Corpo do Mundo

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Em poucos artistas contemporâneos, o fenômeno da mundialização se expressa tão adequadamente quanto em Lina do Carmo. Prova disso é este livro, editado entre Alemanha, França e Brasil graças à possibilidade de longas reuniões via Skype com editores e revisores que atuaram neste projeto. O texto foi finalizado no início de 2015, em Paris, onde a coreógrafa, criadora e dançarina acabara de completar seu mestrado em dança na Université Paris 8. A estadia na França, porém, não era uma novidade para ela. Ali mesmo, destacou-se como uma das mais singulares discípulas – há quem diga, a preferida – do mestre Marcel Marceau, nos idos de 1980. Antes de dedicar-se aos rigores da École de Mimodrame, Lina cumpriu longa trajetória em busca das possibilidades expressivas do movimento. Não foi apenas em grandes centros de pesquisa que ela desenvolveu seu talento. Ela bebeu, sim, nas fontes do conhecimento mais puro. Seja em prestigiados momentos nos palcos brasileiros e na Europa, seja nas aldeias dos índios Karajá, na selva brasileira, Lina do Carmo sempre manteve seu corpo entre mundos – paralelos ou não – em trabalho de auto-estudo e aprimoramento. Até fundir sua arte à sua espiritualidade, dando um salto de transcendência, que elevou à condição de sublime sua arte tão humana. Desde que acionou seu dínamo criador, Lina legou ao mundo espetáculos solos de raríssima beleza. E têm sido muitas as plateias que rendem-se à sua diferenciada dança. Brasil, Áustria, Itália, França, Polônia, México, Alemanha. Por onde passa, causa forte impressão com sua dança que tem vários sotaques e influências. Das raízes brasileiras, Lina traz um vigor incomparável. Ela não se cansa de criar e gerar novas ideias. Já passou por teatros, cinema e televisão, desenvolvendo linguagens estéticas ou plasticidades corporais, adicionando sensibilidade e inteligência a

tudo o que toca. Enquanto apronta este seu primeiro livro, que une autobiografia e reflexões sobre sua experiência como criadora, Lina elabora novos projetos, ensaia o próximo salto. E nós aguardamos, sempre atentos ao que vem lá. Tudo o que ela faz ou diz e que relaciona-se à sua arte está cheio de um conhecimento, partilhado assim, com a generosidade que só é dada aos mestres. E é como mestra que ela acaba deixando um pouquinho de sua herança. Assim foi com as crianças da Serra da Capivara – um lugar épico, permeado de pinturas pré-históricas. Naquele sertão, Lina semeou gotas de luz, de beleza e de esperança em um dos mais ousados projetos de arte e educação desenvolvidos no Brasil. Lá também uniu diversas manifestações em um festival internacional que uniu o pífano ao piano. Sempre na vanguarda, deixando poeira para trás. Com crianças de múltiplas nacionalidades nos arredores de Colônia, na Alemanha, onde reside há algumas décadas, ela ensina que diferenças são preciosidades a serem cultivadas e respeitadas, tudo em nome de uma cidadania que se pretende cada vez mais global. É assim sua dança. Enquanto dança, cria. Como Shiva! Neste momento, Lina do Carmo deve estar talvez nos Himalaias, polindo os movimentos e as danças de Gurdjieff, que anda a ensinar em mosteiros escondidos em recantos inimagináveis. Ou a caminho de um festival no Rio de Janeiro, ou quem sabe ainda pesquisando nova dramaturgia do Corpo do Mundo num sitio arqueológico no Piauí. Jaime Gesisky

Jornalista, editor, revisor


ISBN: 978-85-66464658

9 788566 464658

www.livrosilimitados.com.br



CAPIVARA, Lina do Carmo, Col么nia (Alemanha) 1997, Foto: Gert Weigelt



Criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento


A EDITORA A Livros Ilimitados é uma editora carioca voltada para o mundo. Nascida em 2009 como uma alternativa ágil no mercado editorial e com a missão de publicar novos autores dentro dos mais diversos gêneros literários. Sem distinção de temática, praça ou público alvo, os editores ilimitados acreditam que tudo e qualquer assunto pode virar um excelente e empolgante livro, com leitores leais esperando para lê-lo. Presente nas livrarias e em pontos de venda selecionados, tem atuação marcante online e off-line. Sempre antenada com as novidades tecnológicas e comportamentais, a Livros Ilimitados une o que há de mais moderno ao tradicional no mercado editorial. Copyright © 2015 by Lina do Carmo Copyright desta edição © 2015 by Livros Ilimitados Conselho Editorial: Bernardo Costa John Lee Murray ISBN: 978-85-66464658 Fotos capa e 4a capa: Capa: Gert Weigelt Contracapa: Victoria Regia, Lina do Carmo, Colonia (Alemanha) 1989. Foto: Gert Weigelt Projeto gráfico e diagramação: John Lee Murray Conceito de capa: Felipe Horst Revisão: Jaime Gesisky Preparação de originais: Daniella Wagner Direitos desta edição reservados à Livros Ilimitados Editora e Assessoria LTDA. Rua República do Líbano n.º 61, sala 902 – Centro Rio de Janeiro – RJ – CEP: 20061-030 contato@livrosilimitados.com.br www.livrosilimitados.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.


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Agradecimentos: Minha gratidão às pessoas que direta ou indiretamente colaboraram de diferentes formas na concretização deste livro. Aos fotógrafos(as) pela generosa participação. A Lenora Lobo pelo encorajamento do seu olhar acolhedor e sua orientação artística. A Adriana Nunes pelo impulso que me fez escrever o que eu escondia. A Ida Schrage, Gerda Fhrlenbruch, Kátia Hilleke e Marianne Pichon pelos estímulos e escuta. Ao Serge Troude pelas noções fundamentais sobre o Eneagrama de Gurdjieff. A Niède Guidon pelo seu jeito guerreiro de ser, inspirando minhas andanças e pesquisas. A Sandra, minha irmã, por sua amizade sem limite. Aos meus filhos Max e Luiz pelo afeto e aprofundamento da vida. Ao Michael pela longa parceria de vivências desafiadoras. Aos meus pais que me ensinaram a encarar as injustiças do mundo, com a compaixão. Ao Marcel Marceau e a minha avó Maroca, em memória, pelos ensinamentos e poéticas inspiradoras



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Sumário Prefácio......................................................................................... 15 Lina do Carmo, a alma do corpo .................................... 19 Capítulo 1 Um sentido primordial................................................................................. 23 A pré-história da dança?............................................................................... 27 Encantamento arqueológico......................................................................... 28 Ressonâncias do corpo rupestre.................................................................... 32 Encontros fundamentais............................................................................... 34 Regresso ao lar.............................................................................................. 35 Vestígios da raiz............................................................................................ 37 Infância......................................................................................................... 43 A menina adolescente................................................................................... 47 A fuga........................................................................................................... 51

Capítulo 2 Deslumbramento – a Cidade Maravilhosa................................................... 55 Caminhos da formação................................................................................. 56 Boston – nova camada de entendimento...................................................... 60 Noves meses, Ted Shawn e Krishnamurti..................................................... 64 O clã dos músicos brasileiros e o corpo-mãe................................................ 67

Capítulo 3 Apostando nas incertezas............................................................................. 73 Ausência, presença e a boneca Pepita............................................................ 77 Movimento e imobilidade............................................................................ 84 Impulsos e impressões.................................................................................. 86 Buscar a perfeição ........................................................................................ 87


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Capítulo 4 Paris, chez Marceau....................................................................................... 95 L’École de Mimodrame................................................................................... 98 Gravidade e leveza........................................................................................ 98 Paz, presença e olhar................................................................................... 100 Cada passo, um gesto.................................................................................. 101 Caligrafia da teatralidade............................................................................ 102 Planète mime............................................................................................... 105 Estudar com o gênio................................................................................... 106 Mímica e mãe............................................................................................. 108 A caricatura................................................................................................ 110 O clown...................................................................................................... 113 O ritmo...................................................................................................... 114 A projeção.................................................................................................. 115 Metamorfose do amor................................................................................ 117 Maternité - o cíclico da vida....................................................................... 118 Invocar e evocar.......................................................................................... 122 Instintividade e o animalesco de Stefan Niedzialkowski............................ 123 A mímica pura de Decroux......................................................................... 124 Decroux ou Marceau?................................................................................. 126 Os sentimentos da pedra............................................................................ 128 Boris Tissot e Paris..................................................................................... 131 Sombra do mestre e referencial no ensinamento........................................ 132 Atividades adjacentes.................................................................................. 133 Ator silencioso e o diferencial de Anne Sicco............................................. 134 Ambições e medos...................................................................................... 136

Capítulo 5 Outro jeito de se ver................................................................................... 141 Pronta para os desafios............................................................................... 142 Digerir, integrar, transformar...................................................................... 144 Intuição, intelecto e técnica ....................................................................... 146 A forte fala do silêncio................................................................................ 148 A riqueza da dúvida.................................................................................... 149 Dramaturgia da essência............................................................................. 151 Influências, impressões e expressões............................................................ 155


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Estilização em tentativas estéticas.............................................................. 155 Metáforas corpóreas................................................................................... 159 Principiando o Lume Teatro....................................................................... 163 No destino das inovações televisivas........................................................... 164 Otelo.......................................................................................................... 165 O que é sonho e o que é realidade?............................................................. 166 Reencontros e definições de vida................................................................ 168

Capítulo 6 Destinação germânica................................................................................. 175 Mergulho na cultura “do outro”.................................................................. 176 O sopro da realização................................................................................. 179 Fronteiras móveis........................................................................................ 183 Desenraizamento: rompimentos ou ampliação?.......................................... 184 Dança como linguagem das vivências......................................................... 185 Desnudar-se............................................................................................... 189 Victoria Regia, uma ficção amazônica.......................................................... 190 Alquimia das linguagens............................................................................. 190 O corpo das sensações................................................................................ 196 Nudez e frio................................................................................................ 199 Dividir-se e divertir-se................................................................................ 201 Voodoo do Plastik.......................................................................................... 205 O corpo das fugas....................................................................................... 209 Et kütt wie et kütt........................................................................................ 213 Entre mundos............................................................................................. 215

Capítulo 7 Um grito de pertencimento........................................................................ 223 CAPIVARA: resgate de essências e memórias............................................. 225 Dança e arqueologia................................................................................... 227 Corpo dos arquétipos................................................................................. 232 Figuras em mutações.................................................................................. 234 Corpo-território sem fronteiras.................................................................. 242 Fronteiras e limites..................................................................................... 245 Insights do novo milênio............................................................................. 247 Mitos e migração........................................................................................ 248


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Aruanãzug: a busca do coletivo................................................................... 249 Viagem ao sagrado..................................................................................... 252 Mergulho no mito...................................................................................... 255 Trajetos míticos.......................................................................................... 259 Encontro do masculino e feminino: o mundo do meio............................... 261 Conexões simbólicas................................................................................... 263 Karajá, Gurdjieff e a Lei do 3..................................................................... 264 Imagem da totalidade................................................................................. 265 Vivência da arte objetiva............................................................................. 266 Fluxo e precipitações.................................................................................. 267 Pororoca de sentimentos............................................................................. 267 Imaginário arquetípico............................................................................... 269 Mensagens sonoras..................................................................................... 271 Relações autênticas..................................................................................... 272 Atrito entre o arcaico e o moderno............................................................. 275 Uma sinfonia coreográfica.......................................................................... 281 Reflexões restantes...................................................................................... 285 Serra da Capivara, meu eterno retorno....................................................... 288 O chamado do cineasta José Araújo........................................................... 291 Sensações do enigmático............................................................................ 294 Entre lá e cá................................................................................................ 296

Capítulo 8 A bailarina do sonho.................................................................................. 301 Espiral do retorno....................................................................................... 304 O lúdico do ser na dança............................................................................ 306 A organicidade da presença........................................................................ 307 O sentido espiritual.................................................................................... 315 Sintonia do Pró-Arte e o Cidadão 21 Arte................................................ 317 Desafios da trilha........................................................................................ 320 Construindo intimidades............................................................................ 322 Pedagogia da transformação ou dançar outra realidade.............................. 323 Retornos e retornos.................................................................................... 327 Aruanãzug no encontro com o Alaya.......................................................... 328 Equilibrando realidades.............................................................................. 331 Batalhas por um festival no sertão.............................................................. 332 O Festival Interartes................................................................................... 334


