Folhas de Outono

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Adriana Marcos

Folhas de Outono


ana Marcos

olhas utono O que não falta a Adriana Marcos é pré-requisito técnico, cultural e de sensibilidade, para escrever um belo romance. A autora tem formação acadêmica em Letras, com foco em Literatura, com pós-graduação em Recursos Humanos e Gestão Empresarial. Atua como professora, coach profissional e palestrante especialista em Comunicação e outras áreas como Motivação e mais, enfim, a lista é grande. Folhas de Outono é seu segundo livro publicado, sucedendo o elogiado Além do pôr do sol, lançado em 2015. Desde menina Adriana Marcos já sabia que se tornaria uma escritora de romances, capaz de levar magia e transportar leitores a múltiplos cenários e experiências de vida.

A vida é uma et fonte de mudanç Folhas de Outono é um romance as folhas permeadocomo por personagens marcantes e situações intensas. Um padre transmutam no o que larga a batina por amor e tem caem e se renov uma filha. Depois de viúvo volta a ser padre e, Adriana neste ínterim,Marcos desenrola-se o romance de sua filha, que também sofre algumas mazelas, justamente por ser filha de um ex-padre. Com drama, mistério e surpresas, a trama envolve com profundidade e sensibilidade a discussão de alguns dogmas da igreja católica, perpassa pelo universo religioso, médico e nuances de variadas angústias da vida moderna. Folhas de Outono é uma obra atemporal, com poder de agradar leitores de variadas idades, sexo e religiões.

ISBN: 978-85-6646


Folhas de Outono



Adriana Marcos

Folhas de Outono


A EDITORA A Livros Ilimitados é uma editora carioca voltada para o mundo. Nascida em 2009 como uma alternativa ágil no mercado editorial e com a missão de publicar novos autores dentro dos mais diversos gêneros literários. Sem distinção de temática, praça ou público alvo, os editores ilimitados acreditam que tudo e qualquer assunto pode virar um excelente e empolgante livro, com leitores leais esperando para lê-lo. Presente nas livrarias e em pontos de venda selecionados, tem atuação marcante online e off-line. Sempre antenada com as novidades tecnológicas e comportamentais, a Livros Ilimitados une o que há de mais moderno ao tradicional no mercado editorial. Copyright © 2016 by Adriana Marcos Copyright desta edição © 2016 by Livros Ilimitados Conselho Editorial: Bernardo Costa John Lee Murray ISBN: Projeto gráfico e diagramação: John Lee Murray Revisão: Alesssandra Volkert Direitos desta edição reservados à Livros Ilimitados Editora e Assessoria LTDA. Rua República do Líbano n.º 61, sala 902 – Centro Rio de Janeiro – RJ – CEP: 20061-030 contato@livrosilimitados.com.br www.livrosilimitados.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.


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Dedicatória À minha mãe Euridice, com todo o meu eterno amor. Dedico este livro também a todas as pessoas que sonham e buscam a sua realização. Por mais difícil que seja o caminho a ser trilhado, é importante não desanimar e sempre recarregar as esperanças no futuro e no amor. Tudo na vida tem seu tempo certo; a sua razão e, muitas vezes, pode estar além de nossa capacidade lógica de discernimento.



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Agradecimentos Primeiramente, agradeço a meu marido e minha filha por compreenderem os meus momentos de total ausência, numa imersão profunda, manifestada a cada surto inspiratório. O apoio e incentivo que eles me dão são fundamentais neste processo criativo. Aliás, minha família é uma fonte energética para que eu consiga seguir sempre em frente. Tenho revisores e críticos muito competentes a meu dispor. Este livro necessitou de profundas pesquisas. Trilhei um caminho um pouco desconhecido em alguns momentos e pude contar com a ajuda de amigos e profissionais competentes. Assim, agradeço a Rita do Nascimento pelas respostas às dúvidas religiosas que precisei esclarecer e à doutora Bárbara Furtado pela disponibilidade em me fornecer todas as orientações sobre oncologia pediátrica. Adriana Marcos



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Este livro trata-se de uma obra de ficção. Não há qualquer relação com fatos biográficos e reais. As cidades mencionadas são fictícias.



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Prólogo

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luz do sol incidia de forma brilhante nos vitrais centenários formando nuances coloridas místicas nas imagens religiosas retratadas de forma tão imponente. Aleatoriamente uma andorinha cruzou o espaço amplo do local e pousou nos arabescos laterais que compunham o cenário. Era um movimento íntimo e confiante. A ave parecia relaxar ao som do suave acorde de violão que envolvia o ambiente, ao término de uma canção religiosa suave. A capela estava lotada. Havia inclusive alguns fiéis em pé assistindo compenetrados às palavras finais do padre que acolhia a todos com avisos de eventos semanais e compromissos do apostolado. Reinava um clima descontraído e harmônico no ambiente. Olhos atentos e sorrisos suaves repousavam no semblante dos presentes que assistiam à missa. Era o aniversário do padre! Após cantarem o tradicional “Derrama, Senhor” para o adorado padre, junto com mais três idosas que se sentavam nos primeiros bancos da capela e também aniversariavam neste dia, os paroquianos inundaram a capela com uma calorosa salva de palmas. Cessadas as manifestações afetuosas, o padre proferiu suas palavras finais: – Ide em paz e o Senhor vos acompanhe, irmãos! – Graças a Deus! – responderam todos em uníssono. Saindo em procissão, acompanhado por seus diáconos, auxiliares e coroinhas, o padre José Luiz permaneceu à frente da capela para cumprimentar cada fiel que se retirava do local. Naquele dia em especial, todos desejavam abraçar e receber a sua bênção. Atencioso e carinhoso com todos, ele sorria. Abraçava e amparava os mais idosos, acariciava a cabecinha das crianças, recebia e agradecia aos votos de saúde e vida longa. Quando o último paroquiano se despediu, a igreja ficou silenciosa e vazia. O som do silêncio imperava naquele recinto sagrado. José Luiz retirou a estola e a batina sem qualquer ajuda e deixou-as no local de costume. Ajoelhou-se mais uma vez e fez o sinal da cruz, saindo em seguida da capela.


