dia – 24 de agosto, o dia de São Bartolomeu – numa fazenda e termina no sobrado da cidade. “As Outras Histórias” se encontram no entremeio. José Hernandez (1834-1886), ao terminar seu canto dedicado a Martin Fierro, esclarece: “Mas naides se crea ofendido, pues a ninguno incomodo; y si canto de este modo por encontrarlo oportuno. No es para mal de ninguno, sino para bien de todos.”


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Angelo Hamilcar Bevilaqua

Com o meu maior carinho, para: Didi, Hamilcar, Heloisa, Beatriz, Luiz Henrique. Cláudio, Marcelo, Rose, Vivi, Gabriela, Julia, Olívia, Andréa, Priscila, Letícia, Pedro Henrique, Francisco. As colaboradoras Ninita, KK, Donana, Cecília, Mariza. As famílias Bevilaqua, Costa Ferreira. Os amigos de sentimento rural e os amantes dos animais. Saudades da nossa Aninha. Angelo Fazenda Vargem Grande


1ÂŞ- Parte



Capítulo I

Agosto, mês ventoso. Mês de soltar pipas. Mês da seca nos campos. Mês das queimadas. Mês da capação de animais. Até o dia 22, signo Leão; 23 em diante, Virgem. Os primeiros raios de sol iluminam um cavaleiro e sua montaria no alto do morro e colorem o céu no horizonte de uma bela aurora. Em toada viageira, ele vem descendo o morro. Lá de riba, avista a casa-grande da fazenda e as outras construções, os montes de café cobertos no terreiro, o engenho com sua alta chaminé calada, o gado preso num dos mangueiros; no outro, entram os últimos bois acuados pelos latidos dos cachorros. Um peão fecha a porteira do curral. Abaixo de tudo numa vargem grande o terreno de lavoura. Logo a seguir, ele se encontra com o velho carreiro que está indo buscar no pasto os bois de trabalho. Um leva a mão ao chapéu, o outro balança a cabeça: bom dia; bom dia. – Mi discurpa, vosmecê podi dizê quá esse mundão di fazenda? – Treis Sartus, sim sinhô. O moço é viajante? Tá sem rumo? – Tô campiando imprego di vaquero o intão retirero. – Entonces, percura nosso patrão, homi bão tá lá, Sô Coroné.


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O Coronel Honorato, na casa da fazenda, dá mostras de ter passado a noite insone. Ficara gravada em sua memória a notícia ouvida sobre o dramático momento político: Getúlio Vargas havia declarado só sair morto do Palácio do Catete. Honorato vai à cozinha, toma um gole de café frio, acende o seu primeiro cigarro do dia e se dirige ao escritório. Como de hábito, retira da folhinha a página do dia anterior. Diante da nova data, murmura com certo espanto: – O tempo dispara e a gente não toma tento. Este ano de 54 está pelas beiradas e agosto querendo se acabar: dia 24, já? Ele lê na folhinha o nome do santo do dia: São Bartolomeu. O mugido do gado faz o fazendeiro chegar à janela e ver os bois presos no curral ao aguardo das ordens de Quim. Quim, no quarto da tulha da Fazenda Três Saltos, é despertado com batidas na porta. Escuta a voz aportuguesada de sua antiga babá: – Acordas, meu menino, levantas, o galo já cantou três vezes. E ela se põe a resmungar: – Ficas jogando truco com a peãozada até tarde e acabas perdendo a hora; não podes esquecer que tens a responsabilidade do gado, da tropa e de toda a criação da fazenda. A portuguesa bate de novo à porta: – O gado está preso no curral. Tu não combinaste hoje aqui com o Nando? Nando acorda ao clarear do dia. Vai à janela de seu quarto no sobrado, abre os braços e respira fundo. Observa o casario da cidade de Queimada na penumbra. Ele vislumbra suas botas no canto do quarto. Aí se lembra do compromisso de ir à Fazenda Três Saltos. Ao encontrar seu pai, Giuseppe, no corredor, ele pede a benção. Mal chega à sacada, Nando sente o vento forte de agosto contra o peito nu, ainda quente. O apito do trem cortando a madrugada faz, por um instante, o pintassilgo calar na gaiola. ***