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A construção de um mundo melhor........................................................... 338 Uma etopeia coreológica............................................................................. 340 Transversalidade da arte.............................................................................. 344 Estética do paradigma................................................................................ 345 Todas as artes no sertão do Piauí................................................................ 351 Queremos uma coisa e acontece outra........................................................ 352

Capítulo 9 A bailarina volta-se para dentro.................................................................. 359 Queda das ilusões....................................................................................... 360 Arqueologia da alma................................................................................... 365 Do corpo físico ao corpo espiritual............................................................. 367 Corpo da transcendência............................................................................ 370 Dançar com as crianças do mundo ............................................................ 372 Lustspiel..................................................................................................... 374 Viajante da Luz.......................................................................................... 379 Gurdjieff – o retorno a si mesmo................................................................ 385 Lembrar-se de si......................................................................................... 387 Bem-vindo à fricção................................................................................... 389 Alinhamento dos centros energéticos......................................................... 393 Viagem à Índia........................................................................................... 395 Combate às identificações.......................................................................... 397 O cavalo, o cocheiro e a carroça.................................................................. 398 O duplo em nós: essência e personalidade.................................................. 400 Caminho sem fim....................................................................................... 402 O vaso da alma........................................................................................... 403 À bientôt, cher Maître................................................................................... 405 Cruzando caminhos de transformação....................................................... 407 Um grande turbante branco na mala.......................................................... 411 A bailarina não sonhou nada à toa.............................................................. 414 Bach Johannes Passion 2011...................................................................... 416 No riacho do ashram.................................................................................. 420 Enraizar-se no sagrado............................................................................... 422

Bibliografia................................................................................ 429



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Prefácio O sol vai dissolvendo a cerração e sua luz traz para a superfície as penumbras que se embolavam em caminhos que pareciam desordenados, à espera de uma datação que se tornasse pública. Aguardavam serem chamadas para mostrar os seus contornos. Agora, reunidas nesta mistura entre caderno de artista, diário e relato de experiência, deixam ver que estiveram escutando, desde sempre, o canto do mesmo pássaro. Escrevendo em primeira pessoa, Lina do Carmo entremeia a sua história com os muitos fragmentos do seu jeito de pensar a dança, a mímica, a arte. E os vai espalhando para que, recompostos, possam resguardar a sua crença de que “ser artista não é uma escolha e sim um desígnio”. Lina vai acendendo as lâmpadas da sua trajetória e reanimando a sua biografia, repovoando-a com os que a constituíram. Pessoas, encontros, fatos, escolhas, projetos, ações, em um fluxo de intensidade incomum. Conhecer a sua formação é esbarrar em parte do ambiente artístico que se gestava no Rio de Janeiro, Teresina, Boston, Paris, Colônia, na pré-história. Enfileira acontecimentos e pensamentos e os costura com o que pode ser, talvez, identificado como um viés artístico-espiritual-mítico, em um caldeirão que vai abrigar, dentre outros componentes, Krishnamurti, Eneagrama, Jung, Gurdjieff, Kundalini Yoga. Escrevendo em primeira pessoa, seu texto amealha, por exemplo, a Faculdade de Teatro do Rio de Janeiro (hoje, UniRio), Escola Martins Penna, Alejandro Bedotti, Klauss Vianna, Lennie Dale, Hélio Eichbauer, Ausonia Benardes, Sylvia Ortoff, Decroux e Martha Graham, Ted Shawn e Delsarte, Nelson Xavier, Naum Alves de Sousa, Claudio Gaya (Dzi Croquettes), o Ballet do Século XX, de Béjart, a telenovela Sétimo Sentido, o Sítio do Pica Pau Amarelo, Alcione Araújo, Luiz de Lima, Hugo Carvana, até chegar a Marcel Marceau e a Maximilien, o filho de Decroux. Marceau e Decroux se tornariam as forças centrípetas dos entendimentos até então constituídos, e passariam a ser os pilares a sustentar a continuidade, na qual tantos outros não param de se agregar: Stefan Niedzialkowski e seu teatro total, a escultura de Camille Claudel, Boris Tissot, Yves Casati, Anne Sicco, a ida para Alemanha, Michael Hilleckenbach, e mais um rastro caudaloso de outros encontros e descobertas. Quem deseja “transformar a densidade rude da vida em leveza de ser” precisa de um apetite inesgotável. E ele, quando aporta na Serra da Capivara, ganha outra densidade.


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A preocupação em contar da sua origem (uma piauiense andando pelo mundo) acompanha Lina nas suas perambulações criativas. Em Pierrot Nordestino, seu solo de mímica, essa necessidade já se faz clara. E em Victoria Regia fica desenhado o interesse por um corpo arcaico – “Junto às memórias sensoriais da minha infância piauiense, dialoguei com algo da profundidade da origem”. É no encontro com a dança na pedra que a origem deixa de ser pessoal para se entender ancestral. Agosto de 1996. São Raimundo Nonato, seus habitantes, sua natureza, e a força gravitacional do homem enraizado na terra das pinturas rupestres raptam Lina. Ela diz que “em vez de coreografia, queria elaborar uma corporeografia. Como uma invenção epistemológica declinando o significado de coreografia, o termo corporeografia expressaria meu pensar na criação do corpo cênico. O corpo sendo o espaço ficcional da dramaturgia do gesto”. O corpo arcaico brasileiro e trans-histórico passa a ser a sua busca, que deságua no seu solo CAPIVARA e segue como uma corrente permanente. Um interesse no “corpo dos arquétipos”, um corpo rupestre que se levanta da pedra, se movimenta e se põe a caminho, alçado pela arte de Lina, que o faz desabrochar de novo. O impulso que a impele é da ordem do inevitável. Produz registros que não se sabe se são dados ou tomados de um tempo do qual pendem aquelas inscrições, que se arremetem da pedra para os corpos que estancam na sua frente, encapsulados na sua contemplação. São golfadas de estrondos que não cessam de provocar espantos. Os privilegiados que puderam assistir aos dois Festivais Internacionais que ela produziu na Serra da Capivara puderam lá descobrir essa outra dança, que parecia escorrer da Pedra Furada para o palco instalado aos seus pés, no qual era a anfitriã. Nas paredes das cavernas, se aspira o que se pode apenas pressentir . Um sublime que fica ofuscante, transbordando porque não existem margens. Você sente o cheiro da pedra, da pedra que chegou antes, a pedra da qual somos agora apenas os rastros. Lina propõe o uso da coreologia de Rudolf Laban para lidar com a arqueologia de uma herança cultural muito complexa, ao mesmo tempo obscura e translúcida, simultaneamente aberta e fechada. Olhando seu percurso, vê-se que ela fez da “caligrafia da gestualidade” sua sina e sua saga. “Desnudar-me é minha oração estruturante. Fazendo uma ponte entre o mítico e o cotidiano”. Difícil descrever a sua errância, porque as errâncias, geralmente, se escrevem sozinhas. E o mosaico que Lina não para de montar oferece ao leitor o que realmente pode ser chamado de um viver intenso ou de uma intensidade


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no viver. “Minha encenação de atos sem certezas, apenas pressinto os traços de um arco-íris no fim do dia. Aproveito essa visão como quem mastiga uma estratégia. Crivo os primeiros pontos de uma nova toalha”. É um turbilhão que não termina porque não começou: sempre esteve presente. Não à toa, ela diz: “Eu sou. Eu posso. Eu quero. E o cosmo me responde”. Helena Katz Professora na PUC-SP, crítica de dança do jornal O Estado de São Paulo, coordenadora do Centro de Estudos em Dança-CED



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Lina do Carmo, a alma do corpo O mundo do corpo avassala a alma de Lina do Carmo como uma invariante. A alma do corpo e o corpo da alma formam uma dialética da criação artística na obra pluridimensional de Lina do Carmo. A alma é corpo. O corpo é alma. E ambos se unem para o desempenho exigido pela imaginação criadora. Arte é forma. Com a intuição e a imaginação criadora à flor da pele, na epiderme do delírio da criação, Lina transporta a si mesma como suporte da obra de arte. Isso significa que o ser-da-imaginação é o ser-da-criação quando a alma do corpo decide ultrapassar a condição de criatura e se apresenta como criadora de criaturas artísticas. Para além da desgastada visão da antinomia corpo-alma, Lina do Carmo prova que o corpo é anímico e a alma é carnal. Eu a conheci nos anos 1980 em Paris, no período dos anos de formação com o gênio Marcel Marceau, e vi que o seu entusiasmo onírico era oriundo da penetrante condição criadora que o seu gênio artístico a conduzia. Inclusive a correr todos os riscos. Depois a reencontrei no Rio de Janeiro, como que esperando que o Brasil a acolhesse no berço esplêndido de todas as imaginações. Perdidas todas as ilusões, mostrei o caminho da Alemanha como o mais seguro. E acertei, para a sua felicidade, e para a minha alegria. Depois a vi em 1989, quando vivi três meses em Aachen, quando a visitei em Colônia, já devidamente adaptada e produtiva, com família constituída. Lina do Carmo tem a inquietação vibrante das almas verdadeira e autenticamente criadoras. Nada escapa à sua invenção. Nem ela mesma, ou melhor, sobretudo ela mesma. E agora, buscando na razão os elementos já amplamente trilhados pela imaginação criadora, Lina do Carmo rumo ao doutorado na Université de Paris VIII – Saint Denis, minha velha conhecida, quando fiz meus estudos com Jacques Rancière, Jean-François Lyotard e François Châtelet em 1981 e 1982. Lina do Carmo é uma usina de criação artística em busca permanente de combustível limpo e renovável para o exercício da invenção de suas criaturas nascidas do assombro da vida. Corpo do Mundo é o resultado da vertigem da história da criação da sua arte, e ao mesmo tempo um momento singular de uma trajetória sem fim. A alma é o corpo da vida eterna. E o corpo é a alma da vida no mundo. João Ricardo Moderno Presidente da Academia Brasileira de Filosofia. Docteur d’État (Doutor de Estado) pela Université de Paris I – Panthéon – Sorbonne. Doutor Honoris Causa pela Universidade Soka, Tóquio, Japão. Cavaleiro das Palmes Académiques, Presidência da República da França



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CAPÍTULO 1 Dó 9 Si 8

Ré 1

Lá 7

2 Mi

6

3

5 Sol

4 Fá


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No Eneagrama, a nota DÓ (9) Nova informação-afirmação, impulso positivo, impulso ao movimento.


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Um sentido primordial Na luz do amanhecer. Meu olhar foi vislumbrando aquele cenário selvagem, enquanto meu espírito se preparava para adentrar um mundo que, naquele momento, inspirava mistério. A origem é um enigma em diversas camadas a serem perpassadas. Era agosto de 1996 e eu chegava à Serra da Capivara, no estado do Piauí, minha terra natal. Desfrutando do apoio de subvenções de instituições culturais da Alemanha, escolhi a Serra da Capivara como tema para uma nova coreografia. E assim fiz um retorno à minha própria origem. Na excitação em pesquisar pistas sobre a origem da dança, continuando meus estudos sobre o corpo arcaico brasileiro, percorri a longa estrada esburacada até o município de São Raimundo Nonato para conhecer as pinturas rupestres existentes há milhares de anos naquela remota região do Brasil. Tais pinturas foram motivadoras do solo de dança intitulado CAPIVARA. A viagem foi decidida de última hora e deu-se com o apoio da Fundação Cultural do Estado do Piauí: um carro com motorista, aptos a enfrentarem a longa viagem até o sul do estado. Pegamos a estrada com crateras que mais lembravam a topografia lunar, o que para mim fazia parte do valor autêntico da excitante experiência de aventura naquele lugar. Estava orgulhosa em teatralizar a ancestralidade presente no Piauí, podendo unir apoios culturais entre as cidades de Colônia, na Alemanha, e Teresina, no Brasil. Queria fazer desse trabalho um hino à origem da dança, tirando partido da força da herança cultural, um resgate de essências e memórias. Fui descobrir na vastidão dos resquícios do corpo gestual das pinturas rupestres algo da origem que até então eu desconhecia nesse pedaço de chão da minha terra. Movida por essa intenção de resgate, já sentia a predestinação da busca, face a face com o rupestre. Durante a viagem, meu olhar desvendava a paisagem da Caatinga. Todo o meu ser vibrava em sensações vitalizantes. Deixava liberar a inocência amorosa, revivendo algo da minha essência. Meu corpo logo reconhecia seu bem estar natural ao calor do sol. Uma felicidade imediata me descontraía. Sentia também certa tensão. Impossível esconder. Com o cheiro do mato seco me invadindo, vivia uma alegria especial dos tempos da minha infância. Minha atenção captava a presença das pessoas, realçando sinais de vida nos lugarejos pobres à beira da estrada.