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Sentia-se excepcionalmente cansado. Eram dez e meia de uma manhã gloriosa de domingo. O céu era de um azul límpido e profundo; entretanto, um vento frio, típico de final de outono, provocava sutis arrepios na pele à sombra. José Luiz pegou sua bicicleta e contornou a igreja seguindo o caminho que levava à residência paroquial. O pequeno trajeto, embora bem curto, era um bálsamo aos olhos. O caminho era todo adornado de árvores e de um gramado muito bem aparado. Havia jardins muito bem cuidados permeando todo o local. O vento suave soprava em seu rosto trazendo o perfume suave de jasmins e caliandras. Aquele cenário lindo, um verdadeiro espetáculo da natureza, sempre lhe trazia muita paz. Mas, hoje especialmente, sentia uma nostalgia impressionante. O esforço da subida na bicicleta provocou uma estranha dormência em seus braços e uma palpitada no peito. Devia ser o peso de seus setenta anos que hoje se fazia sentir em seu corpo, pensou serenamente o padre. Faltava uma hora para seu almoço de aniversário com Liz. Ela brevemente chegaria à casa paroquial. O simples constatar deste fato provocou um sorriso amoroso em seu semblante. Sua pequena Liz agora estava casada. Há pouco mais de dois meses celebrara o casamento dela naquele mesmo local. Foi um dos momentos gloriosos de sua vida. Poucas emoções se igualavam a essa em termos de felicidade. Talvez apenas o nascimento dela. Ou doces momentos de sua infância... Parou a bicicleta na entrada de uma simples casinha branca, em frente a um lago no qual nadavam silenciosamente alguns patos e gansos. Subiu vagarosamente os degraus que levavam à varanda e olhou com anseio para a cadeira de balanço que já aguardava por ele. Antes, contudo, dirigiu-se à porta de entrada e projetou sua voz vibrante e grave para dentro da casa: – Dona Berta, já cheguei! Uma senhora forte, de semblante sereno, beirando um pouco mais de sessenta anos, apareceu na porta da cozinha secando as mãos no avental que usava sobre o vestido florido: – Ah, seu padre, graças a Deus! – ela respondeu. – Como está o almoço? A Liz deve chegar brevemente. – o padre perguntou. – Está quase pronto! Vai ficar bem saboroso como o senhor gosta.


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– Que bom, dona Berta! Vou descansar um pouco aqui na cadeira de balanço... – O senhor está sentindo alguma coisa? – ela o interrompeu com semblante preocupado. – Não. Fique tranquila. Estou só um pouco cansado. – Então, descanse um pouco, padre. José Luiz sentou-se na cadeira de balanço e deixou seu olhar vagar pela imensidão do horizonte. Era um verdadeiro paraíso. Graças a Deus não tinha do que reclamar de sua vida. Servia ao Senhor que era seu grande prazer e ainda podia usufruir de todas as maravilhas do Criador naquele cenário natural esplendoroso. Como para confirmar suas divagações, uma revoada de maitacas cruzou o céu num ruidoso e colorido voo. José Luiz suspirou e uniu suas mãos numa oração de agradecimento. – Senhor, sou grato por tudo que me deste. Por tudo que pude desfrutar nessa minha vida terrena. Só tenho a agradecer-te, Pai! Amém! Nostalgicamente, revivia como num filme a sua vida até o momento. Tantas lutas, tantas vitórias! Agonias e tristezas. Perdas e ganhos. Infinitos ganhos! Muito amor, paz e alegrias imensas. Uma vida plena e realizada. Esticou o pescoço e olhou de soslaio para o baú que havia no canto de sua sala de estar. Nele continham todos os detalhes de sua vida, minuciosamente relatados em vários diários sistematicamente ordenados. Suspirando profundamente, seu olhar se perdeu na magnitude do lago à frente de seus olhos. Uma brisa suave levou seu olhar para o alto de uma das amendoeiras. As folhas estavam tingidas naqueles matizes tão característicos de outono. Poucos resquícios verdes diante de um império quase absoluto de folhas amarelas, laranja e marrons. O solo ao redor já havia se transformado num grande amontoado de folhas caídas. Por mais que os funcionários daquela instituição se esforçassem para manter tudo em ordem e asseado, no outono isso se tornava uma batalha perdida. “Nenhuma folha de árvore cai se não for da vontade de Deus.” Lembrando-se dessa passagem do alcorão, José Luiz acompanhou o balé fluido e ritmado de uma folha que veio repousar em seu colo. Pegou a folha marrom que havia cumprido sua trajetória oscilante e serrou os olhos descansando serenamente enquanto o torpor do sono o assolava.