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NANDO E QUIM Nos tempos de moleque, eles participavam das brincadeiras com os outros meninos da roça. Tudo era motivo de diversão. Vez por outra, chegavam às raias da porcaria, como a guerra de bosta no curral. Enfim, em algazarra, tudo acabava, todos nus, no banho de poço do ribeirão. Tímido, de poucas palavras, Quim possuía gestos calmos. Suas pernas arqueadas faziam o gingado do andar. Nando, loquaz, insinuante, cativava ao primeiro contato. A diferença de temperamento não se opunha ao bom entendimento entre os dois. Ambos, destemidos, completavam-se. Viviam ora a vida da roça, ora a da cidade de Queimada. Cavaleiro como poucos, bom laçador, Quim introduzira Nando na lida da fazenda, no manejo do gado, na doma dos potros brabos. A cavalo, embrenhavam-se mato adentro para juntar o gado escondido. Em campo aberto, corriam atrás das reses desgarradas. Além desse trabalho, como também dos outros próprios das fazendas de gado, eles tinham um divertimento predileto: um tirava o chapéu do outro e saía em desabrido galope, aos gritos de provocação, descendo pedras em rampa, subindo ribanceiras, ultrapassando os mais difíceis obstáculos. Em perseguição, o outro imitava tudo. Depois, trocavam de posição. E continuava o desafio. Expondo-se dessa maneira ao perigo, sentiam a emoção do risco iminente. Por sua vez, Nando instruíra Quim sobre as manhas da cidade. Frequentavam o bar da praça, onde, na sinuca, um apostava no taco do outro, enquanto o pato forasteiro era cozinhado para depois ser derrotado. Nando era afamado pé-de-valsa. Quim, só mesmo arrastado ia às festas, pois sabia apenas dançar o samba, e muito mal. Isso não diminuía o seu prestígio com as garotas. Ele era comparado, fosse pelo perfil, fosse pelas sobrancelhas cerradas, ao Tyrone Power do filme A Marca do Zorro, assistido no Cine Alvorada.


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As moçoilas de Queimada costumavam debutar aos quinze anos em festa de vestido comprido. Alugado o Centro Recreativo para esse fim, Nando, sem convite, foi barrado na porta. Voltou acompanhado de Quim. Ambos, mascarados, renderam o porteiro e penetraram no salão. Em seguida, dando tiros para o ar, fizeram homem dançar com homem e mulher com mulher. Retiradas as máscaras, exibidos os revólveres de espoleta, foram conduzidos à delegacia, e lá passaram a noite no xadrez. Tudo ideia do tinhoso Nando. Ele se divertia fazendo experiências no laboratório da farmácia de seu avô. Nem sempre as reações químicas eram bem sucedidas. Nando as usava, vez ou outra, para causar constrangimento. Foi quando lançou gás sulfídrico, obtido pela queima do enxofre, através da janela da sala onde se realizava uma reunião de políticos, para a qual o governador do Estado havia sido convidado. Maldade mesmo, eles fizeram com um menino que estava passando uma temporada na fazenda. Enquanto o garoto dormia a sono solto, puseram sobre os lençóis brancos os testículos sangrentos de um bezerro e jogaram mercúrio cromo no pijama do coitado. Um grito lancinante de horror invadiu a casa, percorreu o terreiro de café e ecoou no estábulo. As vacas que estavam sendo apojadas, devido ao susto, esconderam o leite. Volta e meia, eles bordejavam pela Rua do Sapoti. Lá se situavam as pensões de mulheres. Nancy, a do 35, cobrava menos por ser manquitola. Magda, nos fins de semana, à espera de Quim, esquivava-se dos fregueses com desculpa de estar incomodada. E dizia: “De paquete, não...” Resguardava-se para o seu predileto. Da terceira vez em diante, Magda havia dispensado Quim do pagamento. Com ele fazia por amor, falava baixinho. Nando, por sua vez, variava entre a loura Kátia do Lulu Pé-de-Mesa e a mulata Esmeralda, ou prestigiava aquela chegada de pouco ao bordel. Contentava-se com qualquer uma; queria tirar o atraso. E fazia questão de pagar. Possuía uma teoria: “Se ela não recebe, fica cheia de frescura, quer tudo às pressas, descuida do serviço como a gente gosta.”


