Olavo
Wyszomirski
Hist贸rias do
vidigal
Olavo
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foto Sérgio Rousselet
Histórias do Vidigal é o segundo livro do baiano Olavo Wyszomirski. Wyszomirski Seu primeiro é Lugares, também lançado pela Livros Ilimitados. Além destes dois títulos, o autor, que atualmente reside no Rio de Janeiro, teve contos publicados nos livros Coletâneas Ilimitadas II e Eu queria um livro.
O Vidigal é um microcosmo O Bico da Pe do Rio. Uma celebração à beleza grande platô, o pon da favela. Dos grafites que onde se avistam os brotam em suas casas, vielas as àscaixas-d’ág espetaculares vistas de suas escarpas do Vidigal Maria seépreocupav encostas, tudo encanta, de beiradinha, tirar o fôlego. O próprio Doisenquan vam emdo caixas de fó Irmãos virou logomarca lugar, símbolo de toda Maria, cidade.deixe E quem de ser nunca quis desvendá-la por abro asas e saio inteiro? Quem nunca teve desejo infanti curiosidade sobre o modoo nome de da cel particular como os seus moradores a enxergam? Quatro vezes Vidigal poderia ser outro título para Histórias do Vidigal. São quatro histórias coloridas, cheias de viço, cada uma muito diferente da outra na forma e no conteúdo. Um livro não só para o Vidigal mas para todos que amam o Rio. Após a leitura dos textos de Olavo Wyszomirski, ISBN: 978-85-66464764 o leitor que ainda não conhece esta parte do Rio se encantará e deixará de lado possíveis 9 788566 464764 estereótipos acerca da Cidade Maravilhosa. A cidade ainda resiste e persiste, mas é através de seu maior patrimônio, os seus moradores, que a sua história hoje é www.livrosilimitados.com.br reescrita.
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vidigal
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Wyszomirski
Hist贸rias do
vidigal Fotos de Guto Costa
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Para minha m茫e, Judith.
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Agradecimentos: Augusta Magalhães Alexandre Gonçalves Laura Van Boekel Sérgio Rousselet
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Sumário As escarpas do Vidigal ou o mito dos Dois Irmãos..........................................13 A flor de mulataria, o zangão do leste e o mosquito escrevinhador....................................59 Zé Roberto.............................................................69 Porcos não são limpos e eventualmente expõem no MoMA, mas sempre voltam pra casa...81 Posfácio Olavo Wyszomirski................................................89
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As Escarpas Do Vidigal Ou
O Mito Dos Dois Irm茫os
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Prólogo
N
ós somos, eu e você, filhos da precariedade e do conflito. Crescemos aqui, nestas escarpas debruçadas sobre o oceano, onde tudo acontece desde sempre. Mas é como se rios de tempo separassem a nossa realidade do mundo que nos cerca. Você lembra? Uma vez, voltávamos de uma caminhada e vimos aquela cena horrível. No sopé da montanha, às portas do morro, aquela massa cinzenta e viscosa esparramava sobre o asfalto memórias e desejos, sonhos e sensações. Como pode um órgão enrugado, nojento, alojado nos nossos crânios, encerrar o mistério de uma vida inteira? Alguém fora morto perto de casa e tudo o que eu podia fazer era lhe abraçar com força. Mas, em vez de se aconchegar em meus braços, você saiu correndo, aos soluços... Sua tez morena descorada, como se tivesse flagrado o exato momento em que o gatilho da arma cometera aquele desatino, arrancando em um suspiro o futuro de alguém.
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Q
uando chove no Dois Irmãos, as pessoas que moram em suas encostas, dependuradas em construções que desafiam a lógica e o bom senso, ficam apreensivas. Ao contrário do que se supõe, não é apenas o perigo de deslizamentos de terra e desabamentos que aflige mentes e corações. Muito morador do morro, frequentador do asfalto e mesmo os gringos que surgem com suas falas esquisitas e sotaques coloridos ficam sempre de prontidão, com a sensação de que algo está por vir. Porque não importa o idioma. Donas de casa, trabalhadores e instrutores de asa-delta sabem. O morro não perdoa. Todo morro tem seus humores. Alguns são mais calmos, mantêm sua aura de mistério em lugares remotos, longe de toda civilização, perdidos em tempos imemoriáveis, como se Deus, eternamente reclinado sobre confortáveis almofadões de nuvens, sentasse ali apenas para decidir o destino de quem quer que fosse. No sítio deslumbrante e abençoado de São Sebastião do Rio de Janeiro não. Tudo é diferente. Cada pedra da cidade tem sua personalidade, embora todas testemunhem um pequeno milagre diário ao entardecer, quando as luzes dos casebres se acendem. É como se, no crepúsculo dos deuses, todo morro vivesse em um Rio de luz.