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Parávamos para beber ou comer. Nesses momentos, aproveitava o contato humano mais direto com as pessoas, sempre subservientes, meio adormecidas pela meiguice permeada do rústico jeito de ser. Sentia um êxtase em poder falar minha língua com a simplicidade da linguagem do povo. A afetividade intensifica nossa intimidade e faz algo arder na nossa alma. Acendia dentro de mim a velha questão da desigualdade social, que sempre intrigou minha mente. Ali, meu estado mental ficava muito ativo com comparações dolorosas de mundos paradoxais em que me encontrava, misturada entre passado e presente. Do meu passado, a menina matuta acordava em mim. O resgate da essência surgia pela identificação sensorial no pulsar das impressões. Também constatava naquele lugar a presença, a teatralidade que fui inventando fora de mim ao adentrar outros mundos e culturas. Seguíamos o percurso no asfalto despedaçado da estrada. Entre trepidações e golpes súbitos, avançávamos em nossa rota naquele Brasil profundo. Os pneus do carro driblando a buraqueira deixavam para trás uma nuvem de poeira vermelha. Eu até que me divertia com os impactos, relativizando os fatos não só no meu corpo – já acostumado com o very smooth standard das rodovias do Primeiro Mundo – mas, sobretudo, relativizava em minha consciência presente a mulher adulta intrigada com os paradoxos. Vivia o choque cultural como autoestudo. O motorista animava a viagem, acentuando ironias, sobretudo porque sabia que eu morava na Alemanha. Michael, meu marido, me acompanhava. Ficava perplexo com a realidade das estradas, mas fascinado com a descoberta do pitoresco. A força de me encontrar com velhas realidades injetava novas verdades no meu sangue. O sol descia no horizonte e banhava a vegetação com uma luminosidade magnífica. Não demorou a escurecer. No breu da estrada, subia em nós uma certa tensão, quebrada às vezes por situações absurdas e até mesmo engraçadas. Inesquecíveis nossas gargalhas ao cruzar com um Fusca, caindo aos pedaços, sem farol, tendo como único recurso para clarear a visão da estrada nada mais do que uma lanterninha, que a mão do copiloto segurava, esticando o braço para fora da janela em um improviso fenomenal. O espírito de sobrevivência do povo e a garra natural manifestam-se no nordeste do Brasil como a arte de viver. Só eu sei como essa arte impregnou minha imaginação. Paramos numa cidadezinha chamada Amarante para deixar um amigo, Arimatan Martins, na época o diretor do Teatro 4 de Setembro, o principal de Teresina, e que compartilhava a viagem até ali. Passamos o resto da noite em um festival de teatro de rua que acontecia no lugar. A vivacidade de toda a movimentação contagiava-me dentro da realidade simples do lugar, muito bonito, por sinal. Nessa viagem, Arimatan profetizava: “a Serra da Capivara será seu eterno retorno”.


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No dia seguinte, retomamos o trajeto. Os sentimentos agitavam minha mente e tudo isso devia ser parte de um processo criativo. A arte estava no comando da viagem, meu objetivo era a dança como autoexpressão. A observação precisava estar afiada para catalisar as impressões fundamentais, de forma que elas penetrassem todas as dimensões do meu ser. Isso exigiu um trabalho de atenção em três focos: o mundo de fora, que me afetava por aguçar minha mente crítica; o mundo de dentro, acordado pelas emoções que davam ao meu corpo a postura justa da sua gestualidade; e a consciência em estado de canalização, aberta para captar a essência da experiência mais autêntica. Thomas Hobbes, no Leviatã, explica que “quando um corpo está em movimento, move-se eternamente (a menos que algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o pode extinguir totalmente num só instante, mas apenas com o tempo e gradualmente, como vemos que acontece com a água, pois, muito embora o vento deixe de soprar, as ondas continuam a rolar durante muito tempo ainda. O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do homem, quando ele vê, sonha etc., pois, após a desaparição do objeto, ou quando os olhos estão fechados, conservamos ainda a imagem da coisa vista, embora mais obscura do que quando a vemos. E é a isto que os latinos chamam imaginação”. Sem conhecimento arqueológico ou método acadêmico apropriado no âmbito da pesquisa, fui com a sede da minha origem, atendendo ao impulso do meu interior. A intuição e a vontade focadas na invenção da dança foram os fatores que me empurraram para desafiar meu próprio destino. Na minha fragmentação, internalizava as identificações que me capturavam e, francamente, eu podia medir minha dualidade, lembrando da mesma dualidade de outrora. A essência utilizando a personalidade para autorrealização através da devoção natural da linguagem lúdica, a qual não encontra nas palavras a tradução apropriada. Ao saborear o valor e a beleza da minha origem, sentia ao mesmo tempo repúdio pelo contexto social insólito. Na estrada, via pessoas vendendo beiju, milho assado e caldo de cana. Parecia que nada havia mudado. Nem no lugar, nem em mim. Minhas questões eram as mesmas. O olhar acabrunhado de resignação me ensinava a aquietar meu senso de denúncia. Quando surgia um trechinho de asfalto novo, o motorista exclamava: “Dona Lina, agora estamos na Europa”. Ele me fazia rir pela ironia justa mas, na verdade, me doía ser impotente diante da urgência de uma atitude contra aquela desgraceira. Que força é essa que inibe a prosperidade e a evolução? Que outra resposta eu teria para aqueles rostos marcados pelo maltrato? O maltrato aos animais, o maltrato com a natureza, aquela irresponsabilidade generalizada em relação à qual qualquer mente sã deveria se revoltar. Por um momento, fechando os olhos e interiorizando as paisagens, tentava


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calcular as diferenças entre os mundos e vi que elas estão em apenas duas coisas: nas estruturas sociais que refletem as histórias e na ecologia de cada lugar, determinando as características culturais. E é isso que deixa nas nossas células a sensação da raiz, uma sensação intensa de pertencimento. Eu meditava sobre o que me levou a partir da raiz. Eu retornava ali com novas ilusões e via que a raiz é como um magneto que nos aprisiona. Novamente no Leviatã, Hobbes já falava que “memória é a duração das sensações”. Eu estava a recordar para tornar a sentir o que sentia antes. Também não conseguia me livrar das paisagens humanas da Europa, que já me contagiavam com certas tendências egocêntricas, diferente do egocentrismo brasileiro, mais pueril. Minha mente borbulhava elucubrações sobre questões humanas e do mundo em geral, tendendo a fazer as coisas mais densas. Ouvia minhas revoltas e meus conformismos. Ficava no meio, dividida, verificando onde, afinal, eu estava com o meu ser. De que me serviria o sentimento de revolta? Apenas para me sentir mais esclarecida, participando da supercultura? Neste momento, pelo menos, estava certa de que minha revolta era contra o contexto destrutivo que conseguia entrever nas diferenças de mundos. E já era suficiente esse conflito para me ajudar a descobrir alguma verdade em mim mesma. Seria então um privilégio ocupar-me com questões de autoconhecimento? Serei eu parte da sociedade abastada, passando ao lado do essencial sem me dar conta? Seria eu mais um daqueles que reclamam de barriga cheia? Não podia deixar de ver, naqueles pobres coitados cavalgando nos seus jumentos pela estrada, a falta de energia e de condições para refletir sobre si. Faltava-lhes a primeira nutrição. O pão de cada dia exigia todo o seu tempo. Alguns tinham no olhar algo de santo, vagando naquele destino coletivo, sem queixas. Mas se lhes deixássemos falar, seria pura filosofia. A resignação é qualidade típica desse contexto sociológico em que se encontram os ditos ‘desprivilegiados’. Teriam eles esta marca como consciência de si mesmos? E eu? Por que as coisas me falam dessa forma? Em cada contato humano, recebia algo para pensar. Sei que, independentemente da qualidade de vida de que desfruta, o homem tem a tendência natural de sofrer. Como centro da problemática humana, o sofrimento está dentro de nós. No sexo, na mente ou no coração. E para que serve conhecer, se não for para arder em nós o desejo de mudança? Mudar significa acordar nossos sentidos para alguma atitude que possa servir na criação de uma nova sociedade, mais verdadeira e justa. Hobbes diz que “a diminuição da sensação nos homens acordados não é a diminuição do movimento feito na sensação, mas seu obscurecimento.” Entrar em contato com minha origem acordava a mente imaginativa obscurecida. E por isso estava sendo tão vital retornar para acordar novamente com as impressões que meus sentidos recebiam daquilo tudo ainda vivo em mim.


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Não sabia ainda como minha observação poderia dinamizar tantos questionamentos de vida por via da dança. A viagem marcava o início da relação entre dança e arqueologia. Abria-se uma nova percepção da linguagem do corpo arcaico como impulso para a dança contemporânea. Precisava pagar com o meu próprio esforço para acrescentar alguma singularidade de sentimento e emoção no meio cultural internacional, onde a matuta piauiense ascendia e se desenraizava. E essa busca por uma identidade brasileira, às vezes, me tirava o fôlego. Dar o justo valor à existência exige um preço. E é isso que conta no ato do retorno: reconhecer aquilo que realmente somos. Indo para a Serra da Capivara, minha inquietação extrapolava a temática puramente artística da dança para escavar a profundidade da vida como um percurso iniciático. O desejo de resgatar a mim mesma gerava a energia criativa de vibração, no encontro do berço da fruição transcendente. Acordava para outras facetas do fazer artístico. Instigada, refleti os lampejos da hipótese de que quanto mais longe se busca no tempo, mais encontramos impulso para renovação do presente. Tive aquela sensação de que algo cerimonial impregnava a história daqueles resquícios sobreviventes de uma existência humana profunda. O que me interessava era a origem do vital. A busca da raiz como fonte não era meramente teórica ou filosófica. Quis perceber os códigos dessa comunicação primordial, admitindo serem atemporais, pois até hoje fertilizam o fluxo da expressão. Arqueologia, para mim, parecia ir além de uma ciência social. Tornava-se uma fonte de ideias e caminhos sensitivos para a dança.

A pré-história da dança? O sol tinia de tão quente. Atravessando a Serra Vermelha, surgiam as primeiras visões da Serra da Capivara: um panorama que magnetiza. Não via a hora de poder esticar minhas pernas e sacudir meu esqueleto, depois de tanto sacolejar na estrada. Logo entramos em São Raimundo Nonato. Eu me deparava com a imagem típica da vida no interior do Brasil, aquela atmosfera meio caótica, mas também cheia de vida. Minhas impressões eram críticas, detectando a miséria naquele cenário, algo comum desde a minha infância. A agressividade do tráfego, carros e caminhões passando pelas ruelas quase sem calçadas, bois e cavalos soltos pelas ruas comendo o que encontrassem, inclusive sacos plásticos; caubóis munidos com seus facões pendurados na cintura; mulheres carregando trouxas e baldes d’água na cabeça. Nada havia mudado no estilo de vida do interior, a não ser certo acréscimo de modernidade, da tecnologia hipnótica ao alcance de todos. Os celu-


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lares em ação. Até o carroceiro, que talvez nem soubesse escrever seu próprio nome, gastava seus créditos para se conectar. O alto-falante nas portas das lojinhas, com som altíssimo, atiçando o povo com suas propagandas, fazia doer meus ouvidos. O mau cheiro dos esgotos sob o céu do mais límpido azul compunha estranhas sensações em meio ao ritmo de vida muito alegre, apesar de tudo. Procurava manter minha mente centrada no meu objetivo arqueológico, para não ter uma indigestão sensorial. No primeiro contato com a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), recebi instruções apropriadas ao conteúdo da minha pesquisa, repassadas por Cris Buco, uma simpática arqueóloga paulistana cheia de entusiasmo, quando lhe disse que vinha pesquisar a dança da pré-história. Para minha surpresa, entendi que estava na função pioneira de uma pesquisa de dança na Serra da Capivara. Na ocasião, tive contato com as pesquisas arqueológicas, mas não houve tempo para uma aproximação mais aprofundada. Minha intenção era capturar o traço do passado como estímulo para brotar nova configuração do que é eterno. Não pude deixar de perceber, porém, que o trabalho científico da Fumdham – que estava trazendo melhorias de vida em todos os sentidos: água, luz elétrica, mão-de-obra, educação, enfim, impulsos fundamentais para a valorização da incomensurável herança cultural da região – enfrentava todo tipo de empecilho para que se estabelecesse efetivamente o Parque Nacional da Serra da Capivara, criado em 1979 pelo governo brasileiro. Diversas áreas científicas formaram na Serra da Capivara um eixo de excelência internacional. E isso animava o espírito do lugar para possíveis transformações. Encontrei uma intensa exploração do conhecimento. Notar aquele esforço científico confrontado com o paradigma do subdesenvolvimento reforçou ainda mais o signo de contrastes na minha poética de resgate de essências e memórias. Sendo eu mesma, ali, meio piauiense, meio alemã, um contraste inevitável para curiosidade dos outros.