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Uma hora depois, a voz suave e carinhosa de Liz o tirou do aconchego dos sonhos que eram verdadeiras retrospectivas de momentos felizes de sua vida... – Acorda, seu padre dorminhoco! – Ela fungava no seu cangote e sapecava beijos suaves em sua testa e face. – Liz, minha filha, que bom que você já chegou! – a voz sonolenta de José Luiz emanava profundo carinho. – Feliz aniversário, paizinho! – ela disse dando um abraço caloroso nele e tomando-lhe a bênção. Depois prosseguiu o diálogo. – Não sei se o senhor vai se lembrar, mas, um dia, quando eu tinha uns nove anos, quebrei o seu santo preferido. Vi no seu rosto a tristeza; entretanto, mesmo assim, não brigou comigo. Ao contrário, me pegou no colo e disse-me para não chorar nem ficar assustada... Naquele dia eu me prometi que lhe daria uma nova imagem do seu santo. – A voz de Liz estava emocionada, e seus olhos brilhavam nostálgicos. – Agora eu consegui cumprir a minha promessa! Abra seu presente, por favor. Empolgado, ele abriu o grande pacote que ela pôs diante dele. – Ah! Um São José esculpido em madeira! É lindo, Liz! Onde o conseguiu? – Conheci um artesão no ano passado em São Paulo e encomendei a ele a imagem de São José em madeira, para que não quebrasse com tanta facilidade como o outro. José Luiz permaneceu por um instante admirando a imagem e tocando com as mãos a obra-prima que tinha diante de si. Depois virou-se para Liz e proferiu: – Você é uma dádiva na minha vida, filha! Liz apenas o abraçou carinhosamente, agradecendo assim por suas palavras. – Vamos entrar? Estou sentido um pouco de frio agora. – pediu José Luiz. – Vamos. Sente-se bem, pai? Está com o semblante um pouco abatido hoje. – ela comentou avaliando atentamente as feições dele. – Sim, estou apenas um pouco cansado. É o peso dos meus setenta anos. – O padre replicou rindo e em seguida perguntou a Liz: – Onde está seu esposo? Não virá para almoçar conosco? – Ele deve chegar em aproximadamente trinta minutos. Hoje é o dia


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do trabalho voluntário do qual estamos participando nos finais de semana. Estamos levando bem a sério essa tarefa de ajudar a quem precisa com orientações jurídicas e médicas. – Aleluia, meu Pai! Se todos agissem como vocês, este mundo estaria muito melhor. Abraçado à filha, José Luiz entrou na sala e sentou-se em frente a ela no sofá. A casa paroquial tinha uma decoração bem espartana. Liz sempre olhava tudo atentamente para ver se algo mudara. Havia pouquíssimos móveis ornando a sala. Um pequeno sofá com duas cadeiras de madeira à sua frente. No canto esquerdo, um móvel pequeno com uma televisão. Acima dele, uma enorme cruz com Jesus Cristo crucificado. Tudo perfeitamente asseado pelas precisas mãos de dona Berta. No canto direito, tinha apenas um baú antigo. Foi onde os olhos de Liz inevitavelmente pousaram, levando o padre a acompanhar sua inspeção com um sorriso carismático no rosto. – Este baú sempre foi um grande enigma para você, não é, Liz?! – ele comentou rindo. Liz apenas sorriu e, com olhos nostálgicos, reforçou: – É uma curiosidade que me acompanha desde a infância. Lembra-se daquele dia em que você me pegou tentando abri-lo? Eu devia ter uns dez ou onze anos. Você ralhou comigo dizendo que não se devia mexer nas coisas de outras pessoas... – Quando vi seus olhos chorosos e arrependidos, aconcheguei-a junto à sua mãe e lhe contei que lá estava toda a minha história de vida. Isso aguçou ainda mais a sua curiosidade! – Ele fez uma pausa recordando-se vivamente dos detalhes e continuou. – Nós estávamos os três na mesma cama, e eu lembro que você virou de bruços, apontou primeiro para mim e depois para sua mãe e disse com uma solene voz infantil: “Um dia vou escrever a história de vocês, porque é a mais linda que conheço!” Pai e filha sorriram lembrando-se daqueles detalhes tão longínquos e especiais que a memória não apagava. Com um profundo suspiro, José Luiz aproximou-se da filha, pegou suas mãos e acariciando-as, disse: – Chegou a hora, filha! Embora hoje seja o meu aniversário, vou presenteá-la com algo especial também.