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Não sem outro motivo, quando chove no morro, tudo transmuta: os humores, os ânimos, as preocupações... Quando a tempestade antecipa o pôr do sol e as negras nuvens encobrem o alto do Dois Irmãos, quando o vento bate na rocha, quando as águas desabam como em um milagre terrível, o morro muda. Mais do que no Pão de Açúcar e o seu bondinho de turistas, mais do que no “gigante adormecido” que, nesses dias, não vê decolar sequer o mais destemido dos praticantes de voo livre e mais até do que na rocha cujo topo é a morada sacramentada do filho de Deus, é no morro dos gêmeos que os milagres acontecem. Aqui surgem cascatas, e rios nervosos correm em direção ao mar e são tantos flocos de nuvens a pressionar os cumes do Dois Irmãos que eles transbordam encosta abaixo, lenta e languidamente, tornando-se cachoeiras diante de olhos assombrados, temerosos pelos que não se encontram na segurança de um lar bem-assentado, no Vidigal ou além das escarpas rente ao mar. Porque não há quem olhe para esses rastros d’água sobre a gigantesca pedra encharcada e não enxergue ali muitas lágrimas. Para muitos, nesses dias, os dois morros são como cascos de navios encalhados, naus cobertas de limo, lodo e tristeza. Nesses dias de chuva inclemente, quando os elementos se revoltam, a natureza entra em convulsão e os corações parecem não caber dentro do peito, a lembrança dos que morreram no Dois Irmãos se faz mais presente. Ano após ano, as chuvas chegam e tragédias se
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multiplicam, como lamentos sem fim. Primeiro, correu no Vidigal o caso do jovem que se arrebentou no fundo da garganta um pouco abaixo do Bico da Pedra. Depois, falaram do homem empalado por um galho da árvore mais alta, plantada pelas mãos do Divino em um abismo lá pelas bandas de São Conrado. E ainda houve quem ficasse surpreso com o alemão que se atirou no vazio em busca do amor jamais correspondido. Mas nenhuma dessas histórias pode ser comparada com a dos jovens que se conheceram nas alturas quando o morro ainda nem tinha nome. É curioso como algumas coisas que não podem ser esquecidas se perdem com o tempo. Com os jovens não. A história deles se tornou uma lenda. Seus nomes, um mito. E por décadas Maria e Gabriel nunca deixaram de ser lembrados. Maria e Gabriel se encontravam às escondidas. Viam-se havia alguns meses e com uma regularidade que só a juventude e a paixão justificam. Um observador pouco atento poderia tomá-los como um casal de desgarrados, mas juntos adentravam num mundo que pertencia somente a eles! Com frequência eram encarados como vultos misteriosos, reféns de fraquezas, desejos e apelos movediços. O morro e a favela eram cúmplices desse amor e, quando se amavam, tanto um quanto o outro buscavam a segurança dos horários não convencionais e dos refúgios isolados. O Bico da Pedra era um deles.