Encantamento arqueológico Fui deixar minha mala no hotel e organizar galões de água e frutas. Em seguida, pegamos a estrada de terra batida, surpreendentemente boa, que nos levou às primeiras trilhas. De repente, entrei em um mundo atemporal. Embriagada pela beleza das formações rochosas, como castelos naturais moldados pelo tempo, meu olhar fitava as pinturas rupestres. De imediato aquilo mudou meu estado geral. Já nem sentia meu corpo. Mergulhei nos cenários de dança que paralisavam o meu olhar e fechava meus olhos, conservando o pulsar dos


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movimentos que sentia emanar das pedras. Mergulhei numa camada mais profunda da experiência. Com a inocência da minha alma dentro desse passado, percebia na cenografia natural a força criativa do imaginário dos seus habitantes. Estava comovida pelo valor incomensurável dos traços materializados pelo espírito do homem primordial que ali estivera. As pinturas rupestres da Serra da Capivara confirmam que a arte brota mesmo da intuição. Perplexa, deixei que o silêncio me falasse. A primeira visita de campo e os contatos iniciais com as pinturas rupestres foram rápidos demais para que eu pudesse absorver a massa do objeto em estudo, porém o bastante para vitalização dos insights necessários à prenhez do processo da criação. Os acessos aos sítios arqueológicos requeriam longas caminhadas no encantamento com a beleza da Caatinga e a investigação coreográfica. Acompanhada por uma guia turística, uma câmera semi-profissional e o excelente motorista, fizemos disciplinadamente o máximo de visitas aos acervos indicados por conterem maior abundância de temáticas em dança. Fui absorvida pelos contrapontos do movimento sinuoso das rochas, o canto dos pássaros, a luminosidade que emanava do azul celestial e a peculiar e rude sensualidade do sertão. De forma impressionante, no imenso conjunto de formações rochosas, encontrava inumeráveis pinturas e gravuras com diferentes datações e estilos. Isso significou encontrar um Piauí rico em ancestralidade. A força mítica do lugar tocou na inocência da minha infância confrontada com a fonte de signos imagéticos, como uma caligrafia vivencial de concreta poesia. Eu absorvia os estalos da vida no interior da vegetação que contornava os paredões das rochas. Escutava o ritmo dos meus próprios passos para retornar a mim mesma. A jovem guia falava-me todo seu repertório, que servia de um embasamento inicial, dando-me a entender que havia estilos distintos: o estilo Nordeste, o Agreste e o Geométrico. Mas minha escuta priorizava o eco do lugar em mim. O lugar me falava de uma origem da dança totalmente inexplorada, até então. Mal conseguia pensar no processo de criação de um solo de dança, pois estava tomada pelo todo da pesquisa e as sensações tão fortes de poder estar ali livremente. Era um esforço romper com os limites entre o passado e o presente. O mundo interior e o mundo exterior da artista estavam sendo sacudidos para criar uma mistura entre a contemplação e a vívida dinâmica da dança que pulsava das pedras. Deixei respirar tudo aquilo no meu corpo. Para falar do real e do imaginário dessa fonte de movimento, eu teria que criar uma suprarrealidade. Incorporava os grafismos rupestres na minha respiração, para que meu corpo pudesse servir à escritura dos movimentos de uma dança que seria a própria metáfora visual da minha vivência. Esse mundo primordial tornou-se o prolongamento da busca de raízes mitológicas para a expressão contemporânea e das minhas inquietações da ori-


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gem. A pesquisa em torno das pinturas rupestres impregnou-se para sempre em mim. Durante os dias intensos de encantamento percorrendo os sítios arqueológicos, a poeira do sertão fertilizava imagens da minha infância. Com um sentimento de unificação, desejei ficar lá para sempre. Estranha sensação essa de estar retornando para um lugar de onde nunca parti. O tempo foi realmente curto para percorrer a vastidão de sítios arqueológicos. Visitei diversos sítios na região da Serra Talhada e da Serra Vermelha. A primeira impressão era a de penetrar num paraíso no meio da miséria do sertão. Miséria que nada mudou em relação ao que já continham minhas memórias. E eu podia rever a miséria habitada pela alma de um povo que transpirava sua força pelos olhares com que eu cruzava a cada momento. O Sítio do Meio, a Toca do Pajaú 1, o Baixão das Mulheres, a Toca do Paraguaio e tantas outras. O grandioso painel do esplêndido Boqueirão da Pedra Furada já teria sido suficiente para me enfeitiçar eternamente. O grand jeté sublime de uma gazela saltou para dentro de mim como uma visão mítica, que me retirou os limites do tempo-espaço. Através da câmera, meu olhar de pesquisadora flutuava no paredão, registrando as mais belas sintetizações da pureza das expressões da dança e da vida que existiu ali. Algo em mim rendia-se diante do concreto que me falava do sutil e do sagrado. Compreendi que o enorme sítio arqueológico seria um portal de iluminação artística. Milhares de pinturas me falavam diretamente do alto teor da inspiração. Na diversidade de estilos e tradições, cada registro transmitia uma parcela da individualidade do imaginário. Cheguei a comparar com o contexto místico da Capela Sistina ou da Acrópole de Atenas. Na travessia da longa passarela, fui capturada pela exatidão dos traços de liberdade, que pareciam saltar do paredão da grande rocha. Meu olhar mimetizando cada motivo com seu significado simbólico foi contaminado com a virtude gestualizada. Fitando um motivo rupestre na forma de uma pirâmide humana na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, interessei-me pelo equilíbrio estético entre o lúdico e o acrobático do corpo, espírito em interdependência vivente no coletivo. Isso me fez pensar no conceito educativo utilizado nas escolas chamadas Waldorfschule, na Alemanha, cuja pedagogia se baseia no pensamento antroposófico de Adolf Steiner e que prima pela realidade espiritualizada que coloca o saber como a própria experiência vivida. Sim, sentia o cordão umbilical invisível me reconectando com a espontaneidade de ser. Fiquei no transe do encantamento, tocada pela simplicidade e beleza dos movimentos e gestos simbólicos, de formas tão cativantes. Confrontei-me com dois aspectos essenciais: a clareza de definição das formas unidas ao teor expressivo e algo mágico que me escapava à compreensão, pois falava de uma realidade não mais acessível ao homem de hoje.


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Mas o que sinalizei de mais relevante no vertiginoso conteúdo arqueológico para o meu resgate de essências e memórias foi que o corpo rupestre engendrava o ser humano com sua pulsação criativa e autorreflexiva, manifestada através da arte. A linguagem dessa comunicação, ao meu ver, independeria de uma mente intelectualizada. O ego espiritualizado, que ali nas pedras dedicou longas horas de concentração, estava expressando sua inteligência intuitiva, e a arte rupestre me parecia exercida no plano que transcende padrões estéticos estabelecidos porque estavam submetidos somente a eles mesmos, ao mostrar no espaço livre da criação as mais delicadas danças que originaram a consciência ali presentificada. A estética que encontrei nas pinturas rupestres me pareceu própria de uma visão clarividente, pois elas representavam, em cenas cotidianas, estados de espíritos harmonizados e de tal forma livres, que conectavam diversos aspectos da arte. Fascinante força humana capaz de descrever o belo da vida. A peculiaridade dos sentimentos demonstrava sensibilidade e domínio de uma técnica própria. Entretanto, tais registros ecoam, até hoje, na aura atemporal da dança. A emoção do encontro com essa origem conduziu o meu olhar para o reconhecimento súbito dos traços simbólicos do gesto primordial: uma pista elucidativa para estudar certa origem da dança. Eu quis devolver-lhe uma nova corporeidade. Meu encantamento foi encontrar essências vitais para expressão do presente. O meu corpo serviu de sujeito e objeto da exploração coreográfica para encorajar questões de identidade e comunicar o ego ancestral do Piauí. Fiz, então, uma arqueologia da expressão. E como é isso? Sendo a criação artística um espaço privilegiado para o autoconhecimento, vale elucidar que grandes inteligências, como Freud, Rudolf Laban, Ted Shawn, Gurdjieff e muitos outros buscadores, foram amantes da arqueologia. Era impossível não assimilar o paradoxo daquele universo de abundância artística, onde a vida das pessoas no entorno do sítio arqueológico refletia uma brutal condição existencial. Das mais diversas perspectivas de observação, o que mais contaminou minha experiência não foram os grafismos como fim, mas como meio de comunicação. Uma comunicação que, mesmo datada de outrora, me falava do hoje e do que pode ser o amanhã. A expressividade era plena de volúpia no melhor sentido do animalesco e do transcendente. Sem tabus, as cenas evocavam êxtase sexual, inseridas em ritos de fertilização, cenas de caça e cerimônias de exaltação coletiva em torno de uma árvore. Animais e antropomorfos dançavam na esfera interativa. Tudo isso era transposto como se o pensar sobre o real fosse a própria magia da criação.


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Ressonâncias do corpo rupestre A herança da memória material intrínseca da cosmologia social da Serra da Capivara expressa-se unificando o homem ao seu meio. Principiando, a arte inaugurava a comunicação de pensamentos, sentimentos e crenças na integração homem e natureza. Sugeria um conceito primordial de arte como exercício de viver dando nascimento à teatralidade. A força e a sensibilidade do gestual dessa pré-história ensinavam-me sobre a possibilidade do viver pleno através do voo dos sentidos e da pureza do instinto. Na entrada do sítio do Baixão da Vaca, observei uma pintura sugestiva, apresentando a estilização de um parto. A figura antropomorfa, com a vagina exposta ao nascimento de uma criança, amparada por três outras figuras, possivelmente auxiliando o nascimento. Nesse mesmo painel, havia uma cena de sexo e uma figura ornamentada com um cocar indígena. Pude compreender a objetividade dos traços como uma evocação livre da sexualidade relacionada ao nascimento, e aquilo pareceu-me não ser acaso da criação, mas experiência refletida ainda imune de tabus e com muita sofisticação. Perplexa, fiquei nesse resgate como caminho para experimentar um estado de esperança. Os meios para reconhecer a leveza e os riscos do que prendeu minha imaginação é que valeram a pena. Os rituais dos primórdios estavam sincronizados com a instintividade da forma de evocação existencial e lúdica, ainda no estado puro da sensitividade. Livres de temor às sensações, esses agrupamentos humanos podiam frutificar a simplicidade através da elaboração coletiva. Só podia imaginar isso porque a arte, como abstração naquele contexto pré-histórico, fazia-me meditar longamente sobre a essencialidade organizacional na estética do corpo rupestre. O movimento dando forma à integração social revela o viver e o comunicar numa existência natural, onde o humano reflete sua igualdade empática ao meio. Avanços da Neurociência nos informam sobre os neurônios espelhos, responsáveis pela capacidade de captarmos e emitirmos facilmente informações daquilo com que nos assemelhamos. Quando nos encontramos em igualdade, a percepção flui. Vivi na Serra da Capivara uma possível equivalência com estados de plenitude, unificação e êxtase criativo. Quando o ser humano abre os braços, abre o coração de imediato. As pinturas rupestres revelam nos cenários um voo simbiótico comum entre humanos, animais e florestas. A dança transparece estados de êxtase no movimento do gesto poeticamente integrado ao todo. Suponho que as pinturas eram uma prática mimética da expressão de aprendizado estético pela percepção imediata da vida ainda sem teorias ou filosofias. Admito, então, que a arte é sempre uma abstração, mas, neste caso,