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José Luiz retirou uma de suas mãos que estavam unidas às de Liz. Colocou-a no bolso de sua calça e de lá retirou um chaveiro. Destacou uma minúscula chave antiga e depositou-a na mão de Liz. – Pode saciar sua curiosidade, filha. O baú agora é seu. Ele contém vários diários que relatam toda a minha vida até aqui e também a sua origem. A única coisa que lhe peço é que leia com muito carinho e sem preconceitos. Se depois disso, de fato, desejar transformar toda a história em livro, você tem o livre arbítrio. – Ele fez uma suave pausa para refrear o fluxo da emoção expresso em batimentos cardíacos. – Minha vida foi toda guiada pelo amor. Amor a Deus. Amor à sua mãe e a você que é fruto deste amor inesquecível. Amor e dedicação à igreja católica e a todos os irmãos. Não me arrependo de nada do que fiz, pois sempre fui fiel a nosso Pai Maior. Minha vida é plena... – Pai...! Com esta única palavra que expressava toda a sua emoção e agradecimento, Liz pulou no colo do pai e aconchegou-se como fazia quando era criança. Sempre fora assim desde o princípio. Havia tal sintonia entre pai e filha que não precisavam muitas vezes de palavras. Conheciam-se com tamanha profundidade que até os pensamentos eram transparentes. Liz acariciou os cabelos brancos do pai, e olharam-se com profundo carinho. Havia um brilho intenso no olhar de ambos. Residia também um medo opressor que sequer tinham coragem de expressar ou verbalizar. Quebrando a magia daquele momento, José Luiz levantou-se devagar e disse: – Liz, vou tomar um banho enquanto esperamos seu esposo para o almoço. – Claro, paizinho! Volte bem cheiroso para o seu aniversário. – Se precisar de algo, é só chamar a dona Berta. – ele reforçou para Liz e seguiu rumo ao banheiro. Liz ficou observando o lento caminhar de seu pai. Embora houvesse força nele, percebia-o cada vez mais vulnerável. Nos últimos meses o avaliava um pouco mais abatido. Um arrepio estranho percorreu seu corpo, mas ela o descartou rumando em direção ao antigo baú. A chavinha antiga abriu o baú com total facilidade e, de dentro dele, Liz retirou um diário com capa preta que, pela aparência, deveria ser o mais antigo. Voltou a sentar-se no sofá displicentemente e abriu-o na primeira página.


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A caligrafia firme e bem elaborada de seu pai se fez marcante. Junto a ela, Liz mergulhou nas páginas de uma história de amor tão profundo que transcendeu preconceitos, leis e dogmas. Somente a morte pôde separá-los da carne; contudo, nunca do espírito.



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Capítulo 1 ulho de 1980, J cidade de Ibotira, interior do Rio de Janeiro

A

vocação religiosa confirmou-se quando tinha apenas oito anos. Vinha de uma família católica fervorosa que pregara em sua educação princípios cristãos bem firmes. Nessa época, preparava-se, através do catecismo, para a sua primeira comunhão com Jesus. Encantou-se com a Bíblia e adotou-a como seu livro de cabeceira. Muito lhe impressionavam todos os rituais de seu tio Fleudes, já ordenado padre há mais de quinze anos, ao celebrar as missas periódicas. Participava de longas viagens religiosas a cada homilia e deslumbrava-se cada vez mais com o sacerdócio. Muitos debates e elucidações transcorreram até que conseguisse decifrar e entender a linguagem rebuscada do livro sagrado com a professora de catecismo e o tio Fleudes. Sempre fora um menino tímido e gentil em cada pequeno gesto. Era filho único. Muito educado e sereno, dificilmente perdia a paciência ou envolvia-se em brigas pueris tão normais. Depois da primeira comunhão, ninguém da família estranhou quando José Luiz resolveu auxiliar o padre da matriz de Ibotira, tio Fleudes, como coroinha, ajudando-o com máxima dedicação a cada celebração de missa dominical. Quando completou treze anos comunicou aos pais o desejo de se tornar padre. Embora a notícia não tivesse causado qualquer estranhamento aos pais; houve um misto de euforia e tristeza, pois usufruiriam pouquíssimo tempo na companhia do filho, que então, passaria a dedicá-lo ao Senhor, grande motivo de orgulho e satisfação para eles. Terminou o segundo grau já como seminarista. Cursou durante oito anos as faculdades de Teologia e Filosofia, cada vez mais consciente de sua decisão e de sua vocação religiosa. Atuou durante dois anos como diácono e recebeu aos vinte e cinco anos do bispo diocesano o sacramento da 2ª ordem e tornou-se definitivamente padre.