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O Bico da Pedra é uma saliência de rocha, um grande platô, o ponto mais alto do Irmão Maior, de onde se avistam os morros, os vales, os telhados das casas, as caixas-d’água azuis, a cidade e as magníficas escarpas do Vidigal. Era o lugar preferido de Gabriel. Maria se preocupava, temendo por ele ficar ali tão na beiradinha, enquanto os prédios do Rio se transformavam em caixas de fósforos, mas o amado apenas ria: Maria, deixe de ser boba, não se preocupe! Se eu cair, abro asas e saio voando!, dizia ele, aludindo ao desejo infantil de virar anjo. Pois não lhe deram o nome de um? Por que não atingir a abóbada celeste e bater às portas de Deus? Gabriel também dizia que Deus não tinha nada a ver com isso, mas que os lábios de Maria eram tão delineados quanto asas prestes a alçar voo, e isso o encantava! Gostava de vê-los em movimento, a língua quase alcançando o céu de sua boca, e ao jovem não restava alternativa senão se atirar naquela fenda, tão misteriosa quanto a garganta natural e ameaçadora do morro! Mas, ao contrário dele, sua textura era macia, úmida. Por que Gabriel sempre a levava ali? Na primeira vez em que se encontraram praticaram rapel e Maria não podia imaginar quão perto estava desse lugar. A clareira onde vira o rapaz de cabelos encaracolados não era muito assustadora e o manto verde das encostas sobrepujava qualquer sinal de medo. A vegeta-
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ção funcionava como berço, um ninho de árvores e, caso uma corda rasgasse ou outro equipamento de segurança falhasse, ela perderia um dente e não a vida! Mas não era por ela que temia. Além disso, havia os sonhos. E se, pela primeira vez, vivia o melhor deles, acordar seria a mais dolorosa e derradeira de todas as quedas, a verdadeira morte. Como era bom estar nos braços de Gabriel, sentir o corpo dele, deixar que os lábios fossem de encontro aos dela, mordê-los e, por fim, em um suspiro, morrer! Morrer assim, pensava, não seria de todo ruim, contanto que não o perdesse para a garganta do morro, onipresente, eterna e imortal! Ao entregar-se àqueles abraços calorosos, sentia, fascinada, que os limites de sua felicidade, na companhia do amado, iam muito além do horizonte que o Bico da Pedra lhes oferecia a cada encontro às escondidas! Ainda assim, a inquietude e a apreensão permaneciam. Gabriel escalava. Gabriel vencia a rocha. Gabriel se dependurava. Ousava. E se as escarpas do Vidigal um dia o quisessem? Seria sua sina perdê-lo para o lugar que ele tanto adorava? Maria olhava para o amado e era como se soubesse o que esperar dele para se desesperar por ele. Do mirante do Bico da Pedra era impossível não enxergar o contorno da lagoa Rodrigo de Freitas, ele próprio um clichê – um coração.
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O de Maria batia forte. Acelerado. A felicidade quase transbordou em lágrimas quando Gabriel a puxou para junto de si, dizendo-lhe, com um sorriso comprometedor que, se um dia ele partisse, ela não deixasse de lembrar que foi na clareira, na subida para o Bico da Pedra, que eles se conheceram! Não poderia ser diferente. Era como se Gabriel lhe tivesse dito que era seu. E seu também era aquele lugar. Ou nosso. E se a gente descesse? E se deixassem de ignorar o nosso amor lá embaixo? Não temos como nos encontrar para sempre aqui no cume do morro, Maria! Gabriel lhe ensinou a fazer rapel, a verificar os apetrechos, a abastecer a mochila, a preparar o cordame, a checar o cinto de segurança, a respeitar o rochedo traiçoeiro, a contar as estrelas no céu de ébano das noites sem lua... E de Maria, o que sabia? O mundo de Maria era algo quase tão inatingível quanto aquele platô para o resto da cidade. Ao mundo, o Rio exercia seu fascínio. Ao Gabriel, o Vidigal. Ele desejava loucamente descer, misturar-se à comunidade! As pessoas que conviviam com Maria pareciam divinas, os
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cenários eram os mais belos! Por que fazer do Vidigal um lugar de miséria? Pois não era ele a alma do morro? Vamos rolar ribanceira abaixo, beber à beleza da favela! O que mais você poderia querer? Mas Maria não queria. Protelava. Resistia. E por mais que o Bico da Pedra fosse um lugar de medo e prazer, de vida e morte, por mais que visse o ponto mais alto do Irmão Maior como trampolim para uma existência sem sentido, longe de Gabriel, a adolescente se apegou à ideia de que, pelo menos por um tempo, o mirante seria seu maior aliado. Daí encontrar-se com o menino de nome de anjo às escondidas durante meses a fio, embora a certeza de que seu amado encontraria ali o fim pairasse sob os seus pensamentos. O quadro pintado por Maria, cujas tintas vívidas se destacavam sobre a beleza pictórica e escultural do morro, era tão forte que por um bom tempo Gabriel se convenceu do contrário. Maria não queria que fossem vistos juntos na favela apenas por serem de mundos diferentes, mas também porque ela o desejava. Não eram mundos, e sim interesses que colidiam. O jovem que parecia voar sobre os abismos achava que um dia Maria pudesse arranjar outro. Ou, quem sabe, apenas esqueceria as tardes tórridas ao lado dele na pedra quente? Era este seu único temor. Esquecer-se dele. Não podia ser lembrado como a rocha que frequentava, lápide de seu grande amor. Uma vez riscou de giz as iniciais da garota no topo da montanha, na superfície de granito, em um ponto inacessível do Bico.