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servindo de espelho a esse estado de igualdade do vivente, com a profundidade da existência e sobrevivência. O êxtase devia ser temperado com a alegria fundamental da experiência corporificada. O estado extremado daquele intérprete (seria um devoto?) continha, na qualidade da presença, uma ausência. Sem distinção entre teatro e dança, a tensão dramática era o fogo contido no êxtase. Foi isso que mexeu com a minha percepção como observadora da esfera da comunicação ajustada ao indizível. Minha curiosidade por esse imaginário livre dentro da situação enigmática mostrava como o intérprete consegue liberar seu íntimo. Impressionada com a maestria da obra humana deixada pelos ancestrais, constatei que a qualidade estética daquela gestualidade rupestre não me falava de primitivismo, mas sim de algo muito atual e que se atualizava dentro de mim. Poderia ser um Penk ou um Picasso. Essa percepção tornou mais mágica minha experiência. Por isso a Serra da Capivara entrou em mim, podendo ser a projeção da minha busca de inteireza. A expressividade das pinturas me falou de cenários vividos, não como uma manifestação artística apenas de esmero intelectual. Revelou estados de conexão da criação do puro espírito com a vida real. Eu teria como tarefa dar novo significado à estética capivarense. Vivendo num mundo barulhento e carregado de aparências, lutava para não empobrecer o meu encanto. Nutrindo-me da importância dos traços primordiais da dança, teria dificuldade de explicar o que se passava dentro de mim. Eu pressionava no meu ser o impacto para uma transformação. Comecei a imaginar-me uma xamã, ao explorar o domínio do meu corpo para me desprender da vaidade do meu mental colonizado e me nutrir da expressão de liberdade vivida na Serra da Capivara. Através dos vestígios arqueológicos representção da dança, minha experiência tinha algo daquilo que os grandes pensadores falam sobre o transcendental. A mente jorra no plano material o poder de invenção da realidade. Intrigada com tanta beleza, com esse sagrado, muito puro, muito além do que eu podia imaginar, a pesquisa arqueológica me virava pelo avesso. A ternura dominava a dureza das rochas. Com essa impressão, eu podia refletir o triunfo amoroso da figura simbólica do beijo plasmado no Boqueirão da Pedra Furada – um cartão postal da Serra da Capivara – que acorda o homem moderno para a mensagem amorosa dos antepassados. Um singelo retrato do amor na pré-história. O sentimento da origem desperta nossa memória para os primórdios dos afetos humanos e, com essa evidência do amor rupestre, comprova-se que o homem, desde o seu princípio, desejou comunicar de forma objetiva a imagem do seu mundo interior. O material era muito vasto para o estudo do gesto autoexpressivo. Nas


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pinturas rupestres, podemos presenciar o dom divino da comunicação sintonizado com a necessidade intrínseca de explorar a inteligência emocional, nossa parcela transcendente. Como disse Kandinsky: “O artista é a mão que, pelo uso conveniente deste ou daquele traço, coloca a alma humana em vibração.” Então, vi ali a harmonia estampada pela firmeza do gesto eficaz daqueles que seguiam sua necessidade interna. Cada vez mais atenta às pinturas rupestres, ficava mais e mais esquecida da realidade do hoje, entrando num estado de transe. A busca da ancestralidade me levava a meditar sobre o paraíso perdido. Eu escavava a minha própria história e encontrava lembranças da minha infância. Lembrando-me de meus ancestrais, viajando nas memórias, fiz as pazes com a afetividade um pouco esquecida de minhas raízes. A força da ancestralidade permite o voo do encantamento frente ao espelho fragmentado em muitas direções e cria uma teia sem fim. Assim, fui guiada para minha verdadeira face.

Encontros fundamentais Ver a si mesmo é como encontrar uma luz até então não manifestada, mas isto foi um adentrar camadas imaginárias que eu conduzia para a anatomia do solo Capivara. Fui encontrando a dramaturgia dos arquétipos da Alma Inalterável, da Matuta, do Primata, da Gazela, e assim os gestos e signos foram surgindo nos instantes de imanência da pura intuição, acordada pelo contato direto com a energia do sentimento primitivo e que irei aprofundar mais adiante. O meu encontro com Niède Guidon foi rápido, porém profundo. Como todos que passam pela Serra da Capivara, quis ter a honra de conhecer a arqueóloga desbravadora que, desejando-me sucesso, autografou seu lindo livro Peintures préhistoriques du Brésil: l’art rupestre du Piaui, que estudei e guardo com eterna gratidão. Ela se enraizou na mente do povo como a doutora, mãe e poderosa protetora do patrimônio arqueológico. Vi em Niède a própria imagem da labuta. Empoeirada dos pés ao cabelo, ela me falava de sua trajetória e missão. Ela também estava pagando o preço pelo valor de sua existência real. Para quem ama a vida cultural, viver longe do mundo parisiense era uma tristeza. Conviver com toda aquela batalha diária pela paixão científica de validação daquela ancestralidade dava-lhe a razão de viver. Falamos justamente dos nossos destinos paradoxais. Para mim, que amo o sol e a vida na natureza, era um drama estar lá, tendo que voltar para a realidade que optei pela necessidade profissional. Mas estava feliz no resgate de essências e memórias para estrear mais uma coreografia no início de 1997, na Alemanha.


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O intenso cuidado de idealização das trilhas pensadas harmonicamente com a beleza selvagem favoreceu a bailarina viajante a encontrar-se num estado de paz e contemplação, para absorver os registros e a energia da natureza. Parti da Serra da Capivara num estado de graça. Minha existência ganhara um sentido de preenchimento. O sentimento de inferioridade é um entrave interno que o sujeito piauiense normalmente carrega, mas que é possível ser amenizado pelas emoções superiores. Eu pude coletar e integrar tais emoções na minha consciência e retirar dessa etapa da pesquisa o estímulo psíquico fundamental para minha pesquisa de contribuição estética do movimento que aponta para a origem. Era vital para mim, como uma artista nativa do Piauí, formatar uma expressão individual por meio dessa instigante missão cultural. Sendo a necessidade mais profunda do artista compreender os caminhos da sua criação, entendi então o valor dos mitos nas escolhas mágicas do existencial. Como toda experiência que se torna mítica aguça a intuição, nas minhas sensações ficaram registradas informações simbólicas do corpo-gestual rupestre, para devolver, no plano da teatralidade, o que pulsava do momento nas pedras cenográficas da Serra da Capivara.

Regresso ao lar A energia afetiva que percorria todo meu ser levou-me à casa de meus pais e dos meus avós. Durante o retorno, revivi o impulso que me havia feito romper, décadas antes, com o provincianismo de Teresina, minha cidade natal. Novos estímulos para organizar meus sentimentos. Agradecida que estava pela vastidão da Serra da Capivara, o impacto da origem não só mexeu com minha ilusão identitária brasileira, como também com uma outra camada ainda mais efetiva e incompreensível naquele momento. Deixei que tudo me penetrasse e afetasse o meu destino. Novamente no berço da família, minha identidade ficava confusa ao me dar conta dos trajetos da viajante. Questionar o que se perdeu em minha essência e minhas memórias serviria para criação do novo solo. Porque a vida é movimento e pelo movimento nascem nossos trajetos e projetos. E por meio da dança, vou descobrindo um pouco mais quem sou. Esbarrando com meus limites e reconhecendo que sou capaz de lidar com a minha coragem, exploro novas ousadias que aprofundam alguém construído com tantos traços. Traços contrastantes oriundos das impressões multifacetadas de mundos para os quais migrei. Como devo transparecer hoje aos olhos dos que me conheceram antes? E dos outros, a quem apresento-me no agora? Ao encontrar-me com o olhar do outro, via em mim um ser em meta-


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morfoses contínuas. Ao fitar minha mãe e meu pai, por exemplo, enxergava a dificuldade deles em trazer-me para a memória do momento. O esforço em dissolver uma casca que se forma pela distância e cria aquele estado de estranheza. Seria eu uma estranha na minha própria casa? Só o amor recompõe o elo. Minha mãe, com sua origem rural, pegava-me pelo sensorial, para saborear o que ela conhecia dos meus êxtases na infância: as frutas. A manga, o sapoti, o mamão, a goiaba, a ata (também conhecida como graviola), o abacaxi, a melancia. Reencontrar essa memória sensorial provocava rapidamente um estado de plenitude. Já o papai “catucava” mais pelo sentimento e o gosto pela reflexão. Pergunta-me bastante sobre minhas experiências. Não havia mais necessidade de rebeldia e sim de aconchego. Não sei como podemos nos ver a nós mesmos. Mas através dos reencontros, podia capturar das relações o que permanecia intacto em mim e nos outros. Qual seria a enigmática alquimia que brotava dos conflitos emaranhados com a minha essência e que nutre a necessidade de expressão? Parei para refletir isso bem mais adiante, em 2003, quando fui convidada a participar do livro produzido pelo muito bem intencionado professor Monteiro Santana, intitulado Piauienses em um Mundo sem Fronteiras. Dei ao meu capítulo no livro o título Corpo do Mundo no País do meu Imaginário. Consegui escrever um ensaio que me encorajou a me desnudar nos nove capítulos deste livro que agora você tem nas mãos, as raízes e caminhos improváveis na poética do movimento, o movimento que, como a própria vida, é cíclico desde os fios do DNA. O corpo é o lugar onde nossa mais profunda verdade é vivida e compartilhada. Todo viajante sai da identidade territorial, vai encontrando no corpo o mais concreto habitat, pois, com a sola do pé, caminha pelo chão e escreve o livro mais real de sua existência. Com toda minha presença, preciso libertar-me do desejo de participar com minha história na história do meu tempo. Um tempo que transita da Era de Peixes para a Era de Aquário. Portanto, no trajeto das trevas para luz, quero que a palavra luz receba o sentido bem amplo. Tanto a luz que mexe na nossa inteligência libertadora como a luz do sol, que não importa onde eu esteja, lembra-me do calor do Piauí. Conto com a luz do meu eu infinito, acima da minha mente crítica, para não ter receios da descrença ou desaprovação do leitor sobre a força que me guia para o verdadeiro retorno. Então, escrevendo, tateando ainda no escuro, vou despindo-me diante das memórias, aprendendo a enxergar a mim mesma. Exercito uma nova possibilidade de comunicar o que encontrei de importante das experiências entre os esforços artísticos da profissão e a própria vida. Através da linguagem do próprio corpo que se transforma nas diversas faces do movimento, a dançarina viajante terminará por entender seu destino.


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Vestígios da raiz Falar de si é mesmo uma das doenças humanas. Então, vamos tentar curar essa intrepidez da alma carente para que se torne, pelo menos, um bom passatempo para o espírito do leitor. Espero que minhas memórias possam ser interessantes o suficiente para servir de dínamo na memória do outro. Como a efemeridade da vida é algo angustiante, aproveito a alegria excêntrica da comunicação como exercício para a nudez do espírito. Na infância e adolescência, vivenciei a dança da forma mais espontânea, vivi o teatro como algo proibido, fruí a vida com o espírito travesso, inquieto e desapercebido. Adorava participar das rodas dos adultos. Minhas fantasias desaguaram na energia criativa com o único alvo: a poética do movimento e os extremos da fisicalidade. Desde as primeiras vivências, por volta dos sete anos, encontrei no palco o espaço sagrado onde me vi lutando contra tabus. Muito cedo a arte tirou-me da superfície para tocar na profundidade das coisas. E pegou-me por completo. As experiências entre vida e arte foram ativando minhas transformações e os rumos da minha vida, da mesma forma que os aprendizados da vida serviram de inspiração para gerar criatividade nos percalços da profissão. Tudo parece ter um sentido de reciprocidade. E o mundo responde na medida em que nos expomos às provas. Nasci em Teresina, nas contradições gigantes e próprias do Brasil, nas confusões de sentimentos que marcam em nossa identidade brasileira um patriotismo caótico. A coisa fica mais tensa quando a identidade aponta para o Piauí, sem dúvida a minha referência mais forte.