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Lembrava-se com satisfação da cerimônia. A vida de José Luiz desde então era pura dedicação ao sacerdócio. Seus dias, semanas e anos resumiam-se em celebrar missas, batizados, crismas, casamentos e também a triste e indispensável santa unção. A oração era o alimento de seu espírito. Sempre que havia necessidade, ou anualmente, na época da quaresma, convocava os fiéis para um momento de confissão, para que pudessem se renovar e, inspirados na Páscoa, seguir uma vida revigorada e sem pecados. Amava o que fazia e sentia profundo prazer em acolher e orientar os paroquianos da pequena cidade vizinha a Ibotira, na qual se tornara o pároco fixo da capela local. Levava uma vida religiosa serena e suficiente às suas necessidades de “homem de Deus”. Era uma vida de doação e realização. Recebia o carinho e a fidelidade dos católicos que frequentavam assiduamente as missas dominicais e os demais eventos religiosos. A satisfação de seus pais por sua vocação sacerdotal era muito grande, assim como o fato de observar que José Luiz mantinha-se em constante evolução, não somente espiritual como intelectual. Por mais que o serviço pastoral o consumisse, ele não passava mais de um mês sem uma visita acolhedora aos pais. Uma das tarefas mais tristes da vida de José Luiz foi ministrar a extrema-unção a sua mãe que morreu vítima de um problema cardíaco. Enterrar sua amável mãe doeu em sua alma, mas entendia a vontade de Deus e seu tempo que a todos consolava. Assim, passara a conviver com a saudade, relembrando os momentos de satisfação que viveram juntos. Já seguia em sua rotina sacerdotal há aproximadamente dez anos quando, por intercessão e orientação de seu tio Fleudes, conseguiu aprovação para o mestrado em Filosofia da PUC (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), com uma bolsa integral. Durante três anos dedicou-se com afinco aos estudos, diminuindo assim algumas atividades eclesiásticas e dividindo-as com um novo padre local recém-ordenado. Nessa mesma época, começou a ter alguns picos de questionamentos internos. Não se tratava, em absoluto, de uma crise de fé. Entretanto, perdera o crédito em convicções de outrora relacionadas a alguns preceitos da igreja católica. José Luiz passou a questionar o celibato sacerdotal e o fato de que teria de orientar casais sem sequer ter a experiência do casamento para compartilhar sua sabedoria. Enfim, a máxima do conhecimento é sempre possibilitar uma nova amplitude de horizontes. Existem, inevitavelmente,


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algumas quebras de paradigmas e efeitos colaterais. Afinal, “a mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”, como já dizia Albert Einstein. Alguns anos depois, quando aparentemente cessaram as dúvidas que o afligira pós-mestrado, José Luiz foi realocado de volta à sua cidade natal – Ibotira. Foi motivo de grande satisfação ficar mais próximo do pai viúvo, de familiares e voltar à convivência de antigos amigos e conhecidos de infância. Quase vinte anos tinham transcorrido, e a cidade obtivera uma grande evolução, levando-se em conta o fato de estar localizada no interior do Rio de Janeiro. Identificava-se a mesma praça, a mesma igreja matriz centenária que necessitava urgentemente de uma boa reforma. Mas, no centro comercial, percebiam-se visíveis o bom trabalho da prefeitura e a satisfação dos cidadãos ibotiranos. A grande sensação da cidade era o término da construção de um complexo arquitetônico, um pouco mais retirado do centro da cidade, no ponto mais alto, ladeado por montanhas e uma vegetação primorosa da Mata Atlântica. O Aconchego de Ibotira era uma casa de repouso para idosos muito bem estruturada, podendo atender a cem pessoas, preferencialmente, as que necessitassem de cuidados contínuos e especiais. O local era composto por confortáveis acomodações e suítes. Havia um pequeno hospital totalmente equipado para atendimentos a primeiros socorros e emergências senis. O sucesso do empreendimento foi tão grande, que, pouquíssimo tempo depois de sua inauguração, quase todos os aposentos estavam ocupados. Os residentes eram originados de vários locais do estado. Além disso, finalizando a estrutura do Aconchego de Ibotira, destacava-se uma confortável capela destinada aos moradores, a seus familiares e à comunidade local que desejasse compor o grupo de paroquianos mais frequentes. Ainda compondo as imediações da casa de repouso, estava reservada para o novo padre uma confortável casa paroquial. Foi designada ao padre José Luiz esta nova e transitória moradia. Subindo no veículo paroquial ao lado de seu tio Fleudes a serra que levaria ao caminho de sua nova residência, o padre José Luiz admirava o cenário. Depois de algumas curvas, subindo a serra que serpenteava a cidade de Ibotira, eles passaram com o carro por um amplo portão automático coordenado por uma guarita com dois guardas uniformizados. Seguiram


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por uma trilha, ladeada quase num perfeito arco de flamboyants amarelos e laranja, que se intercalavam com quaresmas floridas no peculiar tom arroxeado. A composição floral do caminho era um verdadeiro paraíso diante dos olhos. Era quase impossível passar imune àquela beleza natural e colorida. O cenário transmitia uma tranquilidade quase celestial. José Luiz divagava e acreditava que seria um novo estágio de sua vida que prometia bons momentos de fé e renovação. O carro dirigido pelo padre Fleudes parou em frente à sede da administração do local e imediatamente um senhor aparentando uns cinquenta anos adiantou-se para receber os religiosos que, embora sem batina, vestiam-se de uma forma bastante peculiar a um padre, calça preta e a tradicional camisa clerical. – Sejam bem-vindos, vossos reverendíssimos padres! Padre Fleudes, é um prazer enorme revê-lo. – disse, apertando-lhe a mão e, depois, dirigindo-se a José Luiz, ele complementou estendendo sua mão em cumprimento: – O senhor deve ser o padre José Luiz. É um prazer conhecê-lo. Sou Frederico Borges, o gerente desta instituição. Deus o abençoe, padre José Luiz, por estar aqui conosco. Desejamos que seja feliz na sua nova residência. José Luiz respondeu simpaticamente, após apertar a mão de Frederico: – O prazer é todo meu, senhor Frederico. A instituição é cativante. – Vamos conhecer a igreja e a casa paroquial? – Frederico perguntou já os direcionando pelo caminho. Frederico Borges parecia ser bastante gentil e se esforçava para agradar os visitantes. Enquanto caminhavam até a capela, José Luiz aspirava os ainda desconhecidos perfumes das flores, que pairavam no ar, com satisfação e ouvia os relatos que minuciavam a recente inauguração do empreendimento que levara quase dois anos para ser concluído. A capela, bem simples, era acolhedora e ornada de vitrais que retratavam imagens religiosas. Comportava, no máximo, oitenta pessoas. Era denominada Capela de São José, coincidentemente, o santo de devoção do padre José Luiz, que se destacava no centro do pequeno altar em imagem com o menino Jesus nos braços. O padroeiro da boa morte. Pendiam do teto da capela de pé-direito bem alto, dois lustres antigos de bronze com seis braços ornados de refinado cristal. A pequena paróquia era toda em mármore branco e viam-se dois oratórios, em extremos opostos,