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Nunca lhe mostrou o desenho ou a levou ali. Já o voo de Maria era de outra natureza. A fé move montanhas, mas também as fortalece. Uma vez, sentada ao lado de Gabriel, após uma longa escalada, assistiam ao crepúsculo e, pouco a pouco, o azul do céu se degradou em tons de ocre e violeta. Quem disse que o fim teria que ser ruim? O pôr do sol não o fascina? Disse-lhe isso para eternizar o momento como símbolo de um sentimento que, sabia, nunca desprezaria. Gabriel achava desproporcional – ou, no mínimo, digno de desprezo – a prataria impecável, a troca de automóveis e os modos sutis como os subalternos eram repreendidos. Desde a mais tenra idade, convivia com uma ostentação que, se não era natural, reforçava preconceitos. O que para muitos era uma válvula de escape, ou mesmo desatino, para o menino rico da zona sul era a pomba branca em vale de trincheiras: O rapel! A adoração pelo esporte de risco, solitário e libertador não raro provocava discussão e confusão. Sua paz era o tormento dos pais. Seu júbilo, a extrema-unção! Hosana nas alturas! Só Deus para plantar no alto de uma rocha, à beira de um abismo, a mais singela flor da favela! E não coube a Gabriel descobri-la? Regaria esse amor, cuidaria, não é?
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Por que então entrariam em pé de guerra quando o vissem juntos? Por que a condenariam como o faziam com o rapel, sua outra paixão? Teria que escalar mundos, ultrapassar fronteiras, galgar nuvens para convencê-la a levá-lo para a favela? Eram muitas as dúvidas, mas Gabriel enxergava a situação de um ângulo só seu: ele via Maria como a mais extraordinária e valiosa rosa de um penhasco, canela calcinada pelo sol, raríssima, dessas que florescem uma vez a cada dez gerações! Ela era linda, e ele bem sabia disso. Ela não. De uma humanidade profunda e pungente, era capaz de ouvir com doçura e por horas o companheiro, e da fronte dessa menina terna brotava um par de olhos amendoados, cor de bronze, imensos... Dois precipícios. Ao encará-los, perdia chão. Nenhuma outra mulher o fizera se sentir assim. Vacilo, vertigem. Porque nenhuma mulher na face da Terra seria capaz de ouvi-lo como Maria.
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Nenhuma outra, fosse menina, velha ou criança, nem mesmo um amigo, homem ou ser vivente, desta ou de outras paragens, o veria com olhos tão encantadoramente ternos, sempre dispostos a enxergar mais do que o véu das aparências. Porque se dizia do moço que ele era dono de uma beleza quase sobrenatural. Ainda assim, nada que fosse humano lhe era indiferente: Por que não me leva para conhecer o seu mundo, para as pessoas simples do morro que trabalham para tirar o próprio sustento, que vibram ao som da cuíca, do surdo e do tambor, que torcem como a mais vibrante das torcidas, que comem com os olhos, brincam com os filhos, vivem como loucos que desconhecem o dia de amanhã?, insistia Gabriel. Por que não posso ficar com você, Maria? Por que Maria questionava, remexia e envolvia? Ora, não sem outro motivo, era a rosa mais singela dos Dois Irmãos que vivia ali, com ele! Seu amor não poderia crescer em outro lugar! Suas raízes estavam bem fincadas no alto da pedra e se nutriam de um adubo único: a verdade. E a verdade é que ela não via Gabriel em outro mundo. Imagine ele em meio ao Vidigal, ao vaivém de mototáxis, à confusão dos feirantes, à balbúrdia do morro! Se isso fosse verdade, retrucou Gabriel, eu não apelava tanto. Pois é o que faço, disse Maria. Em nome de tudo o que há de bom em você, e com toda a minha sinceridade, não peça para visitar a favela comigo!
