AUGUSTO PESSÔA
HISTÓRIAS DE BRUXAS
HISTÓRIAS DE BRUXAS
AUGUSTO PESSÔA
HISTÓRIAS DE BRUXAS
Rio de Janeiro 2009
Copyright © 2009 by Augusto Pessôa LIVROS ILIMITADOS Conselho Editorial: BERNARDO COSTA JOHN LEE MURRAY LEONARDO MODESTO contato@livrosilimitados.com.br – www.livrosilimitados.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Aos meus pais: Alfredo e Helly.
SUMÁRIO A PEQUENA ALDEÃ .......................................9 TRÊS PONTOS AZUIS ...................................15 UMA CASARÃO NO PENHASCO .................20 LURIA E LITHON .........................................24 O MENTIROSO.............................................32
HISTÓRIAS DE BRUXAS
9
A PEQUENA ALDEÃ Cristalino. Como deveria ser a voz de um anjo. Como um afago... Assim era o canto da pequena. Vivia numa aldeia distante e só sabia cantar. Seu canto adormecia e acordava a aldeia. Seu canto batizava os recém-nascidos e se despedia dos mortos. Com voz de anjo ela chamava a primavera e acalmava o inverno. Era bela como o canto. Os cabelos negros e fartos, a pele sedosa, o talhe perfeito do rosto, o corpo delgado. Tudo nela tinha luz. Era com essa beleza que ela cantava para o seu namorado, o vento. Dizia coisas bonitas em forma de canto para o rio, com quem flertava. Aliás, ela tinha vários namorados: a chuva, as pedras, as flores, o sol. Todos apaixonados por sua voz. Um dia passou pelo lugar, vindo de guerras mais distantes que a aldeia, um jovem barão. Vinha no comando do seu exército de dois mil ou três mil homens. Era poderoso o barão. Um guerreiro. Nada o abalava. Mas ao ouvir algumas notas do canto da pequena aldeã se consumiu. Ficou completamente apaixonado ao vê-la por inteiro.
HISTÓRIAS DE BRUXAS
11
Ofereceu esse amor, mas a pequena já estava cercada de amores sinceros e não queria aquele amor. Ofereceu jóias, perfumes, sedas raras, mas a pequena já se vestia de algodão que era arrumado num tear de cores por mãos sábias. Seus adornos eram as flores com perfumes inebriantes. Ela não precisava de outros enfeites. O barão ofereceu casamento, mas a pequena já estava comprometida com o vento, o rio, a chuva e todos os outros amantes. Num último esforço, já possuído de amor, o jovem barão ofereceu a força. Devastaria a aldeia se seus desejos não fossem atendidos. A pequena aldeã vestiu-se de flores e entregou-se ao guerreiro. O barão continuou viagem para o castelo levando a jovem. No caminho o guerreiro pedia apenas o canto da aldeã. E ela cantava enchendo de sonhos a estrada. Logo, todo exército estava apaixonado. Eram dois mil ou três mil corações enamorados. Apenas um coração ardia de ciúme batendo forte no peito do barão. Ao chegar no castelo o guerreiro mandou construir uma torre para colocar a jovem. Os sábios foram convocados e a magnífica engenharia do homem criou poderosa construção para aprisionar o canto do anjo.
HISTÓRIAS DE BRUXAS
13
Quando a torre ficou pronta, a aldeã foi colocada no quarto mais alto. Ninguém podia entrar lá. Somente o barão ia todos os dias, pela manhã, para ouvir o desejo cantar. O homem estava tão obcecado que só alimentava a jovem com o seu amor. Prisioneira, a pequena aldeã começou a modificar-se. O cabelo embranqueceu, a pele perdeu o viço, o corpo encurvou. E a voz, a voz de anjo, era apenas um sopro. Mas para os olhos do barão ela continuava a mesma. O seu desejo estava ali. Completo. Um dia a aldeã pediu um presente. O barão que tinha oferecido grandes tesouros, todos recusados por ela, ficou curioso. Ela então pediu um punhado de terra. Terra suficiente para encher a palma de uma mão. O barão achou estranho, mas concedeu. Depois de receber seu desejo, quando estava sozinha, a pequena aldeã jogou o punhado de terra no chão, deixou cair algumas gotas da saliva de sua boca sobre a terra e cantou. Cantou. Cantou como nunca tinha cantado. Como um último canto. Da terra brotou um caule verde, que logo cresceu em galhos com folhas e flores, que se transformaram em frutos, que explodiam expulsando sementes. As sementes ao cair no chão, brotavam em caules verdes que novamente cresciam em galhos com folhas e flores que se transformavam em frutos que explodiam expul-
14
AUGUSTO PESSÔA
sando sementes. Num piscar de olhos toda torre estava tomada de verde. A vegetação começou a empurrar as grossas paredes criadas pela magnífica engenharia do homem. A poderosa construção rachou deixando escapar a folhagem que formou, ao redor da torre, uma teia verde. No dia seguinte, o jovem barão foi ouvir o seu desejo cantar. Ao aproximar-se da torre viu a inacreditável teia verde. Enlouquecido, desembainhou a espada e investiu sobre a teia. Mas de cada haste partida, de cada ferida feita pela afiada lâmina, surgiam novas hastes, novos galhos, novas folhas, novos frutos. Freneticamente, o guerreiro lutava e murmurava palavras estranhas. Até que, sem poder se mexer, cercado pela teia o homem gritou. Gritou com todas as suas forças: – Canta ! Canta só para mim !! Silêncio. No ar apenas o perfume das flores que tinham o cheiro da voz da pequena aldeã.