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nos quais reinavam absolutas duas imagens, uma da Virgem Maria com o menino Jesus nos braços e, na outra extremidade, Nossa Senhora Aparecida. Cada imagem tinha diante de si uma jarra com lírios amarelos recém-colhidos do jardim da instituição. Com um suspiro de satisfação, José Luiz ajoelhou-se em frente ao altar, diante da sagrada cruz, e comentou: – É linda! – Que bom que aprova! Vamos conhecer sua nova residência, padre? Com um simples aceno, o padre o seguiu silenciosamente acompanhado pelo tio. O pequeno trajeto que levava à residência paroquial ficava um pouco mais atrás da paróquia, numa pequena subida. O caminho era todo ladeado de jardins floridos e árvores das mais variadas: amendoeiras, flamboyants e palmeiras-imperiais. O cenário era paradisíaco e percebia-se nitidamente a intenção de trazer máxima serenidade aos idosos, afastando completamente a imagem de solidão, tristeza ou isolamento. Enquanto caminhavam tranquilamente, passaram por vários hóspedes acompanhados de seus cuidadores. Alguns de cadeira de rodas, uns apenas amparados na caminhada, e outros sentados em vários bancos pelo caminho, conversando e rindo uns com os outros de forma amigável. Bem diante de uma pequena casa branca, aparentemente recém-pintada, havia um lago no qual algumas aves nadavam placidamente. Parando diante da casa, Frederico anunciou: – É aqui, padre José Luiz. – Ele se antecipou já abrindo a porta com a chave que retirou do bolso de sua calça social. – Esperamos sinceramente que considere esta casa confortável às suas necessidades enquanto permanecer conosco. Ao entrar, José Luiz relanceou o olhar pela sala com poucos móveis, caminhou até o quarto, que tinha um pequeno armário de duas portas, uma cama de solteiro asseada com um crucifixo na parede acima dela e uma mesa de cabeceira do lado esquerdo. Passou rapidamente pela cozinha e pelo banheiro, e, com um amplo sorriso nos lábios, disse: – Deus os abençoe! A casa é completa e perfeita. Não poderia ficar melhor instalado. Com suave satisfação na voz, o padre Fleudes comentou: – Arrisco a dizer que meu sobrinho jamais residiu em local mais confortável.


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– É a mais pura verdade, senhor Frederico. Um padre está acostumado à simplicidade da vida. – Fico muito feliz que tenham aprovado. Um funcionário diariamente se encarregará dos serviços de limpeza e culinária da casa. O que precisar além, basta me comunicar, padre. – Com grande satisfação no semblante, Frederico fez uma pequena pausa e continuou: – Creio que já deve ter trazido no carro parte de seus pertences, não é? – Tudo o que tenho se encontra numa mala que está no carro paroquial. Vou trazê-la para a casa em seguida. – Não se preocupe. Descansem um pouco enquanto peço a um dos funcionários para trazê-la até aqui. Não demorará muito, basta me entregarem a chave. Padre Fleudes entregou-lhe imediatamente a chave, e sentaram-se no sofá da sala. – Fiquem à vontade. Se precisarem de algo, basta informar na recepção. Como já disse, padre José Luiz, seja muito bem-vindo. É uma enorme satisfação tê-lo conosco em nossa instituição. – Muito obrigado. – disse humildemente José Luiz, apertando-lhe a mão em despedida. Quando Frederico se retirou do recinto, José Luiz olhou com satisfação para o tio e disse de forma empolgada: – Que local acolhedor! Trata-se de uma instituição de primeira linha. Sinto que uma nova etapa de minha caminhada religiosa começa agora. Estou de volta à minha cidade natal. Estarei mais próximo de meu idoso pai, podendo visitá-lo com mais frequência. Perto de ti, tio. Conhecerei outros paroquianos, poderei conquistar novos e trazê-los para o convívio da casa de Deus. – Ele fez uma pausa com as mãos em oração e complementou: – Graças a Deus! – Sobrinho, compraz-me ver a sua alegria. – disse padre Fleudes com um sorriso no rosto austero. Eles permaneceram em diálogo por um tempo e, somente quando ouviram uma suave batida à porta, calaram-se. Dois auxiliares do Aconchego de Ibotira entraram em seguida. Um trazia a mala de José Luiz, e uma simpática senhora arrastava um carrinho com uma garrafa de café, um pote de biscoitos e xícaras numa bandeja. Logo depois de tomarem o café, o padre Fleudes se despediu e deixou