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Ainda que não acreditassem nas razões um do outro, naquela tarde eles estenderam a discussão apaixonada por um período impreciso, sem fim. O sol já acenava, distante. Não havia malícia ou rancor em suas vozes, embora a conversa franca se desenrolasse, como de hábito, aos sussurros, quase imperceptível a quem, por ventura, fosse capaz de flagrá-los ali, no Bico da Pedra, em tão curiosa manifestação de arroubo adolescente. Muito do que Gabriel dizia e sentia tinha a ver com o fato de a primeira incursão de Maria ao seu mundo – à sua bela casa no alto da Gávea, rodeada de grama e empregados – não ter sido uma demonstração gratuita de aceitação por parte de sua mãe, embora a cordialidade e o respeito fossem exemplares, como de costume. Dona Augusta era o seu nome; uma distinta senhora de meia-idade, cujos cabelos fartos, dourados, que despencavam em cachos, emolduravam o rosto de traços eslavos e lhe coroavam a cabeça. Sua expressão altiva não era outra coisa senão um convite à admiração. Um desavisado notaria a extraordinária semelhança entre Dona Augusta e o filho: a boca proeminente, os olhos cor de anil, a beleza desavergonhadamente assumida... não fosse Gabriel adotado e, ao contrário da mãe, dotado de índole incorruptível e das mais sinceras. No fundo, Gabriel sabia que queria poupar Maria do desconhecido, mas desejava de todo o coração a aceitação.
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Quero que você a conheça, falou à mãe. Você vai adorá-la, repetia ele. Era um desejo irresistível, a vertigem do abismo, por assim dizer. Pois que o tragasse aquele abismo, a ele pouco importava: em busca do amor de Maria, e de sua aprovação, de bom grado se precipitaria nele. O encontro com Maria fora arranjado com cautela e, em sua condição filial – o que seriam seus vinte anos frente à experiência da mãe? –, Gabriel se ressentia de promessas veladas, de acordos não firmados. Talvez ele nutrisse a esperança de um milagre, mais flexibilidade de dona Augusta ou, no mínimo, menos rigidez. Sabia o quanto o encontro com a jovem lhe custava, mas entendia também que, por amor ao filho, ela seria capaz de pôr as diferenças de lado e se deixar arrebatar por Maria, sua mais singela flor da favela. Na Gávea, a dona da casa reafirmava, sem desdém, que a diferença social em nada influenciaria e, caso fosse de sua inteira responsabilidade, poderiam marcar em um dia com menos serviçais, para não intimidar a moça, se assim Gabriel o desejasse. Havia um ar de anuência em tudo o que dizia ou fazia, mas era impossível saber suas razões: um mero capricho ou a tentativa de descobrir o quanto ele estava envolvido. O filho, ao contrário, quase conseguiu arrancar da augusta mulher o derradeiro juramento de que, se fosse possível a ela resistir aos encantos de Maria, ao seu jeito doce, terno e despojado – e por que não autêntico? – ao menos não o demonstrasse de modo abrupto ou ríspido. Por um momento, Gabriel teve a impressão de estar, sem dúvida, no caminho de tão valiosa confirmação.