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A dupla tornou-se respeitada pela rapaziada. Quim, alto e magro, enrijeceu os músculos no trabalho duro da fazenda. Nando, retaco, reforçou os seus com a ajuda da ginástica de Charles Atlas – músculo contra músculo. Ainda praticava o exercício de andar apertando batatas nas mãos. Certa feita, Nando foi desafiado por um forasteiro parrudo, afamado campeão de queda de braço. De cada lado, puseram uma brasa de carvão. Em resumo: o desafiador partiu para nunca mais voltar, levando a marca indelével da queimadura nas costas da mão – o castigo do perdedor. Deste dia em diante, Nando ficou cognominado braço de ferro. Eles eram requestados pelas moças casadoiras. Diferenciavam-se pelos tipos: Quim, reservado, inspirava romances. Nando, galanteador, nutria paixões. Namoravam umas e outras no portão. Só podiam pegar na mão no terceiro dia. Beijar na boca depois de renovadas juras de amor. Eles mantinham a esquivança em satisfazer o convite da mãe da namorada para entrar na casa. A pretensa sogra já havia preparado o refresco com bolo, antevendo a filha namorando no sofá da sala, debaixo da vigilância do irmão mais moço. E depois, noivando. Aceitar o convite seria um sério comprometimento para o namorado, pensavam eles. O pai, diante da recusa, logo maldava: “Esse menino quer é vadiar com a nossa filha.” Qualquer namoro era interrompido caso durasse mais de um mês sem o rapaz se referir, sequer vagamente, ao noivado ou casamento, posto que a moça, educada nos afazeres de corte e de costura, do trivial da cozinha e até das guloseimas, estava colocando em risco o seu destino de mulher, qual seja o de uma dedicada esposa e amantíssima mãe de uma cambada de filhos. E como o povo dizia: a menina namoradeira pode encalhar e ficar para titia pela vida afora. Quando Nando e Quim circulavam pela cidade, José Moraes, o Zé Zoiudo, bêbedo contumaz, na calçada do boteco, em atitude provocativa às mães das meninas virgens, gritava: “Prendam suas cabras... Os bodes estão soltos.”


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Em noite de lua cheia, Nando, que puxava o som de ouvido, participava das serestas. Violões, rabeca e flauta faziam parte do grupo de seresteiros. A cantoria começava na Praça Lisboa e percorria as ruas da cidade, parando diante de certas casas, quer para homenagear alguma namorada, quer para dar esperança a outras, cujos romances não se faziam correspondidos. E cantavam a canção preferida: Oh! Lua Branca de fulgor e de encanto Se é verdade que ao amor tu dás abrigo Vem tirar dos olhos meus o pranto Ai! vem matar esta paixão que anda comigo. Ou então uma outra, em que algumas palavras lhes eram desconhecidas, mas a sonoridade da canção tocava fundo a sensibilidade dos seresteiros: Vê que amenidade / Que serenidade / Tem a noite em meio / Quando em brando enleio / Vem lenir o seio / De algum trovador / O luar albente / Que dá luz à mente / No silêncio exalta / Chora a tua falta / Rutilante estrela / De eteral candor. Quim era afilhado do farmacêutico Carlos e da Dona Ismeninha, avós de Nando. Além disso, os dois se uniram depois por laço de parentesco, consequência do casamento da irmã de Nando, Virna, com Mariozinho, irmão de Quim. Até grandinho Mariozinho não falava sequer um palavrão. Xixi, o maior nome feio. Cocô, para ele, era “outra coisa”, segundo sua mãe lhe havia ensinado. Certa vez, no colégio, a professora mandou os alunos fazerem um dever de classe: uma cópia no caderno próprio de caligrafia, de linhas largas para as letras maiúsculas e de estreitas para as minúsculas. Mariozinho, com dor de barriga,


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pedia insistentemente para fazer “outra coisa”. Dona Aurora, irritada, dava piparotes no quengo do guri, impedindo-o de fazer outra coisa além da cópia. O menino não aguentou mais, todo emporcalhado fez o mau cheiro tomar conta da sala de aula. Daí em diante ele passou a ser alvo de zombaria por parte da turma. O educado Mariozinho acabou obrigado a dar uma surra num dos colegas, líder da turma, e a berrar: “Pra largar de chamar eu de cagão.” Mariozinho nunca se prendeu às coisas da roça, embora lá tivesse nascido. Por essa razão e em virtude da diferença de idade, ele não se ligava muito a Quim. Nizinha e Nando, primos entre si, no tempo de criança, juntamente com Quim, selaram o pacto da eterna amizade. Cada um tirou o sangue do próprio dedo, espetado com o espinho da laranjeira do pomar, e, a seguir, esfregando os dedos, cada um misturou o seu sangue com o dos outros dois. “Agora, somos irmãos para sempre, o mesmo sangue corre em nossas veias”, proclamou Nizinha, fazendo-se solene. Intitulavam-se os “cavaleiros da jaqueira, defensores dos fracos e oprimidos”. De mãos dadas, circulavam ao redor da grande árvore, exaltando aquele e outros títulos inventados na hora. A seguir, subiam nos galhos da jaqueira – cada um tinha o seu. Ali, narravam suas hipotéticas façanhas, suas fantasias heroicas. Nas brigas com outros meninos, a título de provocação, cuspiam no chão e passavam o pé. Nos muros a carvão, nas árvores a canivete, eles marcavam o símbolo da amizade: um triângulo. Opinião de Nizinha: cada um numa ponta e os três unidos entre si, dizia. A comunicação à distancia se fazia por meio do assobio de dedos na boca, num toque próprio de conduzir a boiada. Para sacanear, assobiavam coió à maneira de quem quer conquistar. A amizade entre os três pôde ser confirmada em diversas ocasiões, como naquela em que Quim, ao viajar para a Exposição Agropecuária no Estado do Rio, sofreu um desastre. Quase morreu. As pernas engessadas, a cabeça toda enfaixada e o colarinho ortopédico