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José Luiz livre para arrumar na nova casa seus poucos pertences. Pendurou suas roupas no armário e arrumou outras nas gavetas. Dispôs sua Bíblia na mesinha de cabeceira junto a seu terço e, dentro da pequena e única gaveta do móvel, colocou seu diário, um hábito que acalentava desde a tenra infância. O sentimento que dominava seu íntimo era de paz. Sentia-se feliz. Olhando em volta, percebeu que tudo estava na mais perfeita ordem. Pegando sua Bíblia, dirigiu-se para a varanda da casa e entregou-se àquela leitura que o serenaria ainda mais.

***** Um ano depois, José Luiz já conhecia individualmente cada hóspede do Aconchego de Ibotira. Tratava a todos com infinito carinho e mantinha constantes conversas com os cuidadores que trabalhavam na instituição. Era admirado por todos e se sentia profundamente acolhido e realizado em sua missão eclesiástica. Era com prazer que a cada domingo percebia a capela repleta de fiéis, que se tornavam cada vez mais assíduos. As primeiras fileiras da capela sempre eram destinadas aos idosos para que tivessem mais facilidade de locomoção e acesso direto à hóstia no momento de comunhão. Havia missas em que a lotação era completa e várias pessoas assistiam à celebração em pé sem, contudo, menos fervor. Durante este período adquiriu o hábito de, pelo menos, uma vez por semana, visitar o seu pai com quem mantinha longas conversas nostálgicas imbuídas de lembranças da saudosa mãe e esposa. Embora com sessenta e oito anos, seu José mantinha-se saudável e ativo. Uma vez aposentado, transformou o antigo quarto de José Luiz em uma pequena oficina onde consertava eletrodomésticos dos moradores da redondeza. Com essa atividade, mantinha-se ocupado e melhorava sua renda mensal. Os afazeres domésticos eram realizados por uma empregada que duas vezes por semana aparecia para manter tudo em ordem e preparar sua alimentação semanal. Numa das visitas periódicas, o pai surpreendeu José Luiz com uma bicicleta que ele havia reformado e deixado em perfeitas condições para o filho. – Filho, sei que gosta de fazer suas caminhadas, mas talvez seja mais


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confortável fazer o seu trajeto até a minha casa pedalando numa bicicleta. Assim, veja o que acha do “brinquedinho” que ajeitei para você lá no quintal. José Luiz dirigiu-se ao quintal acompanhado pelo pai e exclamou maravilhado depois de observar a bicicleta preta barra forte. – Pai, a bicicleta está novinha! Em que condições você a conseguiu? – Ah! Ela estava bem estropiada. Deu um baita trabalho deixá-la assim. Se gostou, é sua, filho. Acredito que ganhará um pouco mais de tempo em suas variadas visitas. – Obrigado, pai. Será, de fato, de grande utilidade para mim. Como a casa de repouso é muito grande, algumas vezes sou chamado de madrugada para dar a extrema-unção a alguns moradores, e, com a bicicleta, poderei levar menos tempo no trajeto. Assim, daquele dia em diante, a bicicleta tornou-se o principal meio de transporte do padre José Luiz. Passou a ser a sua marca registrada. Numa bela manhã de outono, quando o padre José Luiz realizava sua caminhada habitual cumprimentando e conversando com todos os idosos que aproveitavam o calor do sol nos jardins da instituição, foi informado da chegada de uma nova moradora que se instalara na noite anterior, acompanhada de sua afilhada, que atuaria especialmente como sua cuidadora, enquanto residisse no Aconchego de Ibotira. Tratava-se de uma senhora bastante debilitada dos pulmões e da alta sociedade. Ciente de que as novas moradoras estavam acomodadas num pequeno caramanchão do jardim, o padre José Luiz dirigiu-se para o local com a intenção de se apresentar e conhecê-las. – Bom dia, senhoras! Sou o padre José Luiz. Soube que chegaram ontem à noite e vim dar-lhes as boas-vindas. – disse, dirigindo-se diretamente para a senhora que estava confortavelmente instalada numa moderna cadeira de rodas. A senhora de cabelos brancos bem curtinhos, que aparentava ter uns oitenta anos, sorriu amavelmente e estendeu educadamente sua mão para o padre. – É um prazer conhecê-lo, padre. Chamo-me Otília e esta é minha estimada afilhada Ana Lísia. Foi somente neste momento que o padre dirigiu o olhar para a delicada jovem que estava sentada no caramanchão ao lado de outros três moradores que dividiam aquele espaço.