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Ele tinha a vaga consciência de que a mãe se comportaria de forma irrepreensível, senão por Maria, por princípios. Nada poderia ser mais esclarecedor do quanto ela havia feito para promover o encontro dos três: despachou a governanta e parte da criadagem e providenciou que o tão esperado dia transcorresse, a pedido de Gabriel, sem maiores sobressaltos ou surpresas. Não fora em vão que alçara o posto de esposa de um dos médicos mais conceituados do Brasil: o que fizera ela no mundo senão receber, sondar e tirar proveito? Contemplava o belo rosto do filho – um indiscutível pedido de ajuda, nada além, imaginava – com a convicção tranquila de quem em pouco tempo saberia de tudo. Como poderia deter a curiosidade antes de descobrir quem de fato era a menina? Era patente a total e irrestrita falta de escrúpulos quando o assunto envolvia aquele filho que não saíra de seu ventre e, talvez por isso mesmo, era ainda mais amado e mais estimado. Porque diziam que Augusta era dona de temperamento sanguíneo. A Maria cabia a inocência em flor. E a Gabriel, amar a rosa mais bela do penhasco. O convite se deu de forma casual. Não estavam os dois no morro Dois Irmãos, como de hábito. Tampouco já tinham começado a frequentar o Vidigal, e a jovem Maria não só demonstrava firmeza, como também parecia intuir o que estava por vir. A temperatura subira, e o vento tépido trazia para a enseada o perfume úmido da mata atlântica, ali tão próxima, e do verão que se antecipava.
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Àquela hora, fim de tarde, quase não havia mais banhistas na praia do Vidigal e a maré estava baixa. As diminutas poças d’água na areia brilhavam ao poente. Havia pedras embaixo das amendoeiras, onde eles podiam se sentar, admirar a vista para o Leblon e conversar: uma oportunidade que, em meio ao burburinho das ondas, a Gabriel ofereceu o pretexto perfeito para perguntar: Ei, Maria, você não tem nem curiosidade? Um homem de torso nu empurrava uma frágil embarcação de madeira de encontro ao oceano e, afora um moleque que corria em direção à escadaria de acesso à avenida Niemeyer, apenas os Dois Irmãos eram testemunhas da conversa entre o rapaz do rapel e a garota que se encantara por ele nas alturas. Agora, no chão, os cabelos castanhos de Maria tremeluziam com o vento. A noite surgia e o dia morria. Mas ela não respondia e a Gabriel parecia perdida. Estava completamente imersa no fascínio das ondas. Uma delas se atirou aos seus pés no areal da enseada do Vidigal. Uma rocha à beira-mar a dividia em duas. O morro a costeava, imenso. Os elementos conspiravam para ressaltar os traços da rosa mais bela e singela do penhasco. Mesmo aqui, na areia, longe de casa, fora de seu habitat natural, Maria exalava seu viço em meio a tudo o que respira, cresce e fenece. O menino seguiu apressado rumo à avenida eternamente congestionada do Vidigal enquanto o pescador de peito de fora atravessou a linha da arrebentação e, quase
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sem esforço, jogou a rede para dentro do barco. De lá, viu o sol se pôr sobre um mar que pegava fogo. Um incêndio pintado numa tela impressionista não teria efeito mais bonito. À medida que a imensa bola de prata roubava do sol o seu posto no firmamento, as marolas eram tingidas de filamentos argênteos em meio a uma treva pálida e de aspecto quase sobrenatural. Do barquinho o homem atirou novamente a sua rede de pesca. O garoto sumiu. A escada estava vazia. Isso é mesmo importante para você, Gabriel? Gabriel era só uma interrogação, estava intrigado, diria a Maria as coisas mais lindas, mas tudo o que conseguiu demonstrar foi uma expressão de alívio. Agora a agarraria com força e, juntos, voariam para a favela plantada no sopé da grande montanha mas ele não podia fazer isso. Não naquele momento. Queria poupá-la, decerto – afinal, a amava –, não se tratava de desespero ou outra emoção vulgar. Era proteção. Eu não desejo outra coisa, minha querida! E você, o que me diz? Gabriel esperava que ela concordasse, mas não tinha direito de perguntar ou antecipar questão tão espinhosa, sob pena de pressioná-la. Já bastava que Maria fosse de um mundo tão diferente do seu. Soava como ofensa, pior, como deboche intolerável, alguém se predispor a magoá-la. No que dependesse dele, tal hipótese resultaria mais do que em mero protesto. Seria franca rebelião, algo inconcebível.