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fizeram dele uma figura estranha. Nizinha e Nando acorreram em socorro do amigo, encontrando-o prenhe de dores, além do mais, abatido pelo fato de estar impedido de montar seu cavalo Sete-de-Ouros, consagrado grande campeão naquela exposição. Tudo indicava que deixaria de realizar esse seu grande desejo. Os dois amigos foram os que menos se conformaram. Nando ajeitou um caixote e, com o auxílio de mais um homem, empurrou o amigo para cima do cavalo. O problema foi montar. Uma vez na sela, Quim saiu garboso, com a felicidade estampada no rosto, do pouco que se podia ver. A plateia, entusiasmada, aplaudiu aquele cavaleiro mais parecido com um guerreiro medieval, dando voltas no picadeiro em marcha batida e, depois, a galope. Nizinha desatou no choro. Ao lado, Nando fez esforço para esconder a emoção contida em seus olhos lacrimejantes. Sem sombra de dúvida, eles muito se queriam. Nizinha se tornara uma moça esbelta. Nando se orgulhava da prima e, todo prosa, dizia: “Quem acha a prima bonita... ainda fica devendo.” Ela não ostentava mais os joelhos escalavrados das correrias de menina levada, nem os cabelos à inglesa. Agora, suas madeixas castanhas iam até os ombros; as pernas, torneadas, eram bem apreciadas, mas na fazenda se escondiam por baixo dos culotes e das perneiras. Sempre alegre, os beliscões aplicados nas bochechas realçavam o colorido do seu rosto. Quim guardava, apertada no peito, a paixão por quem não lhe retribuía o mesmo sentimento. Sofria sozinho: coração espremido, calado. Nunca tivera coragem de revelar à Nizinha, com palavras, o seu amor, se bem que de outras formas assim o fizesse. Talvez pela diferença de cultura e de hábitos. Ele deixara de concluir o ginasial e ela, além de conhecer a vida da capital, preparava-se para ingressar na universidade. Os sonhos da moça extrapolavam os limites da vida simples de Quim. Do amigo de infância, ela guardava a recordação dos apertos na cocheira dos bezerros e dos beijos desajeitados no paiol de milho, nas brincadeiras de esconde-esconde.


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Mariozinho, porém, foi assaz insistente. Apesar disso, seu namoro com Nizinha durou apenas um período de férias de meio de ano. O romance chegou a seu termo por ciumeira do namorado. Foi quando ela lhe devolveu o presente de uma caixa de bombons com um deles já mordido. A intenção da moça foi de mostrar a sua resolução inabalável de dar fim ao namoro, da mesma forma como deixara de comer o restante daquele bombom mordido. Quim nem bem chegara a completar o 2º- ano do ginásio. Motivos para isso foram dois. O primeiro, por ser malandro. Inventava dores de estômago para cabular aula. De tanto fingir, quase sofreu a cirurgia de uma úlcera nunca existente. O segundo motivo merece maiores explicações: ele e dois colegas empilharam pedras com a intenção de espiar pelas frestas da janela as alunas no banho de chuveiro, depois da aula de ginástica. Na vez do amigo gordinho, a base desmoronou e ele foi ao chão, o que provocou risos incontroláveis dos cúmplices e o corre-corre das meninas. No dia seguinte o diretor do Grupo Escolar reuniu todos os meninos a fim de exigir explicações. Quim foi o único a se acusar. No gabinete, a sós, o diretor, de cara amarrada, passou o maior carão, acabando por dar o bilhete azul ao aluno inconveniente. Tudo terminou com um sorriso disfarçado, esboçado pelo diretor, enquanto cofiava seu vasto bigode branco, amarelecido pela nicotina. Quim nada entendeu. Eis que, naquele momento, o velho professor se viu na pele daquele aluno, ao se lembrar das meninas peladas que espiava no Clube Piracicaba. Livre de frequentar o colégio, Quim passou a participar ativamente da Fazenda Três Saltos. Lá, morava num quarto, na tulha. Não que a família deixasse de acolhê-lo na casa-grande, mas, sim, por que era da preferência dele, da sua maneira de ser: mais perto dos peões do que dos salões da fazenda, muitas vezes abertos nos dias de festa. A decisão da mudança do rapaz para a tulha se deu quando resolveram criar problema com o arrastar das rosetas de suas esporas chilenas no assoalho da casa, casa esta que havia habi-