Folhas de Outono * 29

Ana Lísia tinha os longos e claros cabelos trançados. O rosto isento de qualquer traço de maquiagem, tão peculiar das moças. Tinha os traços mais belos e harmônicos de que se lembrava ter visualizado antes. Seus olhos eram de um tom mel, brilhantes e profundos. Por uma fração de segundo, sentiu seu coração parar. O ar lhe faltou e, como anestesiado, não conseguiu desviar o olhar dos olhos dela. O estômago contraiu-se e a boca ficou seca. O que acontecia com ele? Nunca em sua vida sentira-se assim diante de uma mulher... Fugindo do estranho torpor que aquela presença feminina lhe provocou, ele apenas acenou com a cabeça para ela e voltou a se dirigir à senhora Otília. – Dona Otília, desejo uma feliz estada para a senhora e sua afilhada. Sejam bem-vindas. – disse o padre, com a voz estranhamente estrangulada e mais grave do que o habitual. – Ana Lísia se prontificou a me acompanhar e a cuidar de mim aqui. Ela é enfermeira e muito carinhosa comigo. É a minha única parente mais próxima. Meus filhos residem na Inglaterra. – É sempre bom estar com a senhora, dinda. – Ana Lísia pela primeira vez se pronunciou, e sua voz um tanto vacilante, soava suave e profunda. – Além disso, tenho certeza de que fará ótimos amigos aqui, não é, senhor padre? Dirigindo um olhar fugidio a Ana Lísia, José Luiz concordou: – Sim. Com toda a certeza fará bons amigos aqui. Preciso ir agora, senhoras. Fiquem com Deus. Ambas acenaram com um sorriso cordato, e o padre se retirou fisicamente dali; entretanto, não conseguia esquecer as marcantes feições da moça, e o compasso de seu coração denunciava que algo não estava ajustado em seu íntimo. Depois de cumprimentar a todos que aproveitavam o calor do dia nos jardins, José Luiz passou em vários leitos do hospital para visitar alguns que se encontravam em estado mais debilitado. Ele sabia que sua presença sempre acalentava um pouco o espírito dos enfermos; portanto, era com prazer que os abençoava e recebia de retorno um sorriso banguela ou um afago sutil nas mãos. Sua principal missão era levar serenidade e aconchego aos mais necessitados. Sentia uma satisfação profunda em realizá-la. Entretanto, percebia-se hoje especialmente em agonia e ansiedade.


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vida.”

“O Senhor Jesus caminha conosco em meio às alegrias e às dores de nossa

Consciente dessa verdade, José Luiz caminhou de volta à casa paroquial e não saiu mais de lá. Tomou um banho, decidiu jejuar por dois dias e não saiu do quarto onde rezou o terço três vezes e dedicou-se à leitura da Bíblia de forma contumaz. “Vós me ensinais vosso caminho para a vida; junto a vós, felicidade sem limites, delícia eterna e alegria ao vosso lado!” Não muito distante dali, uma jovem de vinte e quatro anos tinha os olhos perdidos no vazio. Era um olhar extremamente triste. Não conseguia se concentrar em qualquer palavra da animada conversa que mantinham na ampla sala de televisão da instituição. Ana Lísia só tinha em mente um par de olhos castanhos, extremamente meigos, que, por uma fração de segundo, havia capturado os seus de forma tão especial e inesquecível.


Capítulo 2

A

na Lísia sempre tivera uma vida simples e tudo o que conseguira fora A vida é uma eterna fruto de sacrifícios e muita dedicação. fonte Perdera de mudanças, o pai quando tinha apenas quatro anos. Sua mãe, Eulália, permanecera viúva durante dez anos, mas como as folhas que seentão decidira casar-se novamente para dar um lar mais completo à filha. Desde os dez anos de idade, transmutam Ana Lísia ajudava a mãe ano venderoutono, tortas caseiras para que nada faltasse em seu lar. A mãe fazia de tudo um pouco para garantir o sustento de Ana Lísia; caem e se renovam. entretanto, viviam a duras penas; pois o pai ao falecer não deixara sequer uma migalha. Marcos Para não serem despejadas da humilde casa em que viviam, Adriana

muitas vezes precisaram contar com a ajuda dos familiares e vizinhos. Uma vizinha em especial, dona Otília, encarregou-se da compra dos materiais escolares de Ana Lísia durante toda a sua formação. Era também graças a ela que nada faltava naquele lar humilde, mas repleto de amor. Foi por esta razão que Eulália a escolhera para madrinha de crisma de Ana Lísia ao completar seus quinze anos. Nesta época, já conviviam com o novo marido da mãe, Fernando, que tratava Ana Lísia com certo desprezo, embora nunca a destratasse concretamente. A indiferença dele fazia com que a jovem se sentisse um estorvo na casa; por isso, passava mais tempo com dona Otília do que em casa. Inevitavelmente, dona Otília e Ana Lísia tratavam-se como as mais estimadas parentes. Uma completava a solidão da outra. Dona Otília via em Ana Lísia uma neta, visto que não podia conviver com os de seu sangue, que há dois anos viviam na Inglaterra. Ana Lísia encontrava em dona Otília amor e acolhida. A sensação era de profundo bem-estar em sua presença. Sentia-se útil ao ler para ela e acompanhá-la nos lugares que não podia seguir sozinha. Quando Ana Lísia completou os estudos, dona Otília a incentivou a ISBN: 978-85-66464-948 fazer um curso técnico em enfermagem, pois percebia na afilhada paciência e habilidade para cuidar de doentes. Nesse período, elas estavam um pouco mais afastadas, pois Eulália encontrava-se profundamente doente. www.livrosilimitados.com.br


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