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A luz fraca do luar conferia à tez negra e ao sorriso enigmático de Maria uma força e uma presença de espírito que pareciam não caber em uma menina de apenas 17 anos. Ainda assim, olhando-a de relance, sob o brilho das estrelas que salpicavam refletidas no mar, Gabriel teve certeza de que ninguém mais poderia ser dona de tão comovente prova de confiança e cumplicidade. Enquanto Gabriel sorria com os olhos, Maria devolvia com os lábios abertos, quase a alçar voos. Deles, ouvia a resposta: Meu querido... E, ao chamá-lo para junto de si, Maria o fez com o mais sutil toque de um sino, enquanto flechas martirizavam o rapaz com nome de anjo. Como posso negar algo a você? Se diz que é importante, concordo. Vamos logo. Vamos conhecer a sua casa. Vamos de encontro ao seu mundo. Mas depois não insista para conhecer o meu. A voz plena e suave da amada era tudo o que ele podia escutar, um bálsamo para os ouvidos. Abraçou-a, emocionado. Não era o abraço que reservava às pessoas da casa – quanto a isso não restava a menor dúvida – e abraçados saíram como se fossem contar a todos a boa-nova. Gabriel sabia que as coisas terminariam bem. Dona Augusta poderia até vir a gostar dela. Encantos não lhe faltavam. No entanto, o pescador já puxava a sua rede. O mar não estava para peixe. O morro Dois Irmãos era seu único álibi.
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Depois de tudo, de todas as evidências ignoradas e pensamentos que lhe assombravam o espírito, da sensação palpável e quase sempre premente de que no alto do venerável morro Gabriel encontraria o seu fim, Maria se predispôs, de forma prematura e ingênua, a enxergar o que acontecera entre eles. Não foi fácil nem natural. Para a mais singela flor do penhasco, imaginar-se sem o amado era como arrancar uma pétala de um galho negro, úmido, fadado a murchar, secar e desaparecer. Uma vez, a ela ocorreu que só em sonho poderia acontecer coisa tão terrível e inacessível. Inatingível como o Bico da Pedra. O grande platô do Irmão Maior. Em seus mais loucos devaneios, a jovem de pele calcinada pelo sol punha-se a subir as encostas do Vidigal e, finalmente, chegava ao ponto de onde se via quase toda a cidade. O Rio corria lá embaixo, aos pés da poderosa nau de pedra envolta em nuvens cinzentas, pesadas, e de repente, do nada, o mundo se dissipava. O verde das matas, os blocos plúmbeos. A luz enviesada do sol poente tingia de vermelho sanguíneo os torreões de concreto dos edifícios da zona sul. E, como por encanto, tudo se tornava branco, imaculado e belo.
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OLAVOWYSZOMIRSKI
lugares (contos)
“Olavo Wyszomir onde vive cercado trabalha na Livra nhei dele Lugares estreia literária. S ria. Sucesso, meu
“Um livro que va que merece um lu LUIZ
LUGARES
“Para os aficiona indico Lugares de livro de estreia, O primeiro texto, qu de pintura do est mostra o que n lermos os seis ou com o fantástico, macabro e o susto
“Um grande conti
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Um relógio que pressagia a hora derradeira, um legista cujo o corpo é usurpado por um espírito, o medo ancestral em uma floresta... Há algo à espreita nos sete contos de Lugares ! Os personagens criados por Olavo Wyszomirski deveriam viver situações comuns, mas uma presença que não pode ser mencionada - as vezes sequer detectada - faz com que as histórias tomem rumos surreais. O leitor que aprecia contos de mistério, suspense e terror ficará impressionado e arrepiado com Lugares.
“Não há como pa sem ser atingido p tação - inquietaç leitor as manifesta como testemunh tempo, um retrato meio desse espan homem chega ao A essa forma de f pode ficar indife revela, paradoxalm das coisas”.
O Bico da Pedra é uma saliência de rocha, um
grande platô, o ponto mais alto do Irmão Maior, de onde se avistam os morros, os vales, os telhados das casas, as caixas-d’água azuis, a cidade e as magníficas escarpas do Vidigal. Era o lugar preferido de Gabriel. Maria se preocupava, temendo por ele ficar ali tão na beiradinha, enquanto os prédios do Rio se transformavam em caixas de fósforos, mas o amado apenas ria: Maria, deixe de ser boba, não se preocupe! Se eu cair, abro asas e saio voando!, dizia ele, aludindo ao desejo infantil de virar anjo. Pois não lhe deram o nome de um? Por que não atingir a abóbada celeste e bater às portas de Deus?
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