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Meus avós maternos João de Freitas e Maroca Freitas, Fazenda Vitória de Baixo, Batalha, PI, 1956. Foto: Messias Freitas.

Com meu pai Geraldo de Carvalho Melo, Fazenda Vitória de Baixo, em 1958. Foto: acervo família


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Pensamos que, saindo de uma sociedade preconceituosa, livramo-nos dos preconceitos. Não. Eles ficam cravados em nosso subconsciente e manifestam-se de forma espantosa. Se queremos nos livrar deles, é preciso nos revermos, amarmos e honrarmos os vestígios da raiz, agradecendo pelo que herdamos de bom ou de ruim. E isso exige sinceridade consigo mesmo. Essa sinceridade é que pode nos ajudar a seguir o fluxo do destino. Consequentemente, iremos desafiar o destino do coletivo, que é suscetível às mudanças causadas pelas gerações. Da origem nordestina, evoco o meu retrato no quadro dessa gente simples do sertão. Meus avós maternos eram filhos de descendentes portugueses que vieram esbarrar nas margens do rio Longá, no norte do Piauí. Quando chegavam as férias, eu queria ir logo para fazenda Vitória, às margens desse rio. E a viagem para a outra margem do Longá só podia ser feita de canoa. Escondidos nessa paisagem do agreste, meus avós viveram e formaram uma grande família. Junto com os primos, era muita brincadeira, briga e afeição. Perdíamo-nos mato adentro. Nos riachos, deixava-me levar pelas correnteza das águas, feliz da vida. Conheci o paraíso nestes momentos de integração das minhas emoções com a minha fisicalidade. Amava sentir meu corpo transpirar com o intenso calor do lugar e de minha irrequieta natureza. Como a minha avó Maroca – Maria do Carmo Fortes Freitas –, eu contrastava com a indolência da nossa caricatura cultural. Meu avô, João de Freitas, foi um fazendeiro de especial senso empreendedor, querido na sociedade rural pela honestidade e tolerância. Eu costumava dormir no quarto entre os dois. Ele era mais calado. Talvez para permitir que ela pudesse falar à vontade. As histórias misteriosas que minha avó trazia eram longas e me ninavam. Aprendi com meus avós e meus pais a lidar com a pobreza e a riqueza, com o iletrado e o doutor, sem distinção. Lembrar da vovó Maroca é sempre lembrar de alguém ‘de verdade’. Através dela, minha forma de me relacionar com as pessoas e com os eventos da vida foi vividamente enriquecida. Ela não tinha tabus, mas era profundamente religiosa. Ser uma mulher do campo nunca a intimidou. Ela era um exemplo de firmeza para todos ao encarar as tarefas do dia a dia como um ritual. Agradecida a Deus, confiava a Ele o merecimento de tudo o que possuía. Educava todos os filhos na lei da verdade e da união. No meu prenome, Lina do Carmo, carrego a mistura do nome das minhas duas avós. Da vovó Maroca, herdei gosto pela poesia assim como o biótipo miúdo, saltitante e desinibido. Ela recitava poemas eloquentes de Gonçalves Dias e outros que nasciam dela mesma. Era puro lirismo quando ela recitava. Seu olhar mirava o infinito. Todos a admiravam, pois sua presença tinha a des-


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treza inata. Nobre e rústica, sua sabedoria serviu de fundamento para o meu intelecto. Segundo ela, com chá de boldo podia-se curar tudo, porque no estômago escondem-se as mazelas da mente. Falava-me das almas, dos mitos e das lendas. Suas palavras eram sempre mensagens do seu pensar autêntico. Poeta de improviso, ela repetia para a memória de todos: “Não corro com quem me busca. Não adoro quem me deixa. Quem me busca me quer bem. Quem foge de mim tem queixa.” Ao chegar à fazenda, corria para ver a vovó no seu riacho preferido, o Parede Velha, onde religiosamente ela se banhava às onze da manhã. Despida, sentada sob as pedras quentes do lajeiro, lavava os longos cabelos brancos prateados no ritmo do movimento, pegando a água com a cuia. Uma vez, ao me ver, disse que eu parecia mais velha que minha mãe. O que houve? Eu disse-lhe que estava muito infeliz e que queria ser mesmo louca. Ela retrucou dizendo: “Com quinze tu quer ser louca. E com trinta, já pensou no que vai querer ser?” Minha avó falava sem rodeios com todo mundo. Havia um ritual na hora das longas refeições. As mulheres nunca se sentavam na sala de jantar junto com os homens. Serviam-se os homens: meu avô, tios e compadres da redondeza. As mulheres cuidavam para que a mesa fosse abastecida de tudo. Minha avó tinha maneiras indígenas que me fascinavam. Sentava-se de cócoras numa esteira de palha e ali servia, preenchendo a pilha de pratos com as delícias vindas do fogão à lenha. Depois, servia-se o prato de cada uma das crianças e mulheres – filhas e cunhadas – assim como os dos vaqueiros e de todos aqueles que chegassem com fome, vindo justamente para fazer uma boquinha. Era uma pilha de pratos que ela ia servindo e dizendo: “Mata quem está te matando.” A fome é um fato na pobreza daquela região, mas na fazenda conheci a fartura e a generosidade espiritualizada pela consciência solidária, inerente à minha origem. A fazenda Vitória tinha diversos riachos para os banhos e, quando chegavam as chuvas, as correntezas enchiam os recantos maravilhosos, contornados por lajeiros, formando piscinas naturais. O recanto sagrado para o banho no esconderijo das mulheres era o Mocó. Ali, sentia-me protegida. Amava caminhar pela mata para experimentar o perigo das correntezas. Multiplicavam-se as possibilidades de escolha que cada uma de nós fazia para ficarmos possuídas no encanto da natureza. O sol equatorial tinindo de quente nos deixava moreninhas. Diziam que tinha jiboia e outras cobras soltas no mato e nas águas. Isso só aumentava o teor da aventura divertida naquela infância selvagem. O tempo não existia. Minha mãe e minhas tias ficavam em pânico sem saber do nosso paradeiro. Chegávamos tarde para o horário religioso do almoço, até que um dia ouvi a vovó dizer para minha mãe: “A Lina do Carmo é como um pássaro e vai acabar voando longe. Você não vai segurar essa menina.” Acho que ela lia o destino.


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As pessoas notáveis, na visão de Osho, são aquelas que conseguem ser o que são. Adorava os rituais da minha avó. No final da tarde, levar as galinhas para o poleiro. Aí já era hora de começar a acender as lamparinas. Depois vinha a coalhada com farinha. Terminávamos a noite na calçada da casa, mirando a paisagem do carnaubal até as estrelas chegarem. O som do vento morno movimentando as figueiras frondosas e a diversidade de canto dos pássaros era uma sinfonia. Foi este o quadro vivo da minha ancestralidade. Nos quartos de dormir só havia as redes onde todos se embalavam e gargalhavam até adormecer. Muito cedo, antes de o sol dizer bom dia, minha avó e o povo da fazenda já estavam de pé. Os mais espertos acordavam para tirar o leite da vaca. Eu amava aquele cheiro do dia surgindo sem pressa. Vovó Maroca viveu até os 102 anos. Por sorte, eu estava em Teresina e pude acompanhar seu corpo de volta às entranhas da sua terra. Vi que morremos da forma que vivemos. No caso dela, cercada por aquela multidão que ela cuidou ao longo dos anos. Renasci das memórias que desfrutei de uma infância solta, enraizada nos parâmetros éticos espirituais junto à natureza. Percebo como tudo se estampa na minha fisicalidade. Cresci dependente desse universo arcaico. Já meu avô, João de Freitas Machado, admirava o conhecimento. Fez muito esforço para que todos os onze filhos estudassem. Com o esforço de sua existência, ele quis mudar a predestinação do lugar. Naquela época, o estudo e o conhecimento eram um privilégio de poucos no Brasil. Contam que ele recebia umas revistas que o instruíam a plantar, de acordo com o calendário maia, em sintonia com as fases da lua. Diziam também que meu avô pediu a minha avó em casamento sem qualquer namoro anterior: com o consentimento do pai dela, ela aceitou. Eu via nisso um acaso extraordinário. Era normal na realidade rural do Brasil que crianças pobres fossem criadas pelos mais abastados. Muitas delas foram entregues pelos pais aos cuidados da vovó e cresceram na fazenda como parte da família, tornando-se moradores do lugar. São os que mais sabem falar da natureza do lugar. O Xipé, por exemplo, marcou minha infância. Aos seis anos fora entregue à vovó. Diziam que ele era meio doido e surdo. Na verdade, a vovó dizia que ele era esperto; escutava só quando queria. Ele tinha um jeito de falar meio anasalado, especialmente engraçado. O Xavier ficou na minha memória como a figura do vaqueiro valente, sempre contando coisas extraordinárias, com uma cativante forma de se expressar. Minha mãe, Maria do Carmo Freitas de Carvalho Melo, fisicamente bastante parecida com a vovó Maroca, herdou traços expressivos. Ela formou-se em Geografia e foi funcionária pública na área de Educação. Dotada de dinamismo, talento dramático e humor, foi quem muito cedo me falou de Sócrates e Platão. Queria a modernidade, mas os padrões da sociedade da sua


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época apertaram-lhe o cinto. Ela ficou como a geração do meio, que nutriu em mim o instinto para a contradição. Sendo eu uma criança incomum, foi difícil para ela conviver com meus voos, pois eu saía dos padrões. O que não entendemos normalmente reprimimos. Precisei de muito tempo para me entender e para poder entender o mundo das mulheres da geração da mamãe em pleno sertão. A limitação da mulher era decidida desde o nascimento. E eu estava decidida a mudar isso. Conheci meus avós paternos por meio de fotos antigas. Quando meu pai falava de meu avó, José Jarém de Carvalho, e minha avó, Lina Rosa de Carvalho Melo, eu percebia um sentimento de adoração. Do lado paterno, carrego os conflitos de uma oligarquia dos confins do sertão, mais precisamente a cidade de Batalha, onde nasceu meu pai, Geraldo de Carvalho Melo, em um ambiente católico, rico e patriarcal. Meu pai formou-se em Farmácia, mas logo perdeu o encanto pela profissão. Com a invasão dos laboratórios estrangeiros, a sociedade abandou os remédios naturais pelas novidades importadas. Ele não quis tornar-se um vendedor de remédios e acabou trabalhando como servidor público, na área da Saúde, até aposentar-se com um cargo de chefia na Fundação Nacional de Saúde. Devido à sua atuação na campanha de erradicação da malária no estado, chegou a receber uma medalha de reconhecimento profissional do Ministério da Saúde. Era em um velho jipe que ele enfrentava as piores estradas para cumprir sua missão. Voltava das viagens contando experiências difíceis. Falava como os indígenas eram avessos às vacinas. Lamentava o descaso com a memória da cultura medicinal dos nativos. Ele dizia sempre que o homem teria que optar pela ecologia ou pela industrialização. E tinha razão quando dizia que a tal evolução que se alastra pelo mundo vende muitas ilusões. Sua força estava na fé. Sua nobreza era a sua sensibilidade e doçura. Sem vaidade, ele tinha os sentidos aguçados para a espiritualidade. Mesmo limitada pelo meio burguês em que nasceu, a vovó Lina Rosa teve a coragem de pular a janela e fugir com o vovô Jarém, indo contra os dogmas da família e a despeito do poder o seu irmão Machado Melo, chefe político da cidade, mais tarde meu padrinho de batismo. Vovô Jarém talvez não fosse o parceiro ideal, era um alfaiate que sabia tocar saxofone – sua paixão – não tinha uma “profissão de respeito”. Mas enfim, era assim que as mulheres antigamente rompiam os tabus. Na hereditariedade que define nossa essência, gostando ou não, é onde podemos estudar nossa vida e entender nossa história. Também tive que fugir para ir ao encontro dos meus sonhos e também acabei casando-me com um músico contra a vontade dos meus pais. E os ciclos atávicos se repetem para que possamos reconhecer os vórtices evolutivos, quando uma geração vai libertando a outra.