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tado desde os primeiros dias de vida. Desde tenra idade, Quim se acostumara à vida do campo. Saía de garupa com os vaqueiros para os rodeios. Aprendeu cedo a laçar, a marcar a ferro, a curar bicheiras, a castrar, bem como todo manejo do gado. Bom de rédea, o seu prazer consistia em acertar os animais baldosos, com vícios de refugar, negacear, empacar, bolear, e os de queixo duro. Uma só montaria não era suficiente à lida do dia inteiro. Com sua égua tordilha, Andarilha, saltava cercas, pulava pelas pedras do rio e laçava os bois presos pela chincha. Percorreram fazendas as façanhas da égua, cobiçada por muitos. Quim enjeitou uma proposta, considerada irrecusável, de um fazendeiro vindo de longe. Grande foi a desilusão do pretendente, pois teve de retornar com o garanhão e mais duas fêmeas, tudo levado à fazenda para barganhar com Andarilha, a égua-rainha de Três Saltos. A Fazenda Três Saltos havia sido adquirida dois anos após o término da primeira Grande Guerra, por Honorato Benevides Garcia, filho de Dr. Anísio Benevides Garcia e Dona Maria Leocádia Corrêa Ferraz, a Inhá, que nascera pouco depois da morte do pai – tenente Honorato Corrêa Ferraz – ocorrida na Guerra do Paraguai. Reconhecido como herói, este militar foi condecorado, depois de morto, por recomendação do Conde D’Eu, com a medalha de guerra recebida das mãos do imperador D. Pedro II pela viúva do tenente, ainda de nojo e que levava ao colo a filha recém-nascida – Inhá.

O CASO DO TENENTE A filha do tenente Corrêa Ferraz, que não chegou a conhecê-lo, morreu sem saber a verdadeira causa da morte do pai. O caso do tenente só foi divulgado após cinquenta anos do seu desaparecimento e assim mesmo por indiscrição de um militar, apesar de ter jurado não dar um pio sobre os pormenores do caso.


AO PÉ DO SOBRADO E OUTRAS HISTÓRIAS foi-me a âncora para viver novamente as emoções – ainda que polirrítmicas – de um passado do qual compartilhei. Sentindo na ponta dos dedos – onde a sensibilidade domina – que sejam os mistérios, as descobertas, mesmo as denúncias (numa ótica lúdica) de uma intrincada cadeia de fatos. Pois foi assim. Angelo soprou o barro da criação. Usou de uma lâmina afiada, burilando seus personagens. Todos ricos em vestuários de corpo e alma. Sobremodo, invadiu a intimidade de homens, também de animais, de moradas, de cidades, do tempo correndo de um século a outro. Porque desse modo achou a forma de entornar as lembranças e fantasias que, na hora certa, explodiram. Das células nervosas do cérebro aos dedos, dando velocidade à caneta e se estancaram no papel. Para então “navegarem” na tecnologia do seu computador. É um puzzle de muitas peças seu relato, que se encaixam à medida que caminham na correnteza das emoções. Empurradas em compulsão de paixão por tudo vivido e sonhado. Desfolhadamente. Talvez lançadas para acharmos o sentido. Sem dúvida. É isso o proposto. Angelo joga rápido. De viés. Enreda o desenrolar da saga das duas famílias: os Milaneses e os Benevides Garcia. Esses que são os elementos telúricos de sua obra. Da terra vieram mesmo. Como não bastassem as gamas de emoções, termina com fecho de ouro dentro do seu jeito de olhar o mundo. E de um dos personagens se despede, no desespero de sua fuga: “Homem e animal formam um corpo só, um vulto lúgubre, deslocando-se na escuridão”. Valeu, Contador de Histórias! Louvo a Deus em seu livro e estendo a louvação a todos que irão sentir a luz e viver o sangue de Ao pé do sobrado e outras histórias.

Marina

www.livrosilimitados.com.br


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