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Infância Em 28 de novembro de 1957, na rua Tiradentes, perto da pitoresca praça do Liceu, em Teresina, depois dos meus dois irmãos, João Henrique e José Paulo, veio ao mundo a menina tão esperada. Nascia a criatura irrequieta e pouco domável que sou eu. Detestava ficar no colo e não tolerava os lacinhos que pregavam na minha cabeça pelada. Também não gostava dos brinquinhos e vestidinhos bem passados na goma, que eu rapidamente lambuzava para a irritação da minha mãe. Era natural, pois as mães parecem brincar de boneca com as filhas pequeninas. Mas eu não me adequava ao papel. Meu instinto pelo movimento – desde sempre meu maior prazer – me levou a caminhar aos noves meses. Em 1959, mudamos para o município de Parnaíba. Foi onde conheci o mar e comecei a me dar conta do mundo, no grande casarão da rua Riachuelo, onde podia correr sem parar o dia todo. Preferia ficar suja e suada. Adorava acompanhar as aventuras dos meus irmãos, subir no telhado da casa. A única coisa que me prendia quieta por longo tempo era minha obsessão em transformar caroços de mangas em bonecos, personagens fantásticos. Meu irmão João, muito danado, divertia-se em jogar todos eles em cima do telhado da casa. Eu caia em prantos estridentes e estrebuchava pelo chão. Minha mãe me socorria com o copo de suco de maracujá na mão. Ao nascer a minha irmã Sandra, mimosa como uma boneca, ela logo tomou o meu lugar. Libertei-me um pouco da mamãe e sua mania de lacinhos. Nessa época, era o máximo vestir as filhas de modo igual – par de jarros. Eu odiava isso, queria ser eu mesma. Driblei tradições até à exaustão. Detestava o abismo entre o universo masculino e feminino. Ser feminina parecia ser uma caricatura, ser masculino outro estereótipo. Ainda bem que os tempos mudaram, permitindo faces mais despidas dos padrões estigmatizados nas aparências da vida social. Minha noção de cidade era a vida das praças com coretos e banda de música, pipoca, algodão doce e rolete de cana. Melhor ainda eram as festas de São João, o Bumba-meu-Boi e o Reisado, que animam minhas memórias míticas até hoje. O mundo para mim era aquela euforia sem maldade. O ambiente de casa sempre foi monótono, me evadia pelas vizinhanças. Brincava de jogar pedrinha e pular corda, esconde-esconde, ioiô. O bambolê era minha predileção. Era tudo bem diferente. Nada de shopping centers, brinquedos eletrônicos, televisão, conexão, hipnose virtual. A infância era livre da comercialização e de modismos. Havia as primas, bastante distintas de mim: Cláudia, um estilo donzela, e Ana Lúcia, um tipo mais agreste. Ambas engraçadas. Com elas


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passei dias felizes. Nossa distração era vadiar pelo mato e catar guabirabas, pitombas, mangas e seriguelas. Experiências sensoriais que impregnaram minha relação lúdica com o mundo. São também os choques das experiências que ultrapassam a compreensão da criança que determinarão o sentido mais complexo e obscuro nas suas confrontações futuras. A minha afetividade excessiva me fez causar acidentes dolorosos com Sandra. Minha mãe a protegia do meu apetite maternal e, talvez por isso, eu divertia-me com meus irmãos. Um dia ouvi a Sandra chorando, deitada na rede. Fui tentar mudar a sua fralda. Metida a ser mãe, faltou-me precisão ao tentar unir as pontas da fralda. Perfurei a barriga da irmã com o alfinete. Ouvindo os gritos, minha mãe a socorreu e eu estremeci de culpa. Mas isso não me impediu de tentar outras vezes fazer o papel da mãe. Certa vez, quando a ouvi chorar, subi nas grades do berço na intenção de tirá-la de lá, imaginando que tinha condições para tal façanha. O berço de rodinhas virou e nós caímos. Outro escândalo. Foi melhor, então, me ocupar com outras atividades. Escolhida para participar dos desfiles de moda infantil nas recreações do SESC, a passarela foi meu primeiro palco. Em 1963, outra mudança. Desta vez para São Luís, no Maranhão. Plantava-me na janela do apartamento na Vila Iná Rego. De lá, podia admirar o quebra-mar e o novo horizonte me agradava. A menina desenquadrada tinha o dom de fazer novas amizades. Uma senhora da vizinhança ensinou-me a fazer croché e isso foi um ganho para minha concentração. Através da coordenação dos meus dedos, surgiam as formas. O ritmo da contagem matemática me divertia e me estruturava. Outra vizinha, dona Maria Luzia, criava espetáculos em seu pequeno apartamento. E pegou-me para suas experiências criativas: cantar e dançar. Fui descobrindo o gosto pela teatralidade cantando algo hilário: “Quem quer casar com a dona baratinha, que tem fitas nos cabelos e dinheiro na caixinha? Quem com ela se casar terá doces todo dia, no almoço e no jantar. Passem, passem cavalheiros, passem todos sem parar. O mais belo com certeza minha mão irá ganhar!” E assim fui seguindo... Minha sorte de estudar no Colégio Conceição de Maria levou-me ao palco do Teatro Arthur Azevedo. Coisas do destino. Em 1966, foram selecionados alunos para o 1° Concurso de Poesia Falada. Participei, sendo premiada com Menção Honrosa, recitando Lamentações, de Menotti Del Picchia, e A Cavalhada, de Olavo Bilac, que trago na ponta da língua até hoje. Foi o início das emoções destinadas para a gesticulação do meu pequeno corpo falante. Nessa ocasião, fui capturada pelos jurados Américo Azevedo Neto, que na época dirigia o grupo de teatro Laborarte e o Teatro Arthur Azevedo, e o professor de balé Reinaldo Faray. Eles possibilitaram o início da minha formação em teatro e dança. Fui convidada para integrar o Grupo Laborarte.


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Senti-me imersa na inventividade da época, uma criança em meio aos outros intérpretes jovens e adultos. Com o Américo, aprendi a pisar firme no palco. Meu primeiro contato com a criação teatral foi no recital Maleime, Negro, Maleime. Fui designada a descer de uma alta escadaria situada no centro do palco. Nos ensaios, meu corpo estremecia por inteiro. Logo percebi a importância do domínio da emoção para a corporeidade. Levaram-me para conhecer o rudimento do teatro, uma altura vertiginosa de onde eu começava a descida, recitando a longa poesia de Bandeira Tribuzi. E eu mal sabia que me exercitava com o poeta introdutor do modernismo no Maranhão. E, como ser artista não é uma escolha e sim um desígnio, lá fui eu vencendo o medo com uma responsabilidade já profissional. Até chegar na boca de cena, vivi uma espécie de transfiguração. Quando dei de cara com o público, meu coração quase saltou pela boca. Na primeira fila, estavam os colegas tietes que viram a cor da minha calcinha e sopraram que era amarela. Meninos travessos, quase me fizeram esquecer o texto. O teatro e as aulas de balé com Reinaldo Faray eram feitos às escondidas porque meus pais não aceitavam muito bem essa história de ser artista. Entre a admiração e a proibição, nasceu o meu principal conflito. Por que aquilo que existe não deve existir? Por que o que é não pode ser? Não cabe mais sofrer por esta dicotomia, mas vale recuperar tais memórias para melhor compreender a fúria das minhas atitudes para me tornar uma artista de verdade. Localizada em frente ao mar, a praça Gonçalves Dias tinha um coreto e alguns recantos onde eu me escondia do mundo. Era como um palco secreto que me absorvia interiormente com meus sonhos. Foi na solidão dessa fase inicial que amadureci rapidamente a noção de que o teatro seria o mundo que exerceria em mim a mais forte sedução. Desde a infância, minha inclinação para o teatro era evidente. Embarquei para sempre no encantamento da vida artística. Desde cedo, encontrei no palco o espaço sagrado que me tirou da superfície para tocar na profundidade das coisas, influindo na construção da minha personalidade. Muito precoce, me vi lutando contra limites do meu tempo. Vivi de forma espontânea as possibilidades que me surgiam, e acho que eu as perseguia também. Os momentos felizes de realização que experimentei na infância deram-me a clareza do mundo ao qual eu pertenceria. O Arthur Azevedo foi o primeiro palco das minhas transformações. Recordo-me de momentos solitários, decorando meu texto no elegante saguão do teatro, engajada na função de atriz. É mágico recordar. Essas lembranças me confirmam a inconfundível força desse princípio. Tais vivências artísticas da infância encontram um paralelo de identificação com minha avó materna. Não só uma figura mitológica no centro do meu afeto, como também de toda a enorme família da fazenda Vitória. Aquele


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pedaço de chão onde os momentos da minha infância lá vividos hoje são essências de memórias, raízes poderosas que me orientam. Lá, na natureza selvagem e árida, reside minha experiência da liberdade. Amava viver solta pelo mato, envolver-me na sensualidade gerada nesse estado de esquecimento – onde a vida não necessitava de estímulos artificiais, porque tudo vibrava com os pássaros, os animais, o sol, a terra, a vegetação, as nuvens, densas como flocos de algodão, contrastando com o azul celeste. Eu sentia a plenitude. Enquanto tudo isso gerava a paisagem-paraíso de minhas memórias, eu estava longe de imaginar meu futuro tão distante, no oposto cinza frio de outro continente. Agarrando-me a essas sensações, fui tentando entender-me com o efeito do tempo e de tantas mudanças. Formidável essa sorte para mudanças. Elas sempre me fascinaram e eu nunca as questionava. Pareciam absolutamente compatíveis com minhas necessidades. Como minha avó, retirei mensagens, filosofia, poesia e regras de vida. Quando medito sobre esse espaço de onde vim, me percebo transportada pela vida, indo ao encontro do destino. Se o destino tem pernas, o meu é um grande atleta. Na infância está a memória arcaica, nossa tatuagem profunda. Já nessa etapa formativa, misturavam-se conceitos eruditos e populares. Cresci impregnada pelo universo lúdico das tradições culturais do Nordeste, onde a dança foi a minha primeira experiência com o extraordinário. Vale a pena elucidar que a influência das forças da natureza interagiu para formar minhas pulsações rítmicas através do movimento orgânico. Os conteúdos e formas que dão origem ao gestual orgânico têm origem na infância; e as experiências sensoriais são as que mais impregnam nossa relação lúdica com o mundo, pois tornam-se uma fonte de matrizes corpóreas. Em 1970, papai foi transferido para o Piauí. Foi um corte seco no início da minha experiência artística, no início da adolescência. Justamente nessa fase da vida é que precisamos adquirir confiança na intuição. Por meio dessa conexão, surgem os primeiros insights sobre o nosso destino. No Piauí, sem o meu mundo do teatro, as amigas, as primeiras paqueras. O garoto tímido de olhos azuis que morava perto de minha casa em São Luís foi meu preferido entre os que me rodeavam naquela tertúlia que se formava no Clube do Igara. Quando ele me pediu para dançar, na vitrola tocava John Lennon: “Imagine all the people, living for today”.


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Descobrindo o palco no desfile de moda do SESC de Parnaíba, PI, 1965. Foto: acervo família.

A menina adolescente Com essa ruptura, retornei para onde nasci. Papai comprou um apartamento em um bairro novo de Teresina chamado Piçarra. Os prédios só tinham três andares e eram rodeados por terrenos baldios e pequenas casinhas onde morava gente simples, inclusive nossa lavadeira, uma daquelas figuras folclóricas das margens do rio Poty. O marido traficava maconha para a garotada da cidade. Na minha adolescência, costumava visitar o quintal dela, achando fantástica a sua façanha: ela fritava torresmo pra disfarçar o cheiro da maconha. Um dia, a polícia baixou e levou o marido em cana. Ela foi chorar na delegacia, levando consigo uma penca de crianças esfomeadas. Forjou uma cena de compaixão, até que mandaram o marido de volta pra casa. As histórias heroicas dessa lavadeira tonificaram na minha adolescência as questões da dualidade entre o bem e o mal. Aos sábados à noite, ouvia os tambores das giras de umbanda soarem perto da minha casa. Morria de curiosidade, ficava plantada na janela, atraída pelo ritmo e pelo que podia imaginar sobre danças e incorporações de entidades de outro mundo. Nessa dualidade religiosa entre o catolicismo da minha família e os rituais afro-brasileiros, eu mirava o céu repleto de estrelas e fixava sempre um mesmo ponto, algo hipnótico, que eu não tinha a capacidade de entender, mas me entregava nessa conexão cósmica com as estrelas. Debruçada na janela, minha irmã dormia, mas eu ficava lá, olhando Vênus num estado sonâmbulo. Já não havia mais a excitação da infância, dos banhos da casa da vovó com minhas primas. Surgiram outras experiências. No Colégio São Francisco de Assis, conheci Eleonora Paiva, uma grande artista com quem dividi minha adolescência e meus sonhos conflituosos. Ela ajudou na minha adaptação à nova sociedade e, com isso, tive coragem de ir em busca de outras identifica-


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ções. Vê-la dançar jazz me fascinava. Graças à sua personalidade extrovertida, pude também expandir a minha. Foi mais prazeroso infringir os limites daquela época ao lado dela. Participamos juntas do Projeto Piauí, quando conheci pessoas exóticas do Rio de Janeiro que vieram inovar a mentalidade de Teresina. A graciosa Naire, filha do maestro Reginaldo Carvalho, era minha vizinha e me levou para o grupo de canto coral do seu pai. O diretor Murilo Menezes trouxe-me de volta ao teatro, embora sem o mesmo encanto da infância maranhense. Explodia uma adolescente complicada, e como toda adolescente, revoltada, meio infeliz. A vida e o teatro se confundiam na minha tresloucada juventude. Minha primeira calça jeans boca de sino foi pintada à mão pelo nosso artista do humor sangrento, Arnaldo Albuquerque, um símbolo de provocação: um palmo de barriga de fora, óculos redondos, como os de John Lennon, pés no chinelo de couro cru e, ainda por cima, um crucifixo – maior que o da Madonna. Eu estava em plena mutação, vivendo influências marcantes. As identificações que me ajudaram a atravessar as primeiras escolhas. A televisão, na época ainda em preto e branco, pouco me absorvia. Preferia a agitação vivida. Nos meus cadernos, colava fotos da atriz Leila Diniz, meu primeiro ídolo. Uma vez envolvida com o mundo da arte, assumi muito cedo a escolha pelos grandes desafios. E, provavelmente, contrariei os planos dos meus pais. Optei pela descontração do jeans dentro dos movimentos pela modernidade, exercitando o intelecto com a turma dos artistas malucos, os outsiders, a revista Nave Louca e a poesia de Torquato Neto. O ponto quente era a Boate Beira Rio, mas preferia as ofertas underground, filosofando pelos botecos. Esses registros transculturais foram portadores do perfil dos meus quinze anos, quando minha avó me disse: “As pessoas felizes não dão trabalho ao mundo, seja feliz.” Tornei-me um problema dentro de casa. Ai de mim se não fosse o forró, o twist e a minissaia da Wanderléa, os Beatles, os Rolling Stones e o Pink Floyd. Nessa atmosfera hippie, tempo da Ditadura e da Tropicália, participei da geração piauiense caminhando contra o vento, com uma visão romântica da liberdade. Estava conectada com as transformações do mundo, mesmo que o meu mundo fosse, naquela época, aquele sol ardente, derretendo-se entre as nuvens densas do céu azul, para onde eu lançava minhas tramas. Meu primeiro vislumbre com a pré-história foi na adolescência, durante as viagens ao Parque Nacional de Sete Cidades, um lugar enigmático pelas formações rochosas e os registros rupestres, diferentes da Serra da Capivara. O que me impressionava neles era o que eles tinham de indecifrável. Fizemos um piquenique perto de uma cachoeira, aquela aventura adolescente de vencer limites enfrentando experiências mágicas. Nonatinho Me-


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deiros, filho do diretor do parque, inventou de dormir lá. Tivemos de preparar uma fogueira ao cair da noite. O frio subia pela queda d’agua e todos nós acovardamos diante da escuridão. Alguns resolveram retornar ao abrigo, mas eu, claro que fiquei. Não perderia o nascer do sol naquele lugar. Nem se pensava em sexo e sim em assar um frango para aliviar a fome. Nossas gargalhadas ecoavam na natureza selvagem. A liberdade de existir é a própria magia. Trago na memória relatos da minha ancestralidade piauiense, junto aos mitos dos camponeses e suas estórias transcendentais, de aparição de almas e extraterrestres. Lembrar quão privilegiada foi a minha juventude no Piauí é como desenrolar a película de um filme extravagante e surreal, onde vou encontrando o fio condutor dos cenários de aventuras vividas dos traços essenciais para recordar-me de mim mesma. Existia naquela época um tipo convivência social nos retiros de jovens organizados pelo padre Luciano, como o espaço para animar a restrita vida de Teresina. Foi quando vivi um contágio espiritual aprendendo a cantar a oração de São Francisco de Assis. Eu chegava a chorar de emoção! Minha amiga Ana Luiza Lobo dizia que eu tinha tendência para o exagero dramático. Nas experiências da juventude dita transviada, os laços de amizade formaram a primeira base do meu entendimento da vida. Sou orgulhosa dessa geração que rompeu muitos limites que a Teresina de hoje desconhece. Os estreitos padrões sociais marcaram os conflitos da minha infância e juventude. Na família, cruzaram-se os Melos com os Freitas. Minha tia-madrinha, Dedila, irmã mais velha de minha mãe, era respeitada por todos, não por ser a primeira dama da pitoresca cidade de Batalha, mas por sua bondade desmedida para com os necessitados. Como a maioria das mulheres, ela fumava cigarro escondido do tio Machado, tio do meu pai. Ele foi chefe político de Batalha durante quarenta anos. Outras mulheres da família, inclusive minha mãe, faziam o mesmo. Os medos e submissões eram inexplicáveis. Por mero acaso, um dia rompi com este temor atávico ao tio Machado. Atravessando a praça Saraiva às sete e meia da manhã, dei de cara com ele. Eu estava fumando um cigarro no instante em que o vi. Ele já havia me visto. Tentei esconder o cigarro com aquele gesto automático da repressão, mas era tarde demais. Meu olhar já havia cruzado com aquele seu sorriso carismático. Eu me vi ali meio embaraçada, mas permaneci diante de mim mesma, pedi-lhe a bênção, como de praxe e ele disse: “Deus lhe abençoe”, fazendo de conta que não havia visto nada. Contei isso à minha mãe para lhe dizer que a opressão é apenas um fantasma. “Lembre-se de que você veio aqui porque você entendeu a necessidade de lutar contra si mesmo – apenas contra si mesmo. Então, agradeça a quem oferece a oportunidade.” (Aforismo de Gurdjieff, 1923).


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Aos meus 15 anos, Teresina, PI, 1972. Foto: acervo famĂ­lia.


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A fuga O Piauí da minha época tinha pouquíssimas opções para formação universitária. Os que tinham condições iam estudar fora. Meu pai e minha mãe eram assalariados, privavam-se de luxos para oferecer aos filhos as melhores oportunidades. Minha opção pelo teatro estava fora de questão. Meu irmão Zé Paulo foi o primeiro a partir para estudar engenharia elétrica em São Paulo, abandonando seu sonho de ser poeta e dizendo que a maioria dos poetas vive “na merda”. Com ele, refleti os versos da canção de Geraldo Vandré : “Vem, vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Eu lia os livros proibidos pela Ditadura, entre os quais, os de Castanheda, sobre experiências alucinógenas, e Siddharta, de Hermann Hesse. Para me afastar da obsessão pelo teatro, meus pais me mandaram estudar em Fortaleza. A mudança foi uma opção intermediária para os meus sonhos. Eu ainda era menor de idade. Com 17 anos, fui aceita por uma exceção no semi-internato do Colégio Cristus. A missa dos domingos era obrigatória e eu nunca estava lá. Nesse período, esbarrei com novas portas para o mundo do teatro, aproveitando o impulso da minha amiga atriz, Tica Fernandes. Algo inédito foi participar das oficinas de artes cênicas dirigidas por professores da Universidade de São Paulo, no Teatro José de Alencar. Pela primeira vez ouvi falar do teatrólogo russo Constantin Stanislavski e o método de Eugênio Kusnet. Natural da Ucrânia, Kusnet instalou-se em São Paulo. A partir de influências diretas do teatro de Stanislavski, construiu seu método próprio. Os exercícios de imaginação cutucavam na riqueza do inconsciente. Lembro bem do exercício de ficar mirando um barco no oceano longínquo e, em seguida, pela força ativa da imaginação, visualizar alguém que amamos muito naquele barco que vai afundando. A força do imaginário muda incrivelmente o estado interior e gera tensões musculares, muda a presença e altera de imediato a postura. Ao exteriorizar os sentimentos, o ator precisa da corporeidade. Não era difícil para mim imaginar cenas assim, eu que conhecia bem o pôr-do-sol na Ponte Metálica inacabada, onde meus pensamentos se evadiam no esplendor daquele horizonte. Lembro-me de Tica Fernandes, com sua personalidade excêntrica, abrindo os braços, como se fosse abraçar o sol, chamando a atenção de quem estivesse por perto. A vida era o seu palco. Ela parecia a incorporação de uma deidade oceânica e me apontava para a liberdade e individualidade do ser. Mais próxima a mim que Kusnet ou Stanislavski, foi ela quem me deixou traços mais instigantes. Com a imensidão do mar, eu me esquecia das regras e horários do internato, até que um belo dia fui expulsa por indisciplina. Minha mãe já não sabia mais o que se passava na minha vida. Surpreendia-se cada vez mais. Fui


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para outro internato para concluir o curso ginasial e tentar o vestibular. Não sei como, mas passei no vestibular nem sei mais para que curso. Levei esse sucesso para os meus pais em Teresina. Desejava falar de algumas decisões que eu engendrava da forma mais acessível para eles. Porém, o encontro foi num momento complicado, pois meu avô estava no hospital entre a vida e a morte. Acabou falecendo. Naquele momento, eu estava muito voltada para minha própria vida, era também como estar entre a vida e morte. Sendo impossível trazer uma confrontação a mais para a minha mãe, entendi que teria de fazer o que meu coração dizia. Nesse momento de conflitos insuportáveis, os quais eu estava longe de conseguir resolver sem amparo, a alternativa era extrapolar, arriscando grandes perturbações para meus pais. Porém, nada impedia os laços afetivos. Tudo era driblado com exímia teatralidade. Existe uma maneira típica de solucionar os dramas nas famílias nordestinas. No não dito, também trabalhamos nossas dificuldades e a falta de comunicação sugere outras portas para o exercício dos sentimentos. Os acasos abrem as portas principais da travessia entre o antes e o depois. Apesar dos entraves morais, a educação que recebi contribuiu para saltar as fronteiras visíveis e invisíveis, as quais preservo, enriquecendo na minha memória a noção de origem. Somente quando atravessamos as perdas de referências e cruzamos com o anonimato, quando nos esforçamos para afirmar o que somos, gaguejando o idioma da cultura estranha, é que vivificamos os princípios herdados que transportamos como escudos pelo mundo. O importante é ir se desprendendo daquilo que oprime e preservando aquilo que nos orienta. O rompimento de fronteiras culturais é, antes de tudo, um desbravamento que começa em nós mesmos. Queria alcançar meus sonhos. Não sei onde encontrei tantas soluções. Não perdi tempo. Juntei minha mesada, a mensalidade do pensionato e mais alguns tostões. Foi o suficiente para comprar minha passagem na Itapemirim rumo à ‘Broadway brasileira’, convicta de abraçar o mundo do teatro. Fiz meu primeiro movimento mítico, iniciático: a fuga para o Rio de Janeiro em 1975. Com o coração partido de culpa, mas tomando as rédeas do meu destino, escrevi uma longa carta para os meus pais, tentando assegurá-los moralmente da minha séria opção. Fiz a ruptura anestesiada pela importância desta aventura. A partir dali, o palco foi a plataforma para meu reajuste com o mundo. Fui em busca do teatro no sentido mais sublime da minha inocência. E porque minha mãe guardou esta carta cuidadosamente, pude ler e lembrar o que escrevi 35 anos depois. E creio que escreveria o que escrevi outra vez. Quanto menos conhecemos a vida, mais nos deixamos fluir com ela. Deixei-me levar para onde pulsavam meus sonhos. O sentimento não reflete, ele é ativo.


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